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Relações de saúde e relações de doença

APRESENTAÇÃO

Relações de saúde e relações de doença

Caso existisse algo como "a saúde" de forma individualizada e singular, a sua descrição talvez pudesse ser realizada como a de um objeto transcendente e universal, contraposto a um substantivo tal como "a doença", mas que, por sua inexistência, também não pode ser considerado.

A historicidade das relações de saúde e das relações de doença que as coletividades vivenciam nega, contudo, a possibilidade de se entender, descrever ou interferir, fora de uma perspectiva de conjunto, de reciprocidade e de movimento, o que venha ser o estado sadio ou insalubre. Em nenhum destes dois casos, nem um entendimento dualista, nem um simples relativismo, ou porventura um culturalismo obstinado, servem para explicar por que, frente aos avanços da produção nas ciências da saúde, as estruturas hospitalares e ambulatoriais de caráter público continuam ineficientes. Não se nega aqui o esforço de muitos profissionais, técnicos, intelectuais, gestores e alguns políticos, porém também não é possível negar que os objetivos que se tentam perseguir estão bem longe do que se vê realizado. O volume e a qualidade dos atendimentos não são compatíveis com os conhecimentos disciplinares localmente adquiridos e com a proposta de visão integral do paciente.

A expectativa de algo a fazer que não se completa, a perspectiva de dificuldades insuperáveis, mascaram as possibilidades que a interação de conhecimentos disciplinares diferentes pode permitir. As divisões disciplinares só existem se insistirmos em não vê-las como constructos artificiais, pois, no atacado da produção de conhecimentos científicos, o que é unicamente biológico ou psicológico, o que é somente história ou estatística, se faz porque precisamos preencher formulários, porque necessitamos escrever livros e artigos, razões entre outras que configuram as divisões profissionais nas sociedades modernas.

Esta introdução vem em razão dos textos, que aqui formam um dossiê unido pelos temas da saúde e educação, amalgamados por diferentes aspectos do que se entende comumente por divulgação ou disseminação pública de conhecimentos científicos. Cada um dos três artigos abaixo traz entendimentos sobre processos históricos capazes de ajudar a pensar e, com algum esforço, quem sabe, construir práticas de saúde por caminhos mais inclusivos.

O artigo de André Mota, "Higienizando a raça pelas mãos da educação ruralista: o caso do Grupo Escolar Rural do Butantan nos anos 1930", discute um conjunto de propostas de ensino levadas adiante em pleno governo Vargas, em sua tentativa de construção de um estado forte e, ao mesmo tempo, de uma nação civilizada. Daí a junção entre a infância - ponto central das ações educativas - e o estímulo a preceitos sanitários e morais que auxiliassem na proposta de moldar as populações originárias do campo. Ao discutir trajetórias e limites de tal projeto, Mota fala de um período específico e traz argumentos para uma discussão que compreende dimensões etnográficas, se quisermos olhar a educação também pelo seu viés de difusão de conhecimentos técnicos aliados à natureza abstrata do que é dado transmitir.

É exatamente este aspecto, o da expressão descritiva sobre os percursos históricos da educação e saúde brasileiras, que o segundo estudo "Educação sanitária em 16 mm: Memória audiovisual do Serviço Especial de Saúde Pública - SESP", de Maria Cristina Soares Guimarães et al., vem expor.

O artigo dá notícia sobre o importante trabalho de resgate de acervos e sua conservação. Apresenta um conjunto de filmes produzidos, a partir dos anos 40, com auxílio da Fundação Rockefeller, especialmente para a divulgação de conhecimentos sobre saúde, como forma de educar a coletividade sobre diversos tipos de moléstias, sobretudo em continentes tropicais como África, Ásia e América Latina.

O cinema educativo, embora ainda pouco explorado como fonte de estudos, é uma possibilidade de entendimento bastante diversificada. Auxilia tanto na compreensão das concepções de ciência, sociedade, público, de um determinado período e lugar, quanto fornece pistas sobre a formação das estruturas que definem nossas concepções de saúde e doença como coisas estanques e individualizadas. Nisto dialoga intimamente com as formas ocidentais de impor educação, de instituir conhecimentos e determinar "visões de mundo".

O terceiro e último artigo deste conjunto de trabalhos é o texto intitulado "Acervo de materiais educativos sobre hanseníase: um dispositivo da memória e das práticas comunicativas", de Adriana Kelly-Santos, Simone Souza Monteiro e Ana Paula Goulart Ribeiro.

Ao descrever e analisar diversos tipos de suportes cujo objetivo foi disseminar informações sobre uma doença específica, a hanseníase, entre os anos 1975 e 2008, o artigo traz à tona um debate que fecha este pequeno ciclo de discussão. As importantes conclusões do artigo apontam para a insistente desconexão entre práticas de educação e de divulgação. Traça o escasso acompanhamento sobre a "efetividade das estratégias adotadas", frente às políticas de informação a que públicos diferenciados (pacientes, acompanhantes e categorias vulneráveis) estão sujeitos. Ao mesmo tempo, fornece indícios de procedimentos e ações capazes de diminuir as distâncias entre o público e os serviços de saúde, quando as atividades educativas deveriam deixar de ser "verticais, unilaterais e lineares".

As questões levantadas pelos artigos apresentados nos inclinam a formular alguns entendimentos. De maneira geral, querer a aplicação única e exclusiva de conhecimentos técnicos sobre a complexidade das relações de saúde e doença, em relação ao lugar social do paciente e ao poder do médico ou do educador, por exemplo, pode não ser plenamente eficaz. Em segundo lugar, a associação entre cientistas das chamadas ciências humanas e aqueles responsáveis pela produção de conhecimentos biológicos pode permitir vislumbrar entendimentos que gerem associações mais vantajosas para todos os que se dedicam ao campo, inclusive pacientes. Por fim, poderíamos procurar estudar as redes de relações de modo a explicar como, com quais custos e a que grupos interessam a manutenção da defasagem entre qualidade da produção de conhecimentos científicos em saúde e a insuficiência do atendimento dos serviços oferecidos ao público no Brasil.

Márcia Regina Barros da Silva

Universidade Federal de São Paulo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Ago 2012
  • Data do Fascículo
    Mar 2010
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