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Saúde bucal no Brasil: muito além do céu da boca

LIVROS

Adriano Maia dos SantosI; Ana Áurea Alécio de Oliveira RodriguesI

IInstituto Multidisciplinar em Saúde, Campus Anísio Teixeira, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Av. Olívia Flores, 3000, Candeias, Vitória da Conquista, Ba, Brasil. 45.055-090. maiaufba@ufba.br

IIUniversidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

NARVAI, P.C.; FRAZÃO, P. Saúde bucal no Brasil: muito além do céu da boca. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008 (Coleção Temas em Saúde).

O Sistema Único de Saúde (SUS), em 2008, completou vinte anos, mas ainda ficamos perplexos em face dos desafios a serem enfrentados. Compreender a saúde como direito e, portanto, como um bem inalienável é uma premissa para a transformação no modo de lidar com as políticas públicas. O livro 'Saúde Bucal: muito além do céu da boca' põe em evidência essa questão e, pertinentemente, demarca o caráter ético-político dos sujeitos como elemento preponderante para definir os contornos do sistema de saúde no Brasil, especificamente, no tocante à saúde bucal.

Publicado pela editora Fiocruz, o livro faz parte da coleção 'Temas em Saúde' e apresenta-se como uma ferramenta didática para exploração do contexto sociopolítico da Saúde Bucal. Nesse sentido, a expertise dos autores, dois expoentes da Saúde Bucal Coletiva no Brasil - Paulo Capel Narvai e Paulo Frazão, professores e pesquisadores na Faculdade de Saúde Pública, da Universidade de São Paulo (USP), produtores de inúmeros artigos - foi decisiva para a qualidade e fluidez do texto. Além disso, são referências obrigatórias nos estudos sobre a Saúde Bucal e contribuem, consubstancialmente, para a consolidação das políticas públicas de saúde, implicando-se com questões teóricas e práticas do dia-a-dia do SUS.

Apesar de inúmeros problemas, o Brasil avançou ao reconhecer a saúde como direito de todos e dever do Estado. O caráter de Sistema Nacional de Saúde legitimado ao SUS, ancorado pela universalidade, integralidade, participação social e equidade, inseriu na agenda do Estado a questão da proteção social e da solidariedade, abrindo inúmeros desafios para as políticas públicas. Um dos grandes legados dessa política é não poder fragmentar a saúde bucal de jure, ainda que de facto permaneça reproduzindo tais iniquidades. Mergulhar em questões delicadas como estas, bem como demarcar os cenários e os sujeitos, é uma das estratégias do texto para conclamar a sociedade à ação.

Na apresentação, os autores dão uma pista do que nos espera ao degustarmos as páginas seguintes da obra: "[...] buscamos compreender a saúde bucal em suas várias dimensões, transitando do biológico ao social e ao psicológico e analisando suas implicações políticas. Pretendemos, além de possibilitar a compreensão dos problemas desta área no contexto do sistema e das políticas de saúde no Brasil, que o leitor possa dispor de elementos para exercitar a crítica das ações desenvolvidas nesse âmbito e, também, participar de modo qualificado dos processos de tomada de decisões envolvendo a saúde bucal e a produção do cuidado em saúde bucal" (p.13). Trata-se de objetivos ousados e implicados com a transformação dos sujeitos, diríamos até nada modestos.

Em 148 páginas, em formato 12,5x18cm, o "livrinho" toma dimensões inesperadas, reforçando a máxima de que "o que vale é o conteúdo". E é, exatamente, no corpo do texto, que os autores dão a robustez necessária para levar à frente uma revisão e propor um debate atualizado acerca da política de saúde bucal no Brasil. Fazendo-se uma metáfora para contemplar o despojamento do texto, a sensação é de que o "Brasil" foi ao consultório odontológico, nele encontrou dois grandes estudiosos que, por meio de uma anamnese apurada, foram anotando toda uma "história de vida" e, ao abrirem a boca desse jovem com pouco mais de quinhentos anos, perceberam que o problema era sistêmico, sendo necessária uma intervenção que requer olhares de outras formações, respeitando, inclusive, a singularidade desse sujeito sob cuidado.

O texto é escrito de maneira a estabelecer um diálogo com o leitor, conectando-o com os diferentes elementos que embasam o campo científico e político em relação à saúde bucal. Nesse sentido, os autores, didaticamente, subdividem o conteúdo do livro em sete capítulos. Como um novelo, o livro apresenta a ponta do fio, cabendo ao leitor, com a agulha da criatividade, tecer os diferentes bordados que configuram os distintos sentidos e significados da saúde bucal. Para tanto, Narvai e Frazão abordam desde aspectos relacionados aos problemas biológicos da saúde bucal a elementos da complexidade organizacional no terreno das políticas, não se eximindo de apontarem caminhos e opções ideológicas.

Com um estilo elegante, os autores retomam trechos da fala do presidente Lula e de outros atores e, sem engessamento metodológico, analisam as diversas passagens para substanciarem as argumentações e nos evidenciarem a importância dos sujeitos na tomada de decisão. O reconhecimento, aliás, é resgatado no final da obra quando os autores listam uma série de sugestões de leituras e atribuem a riqueza sintetizada no livro aos estudos realizados por inúmeros defensores do SUS e da saúde bucal como direito de todos.

A 'Saúde Bucal' e os 'Problemas de Saúde Bucal' são os títulos dos dois primeiros capítulos. O primeiro retoma uma discussão acerca do conceito de saúde bucal e as suas múltiplas dimensões, sendo, de certa maneira, um conceito polifônico. No segundo, há o cuidado em situar o leitor, inclusive aquele que não tem uma formação na área da Odontologia, em relação aos aspectos do processo de saúde-doença relacionados aos componentes do sistema estomatognático. Apresentam-se de maneira simplificada, mas relevante, as características históricas, clínicas e epidemiológicas dos principais agravos bucais: cárie dentária, doença periodontal, má oclusão dentária, fissuras labiopalatais, câncer de boca, fluorose dentária, traumatismo bucomaxilofacial e cárie dentária radicular.

Destacam-se, ainda, tendências mundiais que influenciam nos problemas de saúde bucal na atualidade: 1 progresso substancial científico-tecnológico e informacional em saúde, nas décadas mais recentes; 2 mudança nosológica, demográfica, etária, alterações climáticas, tensões sociais e desafios à segurança alimentar; 3 sistema mundializado, instável e fluido, comercialização desregulada e apagamento das fronteiras entre público e privado; 4 mercado de trabalho e aspectos relacionados à formação.

A 'Mutilação Dentária e Percepção da Saúde Bucal', que desvela a face cruel da história da saúde no Brasil, é a abordagem do capítulo três. Os autores fazem uma retrospectiva histórica desse problema no Brasil e em outros países, tocando na chaga que permanece nas faces de muitos brasileiros, em pleno século XXI. Quais seriam as causas da perenidade da mutilação dentária como opção de tratamento? Quando se debruçam na questão nacional, expõem todas as já conhecidas mas sempre necessárias críticas ao processo de trabalho do cirurgião-dentista e aos aspectos políticos, econômicos e culturais do Estado brasileiro. Para os autores, "[...] cabe destacar a orientação liberal do Estado, presente em muitas regiões e países, que engendra, em muitos casos, uma estrutura de serviços escassos e desigualmente distribuídos, na qual os profissionais são formados para atender mais às necessidades do mercado de consumo do que às necessidades de saúde coletiva" (p.52).

As questões de modelos, organização e políticas públicas são apresentadas nos capítulos seguintes, intitulados, respectivamente, de 'Modelos de Atenção à Saúde Bucal', 'Saúde Bucal: direito?' e 'Saúde Bucal no Sistema Único de Saúde'. Os três capítulos estão imbricados e constituem o âmago do livro, justificando o subtítulo 'muito além do céu da boca'. Diríamos que, ao se levantar o véu do palato, se descortina a extensão dos problemas bucais e, com um sorriso amarelo, vamos nos dando conta dos limites e das responsabilidades (ou da sua falta) dos profissionais de saúde, especificamente, dos dentistas.

A assistência odontológica no Brasil, apesar de todos os avanços, caracteriza-se por ser predominantemente liberal, por meio do desembolso direto ou através de planos de saúde. A saúde bucal tratada como mercadoria, além de alienar o cirurgião-dentista, esvazia o sentido da própria prática, implicando restrição de acesso (atrelado à capacidade de pagar, e não à necessidade do cuidado) e fragmentação das ações. Sobre esses aspectos, o livro não poupa críticas, alertando aos mais desavisados para o caráter histórico das intervenções em saúde bucal e a necessidade de se evitarem as panacéias ou a repetição de fórmulas desgastadas. Para tanto, relembra o modelo incremental, as ações da odontologia simplificada e do preventivismo, chamando atenção para a importância de "[...] obter dados e analisar, entre outros: o contexto institucional; a estrutura organizacional; a capacidade instalada e a disponibilidade de recursos humanos; as características dos processos de administração, gestão e financiamento; os sistemas de informação e, por certo, as características das ações de saúde bucal, em termos individuais e coletivas, bem como os sistemas de atendimento empregados e as técnicas e ambientes de trabalho adotados" (p.70).

Superar o modelo procedimento-centrado, valorizar a diversidade terapêutica, incluir o usuário no processo de cuidado e integrar promoção, prevenção, cura e reabilitação requer mudanças no projeto pedagógico de formação. Não obstante, os autores revisitam a história das políticas de saúde/saúde bucal, sinalizando o caráter paradigmático da implantação do SUS e posterior priorização da atenção primária em saúde, como serviço de primeiro contato, por meio da Estratégia Saúde da Família. Revolvendo esse terreno, os autores destacam as conquistas coletivas no campo das Conferências de Saúde e Saúde Bucal, fruto da mobilização e luta de visionários que acabaram por forjar o movimento da Saúde Bucal Coletiva, "parte inseparável da saúde coletiva" (p.123), demarcando o rompimento epistemológico com a odontológica - liberal, coorporativa e excludente.

No último capítulo, Paulo Capel Narvai e Paulo Frazão trazem 'Algumas Palavras sobre o Futuro'. A reflexão é pertinente e os autores colocam-se abertos ao debate. Alguns elementos mais recentes nas políticas relacionadas à saúde bucal, ainda merecem estudos aprofundados, como é o caso do Programa Brasil Sorridente e seus desdobramentos. Os avanços recentes no campo das ciências e das novas tecnologias chamam atenção para as questões éticas e paradigmáticas: "o ser humano está na iminência de deixar de ser difiodonte para, como os peixes, tornar-se polifiodonte - de modo artificial, sim, mas polifiodonte" (p.130). Claro que cabe a ressalva do papel dos sistemas universalizantes e solidários, e da capacidade concreta de incorporação de novas técnicas, bem como do questionamento acerca das reais necessidades e interesses que sustentam determinadas pesquisas.

O livro comporta tudo isso? A resposta é ambígua: sim e não. Talvez alguns não consigam encontrar tudo e acabem frustrados, mas o importante é que os autores nos fazem sair do chão, nos fazem pensar e incitam uma vontade enorme de estudar, pesquisar, escrever...

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Ago 2012
  • Data do Fascículo
    Mar 2010
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