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O trabalho em espiral: uma análise do processo de trabalho dos educadores em saúde nas favelas do Rio de Janeiro

Working in spiral: an analysis of community health educators' work process in Rio de Janeiro's shantytowns

El trabajo en espiral: un análisis del proceso de trabajo de los educadores comunitarios de salud en las favelas de Rio de Janeiro

Resumos

Este artigo busca contribuir para o campo de estudo voltado para o agente comunitário de saúde, recuperando uma pesquisa realizada na área da educação, que investigou o processo de trabalho de agentes comunitários, moradores das favelas, inseridos em programas públicos e também em ONG's, na zona norte do município do Rio de Janeiro. Entre os resultados do estudo destacam-se as determinações e características do processo de trabalho do agente comunitário de saúde, a partir de sua inserção na fronteira e como sujeito portador de experiências, redes de relações sociais e conhecimentos acumulados, ao longo de percursos diversos. Com este recorte, pretende-se ampliar a visão a respeito do papel desempenhado por esses agentes, de forma a favorecer um avanço no debate sobre as possibilidades e limites inscritos nas engrenagens de tais iniciativas.

Educadores em saúde; Áreas de pobreza; Programas governamentais


This paper aims to contribute to the field of study of the community health agent in its relation to the education field. The study investigated the work process of community agents who live in shantytowns and work in public programs and also in Non-Governmental Organizations, in the north zone of the municipality of Rio de Janeiro. The main results of the study are the determinations and characteristics of the community health agents' work process, from their insertion in the boundary and as subjects who have experiences, social relation networks and accumulated knowledge. With such focus, the intention is to enlarge the view about the role played by the agents so as to allow an advance in the debate about the possibilities and limits of such initiatives.

Health educators; Poverty areas; Government programs


Este artículo trata de contribuir para el campo de estudio dirigido al agente comunitario de salud, recuperando una investigación realizada en el área de la educación que indagó el proceso de trabajo de agentes comunitarios, moradores de las favelas insertados en programas públicos y también en ONG en la zona norte del municipio de Rio de Janeiro. Entre los resultados del estudio se destacan las determinaciones y características del proceso de trabajo del agente comunitario de salud a partir de su ubicación en la frontera y como sujeto portador de experiencias, redes de relaciones sociales y conocimientos acumulados a lo largo recorridos/diversos. Con este recorte se pretende ampliar la visión respecto al papel representado por estos agentes, de modo a favorecer un avance en el debate sobre las posibilidades y límites inscriptos en los engranajes de tales iniciativas.

Educadores en salud; Áreas de pobreza; Programas de gobierno


ARTIGOS

O trabalho em espiral: uma análise do processo de trabalho dos educadores em saúde nas favelas do Rio de Janeiro* * Este artigo resulta da pesquisa que conformou a tese de doutorado de Cunha (2005), apoiada pela Capes.

Working in spiral: an analysis of community health educators' work process in Rio de Janeiro's shantytowns

El trabajo en espiral: un análisis del proceso de trabajo de los educadores comunitarios de salud en las favelas de Rio de Janeiro

Marize Bastos da CunhaI; Gaudêncio FrigottoII

IDepartamento de Saneamento e Saúde Ambiental, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões, 1480. Manguinhos, RJ, Brasil. 21.041-210. marizecunha@ensp.fiocruz.br

IIFaculdade de Educação, Universidade Estadual do Rio de Janeiro

RESUMO

Este artigo busca contribuir para o campo de estudo voltado para o agente comunitário de saúde, recuperando uma pesquisa realizada na área da educação, que investigou o processo de trabalho de agentes comunitários, moradores das favelas, inseridos em programas públicos e também em ONG's, na zona norte do município do Rio de Janeiro. Entre os resultados do estudo destacam-se as determinações e características do processo de trabalho do agente comunitário de saúde, a partir de sua inserção na fronteira e como sujeito portador de experiências, redes de relações sociais e conhecimentos acumulados, ao longo de percursos diversos. Com este recorte, pretende-se ampliar a visão a respeito do papel desempenhado por esses agentes, de forma a favorecer um avanço no debate sobre as possibilidades e limites inscritos nas engrenagens de tais iniciativas.

Palavras-chave: Educadores em saúde. Áreas de pobreza. Programas governamentais.

ABSTRACT

This paper aims to contribute to the field of study of the community health agent in its relation to the education field. The study investigated the work process of community agents who live in shantytowns and work in public programs and also in Non-Governmental Organizations, in the north zone of the municipality of Rio de Janeiro. The main results of the study are the determinations and characteristics of the community health agents' work process, from their insertion in the boundary and as subjects who have experiences, social relation networks and accumulated knowledge. With such focus, the intention is to enlarge the view about the role played by the agents so as to allow an advance in the debate about the possibilities and limits of such initiatives.

Keywords: Health educators. Poverty areas. Government programs.

RESUMEN

Este artículo trata de contribuir para el campo de estudio dirigido al agente comunitario de salud, recuperando una investigación realizada en el área de la educación que indagó el proceso de trabajo de agentes comunitarios, moradores de las favelas insertados en programas públicos y también en ONG en la zona norte del municipio de Rio de Janeiro. Entre los resultados del estudio se destacan las determinaciones y características del proceso de trabajo del agente comunitario de salud a partir de su ubicación en la frontera y como sujeto portador de experiencias, redes de relaciones sociales y conocimientos acumulados a lo largo recorridos/diversos. Con este recorte se pretende ampliar la visión respecto al papel representado por estos agentes, de modo a favorecer un avance en el debate sobre las posibilidades y límites inscriptos en los engranajes de tales iniciativas.

Palabras clave: Educadores en salud. Áreas de pobreza. Programas de gobierno.

Introdução

Nas últimas décadas, nas favelas do município do Rio de Janeiro, multiplicam-se os programas governamentais, ou não governamentais, onde moradores locais atuam como agentes comunitários. Eles constituem peças-chave da engrenagem de iniciativas realizadas em territórios, marcados pela vulnerabilidade social e ambiental e por antigas e novas formas de pobreza, uma nova desigualdade (Martins, 1997).

Identificados, no campo da Saúde Coletiva, como Agentes Comunitários de Saúde (ACS), eles dão sustentação ao crescimento de iniciativas governamentais, como os Programas de Agentes Comunitários de Saúde e da Saúde da Família, criados, respectivamente, em 1991 e 1994, pelo Ministério da Saúde.

Desde os anos oitenta do século XX, a discussão em torno da adoção de novas práticas baseadas em modelos de atenção básica à saúde, capazes de garantir a integralidade e a universalidade, inspirou as primeiras experiências e reflexões sobre os ACS (Fernandes, 1992; Giffin, Shiraiwa, 1989). Recentemente, a literatura sobre o tema se expande, indicando um leque de eixos temáticos (Bornstein, Stotz, 2008). Enfocam a identidade profissional do ACS, bem como as propostas de sua formação profissional e a regulamentação de sua prática (Nascimento, Correa, 2008; Silva, Dalmaso, 2002; Tomaz, 2002). Destacam a sua vinculação institucional como trabalhador no âmbito de novas formas de execução de políticas sociais (Lima, Moura, 2005; Nogueira, Silva, Ramos, 2000). E, ainda, aspectos relativos ao seu processo de trabalho (Jardim, Lancman, 2009; Martines, Chaves, 2007).

Este artigo busca contribuir para este campo temático, recuperando uma pesquisa realizada na área da educação, particularmente do trabalho e formação humana (Cunha, 2005). A investigação enfocou o processo de trabalho de agentes comunitários, moradores das favelas, inseridos em programas públicos, e também em ONG's, na zona norte do município do Rio de Janeiro, abordando suas experiências a partir do campo de trabalho social do qual eles fazem parte, que denominamos de fronteira. Apresentamos os resultados do estudo, destacando as determinações e características do processo de trabalho do ACS, considerando sua inserção na fronteira, e como sujeito portador de experiências, redes de relações sociais e conhecimentos acumulados, ao longo de percursos diversos. O recorte pretende ampliar a visão a respeito do papel desempenhado por estes agentes, a fim de contribuir no debate sobre as possibilidades e limites inscritos nas engrenagens destes modelos de atenção básica.

Os pressupostos da pesquisa

Desde os anos noventa do século passado, estudamos as favelas do Rio de Janeiro e, particularmente, a ação mediadora de moradores que trabalham em suas localidades ou mesmo em outras, em programas sociais. Acumulamos um conjunto de questões que nos levaram a refletir sobre a particularidade do lugar histórico-social deste agente social, e concluir que a compreensão de seu processo de trabalho supõe a análise das determinações e redes de relações nas quais eles estão inseridos, em territórios marcados pela vulnerabilidade social e ambiental, e em relação com diversas estruturas supralocais (Alvito, 2001).

Sob esta perspectiva, o processo de trabalho dos ACS é aqui concebido no âmbito de um terreno maior, onde estão alojados diferentes agentes sociais, desenvolvendo iniciativas sociais nas favelas. Recorremos ao termo fronteira para denominar este terreno. A fronteira é concebida, num sentido histórico e sociológico, como um lugar que possui uma configuração particular, localizado num ponto de encontro entre as favelas da cidade e diferentes estruturas supralocais. Ponto de cruzamento do global com o local, da esfera pública com o não público. A fronteira aproxima-se do conceito de campo de Bourdieu, sendo compreendida como um espaço que se forjou historicamente, constituída por relações objetivas entre diferentes agentes sociais, que ocupam posições diferenciadas na sociedade e na fronteira (1990). Assim, está longe de ser um espaço homogêneo e com relações horizontais.

Consideramos, ainda, na abordagem do processo de trabalho dos sujeitos da pesquisa, sua experiência de vida e trabalho. Dialogando com a reflexão de Thompson (1987), postulamos que a experiência dos agentes em questão, ainda que inscrita em processos macroestruturais do mundo social e, em particular, da fronteira, é vivida por estes sujeitos, que tratam desta experiência em sua consciência de maneiras diferenciadas, de acordo com sua cultura, sua visão de mundo e sua historicidade. Desta forma, apesar de inseridos em determinadas condições de vida e trabalho que conformam seu campo de ação, esses agentes não respondem reativamente a elas, mas atravessados por sua experiência, que implica uma determinada forma de apropriação da realidade e as possibilidades de ação sobre ela (Cunha, 2005).

Metodologia

A pesquisa realizou-se por meio de dois caminhos. O levantamento bibliográfico e documental permitiu compreender a constituição histórica do terreno do trabalho social desenvolvido nas favelas, a fronteira. Analisamo-na, desde sua gênese, a partir dos anos quarenta do século passado, quando se deu a definitiva afirmação da favela no mundo urbano, tornando-se objeto de pesquisas e estudos, de ação política e configurando-se como lugar de intervenção social (Cunha, 2005; Valla, 1986). Tal reconstrução permitiu acompanhar a história da fronteira como lugar de produção de múltiplas experiências e práticas sociais, e de representações que se acumulam, no âmbito de um trabalho coletivo, de negociações e conflitos - muitos dos quais atualmente se repõem, naturalizam e alimentam as ações dos agentes sociais que hoje nela se encontram. Neste texto, considerando nosso objetivo, apresentamos as tendências que caracterizam a fronteira na atualidade e que contribuem para a compreensão do campo de ação do agente comunitário.

O outro caminho refere-se ao levantamento de dados para análise do processo de trabalho enfocado. Realizamos um estudo em profundidade junto a educadores em saúde de favelas da zona norte do município do Rio de Janeiro - uma área de alta concentração de favelas e intenso intercâmbio sociocultural e demográfico, onde se destacam tanto tensões, como recentes aproximações entre a classe média e os grupos populares do lugar. Nessa região, os educadores estão em permanente interlocução com diferenciados agentes sociais.

Acompanhamos dois grupos de educadores, que conformaram vinte sujeitos ao todo: dez educadores de projetos de saúde desenvolvidos por uma ONG, alguns dos quais estavam inseridos também junto a programas das Secretarias Municipais de Saúde e de Habitação do Rio de Janeiro; cinco agentes do Programa Saúde da Família (PSF), e cinco do programa Favela Bairro. Incluímos os trabalhadores desta última iniciativa porque, embora não sejam identificados como agentes de saúde, cabe a eles o desenvolvimento de ações educativas, relativas às condições ambientais e urbanísticas, que têm impacto sobre a situação de saúde local.

A amostra abarca uma fatia particular do universo dos agentes comunitários, pois estes sujeitos ocupam uma posição diferencial no terreno da fronteira, por estarem em intercâmbio com estruturas supralocais e circularem por vários fóruns, externos ao espaço comunitário. Contudo, optamos por um desenho de pesquisa que aborde um "caso particular", que possa ser interrogado sistematicamente (Bourdieu, 1989), e cuja relevância se coloca em função de seu potencial de permitir uma compreensão mais abrangente do tema em questão, bem como indicar pistas que tornam possível a abertura de novas questões para o campo de pesquisa (Becker, 1993).

Para o exame do processo de trabalho, consultamos os manuais dos programas pesquisados. Recorremos ainda a procedimentos da metodologia qualitativa, como entrevistas semiestruturadas, grupos focais e observação participante, que ofereceram registros que se complementavam ou traziam novas interrogações. Acompanhamos os sujeitos da pesquisa, os observando em ação, em seu cotidiano de trabalho, em diálogo com diferentes agentes sociais, inclusive em eventos fora de suas áreas de trabalho, o que forneceu indicações capazes de ampliar a compreensão do posicionamento dos ACS na fronteira. O material resultante enriqueceu os dados coletados e as análises, pois foi produzido a partir de uma situação observacional, que torna difícil os sujeitos da pesquisa fabricarem seu comportamento (Becker, 1993).

Dentre os procedimentos utilizados, destacamos a coleta de depoimentos orais, com ênfase nas histórias de vida, que permitiu construir o que Becker chama de "mosaico", onde cada peça, representada pelo percurso de cada sujeito, contribuiu para a compreensão do quadro do processo de trabalho (1993). A história de vida abriu espaço ainda para novas variáveis e questões, fornecendo uma visão do lado subjetivo de processos institucionais estudados. (Becker, 1993).

Seguimos padrões éticos da pesquisa com seres humanos e os valores de conduta necessários à realização de investigações que têm como base a produção compartilhada de conhecimento. Na redação da tese, as identidades dos sujeitos foram preservadas, e seus nomes foram substituídos por codinomes. Porém, no presente artigo, eles são apresentados sob a forma de sigla, seguida de numeração (exemplo: AC1).

Resultados e discussão

A fronteira

Nas duas últimas décadas, observamos um alargamento da fronteira, incorporando novos agentes sociais. Ela expande-se conforme avança a nova desigualdade que atinge hoje o mundo social, e, em particular, os moradores das regiões mais empobrecidas da cidade. O enfrentamento da vulnerabilidade e da reprodução das famílias trabalhadoras se opera por intermédio de uma multiplicidade de caminhos que indicam os deslocamentos possíveis num terreno de antigas e novas formas de pobreza (Martins, 1997).

Alguns deslocamentos efetuam-se através de igrejas, grupos religiosos, ou redes locais informais, onde as lideranças e moradores que atuam junto a projetos sociais exercem um papel fundamental. Ainda que, muitas vezes, impliquem relações de favorecimento, todos estes deslocamentos são vias que dispensam a burocracia e a degradação subjetiva que envolve a busca por acesso a um serviço ou a um projeto público. Referimo-nos, aqui, à degradação subjetiva para nomear a experiência dilapidadora, extenuante e humilhante pela qual passa a população empobrecida ao recorrer a um serviço público ou ao buscar inserção num programa de atendimento social. Experiência inscrita no "lugar dos não-direitos e da não-cidadania", onde "a pobreza vira 'carência', a justiça se transforma em caridade e os direitos em ajuda, a que o indivíduo tem acesso não por sua condição de cidadania, mas pela prova de que dela está excluído" (Telles, 1999, p.95).

Neste contexto, configuram-se as políticas sociais compensatórias, como "débitos a fundo perdido, preço a pagar pela sustentação de uma economia cuja dinâmica bane e descarta parcelas da população" (Martins, 2002, p.14). São políticas assistemáticas, que atuam de forma fragmentária e geram diversas iniciativas sociais, mobilizadoras de múltiplos agentes, ocupantes de posições diferenciadas dentro destas iniciativas. Com isso, a fronteira vai se constituindo no lugar do mundo social de onde estas pessoas vêm tirando seu sustento. Frequentemente, sem se deslocar no espaço físico da favela, estes moradores se localizam na fronteira, e aí atuando, buscam sua inserção econômica e social.

A fronteira se amplia conforme se redefine a relação entre o Estado e a sociedade, e o desenho das políticas sociais, onde instituições públicas, organizações comunitárias, igrejas das mais variadas orientações, ONG's, instituições de ensino e empresas aparecem como "parceiros", num contrato que evoca uma horizontalidade que não traduz o posicionamento desigual destes diferentes agentes na fronteira. As entidades locais deixam de atuar como interlocutores políticos, tornando-se "parceiras" na execução e gerenciamento de programas e serviços públicos.

Este novo desenho, fundamentado na participação de organizações locais, lideranças e moradores de favelas nos programas sociais, evoca uma experiência histórica que remonta à constituição da fronteira. Há a reatualização de uma ação social fundada nos primórdios desse terreno de iniciativas sociais, e que assumiu uma projeção política maior com a ação do SERFHA (Serviço Especial de Recuperação das Favelas e Habitações Anti-Higiênicas), em fins dos anos 1950 e início dos anos 1960 (Cunha, 2005). De acordo com esta forma de ação, o dinheiro e o trabalho do povo eram a via de solução do "problema" das favelas, enquanto o Estado e os empregadores isentavam-se da responsabilidade pela melhoria das condições de moradia e vida da população favelada (Valla, 1986).

A participação e a mobilização dos moradores de favelas, no papel de trabalhadores a serviço de ações sociais, das quais depende a viabilidade dos programas, assumem hoje contornos mais complexos, envolvendo uma diversidade de agentes sociais, e recursos humanos e financeiros vultosos, nos fazendo recordar a avaliação de uma agente comunitária sobre as políticas sociais: "é uma indústria da pobreza" (AC1 de uma ONG).

As tramas do trabalho

A análise das determinações e características do processo de trabalho dos agentes comunitários demonstra que, inscrito na fronteira, este processo é marcado pela precariedade. Eles estão inseridos num modo de dominação de tipo novo, chamado "flexexploração", "fundado na instituição de uma situação generalizada e permanente de insegurança, visando obrigar os trabalhadores à submissão, à aceitação da exploração" (Bourdieu, 1998, p.124).

Muitas iniciativas não se estabelecem como direitos, estando inscritas na "prevalência da ideologia da 'parceria' e da 'governança'", que leva as agências governamentais a privilegiarem projetos setoriais e ações pontuais, em detrimento da "execução de políticas públicas, articuladas como um conjunto orgânico de caráter universalista" (Machado da Silva, Leite, 2004, p.64).

Mesmo os agentes que atuam em iniciativas consolidadas, como o Favela Bairro e o PSF, estão submetidos à precariedade. Os complementos, sob a forma de vale transporte ou ticket refeição, podem ser retirados a qualquer momento. As mudanças, que levam à troca das instituições responsáveis pela contratação e gestão administrativa dos agentes, os fazem viver numa condição de incerteza.

Nas ações desenvolvidas pelo Favela Bairro, possivelmente há uma lógica de rotatividade do agente, cujo objetivo é a alegada diminuição dos custos, mas também o controle das demandas produzidas nas favelas. Com isso, o agente não fica tempo suficiente para ultrapassar o papel de "agente a serviço" do programa, e estabelecer uma ação de mais fôlego na localidade.

A "flexexploração" implica uma forma de relação na qual está subjacente a ideia de que os trabalhadores são desnecessários, o que se traduz no recorrente fantasma da demissão, e também indicando que o programa funciona sem eles. Os programas são dinamizados por uma lógica que os faz existir, e ter visibilidade pública, mesmo sem funcionarem efetivamente.

A questão da "visibilidade" do programa foi sugerida em uma entrevista: "projeto Favela Bairro, quer dizer programa porque isso eu aprendi, projeto não é programa. O projeto está no início, o programa tem que ter visibilidade" (AC2 do Favela Bairro e de uma ONG). A diferença entre projeto e programa não reside em seu grau de institucionalidade, nem na forma de vínculo de trabalho estabelecido com o trabalhador. Ambos são pontuais, e inscritos num padrão de política pública que prioriza a parceria e a precariedade. A diferença é que o programa possui visibilidade, o que o faz atrair recursos e sustentar-se, a despeito de não atender aos objetivos propostos.

O trabalho do agente comunitário é, pois, efetivamente sazonal. Configuram-se, aqui, as "trajetórias erráticas", onde a incerteza se aloja como uma prisão da qual não se pode escapar, e que exige "as virações provisórias" (Castel, 1998).

Considerando esta lógica, os limites do trabalho dos agentes se revelam também de outras formas. No caso do PSF, o programa tem, no ACS, a figura-chave para desenvolver o elo entre a comunidade e os serviços de saúde, onde as visitas domiciliares assumem papel central. Se o agente faz as visitas, e não pode responder a determinados problemas ou solicitações, produz demandas. A unidade é procurada e, caso não tenha condições de suportar a demanda, acaba sobrecarregada. Se o agente de saúde não faz as visitas domiciliares, o circuito se quebra. A pergunta é se, afinal de contas, na atual lógica das políticas públicas sociais, isso não é mais interessante do que ter um aumento de demandas?

A precariedade se manifesta também nas condições de realização do trabalho. É preciso conviver com o fato de que é preciso fazer trabalho de muitos, como acontece no PSF onde: "as enfermeiras, elas estão fazendo muitas tarefas, não tem agente administrativo na unidade" (AC9 do PSF). E conviver, também, com a tensão trazida por isso: "a raiva da enfermagem é que a gente manda o morador descer pra conseguir número, mas não tem outra solução; as agendas são lotadas, mas não tem outro jeito", conta outra agente do PSF (AC12 do PSF).

É frequente a falta de acesso imediato a informações, no momento de dar resposta a um morador, ou que o encaminhamento seja lento. E que, neste caso, o trabalhador acione sua rede de relações, como sugere uma agente do Favela Bairro:

"a gente encaminha à assistente social; mas se ela se mexe de lá, e a gente se mexe daqui [...] e isso é bem visto na nossa equipe; ela vai pelos trâmites legais, a gente vai marginalmente". (AC16)

Daí vem outra marca registrada deste trabalho, que cumpre um papel importante no desenvolvimento das iniciativas públicas. É a "flexibilidade" que, nos programas inspirados nas novas formas de sociabilidade capitalista, permite ao trabalhador: maior controle do processo de trabalho, formação continuada por meio da permanente qualificação, certa autonomia decisória, polivalência funcional e o trabalho em equipe (Lima, Moura, 2005). Ou seja, indica a capacidade de um agente executar várias tarefas e dar respostas aos problemas recorrentes no trabalho. Um processo de trabalho, sob a nova dinâmica do capital, que não prescinde do saber do trabalhador e do saber em trabalho (Frigotto, 1995).

Há, pelo menos, quatro verbos que são fundamentais nas ações do ACS: identificar, encaminhar, orientar e acompanhar (Brasil, 2000). Eles se remetem a uma variedade de funções, que levam a uma multiplicidade de atividades:

"é tanta coisa para o agente fazer que a gente fica atordoado; as equipes dizem assim: isso aqui é com ACS, isso é com ACS. É tanta coisa pra os ACS, que para as equipes não sobra nada". (AC13)

No manual do agente comunitário do Programa Favela Bairro, recomenda-se que o agente tenha: "criatividade, desembaraço, boa redação e senso de equipe" (Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, s/d). A referida flexibilidade traduz-se aqui na "criatividade, desembaraço e senso de equipe", que tornam possível, ao trabalhador, responder à precariedade de condições de realização do trabalho.

As "recomendações" são valorizadas na engrenagem dos programas. Porém, este valor não aparece na remuneração do trabalhador, em seu vínculo de trabalho, no encaminhamento de suas reivindicações e em sua autoria no planejamento e execução das ações. Aliás, os resultados da pesquisa mostram que não se inscreve também nas relações entre os agentes e as hierarquias mais altas.

Acionando sua "criatividade, desembaraço e senso de equipe", o agente comunitário agrega um valor simbólico à organização do trabalho. Levando aquilo que nenhum curso ou programa de capacitação é capaz de oferecer: experiência no trabalho comunitário e o conhecimento das relações existentes nas localidades onde trabalham. Sem este valor, os programas não se viabilizariam.

Traçados do trabalho e segredos do ofício

Cabe interrogar de que forma estes agentes vivenciam estas "tramas" do trabalho. Os resultados indicaram que eles enfrentam a precariedade de suas condições de trabalho e da realidade onde atuam, recorrendo a sua experiência histórica, a práticas e valores culturais, que são potencializados sob uma nova situação, numa tessitura social que lhes confere um novo significado, acionado pelo trabalho vivo, isto é, absorvido e recriado pela ação social concreta (Durham, 1977). Apropriam-se de conhecimentos obtidos em cursos e na prática do trabalho, e apelam às redes sociais tecidas ao longo de seu percurso de vida e trabalho. Com isso, constituem aquilo que chamamos de "segredos do ofício", um conjunto de saberes e práticas que acumulam, conformando estratégias que lhes permitem, ainda que de forma precária, trabalhar, sobreviver e tecer projetos familiares.

Inseridos precariamente nestas iniciativas, um bom número desses trabalhadores tem outras atividades.

"O agente comunitário de saúde não só vive desta profissão, porque ele ganha muito pouco". (AC10, do PSF)

Valorizando o fato de que o "trabalho em área" lhes dá relativa autonomia para compor seus horários, e permite a dedicação a outras atividades, eles se apropriam da flexibilidade inscrita na lógica dos programas, referenciados em suas formas sociabilidade e experiências históricas, onde é comum a conciliação das tarefas domésticas e a prestação de serviços na localidade.

A flexibilidade tem um valor particular para quem atua na localidade onde mora, pois o deslocamento casa-trabalho se opera com facilidade e rapidez. É o caso das mulheres, maior contingente dos agentes integrados a programas públicos. Elas possuem dupla jornada, necessitando dedicar-se às tarefas domésticas e ao cuidado com os filhos. E, não raramente, trabalham como lavadeiras e passadeiras, cuidam dos filhos de vizinhos ou atuam como "explicadoras".

Quando o trabalhador exerce outras atividades no terreno da fronteira, a flexibilidade permite um aumento da renda e que uma determinada ação se reverta em benefício de dois, ou mais, trabalhos diferentes. Possibilita, ainda, uma costura entre vários aprendizados e experiências acumulados nos vários ofícios. Referindo-se a seu trabalho na participação comunitária do Favela Bairro, uma agente observa:

"é legal porque se funde com outros trabalhos porque aí você acaba trabalhando e fazendo as outras milhões de coisas". (AC17)

Muitos trabalhadores participam de vários projetos e instituições. Configura-se, pois, uma superposição de ações, que, algumas vezes, indicam interesses divergentes, o que acaba por produzir tensões no cotidiano do trabalho. Uma delas é a sobreposição de institucionalidades, à qual os trabalhadores respondem fazendo uso da referência maior por meio da qual legitimam seu trabalho: "a comunidade". Assim, a despeito de encarnarem diferentes instituições, eles evocam, sobretudo, seu pertencimento à localidade, que concorre para que eles circulem por vários espaços e instituições, sem que esta sobreposição desperte desconfiança.

O acúmulo de várias frentes de trabalho traz implicações sobre a administração do tempo. Os agentes enfrentam o desafio mobilizando o apoio de familiares e das redes sociais na localidade. Os percursos de vida demonstram que estas estratégias acionam uma experiência de vida tecida desde a infância, quando compatibilizavam o tempo de criança com o tempo de adulto, assumindo várias responsabilidades na família. A contrapartida do sacrifício da infância foi o ganho da sabedoria de administrar o tempo, que é algo que possui especial significado para os educadores. Um valor que agregam ao trabalho, e que torna possível fazer tantos traçados de trabalho. Recordando, uma agente observa:

"Eu não sei administrar dinheiro, mas eu sei administrar muito bem tempo porque eu aprendi. E eu ensinei isso a meus irmãos. Tem que ter tempo de escola, tempo de brincar. Eu tinha que ter tempo de lavar roupa, pegar água, fazer isso, fazer comida e tempo de brincar, que prá mim era sagrado". (AC3)

A precariedade se revela também nos tênues limites entre trabalho e vida pessoal dos agentes. "Eu não preciso nem sair de casa. As pessoas vão na minha casa" (AC4), contou uma agente comunitária.

Ao buscar resposta à demanda de um morador, o agente abre um leque de ações, o que lhe rouba o tempo reservado a outras atividades, ou o de momentos destinados à vida pessoal.

"No dia a dia, que eu estou fazendo visitas, as famílias querem que eu almoce com elas. Só que eu não posso. Porque isso acaba muito com meu tempo e eu preciso dar conta da área. Então, as famílias têm que entender. Muitas vezes, eu nego o almoço. O período de meu almoço é um período que eu preciso me dedicar a outra família. Eu sempre almoço fora de hora. Eu preciso ganhar tempo. Mostrar produção". (AC13)

O relato aponta um impasse com o qual os sujeitos da pesquisa se defrontam: como conciliar a necessidade de manter uma proximidade com os moradores e sua credibilidade, garantir a produção e, ainda, assegurar a separação trabalho e vida pessoal?

O estudo indicou que os agentes acionam mecanismos que facilitam a convivência do trabalho e vida pessoal. Novamente, trata-se do enfrentamento da precariedade por meio da ressignificação de experiências e padrões culturais. O código de reciprocidade inscrito nas relações de sociabilidade da favela torna o trabalho, referenciado por valores morais, um projeto coletivo (Sarti, 1996). Por isso, no caso das mulheres, ainda que lhes roube o tempo doméstico, seu trabalho acaba por ser aceito por maridos e filhos, porque dá sustentação aos projetos familiares. É comum que elas deleguem, ao marido e filhos, papéis nas várias atividades que precisam realizar no cotidiano. E ainda, a partir das redes de relações que vão construindo, abram oportunidades de trabalhos para eles. A transposição dos limites do trabalho para casa traz muitos inconvenientes para as agentes, porém, por outro lado, esta transposição tem como base o próprio modo de vida histórico dessas trabalhadoras, sendo apropriada por muitas delas, de forma a construírem seus projetos de melhoria familiar.

No que se refere ao enfrentamento das demandas dos moradores, o estudo revelou, também, a importância de saberes e práticas, produzidos na sociabilidade da favela e experiência de vida dos agentes. Uma ACS do PSF refere-se à necessidade da "escuta ativa" no trabalho do agente:

"Tem muito problema psicológico; tem dia que você fica duas, três horas numa casa só, ouvindo a mulher, o estresse dela, ela colocar tudo pra fora, o que ela não consegue colocar pra o marido; ela quer ouvir sua opinião, uma palavra de amigo, de profissional". (AC12)

Ao acionar a "escuta ativa", a agente aplica conhecimentos e técnicas dos programas de treinamento. Mas, sobretudo, recupera sua experiência na favela, marcada por um padrão cultural que valoriza a solidariedade, produzida como prática social fundamental à experiência de viver no espaço urbano, construída na tensão entre as necessidades cotidianas e a constatação das impossibilidades de respondê-las individualmente. Um padrão cultural que dá um significado particular ao saber ouvir e saber silenciar-se - fundamentos para a credibilidade daquele que vive na favela e trabalha junto a sua população.

O saber acumulado pelo agente, compartilhado com os moradores, contribui na legitimação deste trabalhador. Em um projeto de prevenção em DST's/AIDS na região de estudo, identificamos que, para garantir a sustentação de seu trabalho, os ACS recorrem à rede de relações que mantêm. Na distribuição do preservativo masculino, contam com uma estrutura organizada onde incluem os chamados "multiplicadores" que disponibilizam preservativos em pontos estratégicos, acessando conhecimentos que são repassados pelos agentes.

O compartilhamento de saberes influencia na resposta da comunidade e altera a relação com ela, de forma que o agente não precisa mais buscar o morador, pois é buscado por ele, porque se torna alguém que lhe explica e lhe dá informações, e pode escutá-lo também. Daí, o processo de trabalho desliza mais facilmente porque tem resposta. Referência é uma das expressões mais usadas pelos ACS para nomear este processo. "A gente passa a ser referência e aquele que é referência para as pessoas, não pode deixar a peteca cair não porque a gente mata este trabalho" (AC18 do Favela Bairro e outras iniciativas).

Ser referência significa circular além da localidade, trazendo conhecimentos e experiências que são compartilhados com os moradores, mas não deixar de encarnar o conjunto de valores da localidade. Ser referência é o verbo da mediação educativa desses agentes.

Efetivamente, a dimensão educativa inscrita neste ofício é um dos aspectos que mais traz satisfação aos agentes e os distingue em suas localidades. Há uma aposta na busca de conhecimentos e de caminhos para a ação junto aos moradores. As dinâmicas aprendidas em cursos são valorizadas, e eles fazem circular o aprendizado entre eles. Acumulam uma reflexão a respeito das melhores formas de trabalhar com a particularidade de cada grupo. Sabem que é difícil desenvolver um trabalho junto aos jovens e que todas as experiências de grupos sistemáticos com eles não funcionam.

"Você tem que pegar ali, nas esquinas da vida, há uma timidez que eles não têm, mas que acabam demonstrando que têm". (AC4, de uma ONG)

"Cada um está descobrindo as estratégias, a forma de vencer o obstáculo porque uma das coisas que era dificultosa é você chegar numa comunidade prá falar de desgraça, de um povo que não conhecia a felicidade. Você estava levando apenas mais uma tragédia. E ainda falar de doença. Quer dizer, a pessoa já vive ferrada e você ainda chega prá falar de doença. E as outras comunidades vão descobrindo dentro de seu próprio ambiente como levar também". (AC1)

A pesquisa indicou ainda que a precariedade da realidade onde os ACS trabalham, somada à credibilidade acumulada, produz demandas que exigem ações que vão além de seu ofício. Ao representar uma institucionalidade, o agente recebe solicitações que estariam sob a responsabilidade de diferentes agências governamentais. "A gente vai ficando como a gente fala: bucha, fica na ponta" (AC20 do Favela Bairro). Ou seja, fica administrando as demandas, e gerindo a pobreza crescente, recuperando seu conhecimento sobre a localidade e seus segredos de ofício, para atuar num espaço cuja complexidade desafia a atuação de muitos técnicos.

"É complicado prá gente como uma referência na comunidade, você trabalhar prá o poder público que é odiado, porque não responde como deveria responder. A gente fica naquela mediação, a gente fica ali tapando buraco, dando desculpa. Parece que, às vezes, o nosso papel é este mesmo, e manter a credibilidade. Na verdade, a pessoa te vê como um órgão. Você está ali, com aquela camisa, com aquela identificação, você é um órgão". (AC16)

É desafiante para um trabalhador social defrontar-se com situações cujas respostas são lentas. Ele trata de acelerá-las. Mais difícil é lidar com algumas que não possuem respostas.

"Eu não sei como as pessoas podem assistir tanto sofrimento e não se moverem com aquilo". (AC15, do PSF)

"Você é um educador comunitário da área de saúde, tem horas que você quer se dedicar a área de saúde. Mas você tem que se dedicar a procurar uma cesta básica. Uma família esta passando fome. Enfim você, não tem recursos pra ir auxiliar essas famílias. Muitas vezes, as portas estão fechadas e aí, você não sabe o que fazer. Muitas vezes, você ajuda com seu próprio bolso". (AC12, do PSF)

Este é o desenho da situação precária dos trabalhadores da área social, investidos pelo Estado para garantir os mais elementares serviços públicos. Eles

refletem as contradições do Estado que são vividas freqüentemente no mais profundo deles mesmos, como se fossem dramas pessoais: contradições entre as missões, quase sempre desmedidas, que lhes são confiadas - principalmente, em matéria de emprego e habitação- e os meios normalmente irrisórios, que lhe são alocados. (Bourdieu,1997, p.219)

Responder "as missões desmedidas" com "meios irrisórios" leva o agente a recorrer a suas relações no terreno da fronteira. Por isso, a "articulação" assume uma centralidade neste processo de trabalho, pois possibilita responder a determinadas demandas, e confere ao ACS um melhor posicionamento no terreno da fronteira, constituindo um de seus canais de legitimação.

Ser um articulador, criando elos entre agentes sociais locais e supralocais, é um dos papéis que as instâncias de gestão de programas reservam a esse trabalhador. Mas, entre os próprios agentes, existe uma reflexão a respeito da importância da articulação, atribuindo-se a ela um significado particular, que distingue o trabalhador que a domina. Ela é mais valorizada no enfrentamento de situações de conflitos, na negociação de apoios, financeiros ou políticos, ou quando se define a representação de um grupo específico.

Um agente comunitário observa que o PSF

"trabalha muito com uma questão, que é uma palavra enorme, que foi tão difícil prá a gente aprender, que é da intersetorialidade. Ele trabalha muito com isso. Ele não pode trabalhar sozinho". (AC13)

Na prática, a intersetorialidade é implementada, sobretudo, pelos agentes. Uma ACS esclarece que, quando não se encontra fazendo visitas domiciliares, passa boa parte do tempo em contato com instituições de forma a fazer parcerias. Pela manhã, ela desenvolve ações em organizações locais, com as quais mantém interlocução e, à tarde, reserva uma parte do tempo para fazer encontros com outros agentes sociais, locais ou supralocais.

"Parceria" é palavra-chave no vocabulário desses trabalhadores, assim como marca a lógica à qual nos referimos, que domina atualmente o campo da fronteira. Para os agentes comunitários, a parceria se fundamenta nos vínculos informais que eles estabelecem com outros trabalhadores, ou técnicos de projetos ou instituições. Também é costurada por meio de diferentes iniciativas nas quais o trabalhador insere-se, ou seja, ele estabelece elos entre as várias iniciativas em que atua, planejando ações em comum, que dão respostas às propostas dos vários projetos. Como as parcerias se dão fora de canais institucionais, não criam um caminho sistemático de resposta, tornando-se condicionadas às relações pessoais. Assim, o limite de sua lógica é que ela não inscreve a ação desenvolvida num campo universal de direitos, restringindo-se a ações pontuais e precárias.

Contudo, são estas parcerias que possibilitam a resposta a demandas que não podem, ou algumas vezes, não devem ser atendidas no âmbito de uma iniciativa na qual o agente atua. Somada ao saber local acumulado e às informações que o ACS vai incorporando em seu processo de trabalho, a rede de parcerias contribui para que ele se legitime.

Numa dinâmica em que tudo passa, os governos mudam, alterando por completo os programas e serviços públicos, os agentes comunitários são efetivamente uma referência. Eles dão enraizamento àquilo que é temporário e precário. Por isso, não apenas os moradores recorrem a eles, mas também os agentes supralocais que buscam atuar nas favelas. Constituindo-se como referência, eles encarnam os papéis de diferentes instituições, o que acaba por torná-los uma "instituição em movimento".

É assim que se configura a lógica de um trabalho em "espiral" - termo usado por uma agente para designar seu ofício e das colegas: "Nós somos uma espiral. Se pararmos, nós morreremos" (AC4, de uma ONG). É um trabalho que não para porque é necessário, e também porque se amplia, e se renova a cada dia, tendo como base as demandas crescentes que os agentes recebem, e os resultados que vão colhendo, sob a forma de novos conhecimentos e relações no terreno da fronteira.

"Quando você começa saber e começa a levar prá comunidade, você começa a passar isto. É gratificante. Aí a comunidade começa a te procurar, porque você tem alguma resposta". (AC8)

Considerações finais

As experiências dos agentes comunitários demonstram por que eles caminham "em espiral". A espiral move-se sob o ritmo da urgência. A urgência impõe a necessidade de acumular ações e estabelecer um leque de interlocuções, buscando o sustento individual e familiar, a sustentação do processo de trabalho, e a sustentabilidade das ações. Dores e perdas estão sob seus olhos e eles procuram dar algum tipo de resposta aos dramas que presenciam, sem contar com muitos meios para isso. Explorando seus traçados de vida, recuperando as práticas sociais e valores culturais inscritos em sua experiência histórica, os conhecimentos obtidos no processo de trabalho e a redes sociais que constroem, produzem um modo de trabalho, cujos "segredos" permitem responder à flexibilidade negativa (Lima, Moura, 2005), traduzida nos contratos temporários, e à precariedade das condições de realização de seu trabalho e da favela.

Com isso, vão deslocando suas existências. Nas localidades, se constituem como referência, tornando-se "uma instituição em movimento". Na fronteira, buscam um melhor posicionamento, de forma a fazer avançar seus projetos individuais, familiares e coletivos. Deslocando-se, entram em aliança com alguns agentes sociais, e em confronto com outros, nas favelas, bem como na fronteira. "A nossa vida, a gente vive no fio da navalha, a gente se expõe" (AC6). Deslocam-se no fio da navalha, na tensão entre a necessidade de não parar na espiral, e não perder a legitimidade.

Os resultados sugerem ainda que o limite de sua espiral de trabalho acaba sendo o "movimento". Ou seja, se expandem suas ações e seus projetos, produzindo demandas e agregando diferentes agentes sociais, vivem sob o risco de serem demitidos, não terem apoio para suas atividades ou projetos, e passam a ser objeto de controle de muitos. Talvez este seja o maior impasse deste processo de trabalho: aquilo que lhe dá particularidade e potência, o movimento em espiral, é também o que o coloca em risco. Porque o movimento em espiral é um movimento cuja existência contraria a lógica inscrita nos programas e projetos, e que produz inovação em meio à reprodução (Martins, 1996). É um movimento que cria demandas e referência, aonde existe precariedade e sazonalidade.

Estes trabalhadores se defrontam com o desafio inscrito na porosidade entre trabalhar e morar na mesma comunidade que, como alertam Jardim e Lancman (2009), pode ser uma fonte de sofrimento psíquico.

Uma das respostas possíveis a tal desafio é a criação de espaços de diálogo e reflexão coletiva, que contribuam para que os ACS elaborem a experiência vivida e busquem novos sentidos partilhados para o trabalho (Jardim, Lancman, 2009; Nascimento, Correa, 2008). Nestes espaços de reflexão, o exercício de rememorar pode desempenhar um caminho fundamental. Buscar o alimento da memória, na esfera do grupo, funciona como uma espécie de acerto de contas de cada um consigo mesmo, com o outro, e com o sentido que estão dando a suas ações. Rememorando em conjunto, os trabalhadores rompem o tempo da urgência, a objetivação e a tecnificação que lhes são exigidas, e que, ao longo do tempo, fazem acumular tensões, individuais e sociais. É uma das formas que os fazem calibrar a dimensão humana de seu trabalho (Cunha, 2007).

Por fim, cabe ressaltar que há certo romantismo na imagem que destaca a experiência do agente comunitário em relação à comunidade. Por um lado, ela lhe atribui o árduo e complexo papel de mola propulsora de consolidação do SUS, sem considerar que tal consolidação depende de um conjunto de fatores e o envolvimento de vários agentes sociais (Tomaz, 2002). Por outro lado, esta imagem trata da experiência do agente comunitário como se ela fosse algo natural. Ela oculta o caráter conflituoso e histórico desta experiência e naturaliza algo que foi produzido pelo trabalhador, e que é resultado de sua experiência de vida e trabalho. Por isso, é também uma imagem redutora, que priva de qualidade social aquilo que foi constituído na trama histórica e social. No jogo de forças na fronteira, mais concretamente em meio a disputas ocorridas no desenvolvimento dos programas, o diferencial de trabalho do agente comunitário não é reconhecido como resultado de um investimento acumulado, tanto objetiva quanto subjetivamente; de um caminho de aprendizados, prática, reflexões e reelaborações constantes que lhe permitem exercer o papel mediador.

Colaboradores

Marize Bastos da Cunha foi responsável pela revisão bibliográfica, levantamento e análise de dados e a elaboração do manuscrito. Gaudêncio Frigotto responsabilizou-se pela revisão bibliográfica e análise dos dados da seção "As tramas do trabalho".

Recebido em 23/11/09.

Aprovado em 23/04/10.

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    Este artigo resulta da pesquisa que conformou a tese de doutorado de Cunha (2005), apoiada pela Capes.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Aceito
      23 Abr 2010
    • Recebido
      23 Nov 2009
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