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Compromisso social da escola médica

Compromiso social de la facultad de Medicina

Medical School social responsability

NOTAS BREVES

Compromisso social da escola médica* * Documento apresentado ao painel "A Escola Médica", durante o XX Congresso Brasileiro de Educação Médica (ABEM), realizado de 13 a 16 de dezembro de 1982, na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP, São Paulo. Publicado i n memoriam.

Medical School social responsability

Compromiso social de la facultad de Medicina

Introdução

Afirmar que a Escola Médica teve, tem e terá compromissos sociais é dizer o óbvio. Nossa intenção é propor a discussão de alguns aspectos pouco explorados, a partir de dois marcos conceituais que o termo "compromisso" encerra.

Quando se considera a natureza e os objetivos formais da Escola Médica, o compromisso social assume o caráter de obrigação, mais ou menos solene, aceita universalmente, de formar médicos (e outros profissionais de saúde), e de recuperar e preservar a saúde de contingentes da população, por meio de seus serviços. O desempenho da Escola Médica, quanto às duas vertentes desta obrigação, tem sido objeto de avaliações dentro de critérios tradicionais, mais quantitativos que qualitativos.

Mas compromisso significa, também, acordo político, pacto. Dada a inserção da Escola Médica (como instituição) na estrutura social, as considerações sobre o compromisso social, como pacto, devem passar pela análise, ainda que sucinta, das articulações da Escola Médica (e educação médica) nessa estrutura.

No dizer de Garcia (1978), a estrutura econômica determina o lugar e a forma da articulação da Medicina e da Educação na estrutura social, as alternativas educacionais não surgem de forma abstrata, mas se originam do conjunto de relações objetivas dos homens entre si, na sociedade. Estas relações estão marcadas pelo desenvolvimento das forças produtivas e pelas contradições existentes nas relações de produção, numa sociedade de classes.

Aceita esta premissa, antes de delinear quaisquer propostas alternativas de compromisso social e para suscitar discussões, cumpre tentar um diagnóstico, pelo menos sindrômico, das articulações atuais da Escola Médica, na estrutura social.

A realidade do compromisso, entendido como pacto

Uma primeira constatação é a de que a Escola Médica conserva e transmite, em seu discurso e sua prática, quase sempre, uma ideologia que tenta colocar a Medicina como ciência neutra, visando exclusivamente à saúde, à vida e ao bem, impossibilitando criticá-la como ciência e como prática. Evitando relacionar a Medicina com a estrutura social, tal concepção idealista procura desvincular a Escola Médica das práticas políticas, econômicas e ideológicas (Binder, Magaldi, Lopes, 1981). Esse discurso e essa prática (de influência flexneriana) podem permear o processo formativo do médico e impedir ou refrear o desenvolvimento de seu senso crítico global e tentar reduzir questões sociais - de solução política - a problemas puramente técnicos - de solução científica e imediata (Rocha, 1980).

Um exemplo desta postura é a limitação da Escola Médica, no dia-a-dia, à tarefa de recuperação da saúde da força do trabalho, mantendo-se à distância de suas condições de vida e de trabalho. Outro exemplo é a mística da modernização, na busca exclusiva da eficiência do serviço hospitalar, sem que se atente para as condições de trabalho de seus próprios funcionários, seu salário, seu grau de adaptação, de satisfação, etc. Na discussão de aspectos da desnutrição nem sempre se aprofunda a análise de sua gênese político-social: o tema é tratado como problema exclusivamente médico. Quando as ambulâncias do "governo itinerante" despejam doentes nos pátios de nossos hospitais de clínicas, trata-se de equacionar internamente o problema assistencial, abstendo-se a Escola Médica de intervir no planejamento de saúde, em seu âmbito de influência, pelo menos. E há inúmeros outros exemplos.

Interessa indagar o porque e o como algumas Escolas Médicas transmitem mais eficazmente a ideologia da Medicina como neutra e continuam com uma visão parcial da realidade social em que estão implantadas, tornando-se mesmo verdadeiras "torres de marfim", na expressão de Mahler, diretor da OMS (1977, p.10). Talvez seja porque a Escola Médica, como qualquer outra instituição educacional, acabe atuando, informalmente, como núcleo perpetuador do estatuto social vigente, na medida em que continua formando profissionais que defendam a estrutura social que a criou e mantém (Amâncio, Quadra, 1977). O poder dentro da Universidade (e da Escola Médica), com a acentuada centralização das decisões e de mando, onde a participação do corpo docente, discente e de funcionários é nula, reproduz a estrutura ou os interesses de classe. Tal estrutura de poder, em diversas universidades, refletem bastante a tecnoburocracia que vem vigorando em vários setores do governo, principalmente desde 1974, acrescentando-se, em anos recentes, da parte de alguns reitores, recomendações para seu aprimoramento "gerencial", como solução para melhoria da qualidade do ensino superior.

Os alunos saem e, para quem fica na torre de marfim, sem qualquer referencial externo, há o risco da auto-reprodução, ou seja, da manutenção de grupos cada vez mais elitistas (Salgado, 1979).

Uma segunda constatação, a respeito do compromisso social como pacto, consiste em que o mercado de trabalho, no setor saúde, é que vem condicionando os objetivos da educação médica, o que à primeira vista, parece ser paradoxal, frente à ideologia da "neutralidade". É que, na defesa e perpetuação da estrutura social, caberia à Escola Médica formar o profissional que o mercado necessita, para realizar os objetivos do capital. Mas a velha contradição, implicando em opções político-ideológicas diferentes de: "formar o médico de que o país necessita" versus "formar o médico de que o mercado necessita", consegue ser dissimulada, porque a prática médica no Hospital Universitário, considerada "livre de tais injunções", faz com que o corpo docente não se defina por uma dessas opções (Rocha, 1980). Aliás, prevalece quase sempre uma indefinição, ainda que, no discurso, a maioria das faculdades se proponha a formar o "médico geral". Essas dificuldades também se refletem nas polêmicas sobre a caracterização do hospital-escola que, para muitos professores, não deve ser considerado "hospital assistencial que também ensina", mas tão somente hospital para ensino e pesquisa. Neste segundo caso, os quadros nosológicos prevalentes e a prática ambulatorial intensiva pouco contam para a aprendizagem e o treinamento do aluno.

A respeito dos objetivos da educação médica e do perfil do médico, Salgado (1979) observa que a definição do profissional que a Escola Médica deve formar tem que ser procurada fora dela, isto é, nas "necessidades sociais identificadas objetivamente dentro da realidade circundante". Quem vem identificando cada vez mais, de forma objetiva, suas necessidades sociais é a própria população. Faltam-lhe, porém, o canal permeável e a ponte de ligação para comunicá-las e receber respostas adequadas.

Em se tratando de realizar os objetivos do capital, a Escola Médica prepara médicos "equipamento-dependentes", na expressão de Salgado (1979). Estes, se desprovidos de senso crítico, poderão mais assegurar o consumo de bens e serviços, condicionados por interesses econômicos, do que atender às necessidades de saúde identificadas.

Este último ponto conduz à terceira constatação de que a educação médica, nas articulações com o nível econômico, tem privilegiado a iniciativa privada (das 39 faculdades criadas de 1965 a 1976, 80% são particulares). Paralelamente, as políticas de saúde do Estado vem favorecendo, claramente, a prática médica curativa, especializada e privatizada. Esta situação, muito bem diagnosticada como "indústria da doença", e a lógica interna do sistema que a preside foram denunciadas por Macedo, na VII Conferência Nacional de Saúde (1980).

E é em serviço de hospitais contratados pela Previdência Social, cujo lucro tem representado a meta principal, que boa parte de alunos e residentes realizam seu treinamento.

Por fim, constata-se que a educação médica ainda não transpôs, de todo, os muros dos hospitais-escola, para estender-se ao nível dos serviços oficiais de saúde, em suas respectivas regiões. Há experiências incipientes, outras mais antigas nem sempre, porém, assumidas pela Escola Médica como um todo. Em sua posição de "torre de marfim", esta fica pairando acima do sistema de saúde, pouco ou nada colaborando no planejamento de saúde regionalizado, ou mesmo na correção de suas distorções. Esse encastelamento, por outro lado, não seria uma forma de evitar que alunos e professores percebam, com mais realismo, as contradições sociais?

A qualidade do ensino médico tem muito a ver com os compromissos sociais da Escola Médica. A elevação de seu nível e a sua adequação social, inseparáveis, dependerão também do rumo que tomarão, no futuro, as articulações dessa escola na estrutura de nossa sociedade.

Compromisso social inovado e qualidade do ensino médico

Para atender adequadamente seus compromissos sociais formais: 1) graduar médicos competentes como técnicos e cientistas e conscientes, como cidadãos e 2) prestar assistência à saúde de bom nível às comunidades relacionadas, a Escola Médica deverá ter suas necessidades básicas atendidas e assumir a realização de alguns pressupostos.

Basta aqui mencionar os principais itens como: dotação orçamentária governamental suficiente, destinada sem o caráter de favor concedido; corpo docente e pessoal administrativo de elevado padrão, criteriosamente recrutados; participação ou mesmo coordenação de um sistema regionalizado e hierarquizado de saúde, de modo a se situar como centro de referência; utilização, além do hospital universitário, dos diversos serviços da rede assistencial, para treinamento de alunos e residentes e para reciclagem de professores; superação do enfoque organicista tradicional na formação médica.

Convém assinalar algumas particularidades: a) quando se fala em recursos humanos, pressupõe-se uma política salarial condigna, para docentes e funcionários, como estímulo para sua fixação, ampliação do regime de trabalho e sua participação no desenvolvimento da instituição; b) em se tratando de recursos materiais, é indispensável que a Escola Médica e seu hospital-escoIa sejam dotados de equipamentos atualizados, mas cuja utilização, na assistência, mereça uma especial atenção pedagógica e crítica, por parte de professores e alunos; c) no tocante ao preparo científico e pedagógico dos docentes, devem ser facilitadas e estimuladas, ao máximo, pela instituição, as condições para seu aperfeiçoamento e progresso.

Não será pela via da redução de vagas de todas as faculdades de medicina, de forma indistinta, que a qualidade do ensino médico, no país, irá melhorar.

Tem sobeja razão Gentile de Mello (1982), em seu derradeiro artigo para a Folha de São Paulo, quando disse que "diminuir igualmente 50% das vagas na Faculdade de Medicina da USP como na Faculdade de Medicina de Valença, além de representar uma efetiva contribuição para a implantação do ensino pago, constitui, no mínimo, insensatez". Que opinem os professores da Comissão de Ensino Médico, que a partir de 1972, visitaram e estudaram amplamente as condições de todas as escolas de medicina brasileiras. Que opinem, também, as populações servidas pelas Escolas Médicas e atendidas pelos médicos que as formam. Reprovar profissionais, depois de diplomados, mediante exame de suficiência, é apenas medir as conseqüências de falhas, cuja etiologia ainda está por ser resolvida.

No que se refere ao compromisso social como pacto, se há intenção de mudar, em profundidade, as metas institucionais ou corrigir falhas, tudo deveria começar pela compreensão das articulações já citadas, por parte da Escola Médica como um todo.

Compreensão pressupõe consciência e esta vai se dar pela descoberta e discussão democrática dos problemas, quer da instituição, quer da realidade em que a Escola Médica se insere. Trata-se de pré-requisito indispensável. Virchow, Guerin e Neumann, no século passado, sustentavam que quem era capaz de diagnosticar e remediar a dor individual, também o era para resolver os problemas políticos da sociedade a que pertencia.

Isto significa que não é suficiente ficar no terreno da discussão pela discussão, mas sair, de fato, da torre de marfim, passar a ver o que está diante de nossos olhos, influenciar e atuar nos diversos setores, a começar pelo da saúde, participar mais efetivamente em entidades de classe, organizações sociais, políticas, etc.

A discussão democrática, por sua vez, guarda estreita relação com a estrutura de poder, que necessita ser democratizada, em quase todas as Escolas Médicas, de resto, na universidade brasileira. A reformulação de estruturas burocráticas e autoritárias, no bojo da reforma universitária que se deseja,tem que se dar pela vontade e pelo envolvimento da comunidade universitária. Assim, deve-se ganhar antes e logo todo o espaço possível para o debate amplo.

Democratização da universidade significa participação da comunidade universitária nas decisões da instituição. A primeira implicação deste processo é educacional, pois a educação plena, a formação do senso crítico, a criatividade dificilmente poderão nascer e frutificar em estruturas autoritárias. A segunda repercussão é social, na medida em que a estrutura aberta facilitará o intercâmbio e o trato da Escola Médica com as necessidades e os recursos regionais, criando-se ciência, tecnologia e assistência mais adequadas a essas necessidades. Os canais de comunicação com a realidade circundante tornar-se-ão permeáveis e bilaterais, ao contrário do que temos agora: diretrizes e comandos, impostos, via de regra, de cima para baixo, encontrando-nos ainda, com viseiras e amarras.

Na estrutura aberta, sob o ponto de vista de sua gestão, a prática que se faz fora da faculdade de medicina pode se dar também dentro e a partir dela, segundo Oliveira e Borges (1980). Esses autores observam, por exemplo, que a prática de uma medicina comunitária que alguns professores e alunos fazem "em suas horas vagas" deveria ser feita "nas suas horas cheias"; que a assessoria e orientação que estudantes e docentes dão às associações de bairro e outras organizações deveriam ser feitas como prática universitária e não como trabalho extra, facultativo, sem reconhecimento e apoio da instituição.

Recentemente, a imprensa veiculou uma interessante e oportuna polêmica sobre democracia na universidade e qualidade.

Para Leite (1982), algumas reivindicações que se fazem muito frequentemente em nome da democracia colidem com a busca da qualidade [...] para a sociedade é secundária a organização interna da Universidade [...] o que interessa é, portanto, que a Universidade sirva adequadamente à sociedade e apenas secundariamente aos seus professores e funcionários.

Na visão de Pimentel (1982), no entanto, o dilema entre democracia e qualidade é falso, não havendo oposição entre as duas, exatamente por considerar a democracia uma das características fundamentais da vida universitária, tendo em vista, inclusive, que democracia é uma forma de existência social, de cidadania plena, com tudo o que ela envolve, não apenas o direito à representação, como também o direito de participação na gestão das instituições. E quanto à sociedade, nessa relação, Pimentel considera que a organização democrática não é uma questão supérflua para setores da sociedade, tendo em vista a função e os compromissos sociais da universidade e o destino do conhecimento que ela produz. O autoritarismo impede o equacionamento crítico dessas funções, por parte da escola.

Por sua vez, Maar (1982), reafirmando que "o processo de democratização em curso real na prática universitária não procura jamais colidir com a busca da qualidade", salienta que a universidade precisa conviver com a representatividade intelectual e a representatividade social; em outros termos, "o professor ou aluno é um cidadão, mas também um universitário". Quanto à qualidade da produção, o autor preconiza que a universidade se liberte de "critérios que avaliam a qualidade de sua produção, apenas em termos da produtividade de acordo com o modelo econômico do País".

A Escola Médica, dentro do ensino superior, talvez seja a que melhor reúne as condições para essa revisão de critérios de qualidade de sua produção (e não só de seu produto). Isto porque, dadas a sua natureza e a especificidade de seus compromissos formais e informais, poderá aumentar o seu potencial de inconformismo em relação ao modelo social vigente. Seria o caminho em direção a Escola Médica que precisamos reinventar.

Cecilia Magaldi

Departamento de Saúde Pública, Faculdade de

Medicina de Botucatu, Unesp.

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    Documento apresentado ao painel "A Escola Médica", durante o XX Congresso Brasileiro de Educação Médica (ABEM), realizado de 13 a 16 de dezembro de 1982, na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP, São Paulo. Publicado i
    n memoriam.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011
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