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O processo de recuperação do uso indevido de drogas em igrejas pentecostais Assembleia de Deus

El proceso de recuperación del uso indebido de drogas en iglesias pentecostales Asamblea de Dios

Resumos

A literatura tem indicado diversos problemas relacionados ao uso indevido de drogas na sociedade brasileira. Nesse contexto, as instituições religiosas surgem como local de recuperação. Apresentam-se os resultados obtidos por um estudo visando compreender o processo de recuperação do uso indevido de drogas vivido por fiéis de igrejas pentecostais Assembleia de Deus, de uma comunidade popular da cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de pesquisa qualitativa, recorrendo a entrevistas semiestruturadas e observação participante. Foram entrevistados dez participantes dessas igrejas que buscaram o local por problemas relacionados ao uso indevido de drogas. Foi feita análise de conteúdo, buscando nexos de sentido nos discursos. Resultados apontam as motivações da igreja ao interessar-se pela recuperação de usuários de drogas, bem como as dos usuários para a busca da igreja, indicando que o processo de recuperação envolve elementos totalizantes e individualizantes.

Religião; Transtornos relacionados ao uso de substâncias; Áreas de pobreza; Apoio social


La literatura ha indicado varios problemas relacionados con el uso indebido de drogas en la sociedad brasileña. Las instituciones religiosas surgen como sitio de recuperación. Son presentados los resultados de un estudio acerca del proceso de recuperación del uso indebido de drogas vivido por fieles de iglesias pentecostales Asamblea de Dios, en una comunidad popular de Río de Janeiro. Se trata de investigación cualitativa mediante entrevistas semi-estructuradas y observación participante. Fueron entrevistados diez participantes de dicha iglesia que buscaban la institución por problemas relacionados con drogas; se realizó el análisis de contenido, buscando nexo de sentido en los discursos. Los resultados sugieren las motivaciones de la iglesia al interesarse por la recuperación de los usuarios de drogas así como las motivaciones de los usuarios al acudir a la iglesia, indicando que el proceso de recuperación involucra elementos individuales y totalizadores.

Religión; Problemas relacionados con sustancias; Áreas de pobreza; Apoyo social


A variety of drug misuse-related problems in Brazilian society have been described in the literature. Religious institutions have emerged as a place for recovery, within this context. This paper presents the results from a study that aimed to understand the process of recovery from drug misuse experienced by believers at the Assembly of God Pentecostal church, in a low-income community in Rio de Janeiro. The qualitative method was applied, including semi-structured interviews and participative observation. Ten Assembly of God believers, who sought the church due to drug misuse-related problems, were interviewed. Content analysis was performed, to seek linked meanings in their discourse. The results showed the church's motivations in taking an interest in drug- user rehabilitation, and the users' interest in seeking out the church, thus indicating that the recovery process involves both totalizing and individualizing elements.

Religion; Drug-related disorders; Poverty areas; Social support


O processo de recuperação do uso indevido de drogas em igrejas pentecostais Assembleia de Deus* * Elaborado com base em Rocha (2010); projeto de pesquisa aprovado pelo Comitê de Ética da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca e financiado pela Capes.

The process of recovery from drug misuse in the Assembly of God Pentecostal church

El proceso de recuperación del uso indebido de drogas en iglesias pentecostales Asamblea de Dios

Mary Lança Alves da RochaI; Maria Beatriz Lisboa GuimarãesII; Marize Bastos da CunhaI

IDepartamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21041-210. marylancaalves@gmail.com

IIDepartamento de Ciência da Religião, Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora

RESUMO

A literatura tem indicado diversos problemas relacionados ao uso indevido de drogas na sociedade brasileira. Nesse contexto, as instituições religiosas surgem como local de recuperação. Apresentam-se os resultados obtidos por um estudo visando compreender o processo de recuperação do uso indevido de drogas vivido por fiéis de igrejas pentecostais Assembleia de Deus, de uma comunidade popular da cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de pesquisa qualitativa, recorrendo a entrevistas semiestruturadas e observação participante. Foram entrevistados dez participantes dessas igrejas que buscaram o local por problemas relacionados ao uso indevido de drogas. Foi feita análise de conteúdo, buscando nexos de sentido nos discursos. Resultados apontam as motivações da igreja ao interessar-se pela recuperação de usuários de drogas, bem como as dos usuários para a busca da igreja, indicando que o processo de recuperação envolve elementos totalizantes e individualizantes.

Palavras-chave: Religião. Transtornos relacionados ao uso de substâncias. Áreas de pobreza. Apoio social.

ABSTRACT

A variety of drug misuse-related problems in Brazilian society have been described in the literature. Religious institutions have emerged as a place for recovery, within this context. This paper presents the results from a study that aimed to understand the process of recovery from drug misuse experienced by believers at the Assembly of God Pentecostal church, in a low-income community in Rio de Janeiro. The qualitative method was applied, including semi-structured interviews and participative observation. Ten Assembly of God believers, who sought the church due to drug misuse-related problems, were interviewed. Content analysis was performed, to seek linked meanings in their discourse. The results showed the church's motivations in taking an interest in drug- user rehabilitation, and the users' interest in seeking out the church, thus indicating that the recovery process involves both totalizing and individualizing elements.

Keywords: Religion. Drug-related disorders. Poverty areas. Social support.

RESUMEN

La literatura ha indicado varios problemas relacionados con el uso indebido de drogas en la sociedad brasileña. Las instituciones religiosas surgen como sitio de recuperación. Son presentados los resultados de un estudio acerca del proceso de recuperación del uso indebido de drogas vivido por fieles de iglesias pentecostales Asamblea de Dios, en una comunidad popular de Río de Janeiro. Se trata de investigación cualitativa mediante entrevistas semi-estructuradas y observación participante. Fueron entrevistados diez participantes de dicha iglesia que buscaban la institución por problemas relacionados con drogas; se realizó el análisis de contenido, buscando nexo de sentido en los discursos. Los resultados sugieren las motivaciones de la iglesia al interesarse por la recuperación de los usuarios de drogas así como las motivaciones de los usuarios al acudir a la iglesia, indicando que el proceso de recuperación involucra elementos individuales y totalizadores.

Palabras clave: Religión. Problemas relacionados con sustancias. Áreas de pobreza. Apoyo social.

Introdução

De acordo com o Ministério da Saúde (Brasil, 2003), a relação entre uso indevido de drogas e agravos sociais faz com que tal uso tome a proporção de grave problema de saúde pública no Brasil.

Neste artigo, o uso indevido de drogas é entendido como a perda de controle em relação ao uso de substâncias psicotrópicas, sejam elas lícitas ou ilícitas, "diante dos riscos próprios a tal experiência" (Acselrad, 2005, p.11).

Diferentes autores (Sanchez, 2006; Lima, Valla, 2005; Sanchez, Oliveira, Nappo, 2004; Zaluar, 2000; Machado, 1996) têm observado a recuperação do uso indevido de drogas entre os adeptos de igrejas evangélicas, sobretudo as pentecostais. No entanto, há escassez de estudos, especialmente brasileiros, a respeito dos mecanismos que contribuem para tal recuperação nestes espaços (Sanchez, 2006).

Devido à relevância dessa questão para a saúde pública, este trabalho contribui para este campo ao atentar para a igreja pentecostal com um local buscado pelas classes populares para solucionar este problema, e que se propõe a solucioná-lo de acordo com sua visão de mundo. A importância deste estudo está em resgatar a perspectiva das pessoas que buscam sua recuperação na igreja pentecostal Assembléia de Deus (AD), por meio da compreensão da lógica presente no seu discurso e prática, potencializando o diálogo aberto entre especialistas e leigos (Funtowiscz, Ravetz, 1997).

Segundo Sanchez (2006), a participação em grupos religiosos tem sido uma solução encontrada por pessoas de diferentes classes sociais para a recuperação do uso indevido de drogas. Entre os mais pobres, a igreja (evangélica ou católica) foi o primeiro ou o único local de tratamento procurado.

É neste grupo populacional que o pentecostalismo é mais expressivo (Jacob et al., 2004), sendo a AD a maior entre estas igrejas no país, contando com mais de oito milhões de membros, ou seja, 47,47% dos pentecostais (BRASIL, 2007).

Valla (2000, p.45) levanta a hipótese de que a grande procura das camadas populares pelas igrejas pentecostais pode ser "o resultado de procurar uma explicação, um sentido, algo que faz a vida mais coerente". Para o autor, não se trata apenas de "uma tentativa de resolver exclusivamente um problema material". Seria uma busca simultânea de alívio dos sofrimentos e de obtenção de apoio social - um dos recursos mais favoráveis à recuperação do uso indevido de drogas (Laranjeiras et al., 2003).

Soma-se a isto o fato de que, ao vincular-se a uma igreja pentecostal, o usuário de drogas passa a receber tratamento mais respeitoso por parte da sociedade pela sua diferenciação, o que contribui para o aumento de sua autoestima (Mariz, 1994a).

O objetivo do presente artigo é apresentar alguns resultados de um estudo que procurou compreender o processo de recuperação do uso indevido de drogas vivido por fiéis de igrejas AD de uma comunidade popular da cidade do Rio de Janeiro.

Metodologia

Trata-se de um estudo exploratório voltado para a compreensão dos fenômenos sociais que envolvem o processo de recuperação do uso indevido de drogas sob a ótica do próprio sujeito afiliado à igreja pentecostal Assembleia de Deus.

O estudo foi realizado em uma área favelada de alta densidade populacional da cidade do Rio de Janeiro, composta por subcomunidades que vivem sob a influência de grupos rivais do tráfico de drogas. Embora este espaço seja heterogêneo em diversos aspectos, inclusive o econômico, concentra pessoas em situação de pobreza na cidade do Rio de Janeiro (Valladares, 1991). A região foi escolhida devido à experiência acumulada pela autora na localidade, o que facilitou a identificação dos sujeitos para a pesquisa.

O estudo trabalhou com fontes de dados primários de cunho qualitativo. Duas fontes foram utilizadas.

Entrevistas semiestruturadas (Minayo, 2007) foram realizadas com fiéis de quatro igrejas pentecostais AD, de uma mesma área favelada, com histórico de uso indevido de drogas. As entrevistas destinaram-se a avaliar: o histórico do uso de drogas, as motivações para buscar a igreja e permanecer ou se afastar da mesma, os aspectos do grupo religioso, que são fonte de apoio social, bem como as crenças que estão ligadas à recuperação do uso indevido de drogas. Foi também entrevistado um pastor da igreja local, com a finalidade de complementar as informações da literatura sobre a AD.

A observação participante em uma destas igrejas também foi utilizada, tanto nos momentos de culto como nas reuniões específicas para a recuperação do uso indevido de drogas que a mesma oferecia. Buscou-se conhecer o ambiente e o discurso do grupo estudado com relação aos cultos, às reuniões de recuperação, ao acolhimento das pessoas (Víctora, Knauth, Hassen, 2000; Becker, 1994).

A princípio, foram selecionados fiéis de igrejas pentecostais, maiores de 18 anos, com histórico de uso indevido de drogas. A abstinência não foi considerada um critério de inclusão, uma vez que o interesse da pesquisa foi a compreensão do processo de recuperação do uso de drogas, e não apenas os "casos de sucesso" do mesmo.

Os sujeitos da pesquisa foram identificados por meio de:

- Informantes-chave que, devido à proximidade com a população em estudo, funcionaram como intermediários, facilitando a aproximação dos investigadores com a população estudada (Patton, 1990; Malinovski, 1978). No caso do estudo, foram duas pessoas responsáveis pelo trabalho de recuperação de usuários de droga.

- Bola-de-neve (snowball). Esta técnica possibilitou a identificação de sujeitos para a pesquisa indicados por pessoas que compartilham ou conhecem outras que possuem as características de interesse da pesquisa (Biernarcki, Waldorf, 1981). Dessa forma, os primeiros entrevistados indicaram outros, que, por sua vez, indicaram outros, e assim por diante, respeitando os critérios de inclusão na pesquisa e o voluntariado.

As entrevistas, com duração média de 60 minutos, foram gravadas com a concordância prévia do entrevistado, após leitura do termo de consentimento livre e esclarecido. Após a transcrição do material, cada entrevistado foi identificado com um pseudônimo.

Os dados foram submetidos à análise de conteúdo, processo que ocorreu com a delimitação das categorias teóricas, com base na revisão da literatura. Em seguida, por meio da visão qualitativa, foi identificada a presença de determinados temas, estabelecidos após um trabalho intenso de leitura e releitura das entrevistas. De acordo com Bardin (1979, p.105), "o tema é a unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado segundo critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura".

A análise dos depoimentos dos sujeitos foi realizada por intermédio da identificação de núcleos estruturadores recorrentes nos discursos. Buscou-se, a partir destes núcleos ou temas, a explicitação do sentido contido nos conteúdos das diversas falas, de forma a permitir a compreensão das representações sociais. Em seguida, deu-se a reinterpretação das categorias teóricas à luz das informações provenientes dos discursos dos sujeitos.

As categorias ou temas de análise que emergiram a partir deste processo foram: a motivação da igreja para a recuperação do uso indevido de drogas; a motivação do usuário para a recuperação do uso indevido de drogas na AD; e a relação entre o indivíduo e o grupo social no processo de recuperação do uso indevido de drogas.

Resultados e discussão

Caracterização dos sujeitos da pesquisa

Foram entrevistados dez sujeitos, todos homens, fiéis da igreja AD, seis dos quais tiveram envolvimento direto com o tráfico de drogas. Quanto à idade, metade dos sujeitos tinha entre 36 e cinquenta anos de idade. Foi entrevistado um jovem de 17 anos de idade, o qual teve sua participação na pesquisa autorizada por sua mãe e aprovada pelo CEP/ENSP. A conversão da maioria dos entrevistados ocorreu por volta dos trinta anos de idade.

Quanto à ocupação, confirmou-se o padrão apontado por Nascimento (2009): localização predominante no setor terciário da economia, com uma forte tendência à informalidade. Porém, quanto ao nível de escolaridade, oito tinham, pelo menos, o Ensino Fundamental completo, o que os coloca um pouco acima da média dos pentecostais, que é 4,5 anos de estudo, como mostra o mesmo autor.

As drogas utilizadas foram: cocaína, maconha, álcool, tabaco e crack. Apenas um entrevistado está inserido em um tratamento profissional para drogas, no sistema público de saúde. Este, dependente de crack, ainda sofre muitas recaídas. Os demais buscaram exclusivamente o apoio da igreja em sua recuperação. Destes, oito mantêm-se abstinentes e um apresenta recaída ao tabaco.

A motivação da igreja para a recuperação do uso indevido de drogas

Em princípio, as ações da igreja AD estariam restritas ao cumprimento de suas funções religiosas. Mas o presente estudo constata que a mesma extrapola seus horizontes, tornando-se um local de apoio social e recuperação do uso indevido de drogas.

Valla (1998, p.156) define apoio social como "um processo de interação entre pessoas ou grupo de pessoas que através do contato sistemático estabelecem vínculos de amizade e de informação", recebendo apoio material, emocional, afetivo, que contribui para o bem estar dos indivíduos, tendo um papel positivo na prevenção de doenças e na manutenção da saúde. Ainda segundo o autor (2000), a premissa da teoria do apoio social é de que, se a origem das doenças está nas emoções, a solução dos problemas de saúde estaria relacionada com as mesmas.

De acordo com Lacerda (2002), embora o apoio social seja benéfico para os indivíduos de qualquer classe social, no contexto brasileiro ele pode ser identificado como uma estratégia de enfrentamento dos problemas de saúde das populações vulneráveis que encontram limite nos serviços públicos de saúde em termos de acesso, resolutividade e cura, especialmente no que diz respeito a práticas terapêuticas em saúde que tratam os sujeitos como uma totalidade corpo-mente.

Dessa forma, quando os usuários de droga encontram, nas igrejas Assembleia de Deus, pessoas interessadas em apoiá-los e que podem ser encontradas sistematicamente, ocorre a melhoria de sua saúde (Valla, 2000).

Uma forma de apoio que favorece o processo de recuperação é o fato de ser a igreja toda um grupo social abstêmio, já que a ingestão de drogas é vista, de acordo com seus integrantes, como algo que escraviza o corpo, tido como sagrado pelo fiel (Alves, 2005). Segundo Mariz (2003), isto representa um suporte socioestrutural alternativo, onde se desenvolvem fortes vínculos emocionais que substituem a sociabilidade anterior.

O estudo de campo confirmou que, nas igrejas estudadas, os fiéis e líderes preconizam a abstinência do uso de álcool e outras drogas1 1 Isso não invalida a possibilidade de alguns dos fiéis agirem de modo contrário ao ensino religioso. Porém, no estudo de campo, isto não foi observado. . O desejo dos entrevistados de se afiliarem a este grupo religioso parece estar relacionado à necessidade de mostrarem à sociedade seu afastamento das drogas e do tráfico. Os que recaem, são orientados a não o fazerem mais.

Observa-se ainda que o apoio social é oferecido tanto na dimensão afetiva quanto material, como ilustram estas falas:

Eles prepararam a minha esposa. Eles prepararam a minha volta. E isso foi muito importante. [..] Quando eu saí do Centro de Recuperação, essa igreja estava de braços abertos me aguardando. [...] Quando eu cheguei aqui, fui muito bem recebido, fui acolhido, aqui tinha um lugar pra eu trabalhar. (João, fiel, entre 36 e 50 anos de idade, acima de 10 anos de conversão)

Então, naqueles momentos mais difíceis eu pedia aos irmãos: 'Me ajuda em oração porque eu estou fraco espiritualmente'. [...] Um grupo de irmãos constantemente vinha ali orar e me ajudar em oração. (José, fiel, entre 36 e 50 anos de idade, acima de dez anos de conversão)

Uma forma de apoio social muito específico dos grupos pentecostais é a intercessão da igreja no sentido de evitar a morte das pessoas por traficantes, como ocorreu com Francisco:

Aí foi o que aconteceu comigo, eles me pegaram pra me matar! [...] Aí o meu pastor ficou sabendo, botou uma equipe, cada um pelo lado da rua [...] Pensei também que eu ia morrer. Mas daqui a pouco vem uma ligação, falou: 'Larga o cara! [...] O cara é homem de Deus, tem mais nada a ver com esses problemas não!'. (Francisco, fiel, entre 36 e cinquenta anos de idade, acima de dez anos de conversão)

A pesquisa indicou que, ao desenvolver um trabalho com usuários de drogas e oferecer tal apoio social, a maior motivação da igreja – e o principal diferencial desta com relação a outras instituições de tratamento – é a transformação dos indivíduos de acordo com os ensinamentos de sua crença. Ou seja, a igreja não é primariamente um local para a recuperação do uso de drogas, como os Alcoólicos Anônimos (AA) ou os Centros de Atenção Psicossocial de Álcool e Outras Drogas (CAPs-Ad). Para ela, "o corpo é apenas um exercício preliminar, pedagógico, para a tarefa que realmente importa: a cura das almas" (Alves, 2005, p.264). O pastor entrevistado confirma esta interpretação:

O objetivo é que ele seja um salvo. [...] E não somente se liberte das drogas. O que adianta se livrar das drogas e depois ir pro inferno? O nosso objetivo é que ele seja crente, que ele seja salvo tal como nós somos. (pastor, entre 36 e cinquenta anos de idade, acima de dez anos de conversão)

Segundo Alves (2005), isto ocorre porque a igreja tem dificuldade em articular uma ética social. Ela entende que os problemas sociais são resultado de crises espirituais e morais dos indivíduos, deixando a problemática social e estrutural fora de sua esfera de atuação/intervenção. Por esta razão, Mariz (1994b) diz que o indivíduo que se "liberta da droga" não age como um cidadão moderno, mas atuará apenas na esfera privada, procurando outros a quem possa "libertar" como forma de retribuir o benefício que recebeu.

Segundo este ponto de vista, em que o problema está no indivíduo, a transformação da sociedade ocorrerá quando os indivíduos que a compõem se transformarem "um a um". Para isso, a igreja investe na "cura das almas", por meio da evangelização, como forma de modificar o indivíduo.

Os entrevistados expressaram a mesma lógica quando apontaram a "mudança de caráter" como resultado de seu processo de recuperação:

A recuperação é não usar droga, parar de usar droga. Mas sendo o caráter da pessoa também. Quando a pessoa usa droga, ela fica sem caráter e conforme ela vai se distanciando das drogas, vai recuperando o caráter. (Anderson, fiel, entre 18 e 25 anos de idade, entre um e dois anos de conversão)

Portanto, estar em recuperação na AD significa, para os entrevistados deste estudo, a assimilação de comportamentos condizentes com a igreja à qual passam a pertencer, o que, muitas vezes, significa vigilância e cobrança constante até mesmo por parte da comunidade.

Francisco é categórico: "Quem entra para a igreja sabe o que está fazendo, sabe o preço que tem que pagar." O "preço que se tem que pagar" está ligado não apenas à exigência de uma mudança comportamental moralizante em todas as áreas da vida, mas também à própria exigência de abstinência, que deixa de fora de seu alcance os indivíduos que não se adaptam a tais expectativas.

A motivação do usuário para a recuperação do uso indevido de drogas na AD

Considerando-se que o tratamento do uso de drogas na igreja AD está relacionado à exigência de mudança em várias áreas da vida para além da questão da droga, é pertinente entender o que leva estes indivíduos a procurarem tal instituição.

A pesquisa mostrou que a busca pela religião se deu porque existe uma "coerência entre a visão de mundo" da igreja e a visão de mundo desses sujeitos, pertencentes à classe popular, que fazem ou faziam uso indevido de drogas (Duarte, Ropa, 1985).

Os entrevistados viam a AD como uma instituição cujos membros são respeitáveis, e este respeito, por sua vez, confere dignidade pessoal aos seus membros (Mariz, 1994a).

Poder participar dessa dignidade e desse respeito era, portanto, um desejo dos entrevistados diante de sua condição de vida.

Eu pensava ser igual a eles. Falei: 'Um dia eu quero ser igual esses caras aí, entendeu? Deixar esses 'fuzil' aqui de lado, jogar isso aqui fora e começar a caminhar com a palavra de Deus na mão' (Francisco)

Eu queria criar meus filhos, eu queria ter uma vida assim, reta com Deus de eu poder ir pra igreja com a minha esposa, com meus filhos porque isso era um sonho que eu tinha! Assim, andar de cabeça erguida, sem ninguém poder me acusar de nada! (Vitor, fiel, entre 26 e 35 anos de idade, menos de um ano de conversão)

Eu via o pessoal da igreja fazendo aqueles cultos ao ar livre, domingo à tarde [...] E eu ficava olhando aquilo, achava interessante as meninas cantando, os jovens dando uma palavra, eu ficava olhando... E eu pensava pra mim: 'Não, isso não é pra mim, isso é pra eles' (José)

Os chefes do tráfico local compartilham este respeito pelos pentecostais como "pessoas de bem" (Mariz, 1994a) e, por esta razão, dão "carta branca" aos que querem sair do tráfico para ingressar na igreja evangélica, desde que eles correspondam ao que se espera de um cristão na comunidade. Este fato mostra que a escolha pela AD pode ser, até mesmo, uma estratégia de sobrevivência nestas circunstâncias.

Mas tem uma diferença: você pode estar devendo o que for, a quantia que for, mas se ele olhar pra você e sentir firmeza que você é um cristão, que você tá na igreja e que dão testemunho por você, e que você próprio dá testemunho, então isso é aceitável. [...] E eles mesmos falam: 'Ó, fica na igreja. Se tu sair, a gente te pega aqui'. (José)

O envolvimento dos familiares dos sujeitos desta pesquisa com a AD também favoreceu a escolha por esta instituição como local para a recuperação. Em alguns casos, a família já pertencia à igreja antes de esses sujeitos se envolverem com drogas e, portanto, o discurso religioso já estava presente em suas vidas. Em outros casos, a família passou a buscar a igreja como uma tentativa de conseguir ajuda para tirar seus filhos e maridos das drogas.

O estudo de Mariz (1994a) já havia evidenciado a contribuição da família para a escolha pela igreja pentecostal. A autora chega a afirmar que "a opção pela igreja pentecostal como instrumento de recuperação [...] é antes uma opção familiar do que individual" (Mariz, 1994a, p.210, grifo da autora). Segundo Machado (1996), mesmo quando os homens não reconhecem esse fato, suas esposas ou mães se anteciparam a eles em procurar ajuda na igreja e, de alguma maneira, apontaram-na como uma solução para seus problemas.

Outro fator que faz a visão de mundo da igreja ser coerente com a do grupo estudado é a "busca ativa" que a igreja faz entre os usuários de droga, indo até eles propondo uma nova forma de vida. O estudo mostrou que os entrevistados resolveram buscar a igreja como o local para se tratarem do uso indevido de drogas porque eles já haviam sido abordados previamente por fiéis da igreja Assembleia de Deus:

Aí daqui a pouco vinham as irmãzinhas evangelizando à noite, entrando lá na boca de fumo. (José)

Eles eram enjoados! [...] Eles iam visitar a minha casa [...] Eu batia a porta na cara dela. (Antônio, fiel, entre 36 e cinquenta anos de idade, entre um e dois anos de conversão)

Porque eu via muitos outros que vinham conversar comigo, tudo com a aparência bonita! [...] A minha autoestima ali naquela hora, ela crescia. (Francisco)

A "crise" decorrente das consequências do uso indevido de drogas foi mais um fator que contribuiu para a escolha pela igreja como local de recuperação. O mote dessas crises advém: da morte de um familiar; da perda do emprego; de brigas familiares; do isolamento social e risco de morte decorrente do envolvimento com o tráfico.

Então, diante da crise, entrevistados retornaram à investida da igreja a fim de sair desta situação, pedindo ajuda aos fiéis que antes haviam procurado por eles. A partir desta situação, afirmam ter vivido a experiência de conversão.

A conversão, diz Alves (2005, p.96), é "um processo de assimilação do sofrimento a um novo esquema de significação que lhe dá sentido". Ela é antecedida por momentos de crise, em que os sistemas significativos de um indivíduo entram em colapso. Mas, para o autor, os fatores externos que levam à crise de existência são ocasiões para a conversão, mas não sua causa. Como o homem necessita profundamente de ordem, propósito e inteligibilidade, a conversão ocorre porque a cosmovisão que lhe é apresentada pela religião a que ele irá se converter responde de alguma forma à sua experiência de falta de sentido.

A conversão religiosa vivida por essas pessoas constitui uma tentativa de reestruturação de esquemas explicativos que se perderam em decorrência de seu uso indevido de drogas. A religião é "abraçada" por estes como um esforço para dar sentido àquilo que estava destituído de significações, respondendo a uma necessidade de ordem, propósito e inteligibilidade próprias do homem (Alves, 2005).

A relação entre indivíduo e grupo social no processo de recuperação do uso indevido de drogas

Diante da análise das motivações da igreja e dos usuários para a recuperação do uso indevido de drogas em meio religioso, impõe-se, como nova categoria de análise, transversal a estas, a complexa relação entre o indivíduo – singular, único e indivisível – e o grupo social do qual faz parte.

Como assinala Elias (1994), para se compreender melhor a relação entre indivíduo e sociedade, é preciso romper com a alternativa "ou isso/ou aquilo", na qual se trata essa relação como uma antinomia. Em vez disso, deve-se considerar que os indivíduos são, ao mesmo tempo, constituídos pelas suas características individuais, bem como pelos padrões sociais e que, portanto, ocorre interdependência, e não separação entre ambos.

Nas sociedades modernas há primazia do eu sobre o nós, sendo marcadas pela hegemonia de uma visão de mundo individualista. Nas sociedades tradicionais há primazia do ponto de vista do nós em relação ao eu, nas quais as visões de mundo holistas, que partem da totalidade para a demarcação das partes, são hegemônicas (Elias, 1994-falta referência; Duarte, Ropa, 1985). No entanto, nenhum contexto abrange monoliticamente apenas uma possibilidade, seja de individualização ou de holismo. Por este motivo, estes fenômenos devem ser vistos de forma dialética, tanto em sociedades ditas "hierárquicas" como nas "individualizantes" (Velho, 2004).

Quanto ao processo de recuperação do uso indevido de drogas na AD, observa-se a coexistência de visões de mundo individualizante e holista, mas com hegemonia desta última. Por esta razão, a igreja está entre os grupos que têm a noção de pessoa (unidade socialmente investida de significação, ancorada pela comunidade local) como ponto central de sua ideologia (DaMatta, 1981).

DaMatta (1981, p.226-5) resume as características das noções de pessoa como alguém "preso à totalidade social à qual se vincula de modo necessário"; que "recebe as regras do mundo onde vive" e que "a consciência social (isto é, a totalidade) tem precedência" entre outras.

Notou-se, na fala dos entrevistados, uma relação direta entre abandono da droga e "seguir o caminho de Deus", o que, por sua vez, representa estar ligado à igreja e ter uma "mudança de caráter". Isto exemplifica a precedência da consciência social nestes sujeitos, que se inserem como pessoa neste grupo social, aderindo a um discurso socialmente produzido.

Pessoa também é aquele que consegue diferenciação no tratamento decorrente do pertencimento a uma rede de relações e suportes. As pessoas são vistas. Elas têm nome. Têm história e têm quem se importe com elas (DaMatta, 1981). Dito de outra forma, a pessoa recebe apoio social, como foi discutido anteriormente. Quando está inserido nesta rede de apoio, a luta contra a droga passa a ser uma luta de toda a igreja (Mariz, 1994b), uma vez que seus membros passam a ter responsabilidade pela recuperação daquele sujeito. Um dos entrevistados, que tem sofrido recaídas, ilustra esta situação. Sua relação com a igreja resume-se a frequentar os cultos, sem compartilhar seu envolvimento com drogas ou estabelecer laços mais fortes com os fiéis. Ao preservar sua intimidade, o que é um direito seu, perde o suporte do grupo que poderia ajudá-lo em sua recuperação.

Os benefícios do apoio social, por sua vez, ocorrem de forma recíproca, ou seja, numa "relação de troca" tanto entre quem oferece como em quem recebe (Lacerda, 2002). Desta forma, a igreja insere o sujeito em uma relação de reciprocidade, uma vez que o converso busca se manter em estado permanente de dívida para com a igreja que lhe deu suporte. Além disso, o indivíduo "liberto" passa a ter responsabilidade de libertar outros indivíduos como parte do projeto de transformação da sociedade (Mariz, 1994b). Característica semelhante foi identificada entre os membros do AA, os quais visam dividir com o outro o que eles entendem ter sido bom para si (Godboult, 1997).

Mas além dos elementos totalizantes referentes à estrutura envolvente da igreja, que subordina os fiéis à sua visão de mundo e às suas regras morais, oferecendo em troca o apoio social, há aspectos individualizantes que são observados no processo de recuperação na AD.

Como foi dito anteriormente, a igreja situa a raiz do problema social no indivíduo, deixando fora de sua esfera de atuação/intervenção a problemática social e estrutural. Decorre daí uma maior preocupação da AD em resolver problemas internos do homem, e o fato de que, mesmo quando se volta para o social, é para oferecer uma solução paliativa e assistencialista (Dana, 1975).

Este tipo de individualismo não permite uma crítica às estruturas sociais, mas estimula a despolitização, pela alienação das estruturas sociais que atuam sobre os indivíduos, "reduzindo-a aos foros da mera autocrítica particularizante" (Dana, 1975, p.153).

O próprio apoio social, parte importante do processo de recuperação, apresenta limitações dentro desta perspectiva individualizante. Uma delas é o fato de, muitas vezes, a igreja simplesmente encaminhar pessoas para algum Centro de Recuperação, reduzindo o problema das drogas à questão espiritual, sem dar o suporte necessário quando o indivíduo volta, como ilustra esta fala de um entrevistado:

Muitas vezes a gente manda o jovem pro Centro de Recuperação, mas não é só ele que está precisando de ser trabalhado. Porque a família ficou aqui doente. Aquele jovem fez coisas que deixou aquela família aborrecida, desacreditado. Então, aquele jovem vai voltar pra um ambiente desses? Não vai, ele não vai ficar. Aí vai pra igreja, a igreja que mandou. Aí chega lá, a igreja não acolhe ele como deveria, até porque nossa igreja não tem estrutura pra isso. [...] Então eu fico muito triste porque eu vejo que foi negligência nossa. A pessoa vai pra lá, sai daqui desempregada, brigada com a família, muitas pessoas estão na rua, nós acolhemos, mandamos pro Centro de Recuperação. (João)

A partir deste depoimento, pode-se perceber que existe, nos entrevistados, a compreensão de o problema do uso indevido de drogas ser uma questão complexa, cuja solução demanda intervenções sociais mais amplas. Mostra, também, que muitas igrejas não têm condições de dar às pessoas o que seria necessário para reestruturar suas vidas porque são pequenas e não têm suporte financeiro para tanto. Além disso, há, na maioria dos casos, falta de conhecimento técnico que lhes instrumentem melhor para enfrentar essa situação. Por outro lado, essas dificuldades poderiam ser minimizadas se a igreja trabalhasse de maneira articulada com outras igrejas - já existem tantas na comunidade - ou com outras instituições, como órgãos públicos e organizações comunitárias. Por fim, mostra que apesar dessa limitação institucional, o indivíduo que não consegue se recuperar acaba sendo responsabilizado por seu "insucesso".

Ou seja, independentemente do apoio social, existe uma abordagem individualizante utilizada pela igreja, uma vez que é esperado do sujeito, em seu processo de recuperação, que assuma a sua responsabilidade individual em conseguir ou não se recuperar do uso indevido de drogas. Esse pensamento é expresso nos depoimentos dos entrevistados:

Como a pessoa pode se livrar do uso de drogas? A pessoa tem que querer. Tem que ser da pessoa se livrar do vício. E também ter Deus na vida deles. E parar de andar na localidade onde ele usava droga direto. (Alberto)

Tipo assim, eu penso assim, o negócio é eu querer. Se eu 'querer', eu não vou usar. 'Eu não quero, eu não quero, eu não quero acabar com a minha vida'. (Anderson)

Agora, se você quiser, bem, mas você tem que querer. Porque não ia adiantar nada se eu não quisesse sair do tráfico. Eu desejava sair, mas eu não tinha força. Por quê? Porque eu não tinha uma ajuda. Quando eu encontrei, eu agarrei, falei: 'Não, eu vou!' Entendeu?. (José)

Reis (2007) identificou esta mesma característica no AA, que ela chama de super-responsabilização. Tanto no caso da irmandade como no da igreja, se o indivíduo recai, isto é interpretado como sendo devido ao seu "não-desejo" de se recuperar, sem um questionamento acerca deste aspecto da vontade e do desejo de cada um, e das possíveis estratégias alternativas de tratamento. A recaída, portanto, é vista unicamente como de responsabilidade individual.

Sob a perspectiva do usuário de drogas que busca a igreja para sua recuperação, também é possível identificar aspectos individualizantes. Embora a AD possa ser considerada uma instância desindividualizadora, escolher pertencer a ela "não deixa de ser, em algum nível, uma solução individual" (Velho, 2004, p.25), uma vez que tanto a desindividualização quanto qualquer projeto individual são elaborados dentro de um campo de possibilidades que se dá diante de circunstâncias históricas e culturais concretas.

Na fala dos entrevistados, foi possível "mapear o individualismo" destes que, mesmo dentro dos limites impostos pela religião, têm a oportunidade de desenvolver suas potencialidades, o que contribui para o fortalecimento da autoestima:

Eu tomo conta do meu filho desde um ano e oito meses de idade. Caramba! Hoje em dia eu me olho assim, falei: 'Não é possível! O meu filho grandão e eu que tomo canta dele, eu que faço tudo pra ele, eu que tenho os cuidados, eu levo ele no pediatra, levo ele pra fazer hemograma, eu faço tudo por ele! Coisa que eu não sabia que tinha em mim'. (Francisco)

Depois que eu entrei pro Centro de Recuperação eu descobri que eu tenho bastante talento, talento que eu não sabia. O talento que eu tava jogando fora antes. [...] Eu fui pra outra igreja pra poder ajudar, porque eles tavam precisando de mim [...] Eu ensinei a tocar contrabaixo, violão e guitarra. (Gustavo, fiel, 17 anos de idade, entre três e cinco anos de conversão)

E acabou que na igreja mesmo, dei o testemunho lá na matriz, a matriz-mãe, onde o pastor Y me fez o convite. Aí eu fui e falei pra muita gente. Só que aquela gente que estava lá, mais de mil pessoas ouvindo eu falar, tava tudo chorando quando foi recolher os dízimos e ofertas. Aí eu falei: 'Vocês tão chorando!' E estavam chorando porque me viam desde pequeno e viram minha trajetória de 'turbulação', de muita coisa. E viu aquela situação minha então eles choravam porque viram que agora ali teve uma transformação. E aí fiquei muito feliz, falei 'meu Deus! Eles chorando por causa de mim?' Só vitória, só benção! (Antônio)

O próprio reconhecimento social, expresso em elogios e respeito, pelo fato de eles estarem correspondendo ao "papel de cristão", que é uma forma de controle, funciona também como um reforço à autoestima deste indivíduo:

Então eu comecei a ver, sem perceber, que as coisas foram mudando. Com quatro meses, quando eu tive que voltar aqui, eu fiquei impressionado como as pessoas ficaram me olhando. [...] E aquilo que me chamou a atenção. Eu creio que era a transformação do meu rosto. Fui transformado... muita coisa, muita mesmo! (João)

Porque pela nossa experiência, a gente falando, muita gente que está na vida ainda que conhece a gente, vê que realmente tem salvação pra aquele que quer. Pra aquelas pessoas que querem aceitar a Deus na vida delas e largar tudo pra trás. [...] Eles mesmos me conhecem e me vê hoje em dia e vê que realmente mudou muito. Porque eu não era assim, não. Eu era pele e osso. Eu era pele e osso. Eu 'ero' magro pra caramba! (Alberto)

Hoje em dia eu passo sem nada, só com a unção de Deus na minha vida pra conversar com aquele que ta ali, três quatro fuzil na mão. Ele abaixa o fuzil e reconhece que é Deus na minha vida! (Francisco)

Percebi que eu estava diferente (fala com orgulho)! Porque eu era muito magrinho, eu era magrinho. Hoje eu estou gordo. As pessoas me olham, falam: 'pô, tu tá bonito!'. (Antônio)

Nota-se, nesses depoimentos, que um determinado papel pode conferir prestígio a um indivíduo, conferido pelo grupo a que pertence: "Ou seja, a partir do espaço social que lhe é conferido, o indivíduo agente empírico desempenha papéis que permitirão a elaboração de uma identidade mais ou menos sólida, respeitada, gratificante" (Velho, 2004, p.45-6).

Para Mariz (1994a, p.90), as experiências subjetivas de dignidade e poder são úteis para a superação do sentimento, não apenas de anomia, mas também de "inferioridade, fatalismo, impotência, sentimentos criados pela miséria e que servem para perpetuá-la".

Além disso, os sujeitos da pesquisa mostraram que existe uma margem de manobra no desempenho de papéis que lhes permite explorar ou criar novas alternativas e viver segundo suas próprias ideias, confirmando que, em toda sociedade, existe a possibilidade de individualização (Velho, 2004).

Eu creio que falta na igreja essa linha de raciocínio aí. É o lado social, mas social mesmo! [...] Lá na Vila Olímpica eu tô com oito mil crianças, oito mil alunos. (José)

Um dos membros daqui da igreja, na época ele tinha [...] um mercadinho. Então eu cheguei, ele me deixou lá, aí fiquei lá no mercado um período trabalhando com ele. Mas eu não podia ficar; eu sabia que ele estava só ajudando. Eu não podia ficar preso só ali. Até quando que eu ia ficar debaixo daquela ajuda dele? Então eu procurei meu caminho. (João)

Portanto, o tratamento religioso para a recuperação do uso indevido de drogas é composto por um misto de elementos totalizantes e individualizantes. Não é possível nem desejável estabelecer qual das duas instâncias é mais importante, mas sim entender como se dá a dialética em que ambas estão inerentemente relacionadas.

Conclusão

O estudo mostrou que a igreja Assembléia de Deus tem desenvolvido um trabalho com usuários de drogas, no qual oferece um apoio social sistemático para os mesmos. Sua motivação para a intervenção, no entanto, não é na recuperação do uso de drogas em si, mas na transformação total deste indivíduo segundo os ensinamentos da religião.

Por sua vez, os usuários de drogas, em sua maioria, elegeram a igreja como primeiro (e único) local para sua recuperação porque, dentro do seu campo de possibilidades, havia coerência entre sua visão de mundo e a desta instituição por diversos fatores.

Um deles é a possibilidade de associar-se a um grupo respeitado por estes usuários e pela comunidade onde vivem. Isto representou, para os que estavam ameaçados pelo tráfico, a própria garantia de sobrevivência.

Outro fator é a proximidade da família com a igreja – buscando apoio para que deixassem as drogas – fazendo com que o discurso religioso passasse a fazer parte de suas vidas. Soma-se a estes o fato de a igreja ter um papel ativo na busca destes sujeitos, indo até eles propondo um novo estilo de vida e, até mesmo, impedindo que fossem executados pelo tráfico.

Por fim, a crise existencial aparece como uma importante motivação para a busca pela igreja. É nesse momento em que o usuário responde às investidas feitas pela igreja, num esforço para dar sentido àquilo que estava destituído de significações.

Verificou-se que a recuperação do uso indevido de drogas, no grupo estudado, é composta por um misto de elementos totalizantes e individualizantes. Como expressões do princípio totalizante, observam-se o apoio social dado aos fiéis e a necessidade de subordinação do fiel à consciência coletiva da igreja.

Os elementos individualizantes se expressam quando se observa, no fiel, o aumento da autoestima ligado à descoberta de novas potencialidades e à valorização que recebe de sua comunidade. Por parte da igreja, nota-se a busca da transformação da sociedade pela transformação dos indivíduos que a compõem, deixando a problemática social e estrutural fora de sua esfera de atuação/intervenção.

Colaboradores

Mary Lança Alves Rocha responsabilizou-se pela concepção do projeto, coleta de dados, análise e redação do artigo. Maria Beatriz Lisboa Guimarães e Marize Bastos da Cunha responsabilizaram-se pela análise dos dados e revisão do manuscrito.

Agradecimento

Ao nosso saudoso Prof. Victor Vincent Valla, que abriu as portas para o estudo da Religiosidade e Saúde na ENSP, inspirando o tema desta pesquisa para a qual contribuiu muito como coorientador.

Recebido em 08/12/2010

Aprovado em 26/05/2011

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  • *
    Elaborado com base em Rocha (2010); projeto de pesquisa aprovado pelo Comitê de Ética da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca e financiado pela Capes.
  • 1
    Isso não invalida a possibilidade de alguns dos fiéis agirem de modo contrário ao ensino religioso. Porém, no estudo de campo, isto não foi observado.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2012

    Histórico

    • Recebido
      08 Dez 2010
    • Aceito
      26 Maio 2011
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