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Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde

LIVROS

Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde

Kleidiana Cássia Silva Borges; Adriana Estevão ; Marcos Bagrichevsky

Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Universidade Federal do Espírito Santo. Avenida Fernando Ferrari, 514. Goiabeiras, Vitória, ES, Brasil. 29.075-910. kleidiana.borges@ufes.br

"Se correr o bicho pega,

se ficar o bicho come":

metáforas e paradoxos do risco

Que nos perdoe o leitor por este título lúdico (talvez um tanto quanto inconveniente aos rigores da academia), mas foi irresistível. Não para roubar a cena. Empenhamos-nos em traduzir, a partir desse dilema-síntese popular/literário (expediente, aliás, usualmente empregado pelo pesquisador que encabeça a autoria do trabalho em apreço), a explosão de sentidos que nos podem interpelar os jogos de palavras, quando acionados. Dispositivo do qual lança mão o livro Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde, com maestria e pertinência, alternando tons ora jocosos, ora sarcásticos (mas sempre de modo consequente).

Indiscutivelmente, os riscos encontram-se na 'ordem do dia'. Em junho do ano passado, a Revista Radis nº 106 (2011) publicou um dossiê bastante ilustrativo e instigante sobre a temática. Nele, argumentações de experts no assunto traduziam substanciais preocupações com a polifonia contemporânea que as acepções do risco acolhem: o modo como estão interligadas à vida cotidiana (sem que, na maioria das vezes, percebamos isso); os efeitos deletérios daí decorrentes, que resultam, invariavelmente, em sofrimento do corpo e da alma; e as problemáticas características dos discursos sanitários tecnocientíficos, que, em grande parte, reduzem as nuances da vida, em toda sua complexidade, à mera capacidade racional de tomar escolhas, suprimindo nossas subjetividades existenciais e mascarando o contexto iníquo que frequenta de forma persistente a realidade brasileira.

É nessa seara que a obra publicada pela Editora Fiocruz, em 2010, e assinada por Luis David Castiel, Maria Cristina Guilam e Marcos Ferreira, mergulha, investindo visceralmente na problematização do risco e nos deixando uma advertência: não se pode interpretá-lo como um constructo (sanitário, ideológico, epistemológico) isento de contradições e conflitos, muito menos, se deve utilizá-lo/apreendê-lo somente a partir de sua funcionalidade instrumental epidemiológica.

As narrativas e ressignificações pós-modernas associadas aos riscos ultrapassam em muito a dimensão dos fenômenos bioestatísticos, sendo necessários outros investimentos teórico-metodológicos densos e uma leitura crítica de mundo, sensível aos imperativos da sociedade manufaturadora de riscos em larga escala (Beck, 2011) que habitamos e que nos habita.

Entre os aspectos abordados no livro, destacamos o enfoque dado ao papel da difusão científico-midiática de informações relativas ao risco. Em particular, devido à geração de uma espécie de sentimento coletivo que sinaliza um cotidiano irremediavelmente eivado de situações perigosas, do qual estaríamos (e permaneceríamos) à mercê, se não nos prevenirmos 24 horas por dia, ao longo da vida.

O exponencial crescimento de estudos sobre o tema nos meios de comunicação também é problematizado: a relação de interdependência com esse tipo de informação do público (receptor), persuadido pelas 'descobertas mais recentes' da ciência que, em última análise, levam-no a buscar e tornar-se consumidor de produtos e/ou serviços (em geral, disponíveis no mercado) sob a promessa de que estes evitariam problemas de toda ordem.

Contudo, apesar de as expectativas e desejos contemporâneos serem capturados pelos fortes apelos retóricos anunciados por instâncias como o complexo médico-industrial e suas estratégias institucionais de determinação/avaliação/gerenciamento dos riscos, raramente conseguimos aplacar nossas angústias diante das ameaças onipresentes, por mais que nos esforcemos no cumprimento rigoroso de preceitos preventivos receitados. Pelo contrário, a despeito de tanta 'recomendação especialista' a circular, a ansiedade parece só crescer no dia a dia. Segundo os autores, esse 'ambiente riscofóbico' incita as pessoas a assumirem comportamentos que incorporam ou excluem determinados 'estilos de vida', os quais implicam a administração de modos de viver nem sempre acessíveis/viáveis à maioria da população.

A obra está organizada em quatro capítulos e compõe a coleção Temas em Saúde. No primeiro capítulo, são tratados aspectos teórico-metodológicos do conceito de risco, sua aplicabilidade nas diversas áreas e as disciplinas que dele fazem uso: a economia, a epidemiologia, a engenharia e as ciências sociais. Nas três primeiras predomina o enfoque quantitativo; na última, as abordagens qualitativas são as mais frequentes.

Discute-se, ainda, a 'noção funcional' de risco, articulada ao emprego de indicadores epidemiológicos, para comparações intra- e intergrupos quando se busca medir a morbidade de coletivos populacionais. Os pesquisadores lembram que essa dimensão quantificadora dos fatores de risco à saúde vem acompanhada de determinada racionalidade, prevalente nas maneiras de explicar os processos de adoecimento.

Na mesma seção, os termos 'risco', 'associação' e 'causalidade' (e as relações entre eles) são pormenorizados, levando-se em conta sua recorrência no discurso epidemiológico dominante, que homogeniza e reduz os fenômenos da tríade saúde-doença-cuidado a mecanismos de apreensão lógica, estatística.

O segundo capítulo examina a questão do estilo de vida saudável, vinculada a certas abordagens discursivas de promoção da saúde. Destaca que, em geral, estas se mantêm numa posição hegemônica de culpabilização da vítima. E analisa com rigor a perspectiva comportamentalista de promoção da saúde, criticando as estratégias de redução dos riscos a ela conectada.

A relação entre posturas arriscadas e estilos de vida é posta em xeque justamente porque não considera a processualidade da ambiência social, nem consegue apreender e decodificar emoções, desejos e sensações que influenciam e amoldam comportamentos. O cerne da problematização recai sobre a tirânica apologia à 'vida ativa', 'saudável', sustentada, em boa parte, por argumentações de estudos epidemiológicos que evocam a noção de 'autonomia pessoal' como sinônimo de autocuidado e circunscrita apenas a perspectivas individualizantes. Também são tecidas críticas sobre o modo como a promoção da saúde vem empregando tais discursos para demonizar o sedentarismo e reafirmar incansavelmente (a despeito dos contextos vividos) que 'atividade física é sinônimo de saúde'.

O mote do terceiro capítulo centra-se nos efeitos que a presença do risco genético produz no campo sanitário. Práticas médicas como as de (des)aconselhamento da gravidez de mulheres, baseado nas atuais testagens genéticas pré-natais, a fim de se evitar/detectar condições supostamente indesejáveis e/ou perigosas, são ilustrativas de tais repercussões. Os autores chamam de 'genetização da medicina' o processo de colonização social que extrapola a própria área da saúde. Inúmeras interpretações análogas, restritivas, medicalizantes, vêm sendo aplicadas em esferas não correlatas, sem falar na discriminação genética dirigida a famílias e pessoas. Mencionam, ainda, que, nos meios de comunicação de massa, as explicações genéticas têm servido para doutrinar moralmente fatos, desejos e aspectos da vida humana (por exemplo, a obesidade, preferências sexuais, práticas estéticas, criminalidade etc.), estratégias essas que, em outros tempos históricos, foram rechaçadas e reconhecidas como eugênicas.

O quarto e último capítulo se ocupa do debate sociocultural sobre o risco (já destacado no início deste texto), a partir de sua disseminação midiática, da velocidade das tecnologias de informação e dos consequentes excessos daí originados, que acabam por aumentar em nós a sensação de ameaça cotidiana em distintas esferas do viver. Também é abordada a problemática do risco na adolescência. Tal como o resto da sociedade, exposto aos apelos do consumismo e do individualismo, os adolescentes, em busca de suas identidades, tornam-se mais suscetíveis, por exemplo, ao uso de substâncias ou de intervenções estéticas, a fim de promover modificações corporais que os legitimem socialmente.

Outra noção trabalhada criticamente é a da 'responsabilidade pessoal'. Tomada como estratégia central nas campanhas e programas de prevenção aos riscos, ela tem sido utilizada para execrar os sujeitos que não demonstram capacidade de vigiar-se, autorregular-se. Os autores contrapõem essa perspectiva à ideia de livre-arbítrio (como direito inalienável de decidir, fazer escolhas) e à questão da desrresponsabilização do Estado com o bem-estar social dos cidadãos governados sob sua tutela.

A tematização da longevidade dá fecho ao livro, como mais uma das metáforas contemporâneas a partir da qual se pode contrastar a conflitiva premência de viver correndo riscos com o imperativo de lidar de modo prudente e racional com esse quadro.

Enfim, trata-se de uma importante obra, recomendada não só aos pesquisadores da saúde coletiva, mas, também, de outras áreas, uma vez que oferta análises ricas e multifacetadas sobre o risco, levadas a cabo com o rigor e didatismo necessários, inclusive àqueles ainda 'não-iniciados' no estudo do tema.

Recebido em 15/05/12

Aprovado em 10/07/12

  • BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2.ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2011.
  • CASTIEL, L.D.; GUILAM, M.C.F.; FERREIRA, M.S. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010.
  • LOPES, C.R. Risco, conceito fundamental em permanente discussão. Radis,n.106, 2011. Disponível em: <http://www.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/106/reportagens/risco-conceito -fundamental-em-permanente-discussao>. Acesso em: 20 jul. 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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