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Dilemas antropológicos de uma agenda de saúde pública: Programa Rede Cegonha, pessoalidade e pluralidade

Dilemas antropológicos de una política de salud publica: el programa: Rede Cegonha, personalidad y pluralidad

Anthropological dilemmas of a public health agenda: Rede Cegonha program, individuality and plurality

Resumos

Foi lançado recentemente, no Brasil, o Programa Rede Cegonha, iniciativa nacional orientada à gestante e à mãe brasileira usuárias do serviço público de saúde. Essa proposta parece colocar-nos diante de duas possibilidades interpretativas. De um lado, implica o importante reconhecimento da cidadania e efetivação do direito de acesso à saúde. De outro, abre espaço para a problematização de sua orientação, eficácia e seus limites, quando e se questionado a partir de discussões teóricas da pluralidade da categoria mulher, e, sobretudo, das críticas à prática obstétrica brasileira pelos adeptos do ideário do parto humanizado a partir dos anos 2000. Dado que o Brasil é o recordista mundial no número de cesáreas, tematiza-se o referido programa, à luz dessas duas matrizes discursivas e a partir de tensões como medicina x despersonalização e saúde x doença, e de noções de pessoa, corpo, experiência e singularidade na contemporaneidade.

Políticas públicas de saúde; Direito à diferença; Saúde da mulher; Individualidade


Se puso en marcha recientemente en Brasil el Programa "Rede Cegonha", una iniciativa nacional dirigida a las mujeres embarazadas y madres usuarias de los servicios públicos de salud. La propuesta nos puso en frente a dos posibles interpretaciones. Por un lado, implica el reconocimiento importante de la ciudadanía y garantiza el derecho de acceso a la asistencia sanitaria. Por el otro, deja espacio para el cuestionamiento de su orientación, en especial, frente a las críticas que se han hecho para la práctica obstétrica actual. Teniendo en cuenta que Brasil tiene el récord mundial en el número de cesáreas, se relaciona el referido programa, a la luz de dos matrices discursivas y a partir de tensiones como medicina x despersonalización y salud x enfermedad y de nociones de persona, cuerpo, experiencia y singularidad en la contemporaneidad.

Política pública de salud; Derecho a la diferencia; Salud de la mujer; Individualidad


The Rede Cegonha program, a Brazilian initiative targeting pregnant women and mothers who use the national healthcare system, was recently launched. This proposal seems to provide two possible interpretations. On the one hand, it implies important recognition of citizenship and puts the right to healthcare access into effect. On the other hand, its orientation, effectiveness and limits can be questioned, when and if points arise from theoretical discussions relating to plurality of the women's category and, especially, relating to criticism of Brazilian obstetric practices by followers of the ideas of humanized childbirth from around the year 2000 onwards. Considering that Brazil is the world record holder for the number of cesarean sections, this program is analyzed in the light of these two sources of discourse and starting from the tensions involved in medicine versus depersonalization and health versus disease, together with the current notions of person, body, experience and singularity.

Health public policy; Right to difference; Women's health; Individuality


ARTIGOS

Dilemas antropológicos de uma agenda de saúde pública: Programa Rede Cegonha, pessoalidade e pluralidade

Anthropological dilemmas of a public health agenda: Rede Cegonha program, individuality and plurality

Dilemas antropológicos de una política de salud publica: el programa: Rede Cegonha, personalidad y pluralidad

Rosamaria Giatti Carneiro

Departamento de Saúde Coletiva, Universidade de Brasília. FCE QNN 14, área Especial, Ceilândia. Brasília, DF, Brasil. 70.220-140. rosagiatti@yahoo.com.br

RESUMO

Foi lançado recentemente, no Brasil, o Programa Rede Cegonha, iniciativa nacional orientada à gestante e à mãe brasileira usuárias do serviço público de saúde. Essa proposta parece colocar-nos diante de duas possibilidades interpretativas. De um lado, implica o importante reconhecimento da cidadania e efetivação do direito de acesso à saúde. De outro, abre espaço para a problematização de sua orientação, eficácia e seus limites, quando e se questionado a partir de discussões teóricas da pluralidade da categoria mulher, e, sobretudo, das críticas à prática obstétrica brasileira pelos adeptos do ideário do parto humanizado a partir dos anos 2000. Dado que o Brasil é o recordista mundial no número de cesáreas, tematiza-se o referido programa, à luz dessas duas matrizes discursivas e a partir de tensões como medicina x despersonalização e saúde x doença, e de noções de pessoa, corpo, experiência e singularidade na contemporaneidade.

Palavras-chave: Políticas públicas de saúde. Direito à diferença. Saúde da mulher. Individualidade.

ABSTRACT

The Rede Cegonha program, a Brazilian initiative targeting pregnant women and mothers who use the national healthcare system, was recently launched. This proposal seems to provide two possible interpretations. On the one hand, it implies important recognition of citizenship and puts the right to healthcare access into effect. On the other hand, its orientation, effectiveness and limits can be questioned, when and if points arise from theoretical discussions relating to plurality of the women's category and, especially, relating to criticism of Brazilian obstetric practices by followers of the ideas of humanized childbirth from around the year 2000 onwards. Considering that Brazil is the world record holder for the number of cesarean sections, this program is analyzed in the light of these two sources of discourse and starting from the tensions involved in medicine versus depersonalization and health versus disease, together with the current notions of person, body, experience and singularity.

Keywords: Health public policy. Right to difference. Women's health. Individuality.

RESUMEN

Se puso en marcha recientemente en Brasil el Programa "Rede Cegonha", una iniciativa nacional dirigida a las mujeres embarazadas y madres usuarias de los servicios públicos de salud. La propuesta nos puso en frente a dos posibles interpretaciones. Por un lado, implica el reconocimiento importante de la ciudadanía y garantiza el derecho de acceso a la asistencia sanitaria. Por el otro, deja espacio para el cuestionamiento de su orientación, en especial, frente a las críticas que se han hecho para la práctica obstétrica actual. Teniendo en cuenta que Brasil tiene el récord mundial en el número de cesáreas, se relaciona el referido programa, a la luz de dos matrices discursivas y a partir de tensiones como medicina x despersonalización y salud x enfermedad y de nociones de persona, cuerpo, experiencia y singularidad en la contemporaneidad.

Palabras clave: Política pública de salud. Derecho a la diferencia. Salud de la mujer. Individualidad.

Programa Rede Cegonha: a universalidade de uma política em um Brasil plural

No dia 28 de março de 2011, a Presidente Dilma Rousseff e o Ministro da Saúde Alexandre Padilha lançaram um novo programa de assistência à gestação, parto e maternidade no Brasil. Trata-se do Programa Rede Cegonha, uma iniciativa que procura melhorar o acesso e a qualidade do atendimento ao nascimento na rede pública de saúde, tendo por diretrizes: o teste rápido de gravidez nos postos de saúde; o mínimo de seis consultas de pré-natal durante a gestação, além de uma série de exames clínicos e laboratoriais, inclusive teste de HIV e sífilis; a garantia de leito e de vinculação da gestante a uma determinada maternidade ou hospital público, bem como vale-transporte ou vale-táxi até o local no dia do parto; a qualificação dos profissionais de saúde para uma atenção segura e humanizada; a criação de centros de gestante e do bebê para a assistência à gravidez de alto risco e de casas de parto normal para implementar as demandas do parto humanizado para os casos de baixo risco. Além disso, o programa pretende também incentivar o aleitamento materno; disponibilizar o Samu Cegonha ao recém-nascido que necessite de transporte de emergência, e difundir, nas escolas, um programa de educação que busque controlar a gravidez na adolescência e trabalhe com a noção de direitos sexuais e reprodutivos. O objetivo geral é erradicar os altos índices de mortalidade materna no Brasil, sobretudo na área amazônica e no nordeste do país. A proposta é do governo federal, mas competirá aos estados e municípios a sua aplicação. Para tanto, o governo disponibilizará 9,4 bilhões de reais até 2014, procurando amparar os dois milhões de gestantes atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

O programa é ainda bastante recente, mas já tem gerado controvérsias. Para as feministas da Rede Feminista de Saúde, implica um retrocesso de trinta anos na luta das mulheres pela saúde e emancipação feminina. Segundo a cientista política da Rede, Télia Negrão, em entrevista concedida a repórter do Blog Viomundo, em 05 de abril de 2011, esperava-se mais da atuação de uma mulher na presidência do Brasil, mais do que a reafirmação da mulher entrelaçada à maternidade, lida como mulher-hospedeira. Segundo esse grupo de feministas, a iniciativa reitera a noção de que a saúde da mulher e a própria pessoa da mulher estariam orientadas para a maternidade, para a chamada mulher-mala, deixando de debater a liberdade de escolha da maternidade, e, assim, também a legalização ou descriminalização do aborto. Segundo Negrão, o discurso de fundo do programa é mistificador, e causa estranheza a presença da CNBB no dia de seu lançamento. Em seu entender, a figura da mulher, que dá à luz, desaparece, assim como os seus direitos sexuais e reprodutivos; dando lugar à cegonha, à concepção de saúde de mulher materno-infantil e ao Estado. Além disso, em sua leitura, não há como não interpretar esse cenário sem considerá-lo como resquícios ou consequências da polêmica campanha eleitoral do ano passado, em que os temas da gestação e do aborto adquiriram notoriedade e tom político pejorativo, envolvendo a atual presidente e o então adversário do PSDB. Por tudo isso, conclui que o Rede Cegonha desumaniza o evento reprodutivo, enquanto, em contrapartida, a Rede de Saúde Feminista solicita que o Ministério da Saúde incumba-se mais de retomar a proposta do Plano Integral de Saúde da Mulher (PAISM), desenvolvido em 1983, mas longe de ter sido efetivamente implementado (Batista, 2000). Esse programa de assistência integral à saúde feminina já teria, na acepção dessa rede de feministas, disposto sobre as necessidades e possibilidades de melhoria da atenção à mulher e de modo não necessariamente conectado à maternidade. De um modo ou de outro, o que vemos parece ser uma reação ao que consideram ser o entendimento do governo de que anatomia volta a ser destino, ou seja, de que as mulheres nasceram para serem mães, retomando, assim, a noção de maternidade-mandato, algo já tão debatido pelos movimentos feministas nas décadas de 1960, 1970 e 1980, no Brasil e no mundo.

Contudo, de outro lado, a reflexão bastante diferente de Ceccim e Cavalcanti (2011) reorienta a questão, reconhecendo o valor do programa para um país que, conforme a mídia mais recente, apresenta: problemas de leitos em hospitais, precária assistência hospitalar e médica, altos índices de mortalidade materno-infantil, e uma das mais altas taxas de cesáreas do mundo – na casa de quase 80% na rede privada e 30% na rede pública, números bastante distantes do preconizado pela Organização Mundial de Saúde, que, desde 1985, recomenda o teto de 15% de partos cirúrgicos ao ano. Segundo esse artigo, pela primeira vez na história do país, a maternidade teria deixado de ser bioestatística para tornar-se direito e reconhecimento de cidadania, dando contornos a um parto cidadão. Dessa forma, os autores divergem da Rede Feminista, posicionando-se contrariamente, inclusive, quanto à sonegação do debate do aborto, conforme explicita artigo publicado no Blog Saúde com Dilma, em abril de 2011:

Como admitir o aborto sem assegurar condições indiscutíveis de acesso à maternidade? Como proteger a mulher em um evento fisiológico, onde ela está submetida aos (pré) conceitos morais e legais da sobrevida da espécie, justamente em um momento de abalo em sua estrutura física e subjetiva (com a experiência de aflição) representada pelo parto, sem indicar-lhe o alívio de uma rede de proteção pública, independente de valores, crenças e hábitos? O parto não pode pertencer apenas à mulher, ela não pode sofrer e nem entrar em aflição pela falta de políticas públicas que lhe reconheçam o direito de um parto seguro, esteja onde estiver. O país tem de oferecer serviços profissionais de auxílio ao parto, garantias de acesso às maternidades profissionais e garantia de proteção e auxílio ao pós-parto e puerpério. O puerpério contém necessidades de saúde relativas aos bebês e às mães, necessidades que são distintas entre os dois e se configuram no espectro de saúde da criança e de saúde da mulher. (Ceccim, Cavalcanti, 2001)

Conforme a leitura desses autores, não se trata de uma imposição moral ou biológica da maternidade, mas de uma política de saúde ter se tornado prioridade de governo, sobretudo porque a gestação acontece de maneira alheia ao Estado, cabendo a ele, entretanto, oferecer acesso à saúde e uma assistência de qualidade. Quanto à denominação da política, Rede Cegonha, também criticada pelas feministas, elas teriam divergido e tentado esclarecer que o termo cegonha vem atrelado à ideia de transporte, e não de gestar e de parir, cabendo, portanto, à mulher parir, mas, à sociedade, viabilizar o seu transporte e suporte. Dessa maneira, esses especialistas em políticas sanitárias parecem deixar claro o apoio à iniciativa governamental, ressaltando a sua importância no Brasil de hoje, bem como a eficácia e a abertura discursiva que a própria política pode vir a adquirir.

Quanto ao atual panorama da saúde materno-infantil e paradigma de atenção gravídico-puerperal brasileiro, vale aqui ressaltar a recente difusão da primeira pesquisa a operar com a terminologia "violência no parto". Trata-se de uma pesquisa amparada pela Fundação Perseu Abramo (2010) e empreendida por um grupo de pesquisadores da USP, cujos resultados foram divulgados no site da própria fomentadora no mês de abril de 2011. Segundo seus resultados, uma entre quatro mulheres brasileiras declararam ter sofrido algum tipo de violência no parto, nas maternidades e hospitais públicos e privados. No leque caracterizador da violência, encontramos desde exames de toques dolorosos, negativa para o alívio da dor, não-explicação dos procedimentos realizados, negativa de atendimento, gritos do profissional ao atendê-las, e até xingamentos ou humilhações vividas no momento do parto. Dessa forma, pela primeira vez, a violência denominada até então de "institucional" é caracterizada de modo mais situado como "violência no parto", trazendo a público algumas das impressões femininas da atual assistência médico-hospitalar do país. De outro lado, como já mencionado, somos o recordista mundial no número de cesáreas/ano, uma realidade que tem ensejado, desde a década de 1990, reações críticas à prática obstétrica brasileira, e cuja soma terminou por desenhar o que hoje se conhece como ideário do parto humanizado ou movimento pela humanização do nascimento. Questões como essas, relacionadas às debilidades infraestruturais da rede de saúde brasileira, no limite, podem sugerir que a questão do nascimento é uma questão de saúde pública, de agenda política e de plataforma governamental em nossa sociedade.

Diante disso, o Rede Cegonha, a despeito das críticas provenientes das feministas e dos movimentos de saúde, aparece como política de saúde universal, ou seja, de âmbito nacional, ainda que desponte, inicialmente, como mais preocupada com as regiões norte e nordeste do país. Dessa forma, como toda política pública, se vê indagada quanto à validade de sua extensão, num país, a um só tempo, carente de políticas de saúde, mas, também, notadamente plural, em termos de costumes, estilos de vida e, sobretudo, composto de mulheres urbanas, rurais, indígenas, negras, pobres, ricas, com distintas orientações religiosas, saberes tradicionais, crenças e modos de existência.

Dos aportes de outra leitura: parto humanizado, proposta de política pública ou volição de singularidade?

Em 1993, nasceu a ReHuNa (Rede de Humanização do Parto e do Nascimento), enquanto rede articuladora de estudos e de propostas críticas do modelo de assistência médica ao nascimento vigente no país. De acordo com estatísticas, a realidade do modelo "tecnocrático-hospitalar" (Davis-Floyd, 2009) não parece ter se transformado muito de lá para cá, porque o país ainda enfrenta o alto número de cesáreas e a polêmica ao redor de um conjunto de procedimentos médicos realizados no momento do parto, já há um certo tempo questionados pela medicina baseada em evidências (Biblioteca Cochrane). Sabemos que, antes da Rede, outros modelos de parto já circulavam e eram praticados em nossa sociedade; os estudos de Salem (2007) e de Tornquist (2004) retomam, nesse sentido, por exemplo, a presença da filosofia francesa da década de 1950, o parto sem dor, de Lamaze e Leboyer, já nos idos de 1980 entre as camadas médias cariocas.

O ideário do parto humanizado tem adquirido respeitável notoriedade; pelo menos é o que parece indicar a III Conferência Internacional pela Humanização do Nascimento, realizada na cidade de Brasília, em novembro de 2010, com aproximadamente dois mil e quinhentos participantes; todos preocupados com a preponderância de um modelo cesarista, por eles entendido como intervencionista. Pode-se dizer, em linhas bastante gerais, que o foco do discurso da humanização é a transformação do modo de se nascer no Brasil, de forma a se respeitar o tempo fisiológico das parturientes, a se evitarem procedimentos de rotina tidos como invasivos (como a ocitocina intravenosa e a episiotomia, entre outros), para que sejam ofertados serviços de qualidade, informação ao "casal grávido" (Salem, 2007), e para que exista não somente a possibilidade de escolha do modo de dar à luz, mas também para que sejam respeitadas as crenças e os estilos de vida das gestantes e das parturientes. É certo que, ao se pensar, tecer e implementar uma política de humanização do nascimento, pode-se correr os mesmos riscos de qualquer outro programa que procure ser universal e generalizado. No entanto, nesta oportunidade, gostaríamos de nos deter não ao ideário do parto humanizado de modo abrangente, mas muito mais às impressões, narrativas, anseios e insatisfações que pudemos identificar em recente pesquisa de doutoramento desenvolvida com o que chamamos de adeptas de outros modos de parir (Carneiro, 2011); porque, por ser essa uma palavra situada e feminina quanto à gestação e ao parto, pode aqui ser útil para os propósitos deste artigo e problematização do Rede Cegonha.

Quando o objeto de discussão é o parto humanizado, de antemão, tomamos contato com um recorte social, porque a reação ao sistema médico de atenção ao nascimento encontra-se, hoje, muito mais situada entre mulheres atendidas pela rede privada de saúde do que entre as assistidas pela rede pública. Diante disso, poder-se-ia entender pela pouca utilidade da análise ora sugerida, porém, como em nossa leitura pode haver ressonância entre ambos os universos, nos dedicaremos a refletir sobre as contribuições dessas mulheres no que tange ao que vem como uma política pública orientada ao sistema público de saúde. Da etnografia realizada em dois grupos de preparo para o parto humanizado no Estado de São Paulo, pudemos extrair algumas conclusões interessantes ou, no limite, instigantes, para se debaterem modelos alternativos de parto e qualidade dos serviços médicos na sociedade atual. De modo geral, vimos que as adeptas de outros modos de parir são, ao contrário do que se poderia pensar apressadamente, muito diferentes entre si. Nos grupos, encontramos mulheres: urbanas, rurais, artistas, bancárias, advogadas, católicas, umbandistas, espíritas, evangélicas; em sua maioria, brancas, mas, também, negras e indígenas; vegetarianas e come de tudo; na maioria casadas e juntadas, mas, também, separadas ou mães independentes; mais racionais, mais intuitivas e as abraça shiva (as mais espiritualistas, adeptas da onda new age), entre tantas outras caracterizações. Essa constatação trouxe à tona a dificuldade de se caracterizarem as mulheres que hoje têm aderido ao parto mais natural, sem intervenções médicas de rotina, seja em casa ou no hospital, de cócoras, na água ou nas salas de parto.

O interessante é que, se o discurso do parto humanizado, veiculado por profissionais da saúde e pela ReHuNa, desponta como uma proposta guarda-chuva, como reação à cesárea de rotina e emprego de enema, tricotomia, aminiotomia, ocitocina intravenosa e episiotomia, bem como enquanto necessidade de um atendimento respeitoso e dedicado por parte da equipe médica, de outro lado, o requerido e esperado pelas mulheres dos grupos de preparo parece adquirir uma outra paisagem. Pudemos perceber, que muito mais do que o parto mais natural, sem intervenções médicas, grosso modo, buscavam ter "o parto e não mais um parto", numa tentativa de reação ao esquadrinhamento de seus corpos; procurando recuperar uma pessoalidade que entendiam perdida num processo de despersonalização dentro do âmbito hospitalar e dos demais serviços de saúde (Duarte, 2003). Por essa razão, a cesárea ou alguns procedimentos eram inclusive bem aceitos, desde que fossem informadas e consentissem com sua realização, desde que fossem escutadas em seus anseios, desejos, crenças e trajetórias pessoais. Dessa maneira, tendemos a cogitar uma resistência feminina ao que poderia também vir a ser uma normatização do parto humanizado, eleito e considerado, por alguns, como o modo ideal de parir, a saber, sem nenhuma intervenção e da forma mais natural possível. De outra parte, negar o eco e a influência discursiva do ideário da humanização em suas atitudes também seria uma falácia. Essas outras práticas, nesse sentido, poderiam ser muito mais entendidas como seu resultado, ainda que não se restrinjam e apresentem outras figurações, que não a proposta ideal ventilada pelo movimento da ReHuNa e afins. Tendo a pensar dessa maneira porque, para muitas, incomodava muito mais o tratamento universal dispensado pela equipe de saúde do que um procedimento ou a cirurgia, senão vejamos:

"Eu tinha 35 anos, mas sabia do meu corpo. Quando a médica me disse que, por conta da minha idade, só poderia ser cesárea, fiquei muito incomodada. Ela não quis saber quem eu era, o que fazia, como comia e como cuidava de mim. Por isso, decidi trocar de médica". (notas do caderno de campo, 2009)

"Quando fiquei grávida estava com 42 anos e no pré-natal ouvi que o Estado já não tinha mais interesse em me atender no parto normal, porque já tinha passado o tempo". (notas do caderno de campo, 2009)

"Parecia um check-list de carro, sabe? Eles perguntavam, eu respondia e ela ticava e pronto. Não existia acolhimento, respeito e interesse". (notas do caderno de campo, 2010)

Sheila Kitzinger (1978), antropóloga inglesa bastante lida no seio do ideário da humanização, assim como também Robbie (Davis-Floyd, 2009) nos EUA, escrevem sobre como a padronização do atendimento hospitalar pode contribuir para o desaparecimento da pessoa da mulher que está para parir; como desde a raspagem dos pelos, até o uso da camisola branca e da etiqueta, podem figurar práticas de descaracterização da mulher perante o Estado, por sua vez, personalizado na instituição hospitalar. Pereira (2000), na mesma esteira, chega, por exemplo, à seguinte conclusão:

[...] começou a se delinear a despersonalização da parturiente, produzida pelo cerimonial para adentrar ao hospital, no qual ela deve ser isolada de suas relações e mesmo de seus pertences de fora. Esse ritual traduz-se de diversas maneiras e, no local estudado, compõe-se da colocação de roupa específica do hospital, da retirada de brincos, anéis, alianças ou de qualquer outro adereço, como esmalte e batom, e o encaminhamento para tomar um banho antes de ocupar o leito hospitalar. (Pereira, 2000, p.141)

Para a autora, a sondagem vesical e a lavagem intestinal fariam parte de um ato ritual de limpeza e purificação, mesmo que paciente já tenha tomado banho antes de ir para o hospital; o isolamento da parturiente de sua família indicaria que o nascimento é coisa de mulher; as vestimentas, a nudez da paciente e a posição supina seriam sintomáticas da relação de poder entre a mulher e o médico, assim como o uso da ocitocina para aceleração do trabalho de parto e da técnica da episiotomia – que, hoje, já começa, inclusive, a ser lida como um tipo de "mutilação ritual" pelas adeptas de outros modos de parir –, aliadas aos fármacos para suavização da dor que, na sua leitura, poriam fim à rede de solidariedade antes existente nas cenas de parto entre parteiras e parturientes (Pereira, 2000); ocorrendo, assim, o que denomina de "iatrogênese estrutural", ou seja, uma perda da saúde pela diminuição da autonomia do sujeito sobre o próprio corpo. Essa é uma interpretação bastante similar à tecida por Davis-Floyd, ao estudar o modelo americano de assistência ao parto, para quem:

[...] hace que la mujer se vuelva extraña a si misma vistiéndola con una bata de hospital, etiquetándola, con un brazalete de identificación y rasurándola o recortándole la parte inferior de su cuerpo, devolviéndola al estado conceptual de la niñez (En muchas culturas, la sexualidad y el pelo están unidos simbólicamente). El mismo trabajo de parto es doloroso y a menudo se aumenta el dolor mediante la técnica iniciática de la inserción frecuente y muy dolorosa de los dedos de alguien dentro de su vagina para ver hasta qué punto se le ha dilatado el cuello del útero. Esta técnica también funciona como un mecanismo para hacerla sentir extraña a sí misma. Dado que casi todas las enfermeras o los residentes que necesitan practicar pueden examinarle el cuello del útero, las partes más intimas de la parturienta son invertidas simbólicamente y pasan a ser una propiedad institucional. (Davis-Floyd, 2009, p.66)

Par a par com essa sensação de despersonalização, nos relatos de parto coletados nos grupos, vinha também o debate com relação ao que é saúde e doença. Para algumas das mulheres entrevistadas, a medicina vigente vibra na doença e, por isso, o parto saudável seria aquele desprovido de tanto controle e intervenção externa, seria o mais natural, aquele que flui, que acontece de acordo com o tempo psíquico e fisiológico de cada mulher. Nesse sentido, reconhecíamos uma espécie de subversão de imaginários: se, antes, o hospital era considerado o centro da saúde, do monitoramento da vida e da cura, para essas mulheres, o hospital não vinha simbolizado como sinônimo de saúde e de segurança, mas, pelo contrario, como o local em que teriam de enfrentar discussões, fazer valer seus desejos e onde estariam mais expostas ao denominado efeito cascata, essa série de procedimentos médicos de rotina. Por isso, inclusive, muitas das que podiam custear uma cesárea terminavam optando por um parto domiciliar, assistido de parteira urbana ou por médicos adeptos da humanização, por conta de entenderem que a segurança e a acolhida estavam em suas casas. Sendo assim, saúde e doença parecem deixar de pertencer ao fisiológico, ao bom funcionamento da máquina, para passarem a ser um fenômeno multidimensional, onde aspectos psíquicos, espirituais e emocionais têm importância. E mais, a saúde, nesses casos, seria a regra, o não-controle e a confiança, ao contrário de outrora, quando era a exceção e resultante da disciplina dos corpos, como pensado por Foucault (2002) ao escrever sobre o nascimento da biopolítica no século 19.

Nessa esteira, quando pensamos sobre os propósitos e principais áreas de atuação do Rede Cegonha, tendemos a refletir também sobre a consideração e reconhecimento de distintas concepções de saúde e doença, bem como de parto, vividas e operantes nas regiões norte e nordeste do Brasil, onde se sabe persistir e haver grande incidência dos conhecimentos das parteiras tradicionais, curandeiras, benzedeiras e aparadeiras; bem como uso de ervas medicinais, rezas e manobras de parto transmitidas de mães para filhas.

Em outro sentido, a noção de pessoa ou pessoalidade, operante nos relatos de parto coletados durante a etnografia, parecia vir pautada muito mais pela diferença e por aspectos relacionais do que por noções universalistas e igualitaristas. Por certo que a ideia de autonomia, uma das marcas de uma pessoalidade mais individualista/igualitária, ocupa lugar de destaque, sobretudo quando a pensamos a partir do direito que essas mulheres dizem ter sobre seus corpos. Entretanto, ainda assim, esse componente não parece ter abafado a multidimensionalidade e o aspecto relacional da subjetividade narrada pelas adeptas de outros modos de parir. Essas mulheres vinham influenciadas por suas famílias, relações de gênero, relações conjugais, grupos de preparo para o parto, aspectos transgeracionais, sexuais e espirituais, sobre os quais não teremos tempo de discorrer, mas que acabavam atuando como sinais dessa pessoalidade pautada na diferença, singularidade e numa espécie de autocultivo.

Diante disso, se o Rede Cegonha vem como defesa da cidadania, direitos fundamentais consignados na Constituição Federal de 1988, exercício e segurança do parto cidadão; as envolvidas com a crítica do modelo obstétrico vigente na rede privada e, também, pública, por outro lado, trazem à tona a possibilidade da despersonalização das parturientes no sistema de atenção, alertando para os riscos de uma política que se pretende nacional e cujas consequências poderiam ser o privilégio da igualdade com o preço de pouca atenção às diferenças e ao desejo de singularidade.

E a ideia de mulher no plural, vale para quem? Rede Cegonha e feministas

No interior do pensamento feminista, não só brasileiro, mas internacional, é bastante tematizada e valorizada a demanda pelo reconhecimento da diferença e, portanto, a inexistência da categoria universal mulher. A fase diferencialista do movimento feminista, da década de 1970, com as mulheres negras nos EUA e, em seguida, com as indígenas da América Latina, teria sido uma das primeiras iniciativas de questionamento da identidade mulher, para a qual inclusive, ou até mesmo, o movimento feminista da onda igualitarista, dos anos de 1960, teria contribuído. Em razão da crítica à concepção de feminista somente como mulher branca, heterossexual, letrada e classe média, despontaram correntes feministas que demandavam o reconhecimento da pluralidade que atravessava as mulheres feministas, bem como suas peculiaridades; entre elas, estavam as lésbicas, as negras, as campesinas e as indígenas. Esse movimento de pulverização ou pluralização da categoria mulher, com a pressão do pensamento pós-estruturalista, teria reforçado, nos anos de 1990, não somente a diferença, mas a multiplicidade e a subjetividade enquanto temas de agenda política. Da identidade ter-se-ia passado a tematizar mais a ideia de subjetividade, em nome de uma maior fluidez e na tentativa de fuga das identidades fixas, rígidas e estanques, como pontua Rago (2006, 2004) em seus últimos estudos sobre "novos modos de subjetivação femininos e feministas".

Dessa forma, o debate a respeito da pluralidade da categoria mulher traz à tona a importância de políticas e de demandas que procurem respeitar o itinerário de cada mulher, tornando, por vezes, bastante difícil a aplicação de determinados programas universalizantes, como pode ser o caso do Rede Cegonha. No que tange ao debate e configurações da diferença, Avtar Brah (2006) pode ser uma autora bastante interessante para pensarmos em como trabalhar com mulheres no plural, tendo em conta que, em "Diferença, diversidade e diferenciação", a autora pede a atenção para a necessidade de uma caracterização da mulher que leve em consideração outros marcadores analíticos, que não somente o sexo-corpo, como: a raça, a etnia, a classe social, a orientação religiosa, a orientação sexual, estilo de vida e crenças de quaisquer matrizes. Essa nova orientação quanto à subjetividade, e não mais identidade biológica, torna possível uma subjetividade polissêmica, performatizada e tecida a partir, também, das próprias emoções, ampliando o leque de caracterização do que pode ser uma mulher, tratando-a muito mais em sentido cartográfico e plural. Dessa forma, buscando escapar dos essencialismos da diferença, Brah propõe a interseccionalidade e a necessidade de estarmos atentos à presença de diferentes racismos entre os próprios marcadores analíticos, sublinhando, por isso, a importância de "uma macro-análise que estude as inter-relações das várias formas de diferenciação social, empírica e historicamente, mas sem necessariamente derivar todas elas de uma só instância determinante" (Brah, 2006, p.331). Em sua leitura,

[...] é agora axiomático na teoria e prática feministas que "mulher" não é uma categoria unitária. Mas isso não significa que a própria categoria careça de sentido. O signo "mulher" tem sua própria especificidade constituída dentro e através de configurações historicamente específicas de relações de gênero. Seu fluxo semiótico assume significados específicos em discursos de diferentes "feminilidades" onde vem a simbolizar trajetórias, circunstâncias materiais e experiências culturais históricas particulares. Diferença nesse sentido é uma diferença de condições sociais. (Brah, 2006, p.341)

Por isso, em sua interpretação, a diferença poderia ser conceituada de quatro maneiras: como experiência, relação social, subjetividade e identidade. Como experiência, viria como o lugar de formação do sujeito, não como diretriz imediata para a verdade, mas como uma prática de atribuir sentido, tanto simbólica quanto narrativamente. Viria, portanto, conectada à questão da agência e ao desaparecimento das categorias fixas. Como relação social, a diferença apareceria organizada em relações sistemáticas e através de discursos econômicos, culturais, políticos e práticas institucionais, articulando a variável micro e macro, onde as relações de poder são tecidas e onde as condições históricas para a construção de uma identidade são apresentadas. Diferença como subjetividade seria a consequente do debate feminista junto da psicanálise, quando a ideia de identidade fixa e a ser descoberta teria sido criticada, criando margem para que se pensasse na subjetividade enquanto algo a ser explicado, e não suposto, algo a ser construído, e não encontrado. Por último, viria a diferença como identidade, que, segundo Brah, é a "multiplicidade relacional", com um núcleo em constante mudança, mas de qualquer maneira um núcleo enunciado como "eu" (Brah, 2006, p.371). Essa última frente da diferença carregaria um tom mais político, seria a articuladora para demandas em nome da diferença e conquistas jurídicas e sociais. Nesse sentido, para essa autora, ideal seria se entendêssemos a diferença a partir dessas quatro frentes interpretativas, sem, contudo, entendê-las de maneiras fixas, haja vista partir do pressuposto de que a diferença nem sempre é um marcador de hierarquia e opressão, e de que não deve ser usada nem mesmo como "essencialismo estratégico" (Brah, 2006, p.375); porque, para ela, importa mais articular marcadores a fim de, então, poder compreender se a diferença resulta em desigualdade, exploração e opressão ou, de outra parte, em igualitarismo, diversidade e formas democráticas de agência política (Brah, 2006).

Se considerarmos essa orientação, passa a ser, no mínimo, polêmica a operacionalização de uma política de caráter nacional, e não somente para o Estado, mas, também, para as feministas que procuram reivindicar acesso à saúde para as mulheres, na medida em que a questão da subjetividade torna-se uma miríade, a saber, um enfeixamento de inúmeros marcadores sociais, a serem ponderados em suas particularidades. Dessa forma, para pensar sobre o direito à saúde seria preciso também ponderar a respeito das crenças, habitat, raça e etnia, e não mais somente do corpo e dos aspectos emocionais. Por isso, em nossa apreensão, o Rede Cegonha orientado às regiões norte e nordeste, pela própria singularidade dos modos de nascer dessas regiões, já deveria, tout a court, tematizar as diferenças culturais que, por ventura, possam ser ali encontradas. Para além disso, há também que se sopesar a pluralidade constitutiva do próprio Brasil, que, há décadas, vem sendo caracterizado como heterogêneo e como encontro de inúmeros modos de vida, desde alimentação, vestuário, clima e de diferentes influências discursivas, que podem ser sentidas nos modos de se falar, comer e de comportar-se.

No entanto, por outro lado, se o reconhecimento da diferença é essencial para a nãodescaracterização, o trabalho com a noção de igualdade parece ser notável para a não-inferiorização ou hierarquização entre os diferentes. Esse dilema já é também bastante conhecido no interior das Ciências Sociais e nas teorias feministas e de gênero, e, de fato, parece ser um grande impasse. No entanto, o que temos visto, e cada vez mais, é a constituição de movimentos sociais em nome da valorização das diferenças e da diversidade, construídas historicamente e socialmente, como bem pontua Gregori (2000), em sua resposta ao tão discutido artigo de Pierucci (1999), "Ciladas da diferença".

Segundo Pierucci, se todas as diferenças não são hierarquizantes, a maioria é; sobretudo, quando tratam de diferenças definidoras de coletividades, de categorias sociais e de grupos em relações de forças, a tal ponto que defender as diferenças numa base igualitária torna-se tarefa quase impossível. Para o sociólogo, as diferenças não são inatas, mas frutos do meio, enquanto os seres humanos são todos iguais. Por isso, dever-se-ia trabalhar em nome da igualdade para que a diferença não se torne binária (homens x mulheres), mas, sim, diferenças dentro das diferenças (entre mulheres), no sentido de diferenças múltiplas. Com o intuito de justificar suas linhas, o autor recorre ao famoso caso Sears, nos EUA, no qual, em tese, a demanda pela diferença teria inocentado a empresa de contratar desigualmente homens e mulheres, para funções diferentes; na medida em que teria contribuído para o arrazoado da acusada - que teria lançado mão do mesmo discurso da diferença para justificar uma contratação desigual.

Diante dessas explanações, Pierucci teme pela reivindicação das diferenças, preferindo trabalhar em nome da igualdade para escapar das "ciladas" desse tipo de discurso político, "ora antíteses excludentes ora disjuntivas", denominando-as de verdadeiras armadilhas intelectuais. E, de outra parte, ainda trata de argumentar que esses tipos de demandas teriam origem na direita separatista, racista e sexista de décadas anteriores e, mais recentemente, atualizadas, por exemplo, na França, dos anos de 1980, com relação aos migrantes. Em seu entender, o que vemos hoje seria uma (re) apropiação de um discurso de direita que se tornou de esquerda e que, contemporaneamente, já retoma desenhos conservadores, o que indicaria o efeito de "retorsão" da própria linha argumentativa da diversidade e a possibilidade do "discurso virar-se contra o feiticeiro" (Pierucci, 1999, p.31). Nesse sentido, o receio do autor parece ser externalizado quando, ao terminar o artigo, pergunta-se: "Quem pode garantir que, em meio a essa pós-moderna celebração das diferenças, as pulsões de rejeição e de agressão não venham a se sentir autorizadas a aflorar, crispadas de vontade de exclusão e profilaxia?" (Pierucci, 1999, p.31).

Se essa é uma discussão teórica pouco recente, que apresenta os riscos e dilemas de defesa da igualdade ou da diferença num sentido mais amplo, quando retomamos o foco deste paper e a viabilidade e urgência de políticas de saúde nacionais, a questão parece estar longe de ser pacifica e desprovida de controvérsias. Primeiro, porque o direito à saúde é um direito de todos no Brasil, sem distinções ou restrições. Em segundo lugar, porque, portanto, é obrigação do Estado promover e implementar saúde de qualidade. Trata-se de uma questão de cidadania, de direitos e de igualdade de oportunidades e, por consequência, de algo que parte da igualdade entre todas as brasileiras, e que, em minha leitura, deveria mesmo partir. Entretanto, de outro lado, par a par com a cidadania, vem a necessidade de se reconhecerem as diferenças entre as mulheres, ponto também bastante merecedor de atenção e consideração. E, nesse sentido, parece mesmo ser frutífera a leitura de Brah, ao tematizar a diferença em termos de experiência, subjetividade, relação social, mas, também, como identidade. Porque, caso contrário, à custa da igualdade, mulheres diferentes serão tratadas de modo pasteurizado.

Sendo assim, como pensar política aliada à diferença? Como pensar em saúde sem considerar a pluralidade de percepções e de significados de saúde x doença e de pessoa? De outro lado, no entanto, como não pensar numa política extensível a todo o Brasil, quando grande parte das brasileiras não tem nem mesmo acesso ao leito na maternidade, não tem acesso aos hospitais e tem dado à luz em condições precárias? Essas questões parecem circunscrever o que aqui denominamos de dilemas de uma política universalista. Enfim, como conjugá-los?

Considerações finais

Dessa maneira, nos encontramos perante a problemática realidade da assistência materno-infantil da rede pública de saúde; de uma tentativa de sua reversão, o Rede Cegonha; das críticas feministas ao referido programa e pedido de atenção para a questão do aborto como tema de saúde pública, e, por fim, das impressões e demandas das mulheres brasileiras envolvidas com o ideário da humanização do nascimento. Esse cenário, longe de nos apresentar respostas, coloca ainda mais questionamentos com relação à eficácia e às consequências de uma política universalista de saúde. Por um lado, temos a urgência da resolução da falta de infraestrutura das instituições hospitalares, dos altos índices de mortalidade materno-infantil e da qualidade da assistência prestada pelas equipes médicas e pelo próprio Estado, todos, pontos importantes. Porém, em contrapartida, temos mulheres pedindo pelo reconhecimento de sua diferença no momento do parto, para que tenham o parto e não mais um parto, para que sejam tratadas como a mulher e não como uma mulher a mais, o que, em nossa opinião, retrata uma volição de singularidade e de reconhecimento da diversidade ligada ao que Brah pensa como experiência, subjetividade, relação social e, também, identidade. Essas mulheres, a despeito disso, também recorrem à noção da igualdade, na medida em que se aliam ao movimento do parto humanizado e geram uma certa identidade – a das criticas ao modelo obstétrico vigente. O que importa é que, para elas, não basta infraestrutura e uniformização, se não houver atenção aos seus itinerários existenciais; ainda que não deixem de reconhecer a importância do acesso à saúde pública e privada e que possam, de outro lado, gerar, com suas posturas, também uma certa normatividade quanto ao melhor modo de parir. De uma forma ou de outra, no limite, poderíamos vislumbrar que a noção de direitos sexuais e reprodutivos pode também ser polissêmica, vindo, por um viés mais igualitarista, como direito e programa público, mas, por outro mais diferencialista, também como o direito de parir como esperado e desejado.

À guisa de conclusão, considerando o caráter de urgência de uma política de saúde orientada ao nascimento, poderíamos aventar a hipótese de, no Brasil de hoje, ser primeiro preciso que as mulheres tenham acesso ao SUS, aos leitos e aos exames pré-natais, para que, depois, uma vez lá instaladas, possam e tenham embasamento para demandar o atendimento diferenciado que as atendidas na rede privada já têm questionado. No entanto, quando nos referimos ao Estado, às políticas governamentais e à proteção da liberdade dos sujeitos de direitos, e, nesse caso, ao Rede Cegonha, a questão de como abordar a diferença parece-nos um tema importante a ser tematizado, dado que decisivo, como bem vimos a partir de leituras antropológicas e feministas. E, em última instância, porque há de se pensar que a indagação social pode, em breve, vir a ser: Igualdade e acesso à saúde pública à custa de que particularidades femininas?

Recebido em 16/08/12.

Aprovado em 26/12/12.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Maio 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 2013

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2012
  • Aceito
    26 Dez 2012
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