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"Armários de vidro" e "corpos-sem-cabeça" na biossociabilidade gay online

"Armarios de vidrio" y "cuerpos-sin-cabeza" en la bio-sociabilidad gay online

"Glass closets" and "headless bodies" in online gay biosociability

Resumos

O artigo é uma análise teórica que articula os conceitos de corpo, sexualidade e armário para pensar a biossociabilidade gay na internet. A partir de dados produzidos por meio da observação participante em dois sites de relacionamento brasileiros voltados para homens gays na internet, constrói-se uma argumentação conceitual propondo caracterizar essa sociabilidade online como uma biossociabilidade, em que o corpo é o personagem central. Nesta biossociabilidade, em que há demanda por intensa visibilidade, a metáfora do armário adquire novos contornos: criam-se situações de intensa visibilidade e exposição dos corpos e, ao mesmo tempo, de insidiosa vigilância acerca da discrição da sexualidade gay neste contexto. Reflete-se sobre a importância da marcação e exposição do sexo (macho) e do gênero (masculinidade) nos corpos dos indivíduos, relacionando-as ao assumir-se (fora do armário), ao manter-se discreto (dentro do armário) e às formas de exposição dos corpos online.

Internet; Sexualidade; Corpo; Biossociabilidade


El artículo es un análisis teórico que articula los conceptos de cuerpo, sexualidad y "armario" para pensar la bio-sociabilidad gay en Internet. A partir de datos producidos por medio de una observación participativa en dos páginas web brasileñas de relaciones dirigidas a los hombres gay, se construyen algunos argumentos conceptuales para caracterizar esa sociabilidad online como una bio-sociabilidad, en la cual el cuerpo es el personaje central. En esa bio-sociabilidad, en donde hay demanda de una visibilidad intensa, la metáfora del "armario" adquiere nuevas dimensiones: se crean situaciones de intensa visibilidad y exposición de los cuerpos y, al mismo tiempo, de vigilancia insidiosa sobre la discreción de la sexualidad gay en ese contexto. Se reflexiona sobre la importancia de la marca y exposición del sexo ("macho") y el género ("masculinidad") en los cuerpos de los individuos, relacionándolas al hecho de asumirse (salir del "armario") o al de mantenerse discreto (permanecer en el "armario"), y a las formas de exposición de los cuerpos online.

Internet; Sexualidad; Cuerpo; Bio-sociabilidad


This paper comprises a theoretical analysis that links the concepts of body, sexuality and closet to reflect on gay biosociability on the internet. Based on data produced through participant observation on two Brazilian cruising websites focusing on gay men on the Internet, a conceptual approach that proposes to characterize online sociability as biosociability is constructed, in which the body is the central character. In this biosociability, in which there is a demand for intense visibility, the metaphor of the closet gains new outlines: situations of intense visibility and body exposure, and at the same time, insidious surveillance regarding the discreetness of gay sexuality, are created in this context. The importance of marking and showing the body's sex ("male") and gender ("masculinity") is discussed and correlated with coming out of the closet or remaining closeted, and with the ways of online body exposure.

Internet; Sexuality; Body; Biosociability


"Armários de vidro" e "corpos-sem-cabeça" na biossociabilidade gay online* * Elaborado com base em Zago (2013a); pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

"Glass closets" and "headless bodies" in online gay biosociability

"Armarios de vidrio" y "cuerpos-sin-cabeza" en la bio-sociabilidad gay

online

Luiz Felipe Zago

Grupo de Pesquisa Educação e Ensino da Saúde EducaSaúde, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Avenida Paulo Gama, nº 110, prédio 12.201, sala 409. Porto Alegre, RS, Brasil. 90.046-900. felipe.zago@ufrgs.br

O artigo é uma análise teórica que articula os conceitos de corpo, sexualidade e armário para pensar a biossociabilidade gay na internet. A partir de dados produzidos por meio da observação participante em dois sites de relacionamento brasileiros voltados para homens gays na internet, constrói-se uma argumentação conceitual propondo caracterizar essa sociabilidade online como uma biossociabilidade, em que o corpo é o personagem central. Nesta biossociabilidade, em que há demanda por intensa visibilidade, a metáfora do armário adquire novos contornos: criam-se situações de intensa visibilidade e exposição dos corpos e, ao mesmo tempo, de insidiosa vigilância acerca da discrição da sexualidade gay neste contexto. Reflete-se sobre a importância da marcação e exposição do sexo (macho) e do gênero (masculinidade) nos corpos dos indivíduos, relacionando-as ao assumir-se (fora do armário), ao manter-se discreto (dentro do armário) e às formas de exposição dos corpos online.

Palavras-chave: Internet. Sexualidade. Corpo. Biossociabilidade.

El artículo es un análisis teórico que articula los conceptos de cuerpo, sexualidad y "armario" para pensar la bio-sociabilidad gay en Internet. A partir de datos producidos por medio de una observación participativa en dos páginas web brasileñas de relaciones dirigidas a los hombres gay, se construyen algunos argumentos conceptuales para caracterizar esa sociabilidad online como una bio-sociabilidad, en la cual el cuerpo es el personaje central. En esa bio-sociabilidad, en donde hay demanda de una visibilidad intensa, la metáfora del "armario" adquiere nuevas dimensiones: se crean situaciones de intensa visibilidad y exposición de los cuerpos y, al mismo tiempo, de vigilancia insidiosa sobre la discreción de la sexualidad gay en ese contexto. Se reflexiona sobre la importancia de la marca y exposición del sexo ("macho") y el género ("masculinidad") en los cuerpos de los individuos, relacionándolas al hecho de asumirse (salir del "armario") o al de mantenerse discreto (permanecer en el "armario"), y a las formas de exposición de los cuerpos online.

Palabras clave: Internet. Sexualidad. Cuerpo. Bio-sociabilidad.

This paper comprises a theoretical analysis that links the concepts of body, sexuality and closet to reflect on gay biosociability on the internet. Based on data produced through participant observation on two Brazilian cruising websites focusing on gay men on the Internet, a conceptual approach that proposes to characterize online sociability as biosociability is constructed, in which the body is the central character. In this biosociability, in which there is a demand for intense visibility, the metaphor of the closet gains new outlines: situations of intense visibility and body exposure, and at the same time, insidious surveillance regarding the discreetness of gay sexuality, are created in this context. The importance of marking and showing the body's sex ("male") and gender ("masculinity") is discussed and correlated with coming out of the closet or remaining closeted, and with the ways of online body exposure.

Keywords: Internet. Sexuality. Body. Biosociability.

Introdução: Cadastre-se

O presente artigo propõe uma análise teórica sobre a dinâmica de biossociabilidade entre homens gays1 1 Apesar de ser politicamente perigoso supor que todos os usuários dos sites se identifiquem como gays, opto por usar essa terminologia porque os próprios sites de relacionamento se intitulam como sendo gays, tendo, inclusive, participação ativa nas maiores Paradas Gays do Brasil. usuários de dois sites de relacionamento na internet2 2 São eles: Disponível.com ( www.disponivel.com) e Manhunt ( www.manhunt.net). ou sociabilidade gay online, que será caracterizada como biossociabilidade (Ortega, 2005; Rabinow, 1999). Apoiando-se nos conceitos de armário para Eve Kosofsky Sedgwick (2007, 1990), sexualidade e corpo em Michel Foucault (2006a, 2006b, 2006c, 2003, 1984), são analisadas as novas correlações que se estabelecem entre as posições estar dentro do armário (não assumir sexualidades não heterossexuais) e estar fora do armário (assumir sexualidades não heterossexuais), e no que tais correlações implicam para essa biossociabilidade.

Por um lado, dada a exortação à visibilidade presente em ambos os sites (indicada no título desta Introdução através do imperativo Cadastre-se e nos títulos das duas seções que seguem), que estimula os usuários a exporem seus corpos com o objetivo de se sociabilizarem uns com os outros; e, por outro lado, dada a exigência de discrição e sigilo em relação às sexualidades não heterossexuais, demandada pelos próprios usuários, cabem as perguntas: qual é o estatuto do armário para a biossociabilidade gay online? Como os usuários se posicionam frente ao estímulo à exposição de seus corpos e, ao mesmo tempo, frente à exigência de discrição sobre suas sexualidades? Quais as correlações entre a exposição dos corpos online e a metáfora político-espacial do armário para homens gays? Portanto, este texto é um exercício conceitual, fruto de minha observação participante em ambos os sites, tendo como dados elementos imagéticos e textuais publicados em perfis online criados pelos usuários dos sites.

Atualize seu perfil e ganhe mais destaque!: o corpo entra em cena, o corpo faz a cena

Através dos sites de relacionamento disponíveis na internet, os usuários podem criar perfis online que, por sua vez, serão publicados e ficarão visíveis para outros usuários, podendo haver a possibilidade de troca de mensagens entre eles. Nos seus perfis online, esses homens publicam suas características (medidas de seus corpos, como: peso, altura, cor dos olhos, cabelo, raça/etnia, entre outras) e seus textos (em que podem oferecer uma autodescrição sobre seus desejos, disponibilidades, personalidades, temperamentos etc.). Há a exigência de atualização constante dessas informações, conforme mostra o título desta seção que é frase tirada de um dos sites aqui utilizados. Além disso, fotografias também podem ser publicadas nos perfis.

A figura central das características, dos textos e das fotografias publicadas nos perfis online é o corpo, que é descrito, fotografado e publicado como se estivesse submetido a uma espécie de "totalitarismo fotogênico" (Sant'Anna, 2005, p.66). Ambos os sites de relacionamento estimulam os usuários a criarem e publicarem seus perfis através de chamadas nas suas páginas principais, nas quais se lê: Cadastre-se grátis e encontre mais de 12.375 homens online! Os homens mais bonitos disponíveis para você!, e 56.747 membros online agora! Navegar. Chat. Conectar. Os números não são apenas um chamariz para o cadastramento, para a conexão, para a sociabilização; também apontam para a abrangência dos serviços disponibilizados por ambos os sites e para a importância da internet como espaço de biossociabilidade entre homens gays.

As chamadas que interpelam os usuários a se cadastrarem e a se exporem podem ser classificadas como meras chamadas publicitárias que pretendem divulgar os serviços dos sites de relacionamento. Por outro lado, podemos também supor que tais chamadas interpelativas dizem da história dos corpos no nosso presente. É preciso considerar que esses corpos de homens gays publicados online, assim como todos os outros, são história. Mais que dizer que os corpos têm e são história, é preciso mostrar que eles carregam história ao mesmo tempo em que escrevem outras ainda por vir: "o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo" (Foucault, 1984, p.22). É possível perseguir, na superfície de suas peles, as condições que os fazem chegar até aqui da maneira com que chegam, não só com suas marcas vistas a olho nu, mas com o volume denso com que ocupam o campo de visão e com as palavras que lhes servem de legenda.

Pensamos em todo o caso que o corpo tem apenas as leis de sua fisiologia, e que ele escapa à história. Novo erro; ele é formado por uma série de regimes que o constroem; ele é destroçado por ritmos de trabalho, repouso e festa; ele é intoxicado por venenos alimentos ou valores, hábitos alimentares e leis morais simultaneamente; ele cria resistências. [...] nada no homem nem mesmo seu corpo é bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles. (Foucault, 1984, p.27)

O corpo não é matéria inerte, passiva, esperando ser marcado: o corpo presentifica a marca; o corpo é a própria marca em carne. "Não há corpo que não seja, desde sempre, dito e feito na cultura, descrito, nomeado e reconhecido na linguagem", e, nesse sentido, construído "através dos signos, dos dispositivos, das convenções e das tecnologias" (Louro, 2004, p.81): daí que se torna tão valioso explorar esses dispositivos, essas linguagens e essas tecnologias que constituem os corpos do presente.

Podemos, igualmente, pensar nos corpos como sendo constantemente atravessados por relações de força que os constrangem a se mostrar, a se ativar, a se expor, a produzir mais vitalidade e mais energia. Isso significa que podemos estar sujeitos não mais a uma relação de controle-repressão do corpo, já que não é mais apenas suficiente que o corpo seja dócil "um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado" (Foucault, 2006a, p.118), ainda que a docilidade do corpo seja uma condição para o seu controle , mas que, talvez, agora subsista uma relação de "controle-estimulação do corpo" (Foucault, 1984, p.147), muito mais insidiosa e contínua, muito mais positiva e produtiva. Essa relação de estímulo, incitação e controle dos corpos acontece em um contexto biopolítico de atuação do biopoder, nos termos foucaultianos (Foucault, 2004, 2003, 1984).

Para que o corpo seja passível de exposição, ele precisa passar integralmente por um processo de investimento pelo biopoder, que não apenas produz os corpos, mas que, sobretudo, os faz circular dentro da "paisagem biopolítica" (Hardt, Negri, 2006, p.43). Ou seja, os modos com que os usuários usam seus corpos na dinâmica social dos sites de relacionamento gays, e as maneiras com que eles se apropriam das possibilidades técnicas da internet como ferramentas para conhecer outros indivíduos, podem caracterizar uma biossociabilidade (Ortega, 2005; Rabinow, 1999): "uma biossociabilidade [...] constituída por grupos de interesses privados [...] segundo critérios de saúde, performances corporais [...]" (Ortega, 2005, p.153-4).

Criam-se novos critérios de mérito e de reconhecimento, novos valores com base em regras higiênicas, regimes de ocupação de tempo, criação de modelos ideais de sujeito baseados no desempenho físico. As ações individuais passam a ser dirigidas com o objetivo de obter melhor forma física, mais longevidade, prolongamento da juventude etc. (Ortega, 2005, p.153-4)

Porém, o corpo em circulação na biossociabilidade online não será mostrado nos perfis em sua integralidade. Apenas partes relevantes dos corpos serão expostas; apenas partes que importam e partes que pesam para a biossociabilidade online serão visibilizadas. É recorrente, nos perfis a publicação de fotografias de peitorais, abdominais, braços, glúteos e pênis. Em muitos desses perfis, as faces e as cabeças dos usuários não são tão intensamente expostas como outras partes são recorrentes os perfis nos quais as faces são dissimuladas através de programas de edição de imagens e as cabeças dos corpos são simplesmente cortadas das imagens graças à angulação da câmera fotográfica.

Determinadas partes dos corpos podem atender mais adequadamente às exigências da biossociabilidade, com seus imperativos de fitness e forma física (Costa, 2005; Ortega, 2005), como a exposição do abdome, por exemplo. Supostamente, não haveria nada de mais material e visível que um abdome sarado (no sentido de estar curado), sem gordura localizada e definido, na afirmação de seu pertencimento à biossociabilidade. Para descrever seus corpos, muitos usuários dos sites de relacionamento usam palavras como: atlético, esportivo, sarado, malhado; ou mencionam o cuidado com o corpo, os exercícios diários como formas de atestar seu compromisso com a saúde e com a aparência saudável. Segundo Costa (2005, p.194), há os valores ligados à moralização das práticas corporais que, no nosso tempo presente, participam de um renovado esforço de depuração entre os indivíduos considerados normais e os demais, considerados desviantes.

Publicar fotografias em que aparecem somente abdominal, peitoral e braços trabalhados em exercícios de musculação, em que a cabeça é cortada do corpo, é uma operação que visa traduzir, na carne, as informações pertinentes sobre o corpo. É fazer do corpo, ou de partes do corpo, a tradução máxima e clara daquilo que é mais importante nos indivíduos; partes do corpo trabalhadas através de "práticas destinadas a demonstrar uma integração às normas corporais em vigor, a fornecer um testemunho da comunhão com a cultura do corpo. O músculo é um modo de vida" (Courtine, 2005, p.85). O corpo torna-se a grade de saberes mais relevantes sobre aquilo que somos: o corpo é currículo (Louro, 2004; Silva, 1999). Também parece necessária a criação de uma pastoral da carne rija ou de uma "pastoral do suor" (Courtine, 2005, p.92) para a produção desse corpo-currículo, pois há sinais de formação de um rebanho para compor as massas seguidoras das práticas de biossociabilidade.

Mostre a cabeça! Perfis com fotos de cabeça têm 15 vezes mais chances de receberem mensagens: corpos visíveis, porém não tão visíveis

A frase acima está publicada em um dos sites de relacionamento utilizados durante a observação participante. Essa frase indica, em primeiro lugar, que é comum que cabeças não sejam mostradas nos perfis e, em segundo lugar, é indício da interpelação à exposição do corpo nesta biossociabilidade online.

É curioso que, no regime intenso de visibilidade dos corpos na biossociabilidade gay online, os rostos e as cabeças dos usuários estejam recortados, separados de seus corpos; é curioso que as faces dos indivíduos caiam fora de seus corpos nas imagens produzidas e publicadas através dos perfis online; é curioso que esses corpos-sem-cabeça possam encarnar, com tanta força, as normas de seu tempo a ponto de se tornarem corpos-currículo (Zago, 2013b). As faces e as cabeças, muitas vezes, não estão ali publicadas, pelo menos não tão reincidentemente quanto estão publicados abdomens e pênis. As faces podem se insinuar nas fotografias, podem prometer suas presenças ao deixarem seus rastros em sorrisos ou em partes de olhos, mas elas não aparecem de modo tão central e integral quanto os pênis, que são publicados em centenas de fotografias de perfis online. O que significa, então: a) que os corpos sejam produzidos com tanto afinco, em um contexto de controle e estímulo; b) que os corpos sejam chamados a se mostrar e a se expor na mesma medida em que se esforçam para aderir à renovada moral das práticas corporais; e c) que nesses regimes de visibilidade a face seja suprimida, recortada, subtraída dos corpos?

Pois, por mais que a filosofia e a ciência modernas tenham atacado a separação cartesiana entre mente e corpo, não foi nem um pouco afetada a convicção de nossa cultura referente à separação entre rosto e corpo, que influencia todos os aspectos dos costumes, modas, apreciação sexual, sensibilidade estética praticamente todos os nossos conceitos do que é correto. (Sontag, 2007, p.108-9)

No contexto dos sites de relacionamento voltados para homens gays, é como se a face (a parte da frente da cabeça) contaminasse o corpo com a identidade: por isso que o Rosto, com letra maiúscula, é um lugar de captura que não se resume à face: "o Rosto é um mapa" (Deleuze, Guattari, 1996, p.35) que dá as direções de como chegar ao corpo. A face fica impregnada em todo o corpo, parecendo ser capaz de atribuir ao corpo uma identidade e de suturar, no corpo, essa identidade. Nesse sentido, é preciso sublinhar que não é qualquer identidade que é atribuída e suturada mediante a exposição da face dos homens usuários dos sites de relacionamento aqui estudados: essa identidade é aquela produzida pelo dispositivo de sexualidade, conforme Foucault (2003) formulou. Uma identidade captura os indivíduos e os marca de forma indelével, tornando-os completamente assujeitados a seus próprios desejos. A exposição das faces nas imagens dos perfis online talvez equivalha à sutura identitária do homossexual para aqueles homens que mostram as suas cabeças.

Na cultura ocidental, a face talvez seja o espaço mais público do corpo, e talvez, justamente por isso, ela esteja ausente em grande parte das fotografias dos perfis online de homens gays algo que se constitui em uma estratégia de adiamento da sutura identitária que os assujeite a seu desejo homossexual. Por outro lado, as partes íntimas dos corpos dos usuários os pênis são publicadas com insistência, desde vários ângulos, mostradas através de muitas fotografias. Em certo aspecto, a face dos corpos se mantém em oposição às partes íntimas dos corpos, na medida em que uma é pública (deve ser pública) e as outras são íntimas (devem ser escondidas). Contudo, a face dos corpos também se mantém em relação estreita com as partes íntimas dos corpos: uma face deve corresponder às partes íntimas, sendo face de homem ou de mulher, de modo que as partes íntimas de macho são pré-condição para a existência e reconhecimento da face de homem. Ao olharmos para a face de alguém, na rua, no trabalho, no trânsito etc., já supomos seu sexo. E isso acontece, talvez, justamente porque a face do corpo supõe o sexo do corpo a face precisa, necessariamente, corresponder e confirmar o sexo do corpo.

É em relação à potência que a face tem de dizer quem é aquele corpo potência de determinar sua história, seu nome e, para o caso dos sites analisados, sua identidade sexual , que se devem problematizar as condições que fazem com que as faces estejam ausentes nos regimes de visibilidade dos corpos que operam biossociabilidade gay online. Concomitantemente, é preciso entender que, para alguns usuários, a ausência da face que determinaria, de uma vez por todas, quem é aquele indivíduo pode estar a serviço de um regulador da vida de indivíduos não heterossexuais, que se chama armário (Sedgwick, 2007, 1990).

A metáfora do armário: nunca totalmente fora e nunca dentro para sempre

"O frescor de cada revelação gay (especialmente involuntária) parece algo ainda mais acentuado em surpresa e prazer", escreve Eve K. Sedgwick, "pela atmosfera cada vez mais intensa das articulações públicas do (e sobre o) amor que é famoso por não ousar dizer seu nome" (Sedgwick, 2007, p.21). Ora, dar a face às vistas nas imagens dos perfis online dos sites de relacionamento gay equivaleria a dizer o próprio nome, equivaleria ao se assumir gay, equivaleria à saída do armário. Sedgwick sugere que, talvez, o armário seja algo importante para pessoas gays, não heterossexuais, no sentido de que "para muitas delas, [o armário] ainda é a característica fundamental da vida social" (Sedgwick, 2007, p.21); de modo que estar dentro do armário (não se assumir) ou fora dele (assumir-se) acabam sendo posições cujas condições de habitá-las estão sendo a todo tempo contabilizadas, medidas e pesadas pelos indivíduos. É nesse sentido que "há poucas pessoas gays [...] em cujas vidas o armário não seja ainda uma presença formadora" (Sedgwick, 2007, p.21).

Tal proposição implica considerar o processo de sair do armário, ou a decisão de permanecer dentro dele, como elementos constituidores das subjetividades de pessoas não heterossexuais. Apoiando-me nas argumentações de Foucault, sugiro que essa função central do armário funciona precisamente em relação à atuação do dispositivo de sexualidade que, sem seu emaranhado de poder-saber constituinte da scientia sexualis, outrora categorizou o "homossexual como uma espécie" (Foucault, 2003, p.44) e, igualmente, como um anormal (Foucault, 2002).

É nessa direção, no bojo da atuação do dispositivo de sexualidade, que se deve entender a metáfora do armário como algo decisivo para a experiência das sexualidades não heterossexuais, em que o processo de saída do armário se articula a atravessamentos morais e políticos que estão em jogo no assumir-se homem gay, por exemplo. Sedgwick (2007, p.21) sugere que "o armário não é uma característica somente de pessoas gays", pois, segundo a autora, o armário está ligado a um conjunto de binômios que organiza (e opõe) verdadeiro/falso, segredo/revelação, mostrar/esconder. Assim, o armário não seria algo estritamente vinculado à decisão de assumir uma sexualidade não heterossexual. Articulando o conceito de armário com as proposições acerca do dispositivo de sexualidade, podemos pensar que, em primeiro lugar, podem existir vários armários para muitas pessoas (inclusive pessoas heterossexuais), e que, em segundo lugar, o armário funcione de modo distinto para pessoas não heterossexuais. A esse respeito, sublinhe-se a inusitada possibilidade de uma pessoa sair do armário enquanto heterossexual, posto que a heterossexualidade, na nossa sociedade, é tida como compulsória (Butler, 1999). Por outro lado, é decisiva a saída do armário para um homem gay ou uma mulher lésbica, precisamente porque tal saída é tida como uma revelação de algo que era escondido e oculto provavelmente porque é algo considerado, ainda, anormal.

É nesse sentido que as categorias discreto e discrição emergem em vários perfis online como expressões que contemplam, em alguma medida, o lado de dentro do armário: exigências de posturas de homem, de sigilo e de aparência de normalidade são comuns nos textos publicados online. Embora não seja possível associar tão diretamente as reivindicações de virilidade recorrentes nos textos dos perfis online ao lado de dentro do armário posto que muitos usuários se dizem assumidos e, apesar de assumidos, se dizem ainda másculos , aqui é fulcral explorar as correlações entre essas posições mutuamente excludentes, de estar dentro ou fora do armário, com as afirmações de virilidade e masculinidade. Pois existe a suposição de que, uma vez fora do armário, um homem gay perde sua masculinidade; ao passo que, se continuar dentro do armário, sua virilidade ainda estará resguardada. Associando essa formulação aos modos de exibição dos corpos na biossociabilidade online, é como se existisse a suposição de que a face dos usuários, recortadas da integralidade dos seus corpos, estaria resguardada do reconhecimento público, como se suas faces estivessem, assim, dentro do armário: faces discretas, anônimas. Por outro lado, mostrando a cabeça nas imagens dos perfis online, colocando a face para fora do armário, revelando o segredo de ser gay, ganhar-se-ia um rosto público, uma identidade: o rosto do homossexual.

O sujeito homossexual e as práticas homoeróticas adentram o século XX, sendo patologizados pela scientia sexualis que buscava explicá-los: "o sodomita era um reincidente; agora o homossexual é uma espécie" (Foucault, 2003, p.44). "Categorizado e nomeado como desvio da norma" o destino dos/as homossexuais "só poderia ser o segredo ou a segregação um lugar incômodo para permanecer" (Louro, 2004, p.29). Na política de afirmação de identidades sexuais, em que "SILENCE=DEATH" o silêncio de estar dentro do armário significa a morte política dos indivíduos , "o dilema de `assumir-se' ou `permanecer enrustido' (no armário closet) passa a ser considerado um divisor fundamental e um elemento indispensável" para pessoas não heterossexuais (Louro, 2004, p.32). É nesse sentido que, entre os vários armários que podem existir, o armário gay se relaciona com uma história de afirmação política das identidades sexuais, de modo que, "para fazer parte da comunidade homossexual, seria indispensável, antes de tudo, que o indivíduo se `assumisse', isto é, revelasse seu `segredo', tornando pública sua condição" (Louro, 2004, p.32). É como se não houvesse nuance entre o dentro e o fora do armário; é como se a linha divisória fosse clara e para sempre definida: uma vez dentro do armário, a única possibilidade de vida seria a saída dele; uma vez fora do armário, para sempre se estaria fora dele.

O armário gay, como metáfora de visibilidade político-espacial, é profundamente ambíguo: estar dentro ou fora do armário, assumir-se enquanto gay ou permanecer enrustido, nunca são movimentos únicos, unilaterais, politicamente isolados ou culturalmente individuais. "Assumir-se não acaba com a relação de ninguém com o armário, inclusive, de maneira turbulenta, com o armário do outro" (Sedgwick, 2007, p.40).

Cada encontro com uma nova turma de estudantes, para não falar de um novo chefe, assistente social, gerente de banco, senhorio, médico, constrói novos armários cujas leis características de ótica e física exigem, pelo menos da parte de pessoas gays, novos levantamentos, novos cálculos, novos esquemas e demandas de sigilo e de exposição. Mesmo uma pessoa gay assumida lida diariamente com interlocutores que ela não sabe se sabem ou não. É igualmente difícil adivinhar, no caso de cada interlocutor, se, sabendo, considerariam a informação importante. [...] tampouco é inexplicável que alguém [...] possa escolher deliberadamente entre ficar ou voltar para o armário em algum ou em todos os segmentos de sua vida. (Sedwick, 2007, p.22)

O armário gay nos leva a pensar "se a homossexualidade [...] não deve ser considerada questão de interesse público" ou se "tampouco ela subsiste sob o manto do privado" (Sedgwick, 2007, p.25). Porque, ao que parece, permanecer no armário, ou sair dele, denota o reforço das categorias de público e privado: assumir-se seria o mesmo que bradar a sexualidade publicamente ou o mesmo que publicar uma fotografia da face em site de relacionamento gay , ao passo que ficar dentro do armário seria relegar a sexualidade aos confins da privacidade ou o mesmo que recortar a cabeça das imagens de corpo publicadas em perfis online. Entretanto, o armário é alçado à ferramenta analítica que tem a potência de pôr em xeque as próprias definições de público e de privado, tomando, como perspectiva, as sexualidades não heterossexuais. É por isso que se pode sugerir que

grande parte da energia de atenção e demarcação que girou em torno de questões relativas à homossexualidade desde o final do século XIX na Europa e nos EUA foi impulsionada pela relação distintivamente indicativa entre homossexualidade e mapeamentos mais amplos do segredo e da revelação, do privado e do público, que eram e são criticamente problemáticos para as estruturas econômicas, sexuais e de gênero da cultura heterossexista como um todo: mapeamentos cuja incoerência capacitadora, mas perigosa, foi condensada de maneira opressiva e duradoura em certas figuras da homossexualidade. O armário e a "saída do armário", ou "assumir-se", agora expressões quase comuns para o potente cruzamento e recruzamento de quase todas as linhas de representação politicamente carregadas, têm sido as mais magnéticas e ameaçadoras dessas figuras. (Sedgwick, 2007, p.26)

Só é possível falarmos em armário enquanto falarmos "de uma sexualidade particular, distintivamente constituída como segredo" (Sedgwick, 2007, p.30), ou como desvio da norma. E dessa sexualidade, constituída como segredo ou como desvio, da qual derivam as condições que fazem com que as faces dos corpos de homens gays estejam ausentes das imagens de seus perfis online: a face supostamente nunca pode estar dentro do armário, já que é a parte mais pública dos corpos. A face nunca é segredo, posto que a face supostamente desvela qualquer segredo. Da mesma forma, também o armário, e suas complexas relações de revelação e segredo, só são inteligíveis para aquilo que pode ou deve ser dissimulado. Pois "a imagem do armário é indicativa da homofobia de uma maneira que não pode ser para outras opressões" (Sedgwick, 2007, p.32).

A relação entre o armário e os princípios de estímulo e superexposição da biossociabilidade online deslizam: todos são chamados a se expor nos sites de relacionamento, e se expõem, mas muitos o fazem permanecendo dentro do armário. É um movimento de se mostrar exacerbadamente, através de textos sobre si e fotografias de si, mesmo estando dentro do armário, preservando um anonimato facial. É sujeitar-se ao princípio da publicação integral de informações sobre si sem, no entanto, dar todas as informações sobre si: é um selecionar cuidadoso do que mostrar e como mostrar. "As relações iniciadas online misturam reaprisionamentos e liberações relativas, podendo gerar resistências ao velho dilema do armário e seu dualismo identitário" (Miskolci, 2009, p.188-9), posto que alguns homens gays estão superexpostos na mesma medida em que estão dentro do armário.

É como se a internet e a biossociabilidade online construíssem, para homens gays, um armário de vidro habitado por corpos-sem-cabeça ou por corpos-sem-face. Por armário de vidro e por corpos-sem-cabeça se entendem as metáforas visuais que articulam o princípio de discrição das sexualidades não heterossexuais à exortação à visibilidade dos corpos, articulação essa que organiza politicamente a biossociabilidade online. Como já foi dito, os usuários dos sites são chamados a se expor, e se expõem; entretanto, o fazem segundo uma política de exposição que é bastante singular: mostram seus corpos através de fotografias e textos, mas mostram partes específicas de seus corpos. São mostrados, muitas vezes, corpos-sem-cabeça, corpos-nus-sem-cabeça: fotos de pênis que são superexpostos na biossociabilidade online. Ora, um corpo de homem jamais está totalmente nu se é seu pênis que é mostrado: esse corpo está completamente vestido com seu sexo. Um corpo de homem jamais está sem rosto se sua face desaparece e dá lugar ao seu pênis: ele tem o rosto de seu sexo.

Quem tem medo do dispositivo de sexualidade?

Muitos usuários escrevem em seus perfis online que procuram por outros homens que mantêm a postura de um hetero normal ou que têm comportamentos hetero. Não é coincidência que esses usuários são, frequentemente, aqueles que não mostram a face em suas fotos, sob alegação de discrição e sigilo. Esse é o traço mais comum e abreviado de um processo de adequação à norma heterossexual pelo qual passam os indivíduos, sobretudo quando se trata de suas sexualidades. O processo de adequação à norma heterossexual de pessoas não heterossexuais, no sentido de fazer com que aparentem ser normais, como tudo mundo, pode ser analisado aqui como um elemento privilegiado de regulação, que diz respeito à manutenção da coerência fictícia de sexo-gênero-sexualidade (Butler, 1999, 1993).

Uma matriz heterossexual delimita os padrões a serem seguidos e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, fornece a pauta para as transgressões. É em referência a ela que se fazem não apenas os corpos que se conforma às regras de gênero e sexuais, mas também os corpos que as subvertem. [...] Certa premissa, bastante consagrada, costuma afirmar que determinado sexo (entendido, neste caso, como características biológicas) indica determinado gênero e este gênero, por sua vez, indica o desejo e induz a ele. Essa sequência supõe e institui uma coerência e uma continuidade entre sexo-gênero-sexualidade. Ela supõe e institui uma consequência, ela afirma e repete uma norma, apostando numa lógica binária pela qual o corpo, identificado como macho ou como fêmea, determina o gênero (um de dois gêneros possíveis: masculino ou feminino) e leva a uma forma de desejo (especificamente, o desejo dirigido ao sexo/gênero oposto). (Louro, 2004, p.17, 80)

Tal matriz heterossexual também pode ser entendida como uma norma de sexo-gênero-sexualidade, ou como um processo continuamente atuante de heteronormalização: de tornar normais os indivíduos não heterossexuais graças à adoção de posturas, atitudes, comportamentos, conformações corpóreas atribuídas social e culturalmente às pessoas heterossexuais, expressas, sobretudo, na reivindicação de pertencimento ao sexo macho como estratégia de anulação, apagamento ou discrição da sexualidade não heterossexual. Aqui, o sentido forte da expressão macho só é possível porque está ligado à norma heterossexual instituída, tomada como "o destino inexorável, a forma compulsória de sexualidade" (Louro, 2004, p.82) ou, como sugere Butler (1999), o sexo macho mostra-se, desde sempre, englobado e definido por uma matriz de gênero compulsoriamente heterossexual.Aqui, a sexualidade é formulada como um dispositivo, como já foi mencionado. Retomando esse conceito, é possível dizer que o dispositivo de sexualidade engloba um feixe heterogêneo de tecnologias políticas. Nas palavras de Foucault (2003, p.100):

A sexualidade é o nome que se pode dar à grande rede de superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder.

Como dispositivo, a sexualidade institui e constitui jogos de verdade, realidades, corpos e subjetividades: os produtos mais reais do dispositivo de sexualidade são os próprios sexos que julgamos tão orgânicos e biológicos (no sentido de darem lógica à vida).

Como dispositivo, ao invés de proibir e negar, a sexualidade incita discursos, estimula produções de corpos, gera vida. Nosso contexto histórico, político e cultural é aquele que "introduz, organiza [a partir da sexualidade] todo um dispositivo complexo no qual se trata da constituição da individualidade, da subjetividade, em suma, a maneira pela qual nos comportamos, tomamos consciência de nós mesmos" (Foucault, 2006b, p.76).

É nesse contexto no qual o dispositivo de sexualidade institui a realidade biopolítica dos corpos enquanto ferramenta e instrumento do biopoder regulatório e produtivo (Foucault, 2003). "No fundo do sexo, a verdade" (Foucault, 2006b, p.85).

Esse sexo genital, porção do corpo, está, nessa perspectiva, centrado no vórtice de uma rede de significações históricas, construídas, transformado assim em categoria, expandindo seu alcance para muito além de amplexos e carícias. O sexo, dessa forma, é um significado social, o sexo-significação [...] que se institui em pedagogias sociais, na confluência de tecnologias políticas de incitação e proliferação da sexualidade. De fato, não seria o sexo um ponto biológico sobre o qual se apoiariam as diferentes práticas sexuais, mas um agregado constituído pelo dispositivo de sexualidade, que produz e induz ao desejo do sexo. (Swain, 2008, p.394)

Os sexos, macho ou fêmea, são produtos do dispositivo de sexualidade, e é nesse sentido que, ao se historicizar o sexo, sugere-se que ele não foi sempre e constantemente a fonte da verdade sobre nós (Laqueur, 2001). "Esse escândalo particularmente moderno sugere pela primeira vez que o sexo não é um aspecto contingente e arbitrário da identidade"; pelo contrário, isso indica que "não pode haver uma identidade sem o sexo" (Butler, 2008, p.91). Isto é, supostamente não pode haver vida em corpos sem que o sexo (ou macho ou fêmea) seja neles produzido, inscrito e reproduzido performativamente para sempre, de modo que "é precisamente através de sermos sexuados que nos tornamos inteligíveis como seres humanos" (Butler, 2008, p.91). Butler diz: "O escândalo histórico mais impressionante é que nem sempre fomos um sexo" (Butler, 2008, p.91, grifo da autora).

A inversão proposta pelo dispositivo de sexualidade sugere que o vetor normalmente aceito e invocado para explicar a sexualidade em que "o `sexo' é entendido lógica e temporalmente como precedendo a sexualidade e funcionando, se não como sua causa primária, então, pelo menos, como sua necessária pré-condição" (Butler, 2008, p.98) precisa ser posto ao contrário: é possível sugerir que a sexualidade, enquanto rede de saberes, poderes e jogos de verdade, "toma os corpos como seu instrumento e objeto, o lugar em que ela consolida, enreda e estende seu poder" (Butler, 2008, p.98). Daí que as supostas realidades de macho ou fêmea, e os modos de viver adequadamente como homem ou mulher, são algo instituído pelo dispositivo de sexualidade.

Como regime regulador, a sexualidade opera primeiramente investindo os corpos com a categoria do sexo, isto é, fabricando corpo como os suportes de um princípio de identidade. Afirmar que os corpos são de um ou de outro sexo parece a princípio ser uma afirmação puramente descritiva. [...] no entanto, essa afirmação é, em si mesma uma legislação e uma produção de corpos, uma demanda discursiva, por assim dizer, de que os corpos se tornem produzidos de acordo com princípios de coerência e integridade heterossexualizante, inequivocamente como macho ou fêmea. Onde o sexo é tomado como um princípio de identidade, ele é sempre posicionado num campo de duas identidades mutuamente exclusivas e completamente exaustivas; é-se macho ou fêmea, nunca os dois ao mesmo tempo, e nunca nenhum dos dois. (Butler, 2008, p.98-9)

É somente em relação a essa formulação que podemos "entender o terror e a ansiedade que algumas pessoas sofrem ao `tornarem-se gays'", posto que "o medo de perder o seu lugar de gênero ou não saber quem se é se dormir com alguém ostensivamente do `mesmo' gênero" só existe de acordo com a "ideia de que a prática sexual tem o poder de desestabilizar o gênero" (Butler, 1999, p.xi). Se é no fundo do nosso sexo, macho ou fêmea, que reside nossa verdade enquanto sujeitos, não é estranho que: a) pênis sejam fotografados e publicados exaustivamente em perfis online, já que essa porção orgânica do corpo seria supostamente aquela que carrega a prova mais material do sexo macho; e b) faces sejam excluídas ou dissimuladas de fotografias de corpos publicadas em perfis de sites de relacionamento gays, posto que a sexualidade não heterossexual desestabiliza a inteligibilidade que o dispositivo de sexualidade pretende produzir nos corpos e para os corpos. As faces estariam confinadas ao lado de dentro do armário faces não assumidas, faces enrustidas , ao passo que os pênis necessitariam ser colocados, metaforicamente falando, para o lado de fora do armário pois sendo o núcleo dos sexos de macho, eles precisam ser assumidos e exibidos o máximo possível.

Considerações finais: apagamento do feminino na Terra de Marlboro

O armário, e toda a gama complexa de relações que ele faz cintilar, é uma ferramenta para problematizarmos a política de exposição dos corpos nas redes de biossociabilidade online habitadas por homens gays, pois "a era da internet parece tê-los libertado da maioria das restrições do armário" (Miskolci, 2009, p.172). Apenas parece. O que se verifica é um refinamento do controle sobre seus corpos atuando através da incitação à exposição. A internet pode ser um armário ampliado (Miskolci, 2009), e um armário para muitos: pode ser, igualmente, um armário de vidro para os corpos-sem-cabeça que se equilibram na corda-bamba entre demandas de visibilidade fotogênicas e as exigências de adequação à norma heterossexual, estas últimas expressas concisa e claramente na pergunta: "somente os viris e discretos serão amados?" (Carrara, 2005).

Verifica-se que os corpos-sem-cabeça não são apenas encontrados em sites de relacionamento para homens gays: há vários sites online voltados para pessoas heterossexuais em que a mesma prática de ocultação imagética das faces dos corpos é também empregada. Nesse sentido, é preciso assinalar que há um tipo de armário heterossexual que também se articula aos modos de expor os corpos de homens e mulheres heterossexuais. Tal armário heterossexual pode estar a serviço de um simples desejo de anonimato, de preservação pessoal, de proteção da privacidade (assim como, também, pode estar o armário gay). Ainda, a dissimulação da face dos corpos em imagens de perfis online de sites de relacionamento que promovem a troca de casais, por exemplo, indica que subsiste uma forte política de moralização das práticas sexuais: aquelas que escapam do objetivo reprodutivo e monogâmico do casal malthusiano, instituído pelo dispositivo de sexualidade, mesmo sendo práticas heterossexuais, ainda são alvo de reprovação e censura. Entretanto, é preciso sublinhar que esse armário heterossexual tem implicações distintas, para os indivíduos, daquelas do armário gay: aquele não rompe com a inteligibilidade instituída pela matriz heterossexual, enquanto este a desafia permanentemente. É preciso articular o armário gay à longa história de constituição das políticas identitárias, para as quais a atitude de sair do armário foi fundamental na construção de redes de solidariedade para o enfrentamento da violência e da discriminação (Simões, Facchini, 2009).

Quanto mais a matriz heterossexual é perturbada enquanto norma de materialização dos sexos e dos corpos, tanto mais se reivindicará o pertencimento absoluto ao sexo posto que o sexo é produto da matriz heterossexual, e não o contrário. Se, de acordo com a proposição do dispositivo de sexualidade, é a partir da sexualidade instituída como norma que se produzem os sexos viáveis (macho ou fêmea), é razoável entender que os participantes da biossociabilidade aqui analisada busquem se colocar no interior de um sexo inteligível: de homem-macho-másculo-discreto-normal, recusando, veementemente, quaisquer características de fêmea. Contudo, dizer que os homens gays usuários dos sites de relacionamento disputam significações de gênero porque desviam da heterossexualidade compulsória é dizer pouco. Esses sujeitos, escapando da heterossexualidade compulsória, tentam reestabilizar o próprio dispositivo de sexualidade que os produz como desviantes (ou como invertidos, como anormais), ao transformarem seus pênis em seus rostos.

Elementos da biossociabilidade gay online apontam para essa disputa de inteligibilidade dos sujeitos que resgata o princípio geral do dispositivo de sexualidade: o de formar corpos adequadamente sexuados de acordo com a norma heterossexual. Pois os homens gays que mostram suas faces nos perfis online são imediatamente colocados para fora do armário; e estando fora do armário, automaticamente sua virilidade será questionada. Uma vez questionados nesse âmbito, alguns desses usuários se veem obrigados a se justificar: sou assumido, mas sou discreto. Isso indica que o problema em estar fora do armário não é exatamente o fato de tornar pública uma sexualidade que, supostamente, pertenceria ao "manto do privado", nas palavras de Sedgwick (2007, p.25). O que está em jogo é a perigosa proximidade da efeminação e de quaisquer outras características de feminilidade. É como se o lado de dentro do armário estivesse para a virilidade na mesma medida em que o lado de fora do armário estivesse para a efeminação. Nada mais temível, para um homem gay participante da biossociabilidade online, que a afeminação, que a afetação, que o borramento das fronteiras entre a masculinidade e a feminilidade já que tal borramento é o sinal da desestabilização da coerência fictícia do dispositivo da sexualidade. Pois se pensa que algumas pessoas

[...] insultam a "verdade": um homem "passivo", uma mulher "viril, pessoas do mesmo sexo que se amam. Talvez haja a disposição de admitir que isso não é um grave atentado à ordem estabelecida, porém estamos sempre prontos a acreditar que há nelas algum "erro". Um "erro" entendido no sentido mais tradicionalmente filosófico: uma maneira de fazer que não é adequada à realidade; a irregularidade sexual é percebida, mais ou menos, como pertencendo ao mundo das quimeras. (Foucault, 2006b, p.85)

"O/A invertido/a tradicional recebe esse nome porque a meta de seu desejo saiu dos trilhos da heterossexualidade" (Butler, 2008, p.103). Para afastar o espectro de invertido sexual, muitos participantes da biossociabilidade online dos sites de relacionamento gays acabam por inverter a exposição de seus corpos: escondem suas faces e fazem de seus pênis os seus Rostos. E, nos subterrâneos dessa política de visibilidade dos corpos, e nas condições dessa política deslizante do dentro e do fora do armário para homens gays, subsiste um horror da proximidade a qualquer traço de feminilidade: uma aversão ao feminino, um princípio tácito de apagamento do feminino na constituição de uma Terra de Marlboro asséptica, feita somente para homens, apesar de gays.

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  • *
    Elaborado com base em Zago (2013a); pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
  • 1
    Apesar de ser politicamente perigoso supor que todos os usuários dos sites se identifiquem como gays, opto por usar essa terminologia porque os próprios sites de relacionamento se intitulam como sendo gays, tendo, inclusive, participação ativa nas maiores Paradas Gays do Brasil.
  • 2
    São eles: Disponível.com (
    www.disponivel.com) e Manhunt (
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
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