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Diálogos sobre a noção de vítima e construção da identidade

Diálogos entre la noción de víctima y construcción de la identidad

Resumos

Este ensaio surge da necessidade de se problematizar a noção de vítima perante a emergência do uso deste termo nas últimas décadas, como identificador de sujeitos e experiências. Em plena realização de um projeto de pesquisa que trata da vitimização pelo sequestro relâmpago e suas repercussões à saúde das vítimas, nos deparamos com a necessidade de discutir o uso deste termo e outras questões imbricadas: "seria esse um atributo identitário vitalício?", "qual o peso que a vitimização tem na vida das pessoas?", entre outras. Nesse tocante, propomos este texto para problematizar a noção de vítima, discutindo-a como um traço identitário, na intenção de estimular possíveis reflexões sobre o tema.

Vítima; Identidade; Interação; Narrativa


Este ensayo surge de la necesidad de problematizar la noción de víctima ante la creciente utilización de este término, en las últimas décadas, como identificador de los sujetos y sus experiencias. Al llevar a cabo un proyecto de investigación que se ocupa de la victimización por secuestro relámpago y sus impactos en la salud de las víctimas, enfrentamos la necesidad de discutir el uso de este término y otras cuestiones relacionadas como: " ¿sería un atributo de identidad para toda la vida?", "¿cuál es el peso que la victimización tiene en la vida de las personas?", entre otras preguntas. En este sentido, proponemos este texto con el fin de problematizar la noción de víctima, planteándola como un trazo de la identidad, con la intención de estimular la reflexión sobre el tema.

Víctima; Identidad; Interacción; Narrativa


This study was developed because of the need to analyze and question the notion of victim, in the context of the emergence of use of this term over recent decades, as an identifier for subjects and experiences. While conducting a research project dealing with victimization resulting from "lightning kidnapping" and the repercussions of these events on victims' health, we were faced with the need to discuss the use of this term and other intertwined issues: "would this be a lifelong identity attribute?" and "what importance does becoming a victim have on people's lives?", among other issues. In this regard, we proposed this paper in order to analyze and question the notion of victim, and to discuss this as an identity trait, with the intention of stimulating possible reflections on this topic.

Victim; Identity; Interaction; Narrative


DOSSIÊ

Diálogos sobre a noção de vítima e construção da identidade

Dialogues on the notion of victim and identity construction

Diálogos entre la noción de víctima y construcción de la identidad

Letícia Rodrigues de AzevedoI

IInstituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Rua Basílio da Gama, s/n, Campus Universitário do Canela. Salvador, BA, Brasil. 40110-040. leticiadeazevedo@gmail.com

RESUMO

Este ensaio surge da necessidade de se problematizar a noção de vítima perante a emergência do uso deste termo nas últimas décadas, como identificador de sujeitos e experiências. Em plena realização de um projeto de pesquisa que trata da vitimização pelo sequestro relâmpago e suas repercussões à saúde das vítimas, nos deparamos com a necessidade de discutir o uso deste termo e outras questões imbricadas: "seria esse um atributo identitário vitalício?", "qual o peso que a vitimização tem na vida das pessoas?", entre outras. Nesse tocante, propomos este texto para problematizar a noção de vítima, discutindo-a como um traço identitário, na intenção de estimular possíveis reflexões sobre o tema.

Palavras-chave: Vítima. Identidade. Interação. Narrativa.

ABSTRACT

This study was developed because of the need to analyze and question the notion of victim, in the context of the emergence of use of this term over recent decades, as an identifier for subjects and experiences. While conducting a research project dealing with victimization resulting from "lightning kidnapping" and the repercussions of these events on victims' health, we were faced with the need to discuss the use of this term and other intertwined issues: "would this be a lifelong identity attribute?" and "what importance does becoming a victim have on people's lives?", among other issues. In this regard, we proposed this paper in order to analyze and question the notion of victim, and to discuss this as an identity trait, with the intention of stimulating possible reflections on this topic.

Keywords: Victim. Identity. Interaction. Narrative.

RESUMEN

Este ensayo surge de la necesidad de problematizar la noción de víctima ante la creciente utilización de este término, en las últimas décadas, como identificador de los sujetos y sus experiencias. Al llevar a cabo un proyecto de investigación que se ocupa de la victimización por secuestro relámpago y sus impactos en la salud de las víctimas, enfrentamos la necesidad de discutir el uso de este término y otras cuestiones relacionadas como: " ¿sería un atributo de identidad para toda la vida?", "¿cuál es el peso que la victimización tiene en la vida de las personas?", entre otras preguntas. En este sentido, proponemos este texto con el fin de problematizar la noción de víctima, planteándola como un trazo de la identidad, con la intención de estimular la reflexión sobre el tema.

Palabras clave: Víctima. Identidad. Interacción. Narrativa.

Vítimas e identidades

Numa perspectiva mais jurídica, a vítima seria aquele que sofre ação o sujeito passivo, ofendido ou omissão do autor de algum delito o sujeito ativo, agente da ação (Kosovski, 2012). Essa definição tem seus limites, já que traz um recorte dicotômico e estanque da dinâmica delituosa o ativo e o passivo da ação e deixa de englobar elementos mais sutis como: a construção social desses papéis e possíveis sobreposições entre eles, as subjetividades desses atores, ou, mesmo, a experiência decorrente da interação entre eles.

Mendes (2002), em sua rica discussão sobre identidade(s), salienta que, segundo Stuart Hall, em sua obra "Stitching yourself in place", identidade seria um conceito importante, pois funciona como articulador entre os discursos e práticas que nos interpelam. As identidades seriam relacionais, múltiplas e narrativamente construídas, e as interações teriam papel fundamental no processo (Mendes, 2002).

Ao trazer à tona a importância das interações para essa discussão, Mendes (2002) evidencia pressupostos do interacionismo simbólico, corrente teórica que salienta a importância do sentido que as coisas têm para o comportamento humano, concebendo o sentido como emergente do processo de interação entre as pessoas (Haguette, 2005, p.35-6): "[...] o ator seleciona, checa, suspende, reagrupa e transforma os sentidos à luz da situação na qual ele está colocado e da direção de sua ação. A interpretação é, pois, um processo formativo, e não uma aplicação sistêmica de sentidos já estabelecidos".

O trecho acima salienta a construção dos sentidos e significados como processual e contínua, em que a ação do outro é fundamental para a transformação dos sentidos. Assim, para Mead, precursor do Interacionismo Simbólico, "a ação de cada um só obteria seu sentido através da ação do outro" (Carvalho, Borges, Rêgo, 2010, p.150-1). Podemos entender que o reconhecimento de um sujeito como vítima não seria algo dado e estabelecido, seria um sentido formulado e redefinido de modo dinâmico no processo interacional.

Para Goffman (2009), o comportamento humano seria análogo a uma representação teatral, em que cada ator da interação agiria ciente de que o outro ator tentará antecipar suas decisões de ação. E, assim, os "cursos de ação ou movimentos serão feitos à luz dos pensamentos que um tem em relação aos pensamentos que o outro tem sobre o primeiro" (Goffman, 1969, p.127). Nesse sentido, as informações exerceriam um papel central na interação, já que "serve para definir a situação, tornando os outros capazes de conhecer antecipadamente o que ele esperará deles e o que dele podem esperar. Assim informados, saberão qual a melhor maneira de agir para dele obter uma resposta desejada" (Goffman, 2009, p.11).

Imaginemos a seguinte situação: uma mulher grávida de cinco meses retorna da aula de Pilates e vai ao banco fazer um pagamento. Ao sair do banco, por volta das 19h, ela é capturada por dois homens, que a mantêm cativa por mais de duas horas. Ela é vítima (direta) da criminalidade tão discutida nos dias atuais. Espera-se que ela se enraiveça, sinta-se injustiçada e/ou entristecida, que demonstre isso em verbalizações e em comportamentos/comunicação não verbais (formas de se vestir, de olhar, expressões corporais). Esta seria a fachada pessoal explicitada por Erving Goffman, que se refere ao "equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante a representação" (2009, p.31). Sem essa fachada, sua representação como vítima torna-se incongruente; a face de vítima deve ser mantida e acreditada.

Mas em que medida essa fachada e a manutenção da face de vítima se prolongam e tornam-se parte da identidade desses sujeitos?

Segundo Erving Goffman, as "identidades são múltiplas, flutuantes e situacionais" (citado por Mendes, 2002, p.506). Nossa personagem acima é real, sendo retratada em Azevedo (2011) como Milena. Ela é mulher, casada, é (quase) mãe, tem certa cor, certa posição social, é professora, é socióloga, tem uma crença religiosa, faz parte de uma determinada família, vive em uma vizinhança, gosta de certas coisas, desgosta de outras, escolheu alguns caminhos de vida e abandonou outros, e assim por diante. Alguns desse traços são mais fluidos e manejáveis do que outros, mas, por fim, ela é resultado desta rede ou matriz de relações, de um cenário relacional (Somers, 1994), numa "concepção relacional de pluralidade de subidentidades" (Mishler, 2002, p.110).

Todos esses elementos repercutem na noção que esta nossa personagem tem e terá sobre o "ser vítima", o "não ser vítima", ou qualquer gradação entre esses dois extremos. Assim, ela estaria, conforme Schwalbe, em constante movimento de "integração da multiplicidade de pertenças sociais e papéis a que está submetido" (Mendes, 2002, p.509-10).

Ser vítima de assalto de rua difere de ser vítima de abuso sexual infantil. A construção da identidade de vítima é passível de existir para ambos os sujeitos exemplificados acima, mas a legitimação dessa identidade (por si e pelos outros), assim como o desempenho dessa identidade (a representação para Goffman) e sua manutenção podem ter intensidade e "aparências" bastante distintas. Assim, a noção de "ser vítima" agrupa um espectro sem fim de possibilidades; as experiências são plurais. Uma determinada situação pode se traduzir como evento vitimizador para alguns, e não para outros. Assim como aquele, que se sente vítima em determinada situação, pode perceber-se ofensor em outras; e vice-versa.

Como exemplo, Marongiu e Clarke (1993) explicam a relação entre sequestrador-sequestrado como sendo movida pela "inveja hostil" do primeiro em relação ao segundo. Por conta disso, o sequestrador pode empregar o uso desproporcional de "violência irracional", que teria como função levar o objeto invejado (o sequestrado) à sua destruição econômica, psicológica e física; que, então, deixaria de ser invejado. Os sequestradores perceber-se-iam como vítimas de problemas políticos, sociais ou econômicos que são produzidos ou representados pela pessoa sequestrada. Nesse sentido, o sequestrador despersonaliza o sequestrado, percebendo-o como causador das suas mazelas, e, então, entra num ciclo de violência brutal "justificável" (Marongiu, Clarke, 1993).

Parece-nos que qualquer um pode, em alguma medida, se perceber como vítima (talvez mais raramente percebem-se como ofensores). O estatuto de "ser vítima" e.g. vítima da criminalidade urbana, vítima de violência doméstica, vítima do abuso da autoridade policial, vítima de assédio moral no trabalho etc., etc. representa um status, hoje legítimo, de direito violado.

Numa época de globalizações, isto é, de intensificações dos fluxos econômicos, políticos, culturais e simbólicos a nível mundial, as pessoas e os coletivos vêem alargado o leque dos possíveis e dos recursos disponíveis para a elaboração dos argumentos que justificam as suas identidades e os seus processos de identificação. (Mendes, 2002, p.503-4)

É assim que, na contemporaneidade, políticas públicas e movimentos de defesa de vítimas de violência representam esse fluxo político e simbólico intensificados na esfera da violência. Se há um século não se falava em direitos da criança e do adolescente, hoje, o Estatuto da Criança e do Adolescente os protege, como sujeitos de direitos e saberes, e torna qualquer violação desses direitos passível de punição pelo Estado. Para Sarti (2011), a noção de vítima na sociedade contemporânea é uma resposta aos "anseios de democracia" e surge como "forma de legitimação moral das demandas sociais" (p.51). Assim, a noção de vítima se fortalece em uma nova conjuntura social resultante dos avanços no campo dos direitos humanos e violência, e ganha força política. Nessa conjuntura, a noção de "ser vítima" não se constrói por acaso, ela faz parte de uma "construção social e histórica" (Sarti, 2011, p.51) localizada.

De modo análogo, Mendes (2002, p.505) salienta para a importância das questões de poder e desigualdades no processo identitário: "A posição no espaço social, o capital simbólico de quem diz o quê, condiciona a construção, legitimação, apresentação e manutenção das identidades." Nesse tocante, Sarti (2011, p.55) nos esclarece que o diagnóstico do Transtorno de Estresse Pós-Traumático é um "importante articulador ideológico da produção da noção de vítima de violência no mundo contemporâneo". É a legitimação política, moral, e social das violências e suas consequências aos sujeitos que a experienciam.

Nesse sentido, também se deu a necessidade de nomeação dessa experiência de "vitimização" e ser "vítima". É este nome que permite aos sujeitos dar um sentido ao que foi vivido, ao mesmo tempo que os sujeitos reformulam os sentidos deste termo, num processo fluido de ressignificações. É também a possibilidade desta nomeação que aproxima sujeitos com experiências semelhantes de violação em busca de reparação como a busca das "mães da praça de maio" por seus filhos desaparecidos à época da ditadura argentina, e as versões brasileiras das "mães da praça da Sé" em São Paulo, que criaram a ABCD (Associação Brasileira de Busca e Defesa a Crianças Desaparecidas), e das "mães da Cinelândia", no Rio de Janeiro.

Assim, reconhecemos que a noção de vítima vem como um "reconhecimento social pelo sofrimento [...], uma maneira de dar inteligibilidade ao sofrimento de segmentos sociais específicos, em contextos históricos precisos, [...] conferindo legitimidade moral às suas reivindicações" (Sarti, 2011, p.54).

Vítimas, identidades e narrativas

As narrativas seriam um "modo fundamentalmente humano de dar significado/sentido à experiência" (Garro, Mattingly, 2000, p.1). Elas são construídas e constroem (Garro, Mattingly, 2000) e podem ser uma forma de acesso ao sistema simbólico dos sujeitos, que Sarti (2011) aponta como essencial à análise do sofrimento associado à violência.

As narrativas centrais e discursos públicos forneceriam "recursos individuais e coletivos para afirmar ou reafirmar essas identidades" (Mendes, 2002, p.506). As narrativas públicas seriam aquelas "narrativas atreladas a formações culturais e institucionais, maiores que o indivíduo único". Vão desde narrativas da própria família, do local de trabalho (mitos organizacionais), igreja, governo e nação (Somers, 1994). Assim, as concepções atuais sobre vítima e vitimização compõem narrativas públicas contemporâneas e, na dinâmica relacional das interações, acabam por fornecer os "recursos" aos indivíduos para construírem continuamente suas identidades através de suas narrativas ontológicas.

Para Somers (1994, p.618):

A localização da narrativa dota os atores sociais com identidade sendo ela múltipla, ambígua, efêmera, conflitante. [...] narrativas ontológicas só podem existir de modo interpessoal no decurso das interações sociais e estruturais ao longo do tempo. Para ter certeza, os agentes ajustam histórias para atender suas próprias identidades, e, em contrapartida, eles costuram a "realidade" sob medida para atender suas histórias.

A autora evidencia, entre outras coisas, a dimensão temporal das narrativas e, por conseguinte, das identidades. Nesse sentido, podemos pensar que a narrativa ontológica dos sujeitos que envolve sua vivência de vitimização, os guia no entendimento de si como "vítimas"; entretanto, essa identidade de vítima se modifica, se reformula com as infindáveis narrativas biográficas desses sujeitos. Em outras palavras, "narrativas ontológicas não são a priori tampouco fixas. Elas formam a identidade e o self que alguém se torna" (Somers, 1994, p.618). As narrativas sempre se renovam, renovando consigo as identidades do sujeito e vice-versa, num fluxo de idas e vindas infindável. Nesse sentido, a vítima em mim de ontem é diferente da vítima em mim de hoje, que é diferente da vítima em mim de amanhã.

Daí, surge-nos outra questão de interesse: seria a existência da categoria "vítima" um traço identitário vitalício?

Os autores (Mendes, 2002; Mishler, 2002; Somers, 1994) parecem concordar que não existe uma identidade única, essencialista e estável do sujeito, existem, sim, identidades múltiplas e em constante mutação, que se formam no cenário relacional dos sujeitos, em viva interação com os outros.

O diálogo com os outros é essencial na construção da consciência de cada indivíduo, diálogo que é multivocal e que se produz na interseção de forças centrípetas (necessidade de se ligar ao outro) e de forças centrífugas (necessidade de diferenciação do outro). (Mendes, 2002, p.505, 518)

Sofrer algum tipo de violência, seja em um evento único ou de modo contínuo e duradouro, passa a ser parte da experiência de vida dos sujeitos vitimizados. Isto tem implicações que repercutem na construção de identidade a partir do contraste com o eu-anterior (o eu-não-vítima), o outro-não-vítima, o outro-ofensor, os muitos outros desse eu. É esta a dinâmica que permite, aos sujeitos, significar sua experiência e constituir a si mesmos.

Voltemos ao caso de Milena mencionado anteriormente. Ela expressa ter sofrido um sequestro relâmpago com tentativa de estupro. Antes deste evento, ela tentara engravidar durante alguns anos consecutivos e, finalmente, conseguira gerar uma criança quando, em seu quinto mês de gestação, foi submetida a episódios de violência psicológica agravados pela sucessão de agressões físicas e violência sexual (Azevedo, 2011). Sofrer tais violências nestas circunstâncias "vulnerável por ser mulher e vulnerável porque está carregando um bebê" (Milena) poderia repercutir em perder seu filho, fruto de muito investimento emocional e econômico. Ela relata um profundo sofrimento persistente, que acredita ser incompreendido por seus familiares e por desconhecidos. Por fim, ela acredita ter deixado para trás a "mulher brava" que costumava ser (sendo reconhecida como tal), e passa a identificar-se como uma mulher "paranoica" (Azevedo, 2011, p.159).

Estaria esta narrativa representando a "verdadeira" Milena, então? A paranoica? Ou seria ela "no fundo" ainda a mulher brava? Mendes (2002, p.506) nos diria que "a identidade pessoal articula-se na dimensão temporal, num projeto de vida. Esta permanência no tempo, a relação da identidade pessoal com o tempo, pode ser entendida como um trabalho constante num espectro de variações, como uma síntese do heterogêneo".

Sarti (2011, p.57) também coloca em evidência a dimensão temporal e o contexto da narrativa, argumentando que "a dor da violência, como experiência traumática, pode [...] ser ressignificada em momentos posteriores de elaboração, o que torna relevante o contexto de sua manifestação e o de sua elaboração, a partir do discurso de quem fala". Identidade e tempo caminham juntos. Se Milena era brava e hoje é paranoica, amanhã ainda é uma interrogação.

Somers (1994, p.621) contribui:

A abordagem da identidade narrativa incorpora o ator dentro de relacionamentos e histórias que mudam ao longo do tempo e do espaço. Assim, evita a estabilidade categórica em ação. Estas mudanças de configurações temporal e espacial formam as coordenadas relacionais de narrativas ontológicas, públicas e culturais. Dentro dessas narrativas temporais e múltiplas, as identidades são formadas; daí a identidade narrativa ser processual e relacional.

Mishler (2002) propõe que as narrativas devem ser analisadas à luz da "mão dupla do tempo", fugindo do modelo causal de ordem temporal linear. Assim, o final de uma narrativa é imprescindível à compreensão da narrativa como um todo. Da mesma forma, o eu-atual pode significar suas experiências de modo diferente ao eu-passado.

É uma característica inerente e intratável de como nos lembramos do nosso passado e continuamente o re-historiamos, variando a significância relativa de diferentes eventos de acordo com a pessoa em que nos transformamos, descobrindo conexões das quais não estávamos previamente cientes, nos reposicionando a nós mesmos e aos outros em nossas redes de relações. O passado não está gravado em pedra, e o significado dos eventos experiências está constantemente sendo reenquadrado dentro dos contextos de nossas vidas correntes e em curso [...]. (Mishler, 2002, p.105)

Este autor ainda salienta a importância dos pontos de virada, "incidentes que muitas vezes ocorrem de modo repentino e inesperado", (Mishler, 2002, p.107), sendo algo semelhante às rupturas biográficas. Os pontos de virada referem-se a eventos um tanto epifânicos que promovem a modificação da compreensão dos sujeitos sobre suas experiências passadas, levando-os à re-historiação do passado e à adoção de uma nova identidade; muda-se, também, o modo como a pessoa interpreta sua vida; e revisa-se a história vivida de forma a fazer sentido (Mishler, 2002).

O sequestro relâmpago, para Milena, foi um ponto de virada na forma como compreendia a si mesma e as suas relações. O que não significa que a forma com que se vê hoje é definitiva e imutável. Assim como, em 2010 (quando a entrevista foi realizada), ela compreendia-se como a paranoica, hoje e daqui a alguns anos, essa compreensão já não será a mesma. Outros eventos de vida comporão a matriz de experiências biográficas vividas, possivelmente com novos pontos de virada, que possibilitam a formulação de novos "finais" das suas narrativas ontológicas e novas formas de se compreender como sujeito vitimizado.

A própria Milena, à época em que foi entrevistada, declarou que gostaria de voltar a receber atendimento psicoterápico, ao qual recorreu depois do sequestro relâmpago e abandonou quando sua gravidez passou a ser de risco. Milena expõe a "necessidade" de falar sobre suas angústias e de ouvir, de ter um espaço em que a sua narrativa seja expressa e reconstruída. Afinal, o:

'contar e recontar experiências' promovem a oportunidade de terapeuta e cliente colaborarem no desenvolvimento de 'versões alternativas de histórias' que 'cria novas compreensões' enquanto também leva a uma 'visão revisada de si e dos outros que além de remodelar o passado cria novos caminhos para o futuro. (Capps, Ochs, 1955 citado por Garro, Mattingly, 2000, p.7)

O terapeuta, aqui, seria algo como um guia na reconstrução das narrativas que o sujeito produz. Percebo isto como uma aproximação ao Outro do sujeito moral do último Foucault (Grós, 2006, p.11): "Quanto mais eu me procuro, tanto mais obedeço ao Outro". A necessidade de responder a "quem sou eu?" implicaria uma submissão ao Outro, que seria aquele a indicar o caminho em que faça "coincidir cada vez mais 'quem eu creio que sou e quem eu sou verdadeiramente'", e que o eu que realmente sou se faça aparecer.

É assim, a partir do outro nas interações psicoterápicas (e, também, nas interações em geral), que buscam-se novos sentidos e significados para o vivido.

Dito para si ou dito para outros, as narrativas são parte do processo de cura. Quando este trabalho cultural é bem-sucedido, narrativas aperfeiçoam rupturas: habilita o narrador a remendar as rupturas, tecendo-as no tecido da vida, para pôr a experiência em perspectiva. (Becker, 1997; Capps, Ochs, 1995 citados por Garro, Mattingly, 2000)

Considerações finais (porém provisórias)

A familiaridade com que a noção de vítima aparece nas narrativas públicas contemporâneas e ontológicas dos sujeitos reflete o fenômeno apontado por alguns estudiosos como a vítima sendo a "figura reveladora de nossa época" (Sarti, 2011). Koltai (2002 citado por Sarti, 2011) fala da vítima como representação dominante da subjetividade contemporânea. No Brasil, notamos o termo "vítima" como integrante do vocabulário cotidiano das pessoas. Nem todas são vítimas concretas de eventos violentos no âmbito urbano, mas não seriam elas vítimas do medo do crime, do medo da violência? Em certa medida, seríamos todos vítimas... vítimas do marginal da selva de pedra, vítimas do Estado, vítimas do capital, vítimas dos males da vida... buscamos todos algum tipo de reparação por esses males. Nesse tocante, Sarti (2011, p.54) nos explica que "a identificação da vítima faz parte dos anseios de democracia e justiça, dentro do problema da consolidação dos direitos civis, sociais e políticos de cidadania".

Com isso, entendemos que a vitimização e a autoidentificação como vítima são fenômenos contemporâneos. A produção dessa vítima e quem ela será no percurso de sua vida é social e histórica, mas resulta em sujeitos singulares. Cada um pode perceber, sentir, significar e exercer práticas cotidianas diferentes no que se refere à experiência de vitimização. Apesar de existirem eventos e histórias parecidas, a experiência é única e acessível em sua plenitude apenas a cada sujeito. Toda experiência é inserida em cenários relacionais que formam os sujeitos singulares. Assim, ser vítima torna-se um traço vitalício na medida em que este evento se entrelaça a todos os outros eventos de vida desse sujeito, numa dinâmica trama de interações, acontecimentos, sentimentos, saberes e sentidos. Entretanto, a relevância que o "ser vítima" terá nessa trama e a maneira como os sujeitos significam essas experiências dependerão das peculiaridades do(s) evento(s) vitimizador(es) e da singularidade complexa dos sujeitos.

Em estudo anterior, relatamos que a vivência de um sequestro relâmpago implica mudar a forma como o indivíduo vive suas experiências e as significa (Azevedo, 2011). Muitos passam a crer em um mundo social muito mais perverso do que se gostaria, afetando sua segurança ontológica (Giddens, 1991), já que a vitimização pode atingir a noção de estabilidade e o sentido de ordem que os sujeitos têm a respeito do ambiente social e material circundante.

Vale ressaltar que essa noção que o sujeito tem de estabilidade se estende à identidade. Ainda que as identidades sejam "múltiplas, flutuantes e situacionais" (Goffman, citado por Mendes, 2002, p.506), os indivíduos parecem buscar a permanência identitária, "mesmo que esta seja mais uma percepção subjetiva ou imaginada do que real" (Mendes, 2002, p.511-2). As pessoas desejam se compreender a partir de traços de "essência". Com todas as contradições inerentes às narrativas ontológicas, muitos se angustiam na tentativa de responder ao "Quem sou eu?".

Essa é uma resposta que não tem alternativa correta, única e fixa. Ela se constrói continuamente, no percurso de vida dos sujeitos, em referência às interações sociais que se tem ao longo do tempo e dos espaços sociais. Mendes (2002), citando Jonathan Friedman em sua obra "Identity and Global Process", de 1997, argumenta que:

A constituição da identidade é um jogo perigoso e elaborado de espelhos. É uma interação temporal complexa entre múltiplas práticas de identificação internas e externas a um indivíduo ou a uma população. De forma a compreender-se esse processo constitutivo é necessário, por conseguinte, situar espelhos no espaço e o seu movimento no tempo. (Friedman, 1997, p.532)

As experiências de vitimização não determinam quem é o sujeito e como ele se vê; mas, certamente, ajudam a compor os vários "espelhos" que esse sujeito "é" (ou seria melhor "está"?) e "será".

Recebido em 12/03/13

Aprovado em 19/06/13

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Out 2013
  • Data do Fascículo
    Set 2013

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2013
  • Aceito
    19 Jun 2013
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