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Análise do discurso argumentativo na coordenação de um Serviço de Atendimento Móvel de Urgência

Analysis of argumentative discourse in coordinating a mobile emergency care service

Análisis del discurso argumentativo en la coordinación de un Servicio de Atención Móvil de Urgencia

Resumos

O artigo analisa o uso do discurso argumentativo na coordenação de um serviço regional de atendimento móvel de urgências, a partir de um quadro teórico baseado na Teoria da Ação Comunicativa e na Nova Retórica. O material empírico provém de entrevistas e observação direta junto ao colegiado gestor do serviço, localizado na Região Metropolitana II do Rio de Janeiro, Brasil. Os resultados mostram que a construção de uma identidade regional baseada na solidariedade tornou possível a coordenação de ações em um contexto organizacional complexo. Tiveram papel primordial certos esquemas argumentativos, como os argumentos de reciprocidade, os que apelam para relações matemáticas e para definições, e os argumentos pragmáticos. A análise das argumentações pressupõe uma racionalidade que enfoca os procedimentos do raciocínio e da fundamentação dos atos deliberativos, sendo útil para explorar processos de tomada de decisão e de coordenação em saúde.

Coordenação; Comunicação; Integração de Serviços de Saúde; Análise de Conversação; Teoria da Argumentação


This paper analyzes the use of argumentative discourse in coordinating a regional mobile emergency care service, from a theoretical framework based on the theory of communicative action and on new rhetoric. Empirical data were obtained from interviews and direct observation of the administrative coordinators of the service, which was located in the Metropolitan Region II of Rio de Janeiro, Brazil. The results showed that construction of a regional identity based on solidarity made it possible to coordinate actions in a complex organizational context. Certain argumentative schemes had a fundamental role in this, such as arguments of reciprocity, arguments appealing to mathematical relationships and definitions and pragmatic arguments. The analysis on the arguments presupposes rationality that focuses on procedures of reasoning and justification of deliberative acts. This is useful for exploring decision-making and healthcare coordination processes.

Coordination; Communication; Integration of Health Services; Conversation Analysis; Argumentation Theory


El artículo analiza el uso del discurso argumentativo en la coordinación de un servicio regional de atención móvil de urgencias, a partir de un cuadro teórico basado en la Teoría de la Acción Comunicativa y en la nueva Retórica. El material empírico proveniente de entrevistas y observación directa con el colegio gestor del servicio, localizado en la Región Metropolitana II de Río de Janeiro, Brasil. Los resultados muestran que la construcción de una identidad regional basada en la solidaridad hizo posible la coordinación de acciones en un contexto organizativo complejo. Tuvieron un papel primordial determinados esquemas argumentativos, como los argumentos de reciprocidad, los que apelan para relaciones matemáticas y para definiciones y los argumentos pragmáticos. El análisis de las argumentaciones presupone una racionalidad que enfoca los procedimientos de raciocinio y de la fundamentación de los actos deliberativos, siendo útil para explorar procesos de toma de decisión y de coordinación en salud.

Coordinación; Comunicación; Integración de Servicios de Salud; Análisis de conversación; Teoría de la Argumentación


Introdução

Estudos recentes11. Lima JC, Rivera FJU. Agir comunicativo, redes de conversação e coordenação em serviços de saúde: uma perspectiva teórico-metodológica. Interface (Botucatu). 2009; 13(31): 329-42.,22. Lima JC, Rivera FJU. Redes de conversação e coordenação de ações de saúde: estudo em um serviço móvel regional de atenção às urgências. Cad Saude Publica. 2010; 26(2):323-36. apontam que a prática da coordenação de serviços de saúde está intimamente vinculada à argumentação, atividade que implica a inevitável inter-relação entre sujeitos que necessitam equacionar suas opiniões com vistas a uma decisão racional. Vislumbra-se, assim, uma nova linha de estudo, voltada para aprofundar a análise do papel da argumentação na coordenação e colaborar na fundamentação de uma abordagem comunicativa da gestão em saúde.

Essa abordagem foi descortinada por Rivera33. Rivera FJU. Argumentación y construcción de validez en la Planificación Estratégica-Situacional de Matus. Cad Saude Publica. 2011; 27(9):1847-58., que, preocupado em introduzir maior rigor lógico-discursivo ao processo de planejamento estratégico44. Matus C. Política, planejamento e governo. Brasília (DF): IPEA; 1993., analisa o processo de produção de um plano situacional com base em referências da filosofia da linguagem e na teoria da argumentação. O autor conclui que o plano situacional é uma aposta argumentativa, e que a teoria da argumentação permite introduzir maior rigor na análise da validez dos argumentos causais e no desenho de propostas de intervenção do plano.

A partir do entendimento de que o eixo estruturante da coordenação de ações em saúde é uma dinâmica rede de conversações, este trabalho busca contribuir para a compreensão do papel do discurso e da argumentação neste processo. Vale-se, para tanto, da base teórico-conceitual advinda da Teoria da Ação Comunicativa (TAC), de Jürgen Habermas, e da Nova Retórica, de Chaïm Perelman.

As análises estão baseadas em dados empíricos provenientes de estudo realizado junto ao Serviço de Atendimento Móvel de Urgência da Região Metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro (SAMU Metro II/RJ). Busca-se evidenciar como a interação entre sujeitos permite implementar processos de coordenação de ações mais eficazes e que contornam fragilidades estruturais dos serviços de saúde. Em especial, busca-se identificar que características básicas do processo argumentativo favorecem esta construção.

Discurso e argumentação: substratos para a compreensão da coordenação de ações em saúde

Segundo a TAC, os mecanismos de coordenação de ação utilizados distinguem dois tipos de interação, segundo o uso que é feito da linguagem. Quando utilizada apenas como meio de transmissão de informação para atingir um fim, fala-se em ação estratégica. Trata-se de um modelo de ação utilitarista, que supõe que o ator escolhe e calcula os meios e fins sob aspectos de maximização de benefícios ou expectativas conexas. Já quando a linguagem atua como fonte de integração social, fala-se em ação comunicativa. Neste caso, “a força consensual dos processos lingüísticos de se obter entendimento, ou seja, as energias vinculativas da própria linguagem – torna-se eficaz para a coordenação de ações”55. Habermas J. Racionalidade e comunicação. Lisboa: Edições 70; 2002. (p. 110). A racionalidade comunicativa amplia as possibilidades de se coordenarem as ações sem recorrer à coerção e de se resolverem, consensualmente, os conflitos.

Ao entender-se com alguém sobre algo no mundo, o falante levanta pretensões de validez que devem ser compreendidas e aceitas pelo outro66. Habermas J. O discurso filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes; 2002.. O critério da racionalidade que permite, aos participantes de uma situação de comunicação, questionarem a tradição cultural, o sistema social ou uma forma de personalidade é o da racionalidade comunicativa. Esta estende-se para além do aspecto cognitivo-instrumental, julgado à luz da pretensão de verdade, e engloba, também, os aspectos prático-morais e prático-estéticos, sujeitos às pretensões de validez de correção normativa e de autenticidade das expressões subjetivas, respectivamente.

No agir comunicativo, comunicação pura e discurso articulam-se dialeticamente. Na primeira, a condição de um consenso antecipado é o pertencimento a um mundo da vida homogêneo. Já o discurso, corresponde ao processo de avaliação crítica de reivindicações de validade apresentadas por atores sociais que visam ao entendimento mútuo e que voltam ao arsenal do mundo da vida por meio do consenso alcançado77. Artmann E. Interdisciplinaridade no enfoque intersubjetivo habermasiano: reflexões sobre planejamento e aids. Cienc Saude Colet. 2001; 6(1):183-95.. O discurso é uma forma de comunicação que procede por intermédio de argumentos.

Argumentação é o “tipo de habla en que los participantes tematizan las pretensiones de validez que se han vuelto dudosas y tratan de desempeñarlas o de recusarlas por medio de argumentos”88. Habermas J. Teoría de la Acción Comunicativa. Madrid: Taurus; 2001. v. 1-2. (p. 37). Pode-se compreender os argumentos, no âmbito da TAC, como os meios pelos quais o reconhecimento intersubjetivo de uma pretensão de validez, erguida hipoteticamente por um proponente, pode ser produzido e, portanto, a opinião transformada em conhecimento99. Aragão L. Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 2002..

A Nova Retórica1010. Perelman C, Olbrechts-Tyteca L. Tratado da argumentação: a nova retórica. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2005. traz contribuições ao introduzir elementos que favorecem a construção de um modelo de análise dos esquemas argumentativos. Isto porque, enquanto a Teoria do Discurso de Habermas parte de uma Teoria Consensual da Verdade e se ocupa da competência comunicativa dos atores sociais, a Nova Retórica se ocupa da especificidade da razão prática aplicada aos vários campos em que os raciocínios práticos se desenvolvem com grande mobilidade. Enquanto Habermas privilegia a argumentação como um procedimento de interação social simétrico, onde a cooperação intersubjetiva linguisticamente mediada é o objetivo, Perelman e Olbrechts-Tyteca privilegiam a argumentação como recurso discursivo para se obter a adesão do interlocutor.

A complementaridade dessas duas abordagens permite melhor iluminar a questão de como a argumentação atua nos processos de coordenação de ações de saúde, gerando maior capacidade de cooperação entre os atores.

Assim como Habermas, Perelman e Olbrechts-Tyteca defendem o poder de deliberar e de argumentar como um sinal distintivo do ser racional, contrariando a perspectiva cartesiana, que fez da demonstração e da lógica formal as marcas da razão. Em todos os campos do conhecimento onde há controvérsia – a filosofia, a moral, o direito –, recorre-se à argumentação para se chegar a um acordo sobre os valores e sua aplicação. Assim, a Nova Retórica preocupa-se com a estrutura da argumentação e os recursos discursivos voltados para a conquista da adesão e seu papel na compreensão dos mecanismos do pensamento. Trata-se do campo do razoável, em oposição àquele do racional1111. Meyer M. Perelman, le renouveau de la rhétorique. Paris: PUF; 2004..

Nesse caso, argumentar é influenciar por meio do discurso; seu objetivo é provocar a adesão dos espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento.

Os principais conceitos para se compreender a teoria de Perelman e Olbrechts-Tyteca1010. Perelman C, Olbrechts-Tyteca L. Tratado da argumentação: a nova retórica. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2005. são: auditório, acordo e técnicas argumentativas.

Discurso, auditório e orador são elementos em profunda e constante ligação. É ao auditório, no entanto, que cabe o papel principal para determinar a qualidade da argumentação e o comportamento dos oradores. O orador sempre fundamentará seu discurso sobre determinados acordos prévios do auditório. Quanto melhor se conhece o auditório, maior é o número de acordos prévios que se tem à disposição e, portanto, melhor fundamentada será a argumentação. A adaptação do discurso ao auditório é, pois, regra fundamental da argumentação.

É a natureza do auditório que determina, em ampla medida, tanto o aspecto que assumirão as argumentações quanto o alcance que lhes será atribuído. Perelman distingue três tipos de auditório: universal, particular, e individual. Esta noção aponta para uma orientação universalista dos discursos argumentativos, que corresponde ao ato de convencer racionalmente. A outra alternativa que se abre a um orador é a adaptação do discurso a um auditório particular, o que aponta para a persuasão como outra dimensão da argumentação1010. Perelman C, Olbrechts-Tyteca L. Tratado da argumentação: a nova retórica. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2005..

O conceito de argumentação apresentado acima tem um caráter instrumental, no sentido da tentativa de exercer uma influência sobre o interlocutor para se obter sua adesão a um ponto de vista. Representa a dimensão da persuasão.

Esta noção de Perelman pode representar uma tensão com o conceito de fala ideal de Habermas, que é a base procedimental linguística da possibilidade do universalismo. Esta tensão corresponde à distinção convencer/persuadir, onde o convencimento é fruto da análise exaustiva do mérito argumental por meio de processos comunicativos marcados por regras rigorosas (o que é típico da dialética); e o persuadir, é conquistar a adesão do auditório (típico da retórica), para além do mérito argumental, podendo ser usadas técnicas discursivas que podem (ou não) ter um caráter manipulatório.

No entanto, vale frisar que a noção de auditório universal de Perelman é invocada pelo próprio Habermas para fundamentar o conceito de situação de fala ideal1212. Alves MAS. Racionalidade e argumentação em Habermas. Kinesis. 2009; 1(2):179-95.. Além disso, Perelman aceita que, em boa medida, convencer é superior a persuadir, pois implica uma adesão racional, o que o aproxima de Habermas. De fato, o autor trabalha com a possibilidade dos dois auditórios, o universal e o particular.

Aqui se aplica o conceito de manobra estratégica de Van Eemeren1313. Eemeren FHV. “Consideren la brecha”: conciliando la búsqueda del éxito con la persistencia de la razonabilidad”. In: Santibañez Yánez C, Riffo Ocares B, organizadores. Estudios en argumentación y retórica: teoría contemporánea y aplicaciones. Concepción: Universidad de Concepción; 2007. p. 57-81., que enfatiza a necessidade de se conciliar a retórica (persuasão) com a dialética (convencimento), sob o primado desta última, entendendo a dialética como um agir comunicativo de caráter normativo e universal.

Retornando a Perelman, o ponto de partida da argumentação tem de ser um acordo sobre um certo número de coisas no contexto de um auditório. Sem premissas acordadas, explícita ou implicitamente, não há argumentação possível, nem sequer comunicação; e todo o movimento da argumentação consiste em transpor a adesão inicial que o auditório tem relativamente a uma opinião que lhe é comum para uma outra da qual o orador o quer convencer1010. Perelman C, Olbrechts-Tyteca L. Tratado da argumentação: a nova retórica. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2005..

A noção de acordo torna-se tão mais necessária nos casos em que “faltam ou são insuficientes os meios de prova e, sobretudo, quando o objeto do debate não é a verdade de uma proposição, mas sim o valor de uma decisão, de uma opção ou de uma ação, consideradas como justas, equitativas, razoáveis, honrosas ou conforme o direito”1414. Perelman C. La lógica jurídica y la nueva retórica. Madrid: Editorial Civitas; 1988. (p. 137).

Nesta linha, os objetos de acordos são agrupados em duas categorias1010. Perelman C, Olbrechts-Tyteca L. Tratado da argumentação: a nova retórica. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2005.: aquelas relativas ao real, que comportam os fatos, as verdades e as presunções; e as relativas ao preferível, que contemplam os valores, as hierarquias e os lugares do preferível.

As técnicas argumentativas se apresentam sob dois aspectos diferentes. O aspecto positivo estabelece solidariedade entre teses que se procuram promover e as teses já admitidas pelo auditório: trata-se de argumentos de ligação. O aspecto negativo visará romper a solidariedade constatada ou presumida entre as teses admitidas e as que se opõem às teses do orador: trata-se da ruptura das ligações e dos argumentos de dissociação.

Os argumentos de ligação são agrupados em três tipos: argumentos quase-lógicos, argumentos baseados na estrutura do real, e argumentos que fundam a estrutura do real.

A argumentação quase-lógica baliza sua força na aproximação com os raciocínios formais, lógicos ou matemáticos, mas sem possuir valor de prova, já que, na argumentação, há sempre ambiguidade e a possibilidade de múltiplas interpretações.

O orador prevalece-se do prestígio do pensamento lógico ou o utiliza como uma trama subjacente. Evoca o prestígio do raciocínio rigoroso. Tanto que a acusação de contradição ou de falta de lógica de um discurso é das mais significativas em um debate, assim como a acusação de se fazer um discurso passional e não lógico. “Trazer a lume a incoerência de um conjunto de proposições é expô-lo a uma condenação inapelável, é obrigar quem não quer ser qualificado de absurdo a renunciar pelo menos a certos elementos do sistema”1010. Perelman C, Olbrechts-Tyteca L. Tratado da argumentação: a nova retórica. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2005. (p. 221).

Entre os argumentos quase-lógicos, distinguem-se dois grupos: aqueles que apelam para estruturas lógicas – contradição, identidade total ou parcial, e transitividade; e aqueles que apelam para relações matemáticas – relação da parte com o todo, do menor com o maior, relação de frequência.

O segundo grupo de argumentos de ligação é aquele dos argumentos baseados na estrutura do real. Estes valem-se da estrutura do real para estabelecer uma solidariedade, uma ligação, entre juízos admitidos e aqueles que se procuram promover. Entre estes argumentos, estão: aqueles que se aplicam aligações de sucessão, que unem um fenômeno às suas consequências ou a suas causas; os que se aplicam a ligações de coexistência, que unem uma pessoa a seus atos, um grupo aos indivíduos que dele fazem parte ou uma essência às suas manifestações; osargumentos de hierarquia dupla, que correlacionam os termos de uma hierarquia discutida e os de uma hierarquia aceita, e, por fim, osargumentos relativos às diferenças de graus ou de ordem.

O terceiro grupo de argumentos de ligação é aquele dos argumentos que fundamentam a estrutura do real. São de caráter empírico e podem desempenhar papéis variados de ação, como generalizações, regularidades e imitações. Seu mecanismo básico é a criação de nexos entre pessoas e acontecimentos. Dividem-se em: argumentos pelo caso particular, onde se encontram as técnicas do exemplo, dailustração, do modelo e doantimodelo; e argumentos por analogia, onde se encontram a própria analogia e a metáfora.

Já o grupo dos argumentos de dissociação opera no sentido inverso ao conjunto apresentado até aqui. Ou seja, opõe-se ao estabelecimento de solidariedade entre elementos que, de início, poderiam ser considerados independentes. Neste grupo, a essência da argumentação é mostrar que uma ligação que fora considerada aceita, presumida ou desejada, não existe. Neste grupo, aparecem três técnicas de dissociação: o par aparência/realidade, os pares filosóficos e as definições dissociadoras.

Metodologia

O estudo foi realizado em 2010, no SAMU da Região Metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro. A região é composta pelos municípios de: Maricá, Niterói, Itaboraí, Rio Bonito, São Gonçalo, Silva Jardim e Tanguá. Conta com uma população de 1.974.910 habitantes.

O SAMU Metro II/RJ conta com: 15 ambulâncias básicas, sete ambulâncias avançadas, três motolâncias e dois carros 4x4. A Central de Regulação possui médicos reguladores e técnicos de regulação, que atendem a chamadas telefônicas da população, avaliam a situação e decidem pelo deslocamento ou não dos socorristas.

A gestão do serviço é feita por um colegiado gestor, onde têm assento os coordenadores municipais de atenção às urgências e a Coordenação Regional, naquele momento localizada em Niterói.

A coleta de dados foi realizada junto a este colegiado e consistiu na observação direta e na gravação das suas reuniões ordinárias. Ao todo, foram 12 reuniões acompanhadas, gravadas, transcritas e submetidas à Análise de Conversação1515. Antaki C, Díaz F. Análise da conversação e o estudo da interação. In: Iñiguez L, organizador. Manual de análise do discurso em Ciências Sociais. Petrópolis: Vozes; 2004. p. 161-80. entre os meses de janeiro a novembro de 2010. O material coletado nestas reuniões compõe um conjunto com mais de 36 horas de gravação. As reuniões se davam regularmente a cada um mês, com possibilidade de sessões extraordinárias. A dinâmica das reuniões implicava uma pauta prévia, elaborada e encaminhada pela Coordenação Regional, que era responsável, também, pela condução das reuniões. Introduzidos os temas, os atores discutiam e apresentavam seus pontos de vista até chegarem a um encaminhamento por consenso. Jamais foi presenciada qualquer votação.

A escolha do local de estudos se deveu ao fato de tratar-se de um serviço de caráter regional e de atenção a urgências, onde há necessidade de elevado grau de coordenação e intensa interação verbal entre os gestores, sobretudo porque os recursos eram partilhados entre municípios com condições muito distintas entre si, o que aumentava sua complexidade. O SAMU Metro II era considerado, à época, uma referência nacional, tendo sido classificado entre as dez experiências inovadoras durante a 1ª Mostra Nacional de Experiências Inovadoras de Gestão do SUS. A inserção no campo foi facilitada pelo fato de um dos autores ter participado da elaboração do projeto para a região.

Os dados foram registrados em um diário de campo e buscavam apreender sobretudo: a) a rede de conversações, identificando os atores envolvidos nos fluxos de conversação; b) os tipos de conversação predominantes nas relações com distintos atores; c) os principais problemas tratados no âmbito do colegiado de gestão; d) os principais atos de fala identificados; e) os principais esquemas argumentativos.

Para analisar as interações, utilizou-se, como principal ferramenta, a Análise de Conversação (AC), método que estuda a ordem e a organização da ação social cotidiana por meio da análise das conversações, e observa como os participantes organizam a interação de momento a momento. Está centrada na análise da linguagem na prática, ou seja, lida com o discurso oral no contexto em que ocorre, no lugar onde está a ação. Por meio da AC, busca-se captar o que dizem, contam ou fazem as pessoas, e tudo o mais que é produzido pelos participantes em conversação1515. Antaki C, Díaz F. Análise da conversação e o estudo da interação. In: Iñiguez L, organizador. Manual de análise do discurso em Ciências Sociais. Petrópolis: Vozes; 2004. p. 161-80.. Os argumentos foram analisados tomando por referência a tipologia de Perelman e Olbrechts-Tyteca1010. Perelman C, Olbrechts-Tyteca L. Tratado da argumentação: a nova retórica. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2005..

Resultados

Para a apresentação dos resultados, foram selecionados extratos de diálogos julgados mais relevantes para representar os principais esquemas argumentativos identificados nas interações entre os atores, uma vez que não é possível apresentar, em detalhes, todos os diálogos. As conversações foram editadas para facilitar a compreensão do contexto e reduzir sua extensão. Os nomes dos participantes foram alterados.

As seguintes convenções foram utilizadas nas notações dos trechos transcritos:

- Falas simultâneas ou sobreposição de vozes: [

- Pausas curtas: (+)

- Pausas médias: (++)

- Pausas longas: (+++) ou mais

- Truncamentos bruscos (interrupções): /

- Ênfase ou acento forte: MAIÚSCULA

- Alongamento de vogal: ::

- Repetições: Neste caso, reduplica-se a letra ou sílaba.

A regra de justiça e os argumentos de reciprocidade

A regra de justiça enseja uma identificação parcial de elementos cotejados entre si que permite tratá-los como intercambiáveis sob determinado aspecto, o que a torna uma das técnicas da argumentação quase-lógica. Isto implica a identificação parcial dos elementos, mediante sua inserção numa categoria, e a aplicação do tratamento previsto para os membros dessa categoria. A regra de justiça está entre os valores considerados universalizáveis por Habermas; e tem um apelo de consenso verdadeiro porque remete ao mundo da vida, especialmente, de atores cuja ação se volta ao interesse público.

Transcrição: Financiamento da Central de Regulação

Coordenador Regional: quando a gente tentou todos os municípios ver como é que a gente poderia cofinanciar a central de regulação, o nosso discurso sempre foi não adianta ser pura e simplesmente base populacional, porque tem municípios que não conseguirão sustentar a central de regulação. Pra que sejamos justos, porque se temos um município pequeno como Tanguá e Silva Jardim, que tem uma população pequena, ele absorve muito pouco, ele traz pra Itaboraí, ele traz pra São Gonçalo, então o nosso discurso tem sido sempre o da SOLIDARIEDADE.

No Colegiado de Gestão do SAMU, os argumentos desta natureza cumpriram função primordial para a manutenção da coesão do grupo em torno do caráter regional do serviço, de modo a superar as disputas municipais no interior do sistema. O trecho acima mostra o valor argumentativo da justiça. Seu apelo à racionalidade é inegável, pois classifica dois elementos, no caso, dois municípios, e aplica a eles tratamento equivalente, que deveria ser distinto dos demais, pertencentes a outra categoria. Além disso, quando busca-se demonstrar a coerência de uma conduta, normalmente, faz-se alusão ao respeito à regra de justiça. E esta é claramente a pretensão do orador ao utilizar expressões do tipo “o nosso discurso sempre foi...”, “o nosso discurso tem sido sempre...”.

Os argumentos de reciprocidade trazem consigo a noção de simetria, onde a identificação de situações, necessária à aplicação da regra de justiça, se dá de maneira indireta. Fundamenta-se, portanto, numa simetria de situações. Estes argumentos desempenharam papel-chave nas interações entre os coordenadores do SAMU regional, não havendo exagero em se afirmar que, para a coordenação das ações e a manutenção do caráter regional do serviço, os argumentos de reciprocidade representaram a essência das interações verbais.

Transcrição: Compartilhamento de profissionais entre os municípios

Coordenador Municipal 2: Olha só Abel, eu precisei de um funcionário em Itaboraí e não me liberaram o funcionário; eu já cansei de liberar funcionário meu pra São Gonçalo.

Coordenador Municipal 1: Você ligou pra mim?

Coordenador Municipal 2: Não, eu não liguei pra você, eu falei com Adriano

Coordenador Regional: Não, os dois enfermeiros se falaram e um negou pro outro.

Coordenador Municipal 2: No dia que a tua ambulância tava emperrada lá, não tinha um equipamento funcionando, todos os meus equipamentos foram pra São Gonçalo, TODOS.

Coordenador Municipal 1: A atitude dele não foi compartilhada comigo, eu vou até conversar especificamente sobre esse aspecto.

Transcrição: Recusa de médicos em se deslocar para outros municípios para realizar atendimento

Coordenador Regional: ... é importante mostrar quando os nossos funcionários se recusam a ir atender São Gonçalo mostrar o quanto São Gonçalo também atende a região, então a lógica REGIONAL quando os recursos estão disponíveis a gente consegue implementar no âmbito da nossa responsabilidade no nosso nível de hierarquia a gente tá conseguindo mostrar que regionalmente a gente funciona.

Os dois trechos acima mostram a força destes argumentos, que enfatizam um determinado aspecto que parece impor-se em razão da própria simetria posta em evidência. O que quer revelar o Coordenador Municipal 1, ao interpelar o Coordenador 2 pela não-liberação de um funcionário, é que, em situação similar anterior, no caso, a necessidade de equipamentos, adotou conduta distinta, de auxílio, a mesma esperada no caso da dificuldade de profissionais. Ou seja, levanta uma simetria de situações anteriores para questionar a conduta do outro município de não liberar o profissional requerido.

Do mesmo modo, o Coordenador Regional se esforça em dar, aos coordenadores municipais, argumentos que possam utilizar junto às suas equipes, que apresentam resistência para se deslocarem para atender situações de emergência em outro município que não o de sua base de lotação. Tais argumentos baseiam-se, novamente, na exigência de mesmo tratamento a uma situação simétrica. A tradução seria: se as equipes baseadas em São Gonçalo atendem aos demais municípios da região, então, os demais municípios devem também atender a São Gonçalo em caso de necessidade.

Argumentos que apelam para relações matemáticas

A argumentação quase-lógica tem como uma de suas características o apelo às relações matemáticas, em especial, às relações de frequência, como pesos, medidas e probabilidades. Nesta técnica argumentativa, predominam os lugares da quantidade1010. Perelman C, Olbrechts-Tyteca L. Tratado da argumentação: a nova retórica. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2005..

Transcrição: Utilização da viatura reserva

Coordenador Municipal 1: Eu vou reiterar mais uma vez o meu o meu desapontamento com a questão da viatura reserva.

Coordenador Regional: Eu queria colocar pra você várias questões (+) eu critico a relação de Niterói com relação aos outros municípios, de uma certa arrogância, de uma certa prepotência, mas no SAMU eu não vou aceitar esse tipo de crítica porque a solidariedade de Niterói com a Metropolitana dois ela está manifesta em números, ela está explícita em números (+) porque quando nós temos /

Coordenador Municipal 1: Eu concordo, eu concordo que a central de regulação /

Coordenador Regional: Só um pouquinho (++) a solidariedade não é discurso (+) isso está expresso em estatísticas né, a central de regulação funciona com médicos atendendo munícipes da região /

Coordenador Municipal 1: Esta não é a questão /

Coordenador Regional: Deixa eu terminar, olha quantas ocorrências por mês tem em São Gonçalo historicamente (+) mas é da ordem de uma série histórica de algo em torno de vinte a trinta por cento das demandas de São Gonçalo que Niterói dá conta (+) e nunca ninguém apresentou essa conta a ninguém.

A argumentação do Coordenador Regional, que se contrapõe à reclamação apresentada pelo Coordenador 1, busca sustentar a solidariedade do município de Niterói resgatando os números que estão projetados no quadro da sala. São eles, segundo o Coordenador Regional, que atestam a solidariedade, fazendo valer, assim, o “prestígio” dos números em contraposição ao discurso.

Os argumentos que apelam para relações matemáticas, especialmente os de comparação, e os que apelam para relações de frequência, foram largamente utilizados no âmbito do Comitê Gestor do SAMU, especialmente pela Coordenação Regional, valendo-se de informações quantitativas disponíveis exclusivamente neste âmbito. Com base nas observações realizadas, é possível afirmar que a disponibilidade de informações quantitativas representou um importante diferencial no esquema argumentativo do Coordenador Regional, que, frequentemente, apelava aos números para fazer valer seus pontos de vista.

O papel das definições na argumentação

A identificação dos elementos que são objeto do discurso constitui uma das técnicas mais importantes da argumentação quase-lógica, sendo o uso das definições um dos procedimentos de identificação mais característicos. O caráter argumentativo das definições pode se apresentar sob dois aspectos: as definições podem ser justificadas e valorizadas com a ajuda de argumentos; ou elas próprias são argumentos. “Mas todos aqueles que argumentam em favor de uma definição quererão que esta influa, de um modo ou de outro, sobre o uso da noção que, sem a intervenção deles, estaríamos inclinados a adotar...”1010. Perelman C, Olbrechts-Tyteca L. Tratado da argumentação: a nova retórica. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2005. (p. 241-2).

Transcrição: Utilização da viatura reserva

Coordenador Municipal 1: Agora, o que nós temos que colocar aqui é o seguinte, (+) é:: é o SAMU é regional?

Coordenador Municipal 2: É

Coordenador Municipal 5: É

Coordenador Regional: Depende de você.

Coordenador Municipal 1: Ele deve ser regional?

Coordenador Regional: Deve ser.

Coordenador Municipal 1: Então qual é a questão?

Coordenador Municipal 2: A questão é que as coisas tão acontecendo lá (+) faltou médico, não tinha médico, depois apareceu médico (++) esses dias não tinha equipamento na viatura, aí eu tive que emprestar equipamento de outra viatura entendeu?

Coordenador Municipal 1: Sim.

Coordenador Municipal 2: Então não é questão de fazer falta.

Coordenador Municipal 1: PERAÍ VAMO VOLTAR ENTÃO, É REGIONAL OU NÃO É REGIONAL? porque se não é regional você não tem que emprestar’ (+) você não é obrigado a emprestar.

Coordenador Municipal 2: Claro que é regional rapaz, já não é assim que funciona?

Na transcrição da discussão acima, percebe-se o recurso do Coordenador Municipal 1 à definição do SAMU da Região Metropolitana II, se regional ou não. O apelo à definição do SAMU como regional serve como base para contestar a reclamação feita pelo Coordenador Municipal 2, pelo fato de ter de, a todo momento, dar suporte ao município de São Gonçalo mediante o empréstimo de profissionais e equipamentos. Segundo a contraposição do Coordenador 1, se o SAMU não é regional, procede a reclamação; caso seja regional, não procede. Para fazer valer sua posição, insiste, junto aos participantes da discussão, que seja confirmada a definição do SAMU enquanto um serviço regional.

Os trechos abaixo trazem outros exemplos de uso das definições na argumentação.

Transcrição: Utilização da viatura reserva

Coordenador Regional: O secretário disse ó, vocês estão emprestando, eu quero ver na hora que acontecer um problema (+) eu disse não é empréstimo secretário, é é PACTUAÇÃO, é USO COMPARTILHADO, é isso que determina o Ministério da Saúde.

Transcrição: Problemas entre regulação e equipes de intervenção

Coordenador Municipal 1: A minha microrregião é Silva Jardim (++) os médicos intervencionistas reclamam muito por exemplo quando tem que ir pra Itaboraí.

Coordenador Regional: Mas aí não é no alimentar essa rivalidade/

isso é re-gu-la-ção, primeiro a gente, REAFIRMAR

Coordenador Municipal 1: eu sei

Coordenador Regional: ...esses conceitos, o conceito de regionalização o tempo todo, o SAMU é re-gio-nal

Transcrição: Relação entre regulação e intervenção

Coordenador Municipal 1: ... eu acho que deu uma melhorada boa na relação dos intervencionistas com o regulador.

Coordenador Regional: É (+) isso aí que a gente tá falando (+) o coordenador do SAMU no município ele não é um coordenador de viaturas, ele não é um coordenador de frota, ele não é u:::m supervisor de escala, ele é o representante do SAMU e também do secretário no município, então ele tem ser O DEFENSOR do SAMU e aí:: o articulador.

Coordenador Municipal 1: É, o ARTICULADOR

Coordenador Regional: O GRANDE articulador

Na primeira transcrição acima, o Coordenador Regional relata sua discussão com o secretário de saúde, quando este o repreende pelo uso da viatura reserva pelos demais municípios da região. A redefinição de “empréstimo” por “uso compartilhado” reconfigura o caráter da relação estabelecida entre os municípios e elimina a perspectiva hierárquica presente no discurso do secretário. No segundo trecho, novamente o reforço do conceito de regionalização como argumento para uma atuação intermunicipal dos profissionais do SAMU. E, por fim, uma argumentação que se inicia pela negação de definições do que seria um coordenador, para, enfim, se contrapor com outra, que sustentaria um certo modo de atuar destes atores em cada município.

O argumento pragmático

O argumento pragmático é um argumento baseado na estrutura do real. É aquele que permite apreciar um ato ou acontecimento conforme suas consequências favoráveis ou desfavoráveis. Este tipo de argumento permite concluir pela superioridade de uma conduta a partir da utilidade de suas consequências.

Transcrição: Utilização da frota reserva

Coordenador a nossa preocupação é garantir o acesso, a nossa preocupação é é desonerar o estresse que o regulador tem (+) / aí que eu peço solidariedade aos coordenadores, porque é um tal de venha a nós e ao vosso reino nada, que todo mundo quer resolver o SEU problema no SEU município, e quando os municípios aportam à central de regulação e por conseqüência à coordenação, eu vejo muito pouca solidariedade’

Coordenador Municipal 4: Eu acho que o nosso objetivo é o mesmo, eu acho que a gente quer a mesma coisa (+) a gente quer que o SAMU funcione melhor.

O argumento pragmático tem importância direta para a ação, pois não requer nenhuma justificação, pressupondo um acordo prévio sobre o valor das consequências. No exemplo trazido pelo trecho acima, observa-se que é a garantia do acesso aos usuários do SAMU, o seu bom funcionamento, que justifica a necessária solidariedade entre os coordenadores municipais, o que nem sempre ocorre, na visão da Coordenação Regional. Portanto, ação solidária é apreciada positivamente, tendo em vista as consequências decorrentes, o acesso dos usuários e o bom funcionamento do SAMU.

O vínculo causal na argumentação

A argumentação pelo vínculo causal tem efeitos numerosos e variados. Destacam-se três tipos: a) a que relaciona dois eventos sucessivos por meio de um vínculo causal; b) a que, dado certo acontecimento, busca descobrir a existência de uma causa que o determinou; e c) a que, dado o acontecimento, tende a evidenciar o efeito que dele deve resultar1010. Perelman C, Olbrechts-Tyteca L. Tratado da argumentação: a nova retórica. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2005..

Esse último é, exatamente, o argumento a que recorre o Coordenador Municipal 1 no trecho transcrito a seguir.

Transcrição: Utilização da frota reserva

Coordenador Municipal 1: Eu vou reiterar mais uma vez o meu o meu desapontamento com a questão da viatura reserva (+) acho que São Gonçalo deveria ser é:: reconhecido como (+) pelos grandes esforços que São Gonçalo tem realizado no sentido de::: botar as viaturas pra operar, né? eu acho que São Gonçalo já merece um crédito né? E esse crédito ainda não foi nos dado.

Como é possível observar, o Coordenador 1 busca, a partir do esforço realizado por seu município para “botar as viaturas para operar”, evidenciar o efeito esperado, ou seja, o reconhecimento, o “crédito”, e a consequente facilidade de acesso às viaturas reservas.

De maneira análoga, o Coordenador Regional coloca em evidência, no trecho a seguir, o resultado presumido de uma conduta conflituosa entre os componentes do comitê gestor. Segundo o Coordenador, uma postura de disputa entre os coordenadores municipais levaria à extinção do serviço.

Transcrição: Utilização da frota reserva

Coordenador Regional: HOJE essa situação não foi resolvida (+) o que eu sempre digo em todos os documentos que eu faço é o Samu da Metropolitana dois só existe porque nós os microgestores estamos sustentando isso’ se a gente estabelecer um campo de batalha entre nós esse serviço ACABA.

Coordenador Municipal 3: É

Coordenador Municipal 5: É verdade

A argumentação pelo exemplo

O argumento pelo exemplo corresponde a uma das técnicas que fundamentam a estrutura do real pelo recurso ao caso particular. Sua utilização supõe um acordo prévio sobre a possibilidade de generalização a partir de casos particulares. Nem toda descrição de um fenômeno particular pode ser considerada como uma argumentação. Para caracterizar-se como tal, é necessário que haja uma conclusão dos fatos descritos, que possa ser generalizada.

A eficácia desta técnica argumentativa advém da sua capacidade de influenciar o sentido e a extensão das noções, tendo em vista o aspecto dinâmico de seu emprego.

Transcrição: Alocação da maca extra

Coordenador Municipal 2: Os meus doutores hoje por exemplo disseram o seguinte mas olha só doutora, deixa aqui porque a gente deixa aquela aqui e a gente vai voltar pra base aí a gente pega a maca na base.

Coordenador Regional: Você já sabe qual é a matriz de pensamento deles, a matriz municipalista (+) aí na sexta feira nós estávamos com uma maca de Itaboraí presa aqui no, no:: Azevedo Lima, e ia prender a de vocês. Aí eu falei não dá pra ser, eu tô com maca presa no EASG, tô no posto central, tô com vocês, tô no HUAP, não dá pra agora é:: prender mais essa, ele falou assim escolha qual maca você quer que:: a de Itaboraí ou a de Niterói? (+) aí nessa hora a gente pensa a região né? eu falei deixa a de Itaboraí livre porque eles tem que voltar com a maca deles (+) ficamos com a nossa maca presa, aí quando chega lá os coleguinhas querem que a maca fique lá, que seja deles, ah pelo amor de Deus, é complicado né.

No trecho acima, percebe-se que o caso particular relatado pelo Coordenador Regional visa à generalização. Pelo exemplo da conduta adotada quando da necessidade de escolha entre que maca liberar, busca valorizar a perspectiva solidária de se atuar na região, ultrapassando os interesses municipais e atuando em favor da região.

Considerações finais

A análise dos esquemas argumentativos utilizados no Colegiado de Gestão do SAMU da Região Metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro revela extensa utilização de argumentos de ligação, incluindo todos os três tipos descritos por Perelman e Olbrechts-Tyteca1010. Perelman C, Olbrechts-Tyteca L. Tratado da argumentação: a nova retórica. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2005.: argumentos quase-lógicos, argumentos baseados na estrutura do real e argumentos que fundam a estrutura do real.

O cerne dos debates no colegiado esteve em torno da forma de atuação das equipes, revelando uma disputa entre ações com ênfase no município versuscentradas na região. Outro ponto usualmente objeto de discussão foi a utilização dos recursos disponíveis no serviço, tais como: viatura reserva, maca extra e pessoal.

Para dirimir os dissensos em torno desses temas, certas técnicas mostraram importância direta para a ação. Entre os argumentos quase-lógicos, revelaram-se de particular importância: a regra de justiça e os argumentos de reciprocidade, os argumentos que apelam para relações matemáticas e aqueles baseados em definições. Entre os argumentos baseados na estrutura do real, o argumento pragmático e os que relacionam causa e efeito revelaram-se de grande utilidade. Por fim, entre os argumentos que fundam a estrutura do real, a argumentação pelo exemplo esteve em evidência.

Os argumentos acima citados foram os que tiveram papel fundamental para a construção de uma identidade regional baseada na solidariedade, base a partir da qual se tornou possível a coordenação de ações entre a Coordenação Regional e os coordenadores municipais e o enfrentamento de vários problemas encontrados tanto no sistema clínico (resistência dos médicos em atender outros municípios, dificuldades de acesso aos hospitais) quanto no sistema de governança (resistências dos secretários, indefinições na pactuações sobre o compartilhamento de recursos).

O discurso argumentativo cumpre seu papel precípuo quando viabiliza uma saída, dentre as várias possíveis, que atrai a maior adesão dos coordenadores municipais e regional, convencidos, racionalmente, a aderirem aos argumentos dos outros, preservando-se o livre convencimento motivado nas suas posições.

A Teoria da Argumentação pode se projetar no território da coordenação de ações em saúde porque pressupõe uma racionalidade prática argumentativa que enfoca os procedimentos do raciocínio e da fundamentação dos atos deliberativos. Deste modo, pode ajudar a explorar de maneira competente os processos de tomada de decisão e de coordenação das ações em saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2015
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2015
  • Aceito
    14 Jun 2015
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