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Ambivalências no cuidado em saúde mental: a ‘loucura’ do trabalho e a saúde dos trabalhadores. Um estudo de caso da clínica do trabalho

Ambivalences in mental health care: craziness at work and health workers. A case study of the labor health clinic

Ambivalencias en el cuidado de salud mental: la ‘locura’ del trabajo y la salud de los trabajadores. Un estudio de caso de la clínica del trabajo

Resumos

Trata-se de estudo de caso de Centro de Atenção Psicossocial (CAPS tipo III) do interior paulista sobre a percepção dos trabalhadores da saúde acerca de seu trabalho, segundo: (i) empatia profissional, (ii) formas de trabalho coletivo, (iii) espaços de decisão coletiva, e (iv) negociação de regras coletivas de trabalho. Na análise dos resultados, utilizou-se a teoria da “psicodinâmica do trabalho”. As ambivalências do cuidado, vividas pelos trabalhadores na construção de regras coletivas e no desenvolvimento de empatia e cooperação profissional, representam constrangimentos institucionais resultantes da reintrodução de um modelo neoliberal na gestão do serviço de saúde mental.

Saúde mental; Satisfação no trabalho; Ambiente de instituições de saúde; Reforma dos serviços de saúde; Saúde pública


This is a case study of the Psychosocial Care Center (CAPS type III) from the interior of São Paulo regarding the perception of health workers about their work, according to (i) professional empathy, (ii) forms of collective work, (iii) collective decision mechanisms and (iv) negotiation of collective labor rules. The analysis of results was done using the theory of “work psychodynamics”. The ambivalences of care experienced by workers in the construction of collective rules and in the development of empathy and professional cooperation constitute the institutional constraints, resulting from the reintroduction of a neoliberal model in the management of the mental health service.

Mental health; Job satisfaction; Environment of health institutions; Health care reform; Public health


Estudio de caso de Centro de Atención Psicosocial (CAPS tipo III) del interior del Estado de São Paulo sobre la percepción de los trabajadores de la salud sobre su trabajo, según: (i) empatía profesional, (ii) formas de trabajo colectivo, (iii) los espacios de decisión colectiva, y (iv) la negociación de reglas colectivas de trabajo. En el análisis de los resultados se utilizó la teoría de la “psicodinámica del trabajo”. Las ambivalencias del cuidado, vividas por los trabajadores en la construcción de reglas colectivas y en el desarrollo de empatía y cooperación profesional, representan restricciones institucionales resultantes de la reintroducción de un modelo neoliberal en la gestión del servicio de salud mental.

Salud mental; Satisfacción en el trabajo; Ambiente de instituciones de salud; Reforma de los servicios de salud; Salud pública


Introdução

Os saberes e práticas alternativos/substitutivos ao modelo manicomial brasileiro estão associados às lutas populares contra o estado de exceção instalado pelo golpe militar (1964-1985), e inspiram-se nos processos de reorganização do trabalho em Psiquiatria, experimentados na Europa e nos Estados Unidos, depois da segunda guerra mundial. A aprovação da Constituição em 198811. Ministério da Saúde (BR). Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União: 19 Set 1990., a criação do Sistema Único de Saúde22. Ministério da Saúde (BR). Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema único de Saúde - SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial União: 28 Dez 1990., a aprovação da Lei Federal33. Ministério da Saúde (BR). Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União: 06 Abr 2011. sobre os direitos dos/as pacientes psiquiátricos/as, e o redirecionamento do modelo de atenção em saúde mental, configuraram as principais bases jurídicas do projeto de Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) na direção de transformar as práticas de cuidado em saúde mental e garantir direitos humanos e de cidadania dos doentes mentais. E a alojam na reforma mais ampla, a Reforma Sanitária Brasileira (RSB).

A clínica da RPB, enquanto processo articulador das dimensões teórico-conceitual, técnico-assistencial, jurídico-político e sociocultural44. Amarante P. Loucura, cultura e subjetividade: conceitos e estratégias, percursos e atores da reforma psiquiátrica brasileira. In: Fleury S, organizador. Saúde e democracia: a luta do Cebes. São Paulo: Lemos Editorial; 1997. p. 163-85.,55. Amarante P. Sobre duas posições relacionadas à clínica e a reforma psiquiátrica. In: Quinet A, organizador. Psicanálise e psiquiatria: controvérsias e convergências. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p. 103-11., deveria inverter a lógica promovida pela psiquiatria, de modo a colocar a ‘doença entre parênteses’ e ocupar-se do sujeito em sua experiência singular de existir66. Basaglia F. A doença e seu duplo: propostas críticas sobre o problema do desvio. In: Amarante P, organizador. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Tradução de Joana Angélica d’Ávila Melo. Rio de Janeiro: Garamound; 2005. p. 161-86.,77. Basaglia F. A maioria desviante. In: Amarante P, organizador. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Tradução Joana Angélica d’Ávila Melo. Rio de Janeiro: Garamound; 2005. p. 187-224.. No Brasil, os primeiros serviços substitutivos, Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), surgiram na década de oitenta, seguidos pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que se estabeleceram como serviços intermediários e alternativos entre o hospital e a comunidade. Esperava-se que o modelo dos CAPS caminhasse em direção ao modelo dos NAPS, dado o caráter descontrutor da clínica manicomial deste último. No entanto, ao longo do processo, observou-se uma redução inversa44. Amarante P. Loucura, cultura e subjetividade: conceitos e estratégias, percursos e atores da reforma psiquiátrica brasileira. In: Fleury S, organizador. Saúde e democracia: a luta do Cebes. São Paulo: Lemos Editorial; 1997. p. 163-85..

A reforma da organização do trabalho no âmbito da RSB pode ser descrita por analogias: (i) aos modelos tecnoassistenciais de atenção88. Silva Junior AG. Modelos tecnoassistenciais em saúde: o debate no campo da saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 1998.,99. Teixeira CF, Solla JJSP. Modelo de atenção à saúde no SUS: trajetória do debate conceitual, situação atual, desafios e perspectivas. In: Lima NT, Gerschman S, Edler FC, Suarez JM, organizadores. Saúde e democracia: história e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Abrasco; 2005. p. 451-79.; (ii) às diferentes perspectivas dos campos e núcleos de saberes e práticas em saúde1010. Campos GWS. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Cienc Saude Colet. 2000; 5(2):219-30.; (iii) às singularidades de cada caso e especificidades de cada coletivo1111. Merhy EE, Feuerwerker LM, Silva E, Gomes MPC, Santos MFL, Cruz KT, et al. Redes vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Saude Debate. 2014; 52: 153-64.,1212. Franco TB, Merhy EE. O reconhecimento de uma produção subjetiva do cuidado. In: Franco BT, Merhy E, organizadores. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde. Textos Reunidos. São Paulo: Hucitec; 2013. p. 172-82., e (v) às relações de gênero que permeiam o mundo do trabalho, particularmente, o mundo do cuidado1313. Kergoat D. Se battre, disent-elles. Paris: La Dispute; 2012.

14. Brito J. Saúde, trabalho e modos sexuados de viver. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1999.
-1515. Molinier P. Le travail du care. Paris: La Dispute; 2013.. O entrelaçamento destas reformas incide no trabalho e no trabalhar nos serviços de saúde mental, tanto na promoção ou impedimento da cooperação, quanto na ampliação ou redução da empatia profissional. A organização do trabalho nos CAPS somente pode ser compreendida por inferência ao real do trabalho vivo que, escapando aos métodos organizacionais, sempre deixa uma margem de manobra a ser posta em ação pela inteligência do/a trabalhador/a1616. Dejours C. Da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Lancman S, Sznelwar LI, organizadores. Tradução de F. Soudant. Brasília: Paralelo 15; Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011.

17. Dejours C. Trabalho e emancipação. Tradução de F. Soudant. Brasília: Paralelo 15; 2012.
-1818. Dejours C. Le choix: souffrir au travail n’est pas une fatalité. Montrouge: Bayard éditions; 2015..

Este artigo apresenta resultados empíricos de um estudo que analisou as interfaces entre o conteúdo do trabalho em saúde mental e as vivências de prazer e sofrimento no trabalho em trabalhadores/as de um CAPS. Os eixos estruturantes para a organização das falas dos/as trabalhadores/as e demais registros da investigação foram definidos anteriormente ao trabalho de campo e privilegiaram os seguintes temas: (i) empatia profissional; (ii) as formas de trabalho coletivo; (iii) os espaços de deliberação coletiva, e (iv) a elaboração das regras coletivas de trabalho. Espera-se colaborar nos debates que procuram evidenciar deslocamentos necessários à continuidade de um projeto de RPB em que a transformação do trabalho em psiquiatria esteja também articulada com a saúde e a emancipação dos/das trabalhadores/as de Saúde Mental.

A crise do trabalho em saúde e as ambivalências do cuidado em saúde mental

A crise do paradigma da produção de cuidado em saúde remete a questões que tensionam sobre a construção de um modelo de clínica e de organização do trabalho fundamentada sob uma racionalidade instrumental que tem influenciado, historicamente, não somente a implementação das políticas públicas brasileiras, mas, também, os processos de formação profissional para o setor saúde. A crise no trabalho em saúde anunciada nos anos oitenta1919. Merhy EE. A perda da dimensão cuidadora na produção da saúde, uma discussão do modelo assistencial e da intervenção no seu modo de trabalhar a assistência. In: Campos CR, Malta DC, Reis AT, Santos AF, Merhy EE, organizadores. Sistema Único de Saúde em Belo Horizonte: reescrevendo o público: São Paulo: Xamã; 1988. permanece atual, em termos de: (i) distanciamento do médico em relação aos interesses dos pacientes; (ii) isolamento deste profissional e o seu desconhecimento da importância das diferentes práticas profissionais; (iii) predominância de modalidades de intervenção centradas nas tecnologias duras, e (iv) saber estruturado reduzido à produção de procedimentos.

Se o significado da reestruturação produtiva nas organizações de saúde e na configuração dos processos de trabalho e de formação pode ser percebido por um aumento e uso intensivo de tecnologias, a especificidade do trabalho humano, no âmbito da terapêutica e do tratamento, em termos de investigação, avaliação e decisão, tem impedido a redução dos postos de trabalho2020. Aciole GG. O lugar, a teoria e a prática social do médico: elementos para uma abordagem crítica da relação médico-paciente no consultório. Interface (Botucatu). 2005; 8(14):95-12.. No entanto, os/as profissionais de saúde não têm sido devidamente preparados para pensar neles mesmos enquanto cuidadores e, consequentemente, como pessoas que também necessitam de cuidados2121. Silva E, Costa A. Saúde mental dos trabalhadores em saúde mental: estudo exploratório com os profissionais dos centros de atenção psicossocial de Goiânia/GO. Psicol Rev. 2008; 14(1):83-106..

Referida ao trabalho em geral, a clínica em Psicodinâmica do Trabalho (PDT) permite evidenciar a tendência dos/as trabalhadores/as em amenizar o conflito entre a organização do trabalho, fonte de sofrimento, e o funcionamento psíquico graças às estratégias defensivas. Para Dejours1616. Dejours C. Da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Lancman S, Sznelwar LI, organizadores. Tradução de F. Soudant. Brasília: Paralelo 15; Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011.

17. Dejours C. Trabalho e emancipação. Tradução de F. Soudant. Brasília: Paralelo 15; 2012.
-1818. Dejours C. Le choix: souffrir au travail n’est pas une fatalité. Montrouge: Bayard éditions; 2015., esta saída encontrada para minimizar a percepção das pressões do trabalho é acompanhada pelo risco de maximização da alienação, e, se promovida a objetivo, transformar-se-á em “ideologia defensiva”. O resultado seria a implosão de conflitos de poder, gerando impasses entre os diferentes coletivos com graves repercussões, tanto no plano psicológico, quanto no plano social e técnico, podendo ameaçar toda a organização e a segurança das instalações.

No campo das políticas públicas de Saúde Mental, em que a especificidade do conteúdo do trabalho repercute mais diretamente na intangibilidade da gestão dos serviços; na invisibilidade do trabalho, da realidade das condições de trabalho e das condições subjetivas do trabalho2222. Lancman S. Ação em psicodinâmica do trabalho: contribuições sobre o trabalhar em saúde mental. In: Lancman S, organizadora. Políticas públicas e processos de trabalho em saúde mental. Brasília: Paralelo 15; 2008., o risco de agravamento dessa crise pode ser aumentado. Ao se limitar a indicar os objetivos globais que são confiados à performance dos trabalhadores e negligenciar sua solução no plano da organização do trabalho, a racionalidade instrumental coloca uma questão crucial para os/as trabalhadores/as: como cuidar da loucura sem enlouquecer?

Metodologia

Foi desenvolvido um estudo de caso num CAPS do tipo III da Rede de Atenção Psicossocial de um município do interior paulista. Sua escolha se deu por ter sido considerado um serviço modelo que oferece ações de diferentes complexidades e pelo interesse dos/as profissionais e da gestora local em participar da pesquisa. Em virtude da complexidade do sujeito abordado e na tentativa de melhor conhecê-lo e apresentá-lo em suas multiplicidades, foi utilizada uma combinação de diferentes estratégias de aproximação com o campo: diário de campo, entrevistas coletivas, análise de documentos, entrevistas individuais e observação participante. As categorias de análise foram definidas a partir do diálogo entre o material empírico que emergiu das fontes e o campo teórico da PDT.

A discussão da demanda foi iniciada entre o pesquisador e a equipe pedagógica do setor responsável do Serviço de Saúde, por intermediar as aproximações com os serviços de saúde mental da rede, durante três encontros. Em seguida foram realizados oito encontros coletivos. Dois aconteceram com a participação de toda a equipe: o primeiro, para apresentação da metodologia e dos objetivos da pesquisa e formação do comitê de pesquisa, e o último, para apresentação e debate do relatório final. Os objetivos inicialmente apontados pelo pesquisador foram reorientados em função da demanda dos/as trabalhadores/as. De um grupo de trabalho composto por doze profissionais que se apresentaram espontaneamente para participar das entrevistas coletivas, apenas metade deles reuniu-se efetivamente em seis encontros semanais, com aproximadamente uma hora e meia de duração cada.

As entrevistas individuais foram num total de quatro, sendo com duas trabalhadoras e um trabalhador. A participação destes/as profissionais foi voluntária, a fim de preservar a autenticidade da palavra, tomada numa perspectiva hermenêutica1616. Dejours C. Da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Lancman S, Sznelwar LI, organizadores. Tradução de F. Soudant. Brasília: Paralelo 15; Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011.. A realização das entrevistas, que foram gravadas e transcritas, aconteceu entre julho e setembro de 2013; ao passo que as outras etapas do trabalho de campo foram desenvolvidas entre maio de 2013 e novembro de 2014.

O campo epistêmico da análise dos resultados situou-se na Clínica do Trabalho, mais precisamente da PDT, mediado por noções emprestadas das ciências do trabalho, como forma de adaptação da PDT ao contexto brasileiro, que nem sempre parte de uma demanda nos termos canônicos, e resultou no agrupamento do que foi considerado relevante na pesquisa. Procurou-se interpretar as experiências intersubjetivas associadas à organização do trabalho no CAPS em termos de vivências de prazer e sofrimento no trabalho.

O Projeto de pesquisa foi aprovado pelo CEP/Unifesp em 06/06/2012.

Contexto

O CAPS está inserido numa rede de equipamentos assistenciais de saúde mental composta por: seis CAPS III; dois CAPS Álcool e Drogas (AD) II; uma Unidade de Acolhimento Transitório AD; um CAPS AD III; um Consultório na Rua; dois CAPS Infantis; cinco Centros de Convivência; três Projetos de Inclusão Social pelo Trabalho; Serviços Residenciais Terapêuticos; um Núcleo de Retaguarda, além de Projetos Complementares às Ações de Reabilitação Psicossocial. A gestão desta rede, aberta à representação do poder público estatal e da sociedade civil, se organiza sobre a forma de um convênio de cogestão estabelecido entre a Prefeitura Municipal e o Serviço de Saúde, firmado na década de noventa.

O coletivo de trabalho do CAPS estudado é composto por 53 profissionais distribuídos em diferentes funções: um assistente administrativo; um assistente social; dois técnicos em farmácia; um auxiliar administrativo; cinco auxiliares de limpeza; seis enfermeiros; um farmacêutico; um gerente; dois médicos psiquiatras; um monitor de oficinas; um monitor de serviço de residência terapêutica; um motorista; seis psicólogos hospitalares; vinte auxiliares de enfermagem; três terapeutas ocupacionais; um vigia. O CAPS conta tanto com a participação de estagiários de diferentes núcleos profissionais e diferentes instituições de nível universitário e ensino técnico profissionalizante (Terapia Ocupacional, Psicologia, Assistência Social, Curso Técnico de Enfermagem) quanto com profissionais cursando pós-graduação sensu latu2323. Serviço de Saúde Cândido Ferreira (SSCF). Plano de trabalho do programa de parceria na assistência em saúde mental. Campinas; 2014: p. 1. [Mimeografado]..

Plano de Trabalho do Serviço

As atividades descritas no Plano de Trabalho, que definem as agendas destes profissionais e compõem as ofertas do serviço, se apoiam na “escuta qualificada” como instrumento para oferecer ressonância necessária à construção de soluções pelos pacientes para os seus problemas cotidianos, e incluem: (i) saídas do serviço e acompanhamento terapêutico com vistas ao agenciamento de ações relacionadas ao acesso a benefícios previdenciários, pagamentos de pensão, compra de objetos de uso pessoal, passeios, visita domiciliar, consultas médicas, tratamentos dentários etc.; (ii) realização de grupos e oficinas abertos (sem um número fixo de pacientes) ou fechados (com número fixo); (vi) retaguarda noturna e internação com oito leitos, cujos pacientes são avaliados diariamente; (vii) planejamento, programação, e avaliação da assistência; (viii) reunião de equipe; (ix) supervisões clínicas e supervisões institucionais; (x) formação: campo de estágios para estudantes de graduação, aprimoramento, residência multiprofissional e residência médica; (xi) educação permanente com/ para os enfermeiros, e (xii) controle social: existência de um conselho local com representação das gestões, funcionários, pacientes e familiares2323. Serviço de Saúde Cândido Ferreira (SSCF). Plano de trabalho do programa de parceria na assistência em saúde mental. Campinas; 2014: p. 1. [Mimeografado]..

Entre as atividades do(a) gerente, destacam-se: o planejamento, coordenação e avaliação de ações de saúde; gerenciamento de recursos humanos; acompanhamento e monitoramento do alcance das metas e dos indicadores no âmbito local; garantir ações de planejamento, capacitações e processos de educação permanente da equipe; garantir a formação e/ou manutenção de colegiado gestor da unidade; promover a democratização da gestão entre trabalhadores do SUS e usuários; garantir registro das ações em prontuários; definir áreas prioritárias para apoio multiprofissional para qualificar as ações matriciais; responsabilizar-se pela gestão administrativa; garantir o cumprimento de normas da vigilância sanitária2323. Serviço de Saúde Cândido Ferreira (SSCF). Plano de trabalho do programa de parceria na assistência em saúde mental. Campinas; 2014: p. 1. [Mimeografado].. De acordo com as entrevistas, estas atividades são avaliadas como atrativas, criativas e inovadoras, com restrições apenas ao que se considera sobrecarga de trabalho. No entanto, o potencial terapêutico destas ofertas passa a ser questionado quando a participação dos pacientes ocorre dissociada do projeto terapêutico individual, correndo o risco de perder o sentido além de acirrar disputas profissionais. A insuficiência de recursos financeiros e a falta de apoio de alguns em determinadas situações aparecem também como geradores de constrangimentos.

Os arranjos coletivos para articular a rede para fora do CAPS são vistos como inovadores, e citados como não explorados em seu real potencial nem valorizados consensualmente pelos colegas; enquanto outros arranjos internos têm “utilidade questionável” (Entrevistado 04), a exemplo da definição do Atendente das Demandas Diárias (ADD), profissional definido, em regime de plantões, para se ocupar dos problemas do dia.

Espaços de deliberação coletiva e empatia profissional

As reuniões de equipe e de miniequipe, a supervisão institucional, a supervisão clínica, os espaços de formação, a assembleia mensal de funcionários, o colegiado de gestão do Serviço de Saúde, a reunião de coordenadores do distrito de saúde, o colegiado de saúde mental do município, são considerados espaços de deliberação na medida em que possibilitam o diálogo entre diferentes sujeitos (profissionais, pacientes, gestores, estudantes) a fim de discutir, interrogar, compor as regras de trabalho que precisam encontrar um ponto em comum na coordenação do cuidado. Desta maneira, vislumbra-se a construção de um coletivo ampliado com diferentes níveis de implicação na corresponsabilização pelo cotidiano do serviço. Estes espaços, ao favorecerem a tomada conjunta de decisões, são percebidos como lugares privilegiados para se formular uma crítica reflexiva do trabalho.

A reunião semanal de equipe é definida no Plano de Trabalho2323. Serviço de Saúde Cândido Ferreira (SSCF). Plano de trabalho do programa de parceria na assistência em saúde mental. Campinas; 2014: p. 1. [Mimeografado]., como um espaço em que

“[...] se discutem os casos de maior complexidade, os pacientes inseridos nos leitos noite, os indicadores construídos pela equipe, e, a própria interação da equipe como um todo; ou seja, espaço vital para o alinhamento assistencial. Nessa reunião é construída também a política e a ética de cuidado que ajuda alinhar a assistência”. (Entrevistado 1)

As narrativas dos/as entrevistados/as referem uma ‘crise de identidade’ que tem sido vivenciada enquanto ‘degradação da convivialidade’, que outrora integrava os diferentes núcleos e trajetórias profissionais. O aspecto neoliberal da gestão foi apontado como principal elemento disparador desta crise que, segundo referem, ameaça não somente a continuidade do serviço operando nos pressupostos da reforma psiquiátrica, mas, também, a manutenção do emprego destes(as) trabalhadores(as). Como consequência, os espaços de discussão coletiva, que deveriam ser mobilizadores para a deliberação das regras de cuidado, têm sido contaminados com o tema da gestão, sobre o qual a equipe não tem governabilidade, e esvaziados do conteúdo do trabalho.

Esta ‘contaminação’ dos espaços de deliberação, a exemplo das reuniões semanais de equipe e de miniequipes, é percebida como ativadora de um ‘silêncio ruidoso’, com tendência a uma convivência distante e solitária que impede o fortalecimento da empatia profissional e da cooperação, necessários ao alargamento das possibilidades de construção do laço social.

Regras de trabalho, trabalho coletivo e clínica nostálgica

Fala-se de uma ‘clínica nostálgica’ associada aos processos de ‘subserviência’ destes/as profissionais em relação a determinados aspectos da gestão municipal. Denuncia-se uma ruptura nos modos como o convênio da cogestão era operado, passando de uma cogestão participativa para um modelo tradicional de prestação de serviços que reduz a autonomia profissional, cuja ‘desresponsabilização’ crescente dos gestores municipais repercute negativamente na organização do trabalho, com consequente perda de entusiasmo e regressão da clínica da Saúde Mental. Implica, além disso, uma mudança no funcionamento da rede definida em termos de ‘piora’, ‘tragédia’ e ‘adoecimento’. Estas mudanças são vivenciadas, também, como ‘crise nostálgica’ em relação a um tempo em que o que prevalecia eram os princípios da RPB na organização do trabalho e na cogestão do cuidado.

“[…] quando eu dizia de uma clínica nostálgica, que era uma maior liberdade por conta desse financiamento, dessa conversa com a prefeitura ser outra, a gente tinha uma autonomia no serviço de saúde, tinha uma posição que não era de subserviência, nós não nos submetíamos da maneira que eu acho que hoje se submete a essa cogestão, que não é mais uma cogestão, cogestão entende-se por duas partes e hoje não se tem mais isso e, acho que por conta disso tudo, aquilo que as pessoas que trabalhavam aqui mais prezavam é que é esse modelo de clínica da saúde mental, isso que era possível articular para fora do CAPS, esse cuidado mais próximo com o paciente [...] A gente está submetida a outro tipo de conversa que eu acho que acaba com o entusiasmo, uma conversa que vem de imposição, onde antes era uma construção que eu acho que a gente fazia, hoje a gente tem de engolir algumas coisas que nunca precisou engolir porque a gente tinha uma posição, tinha um posicionamento mesmo. Hoje em dia não tem mais como fazer, e eu acho que começa dai, talvez, a degringolar isso que era tão interessante, desse entusiasmo dos trabalhadores, que não é, né, pelo valor salarial que ninguém engancha na saúde mental, não é pelo plano de cargos e salários porque não tem. Então, isso que eu acho que era a força motriz que carregava os profissionais, isso foi sendo massacrado”. (Entrevistado 04)

No dizer dos/as entrevistados/as, essa ‘lógica perversa’ de gestão do trabalho prioriza a fragmentação do cuidado em atos/procedimentos isolados, focados em processos individuais e descontextualizados da realidade. As atividades definidas no processo de elaboração dos indicadores quantitativos são percebidas como ‘maçantes’ e ‘repetitivas’, cuja finalidade é atender a uma lógica gerencialista dissociada da gestão do cuidado. Fala-se em ‘constrangimentos’ decorrentes da obrigatoriedade de estes/as profissionais priorizarem, muitas vezes, o preenchimento de formulários e o registro de procedimentos nos prontuários. Este ‘excesso de burocracia’, tanto no processo de avaliação do trabalho quanto no faturamento das finanças, repercute numa mudança de paradigma na clínica que prejudica a qualidade da atenção dispensada ao cuidado real com o paciente.

Um (a) participante compartilha seu sentimento e suas hesitações em termos de que atitude tomar individualmente e coletivamente frente às dificuldades impostas pelo “gerencialismo” (sic) que avança na gestão, afirmando que este enfrentamento, contrariamente ao que deveria ser, tem tomado uma dimensão pessoal:

“Agora o que eu sinto, tenho feito, não que eu ache que deveria, é um enfrentamento pessoal. Acho que o trabalho tem vindo de uma maneira tão maçante, tão pesada, tão difícil, tão truncada, por conta de toda essa burocratização que vem acontecendo... ah, isso não vai dar para a gente aceitar desse jeito, então, como que a gente pode se mobilizar em algumas coisas”? (Entrevistado 04)

Refere-se, também, a um processo de “afunilamento” que já adentrou as miniequipes, outrora, local de refúgio dessa “dificuldade alheia”, de um “respiro”, não restando mais espaço para se proteger do cansaço, conforme evidenciado na fala de uma participante: “se a gente andar aqui é muito interessante, a cozinha muitas vezes é nosso refúgio, pega seus prontuários, suas coisinhas e corre-se para a cozinha” (Entrevistado 03).

A seu ver, as dificuldades não estão em fazer a articulação da rede, nem no cuidado com pacientes psicóticos, nem em fazer triagem, ou fazer diagnóstico de caso; tampouco em realizar contenção ou supervisão clínica, mas, sim, no lidar com a própria equipe. Outra entrevistada complementa afirmando que, se por um lado, a equipe se instrumentaliza para estas ações de cuidado com o paciente, por outro, quando a dificuldade no trabalho está associada à convivência com os colegas, os recursos escapam a este aprendizado. No seu entendimento esta dificuldade acaba despotencializando a rede, a supervisão, fragilizando lugares que seriam estratégicos para dialogar e se trabalhar junto, como é o caso da supervisão institucional, que, em sua opinião, está muito difícil.

“A gente vai todo mundo fica calado, ninguém consegue se colocar, e ás vezes quando um vai e coloca... O negócio não se desenrola, sabe? Então esses lugares, essas nossas expertises, que são nossos instrumentos para trabalhar, para dialogar e para se comunicar também ficam fragilizados e perdem a potência, não sei, eu sinto isso, né”? (Entrevistado 01)

Por referência ao modo como o trabalho se organiza em cada miniequipe, fala-se de certo risco de as mesmas funcionarem como serviços isolados dentro de um mesmo equipamento assistencial, podendo gerar desassistência, ao fragmentar a identidade do coletivo de modo a incidir negativamente na cooperação. Esta questão tende a ser relativizada, por um lado, com a existência de profissionais que, ‘fugindo da regra’, atendem individualmente pacientes de outras miniequipes; por outro, pela oferta de atividades em grupos e oficinas abertos à participação de todos os usuários, bem como a possibilidade de substituição de um determinado técnico de referência de um paciente por outro profissional, de outra miniequipe.

Sobre o fator desencadeante do que atualmente é vivenciado como fragmentação da ‘equipe’, cita-se a organização do serviço por divisão de territórios, e o período que o antecede é referenciado como a época de uma Clínica Nostálgica, referida anteriormente.

“Eu acho que essa fragmentação que a gente vive na equipe começou fragmentando assim: tinha três equipes que deveriam trabalhar coligadas, essa fragmentação começou desligando as equipes, ai, tem uma equipe da psiquiatra A, uma da psiquiatra B e outra do psiquiatra C. A fragmentação começou dai, a gente já falava “nossa... cada um está funcionando dentro da sua miniequipe (a bolha) como se não estivesse no mesmo lugar, né?” Eu acho que esta fragmentação está atingindo de alguma maneira, eu não sei explicar como, mas as miniequipes também [...] Eu estou chamando de fragmentação esta dificuldade de comunicação e de trabalhar junto que está de alguma maneira penetrando as miniequipes também”. (Entrevistado 02)

Trabalho coletivo e clínica radical

A descrição do trabalho no contexto geral do serviço foi referida como portando fortes características médico-centradas, sobretudo, no que se refere à presença da contenção química sem atender às normas de prescrição recomendadas para o manejo da crise. Embora a tomada de decisão no interior das miniequipes tenha sido descrita como compartilhada entre os diferentes profissionais, foram relatadas situações de desrespeito no tocante à atitude médica de certos colegas em relação aos demais profissionais. O nome dado a cada uma das três miniequipes por alusão ao nome de cada um dos seus respectivos médicos assistentes é citado como sendo apenas uma das evidências desta relação de poder que é marcada, também, por significativa diferença salarial em benefício destes.

Comenta-se que, historicamente, os serviços que compõem esta rede foram separados por dois blocos que afirmam a hegemonia da clínica psicanalítica, por um lado, e a clínica da atenção psicossocial, por outro, embora a clínica psiquiátrica tenha prevalecido em ambas as direções. Fala-se que estas perspectivas têm se constituído num certo ‘radicalismo’ que impede a experimentação de outros referenciais teóricos para compor o ‘arsenal terapêutico’, sobretudo diante de casos para os quais a clínica em vigência se mostrou ineficiente num serviço onde o número de pacientes é considerado excessivo. Queixa-se que esta ‘radicalização’, levada aos limites, tem impedido uma discussão sobre a possibilidade de compor o projeto terapêutico de determinados casos extremos de retardo mental, por exemplo, com a utilização: da internação de longo prazo, de terapias cognitivas comportamentais e/ou de eletroconvulsoterapia, repercutindo, consequentemente, no ‘empobrecimento da clínica’.

A clínica da psicose: um trabalho que impregna no corpo

Constatou-se que a especificidade do trabalho no CAPS apresenta sempre um risco potencial de produzir confusão entre as esferas da vida privada e da vida profissional, que pode ser agravado proporcionalmente ao quantitativo de horas trabalhadas. O trabalho emocional que tal mobilização subjetiva exige na relação estabelecida com o paciente é sentido como algo que impregna no corpo e causa inquietações de como agir para estabelecer limites e evitar que isso aconteça, como, por exemplo, a necessidade de investir noutros projetos pessoais e profissionais.

“Eu faço trinta e seis horas no CAPS porque eu sou plantonista também. Diferente das meninas, eu faço trinta horas durante a semana e estas seis horas que sobram a gente faz dois plantões de doze horas no CAPS. Num mês parece que não é muito, mas é bem cansativo você estar a semana toda aqui e depois ter que vir no domingo o dia todo, e depois ter que estar aqui a semana toda de novo. A pessoa fica impregnada de CAPS, né, e ai demora a dar uma limpada no nosso corpinho, no nosso psiquismo para a gente cuidar do nosso trabalho aqui e também nossa vida lá fora. Nesse sentido toma muito espaço. Era disso que eu estava falando, de muito espaço que toma o CAPS, eu tenho repensando, né, quanto também que eu deixo isso ocupar dentro de mim, quanto que eu posso limitar isso, quanto que me cabe limitar, e quanto que é mesmo do trabalho, daquilo que é mesmo intrínseco do nosso trabalho, esse tomar do nosso corpo, né, do nosso afeto, né, da nossa mente que a clínica da psicose demanda, então, o meu plano é dentro de alguns meses poder deixar o meu plantão que é algo que eu acho que já vai abrir outros espaços, até para poder investir tanto mais aqui, porque eu tenho visto que eu tenho ficado cansada, até para eu cuidar do que eu já tenho que cuidar durante a semana. Para eu cuidar de outros projetos como dançar, do meu consultório, para cuidar de meus outros desejos, até para eu saber o que eu quero. Em longo prazo poder fazer vinte horas”. (Entrevistado 01)

Além da referência à redução da jornada de trabalho e a retomada de outros projetos pessoais, a prática de esportes radicais, a utilização de supervisão clínica individual custeada com recursos financeiros próprios e a participação em grupos de pesquisa sobre RPB foram citados como estratégias utilizadas para auxiliar no confronto com a tensão resultante do trabalho.

Trabalho, prazer e sofrimento

O conjunto de atividades apresentado no plano de trabalho2323. Serviço de Saúde Cândido Ferreira (SSCF). Plano de trabalho do programa de parceria na assistência em saúde mental. Campinas; 2014: p. 1. [Mimeografado]. quando comparado com o conteúdo do trabalho acessado pelas entrevistas sinaliza para as barreiras existentes entre os elementos prescritos da organização do trabalho e os elementos reais do trabalho vivo no CAPS. Sua coordenação somente é possível graças à cooperação dos/as trabalhadores/as que, por meio do uso de sua inteligência prática1616. Dejours C. Da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Lancman S, Sznelwar LI, organizadores. Tradução de F. Soudant. Brasília: Paralelo 15; Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011.

17. Dejours C. Trabalho e emancipação. Tradução de F. Soudant. Brasília: Paralelo 15; 2012.
-1818. Dejours C. Le choix: souffrir au travail n’est pas une fatalité. Montrouge: Bayard éditions; 2015., preenchem as lacunas deixadas por esta organização prescrita, zelando para dar forma à existência de uma diversidade de atividades e ações que constituem o saber-fazer do serviço, a exemplo, de caminhadas; grupos terapêuticos; oficina de culinária; salão de beleza; grupo de costura; oficina de bijuteria; oficina de comunicação e escrita; grupo de esporte; grupo de sorvete e acompanhamento terapêutico. A coordenação deste trabalhar exige a experimentação de um ritmo de trabalho coletivo harmonioso para a execução de uma obra coletiva que aposta na construção do laço social para a integração do louco e da loucura na sociedade.

“Então, eu acho que a gente precisa estar em sintonia no trabalho, se um começa a falhar no que deveria fazer, ai começa a sobrecarregar o outro. Porque eu acho que a potência do CAPS é ser uma equipe de trabalho”. (Entrevistado 03)

As ambivalências do cuidado no CAPS resultam de um confronto cotidiano no qual os relatos das vivências de prazer e de sofrimento dos/das trabalhadores/as representam apenas os sinais dizíveis de uma luta invisível pelo reconhecimento de situações reais que têm, na imaterialidade do trabalho, sua principal força motriz – a subjetividade2424. Alheit P, Dausein B. En el curso de la vida. Educacion, formación, biograficidade y género en la modernidade tardia. Valencia: Editorial Denes; CREC; 2007..

“O que me causa sofrimento é o que está acontecendo no município (...) você fez toda aposta, todo investimento, toda construção de rede, tudo aquilo, e você não ter o reconhecimento do outro?” (Entrevistado 02)

Neste cenário as atividades grupais aparecem como lócus de fortalecimento de uma via de acesso à cooperação transversal na organização do trabalho coletivo. Seu potencial pode ser evidenciado, inclusive, com a participação de pacientes engajados na produção do cuidado de si e do outro, ajudando na promoção das atividades cotidianas para uma melhor integração por meio da convivência no serviço.

“Quando eu faço o salão, eu chamo todo mundo lá para trás, então fica um grupo no jardim, onde eles ficam conversando, batendo papo. Eu quero que aquele salão seja um salão de beleza, onde as pessoas se encontrem e que conversem e que batam papo sobre a vida lá fora, então tem piada, tem música, tem tudo lá dentro. Então quando eu vejo que um salão de beleza pode propiciar isso eu vejo quantas seis horas eu jogo fora por semana sendo ADD”. (Entrevistado 04)

O CAPS pode ser visto como um lugar onde o protagonismo destes atores transcende o campo estritamente profissional, para se configurar num movimento de luta em defesa da democratização das relações de poder vis-à-vis da normatização dos indivíduos e da medicalização da sociedade pela biopolítica, nos termos empregados por Foucault2525. Foucaul M. História da sexualidade. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1985.. As atividades desenvolvidas no serviço também evidenciam uma produção de relações empáticas que confirmam o deslocamento dos papéis dos sujeitos (equipe dirigente e internados) em favor de uma aproximação entre estes grupos, convergindo para o que Goffman2626. Goffmann E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva; 1975. caracterizou como liberação do papel institucional.

As evidências de um gerencialismo anunciadas nas falas dos/as profissionais mostram as contradições enunciadas no Plano de Trabalho2323. Serviço de Saúde Cândido Ferreira (SSCF). Plano de trabalho do programa de parceria na assistência em saúde mental. Campinas; 2014: p. 1. [Mimeografado]., que, por um lado, destaca a importância do desenvolvimento de processos de trabalho inovadores e a promoção de um projeto coletivo de cuidado fortalecedor das práticas clínicas e gestoras; e, por outro, define indicadores de produtividade quantitativos para controlar a produção de procedimentos e ações de saúde desenvolvidos no serviço, como analisadores do desempenho individual e coletivo dos/as trabalhadores/as e do serviço.

As saídas encontradas por estes/as trabalhadores/as para driblar tais regras, respondendo de uma forma meramente burocrática, remete aos constrangimentos atribuídos por Rastier2727. Rastier F. Apprendre pour transmettre: l’éducation contre l’idéologie managériale. Paris: PUF; 2013. à entrada da linguagem gerencial do mundo empresarial nos espaços de gestão pública, pela utilização, sobretudo, de métodos de avaliação quantitativos, que têm servido para submeter as instituições tanto politicamente quanto para lhes sujeitar às restrições financeiras. Seus objetivos: (i) tornar o processo puramente técnico, passando da avaliação pelos pares para a bibliometria; (ii) aumentar a produtividade, objetivo explícito dos indicadores de desempenho, e, finalmente (iii) aumentar a insegurança dos trabalhadores e trabalhadoras pelas técnicas de assédio moral.

As diferentes estratégias de cuidado de orientação clínica, ética e política, identificadas neste estudo, podem, por um lado, contribuir para o processo de transformação qualitativa do conceito de clínica na RPB, pelo alargamento do horizonte de possibilidades da produção do cuidado em favor da destituição das estratégias manicomiais; por outro, a crise da cogestão do convênio evidencia de que maneira constrangimentos gerados pela introdução de um modelo neoliberal na gestão de um serviço público podem precarizar o debate sobre esta mesma clínica e dificultar a construção de regras coletivas de trabalho, o estabelecimento da empatia profissional e o desenvolvimento da cooperação. Entretanto, dentro deste coletivo de trabalho em que, ironicamente, o laço social deveria se constituir como objetivo principal do trabalho, são os espaços informais que aparecem como locais privilegiados para se falar da concretude do trabalho, isto é, “a gente vai tomar um cafezinho e o cafezinho vira quarenta minutos” (Entrevistado 04).

Os dados clínicos deste estudo. ao reportarem uma ‘crise de identidade’ associada a uma ‘crise nostálgica’, corroboram com as evidências identificadas por Dejours e Gernet2828. Dejours C, Gernet I. Psychopathologie du travail. Paris: Elsevier Masson; 2012., quando afirmam que as diferentes manifestações sintomatológicas que caracterizam as entidades psicopatológicas relacionadas às novas formas de organização do trabalho, podem ser reagrupadas esquematicamente sob o título, de um lado, de patologias da solidão, e, de outro, de patologias da servidão.

As estratégias individuais, postas em ação no confronto com as diretrizes da gestão, vão ao encontro da abordagem da elucidação das causas das descompensações, pela PDT, que tem evidenciado o impacto causado pela introdução massiva de métodos de gestão sobre a relação subjetiva com o trabalho, paralelamente ao colapso dos recursos defensivos contra o sofrimento. Por fim, estes termos remetem ainda à noção de ‘crise de identidade profissional’2929. Dubar C. La crise des identités: le lien social. Paris: PUF; 2010., associada ao emprego, ao trabalho e as relações sociais de classe, e consequência dos processos de modernização sobre a vida cotidiana dos indivíduos, suas condições de vida, salários e, sobretudo, sobre seus empregos.

Considerações finais

Pode-se afirmar que a tese da centralidade do trabalho, tomada como norteadora desta pesquisa, mostrou-se potencialmente eficaz para tratar as questões discursivas que impedem a saída dos/as trabalhadores/as do registro da ‘crise’ para avançar na produção do cuidado em saúde mental nos pressupostos da RPB. Ao trazer para o centro as disputas produtoras de sofrimento vis-à-vis, uma teoria do trabalho foi capaz de demonstrar como o esvaziamento progressivo de falas sobre o conteúdo do trabalho, nos espaços de deliberação coletiva, pode colaborar para o acirramento destas disputas e para a degradação da clínica e do viver junto. A defasagem entre trabalho real e trabalho prescrito situou a discussão no campo das Ciências do Trabalho. Discussão que, ancorada nas categorias da PDT, permitiu um avanço na compreensão das repercussões do trabalho encarnadas em ambivalências que caracterizam as vivências de prazer e de sofrimento dos profissionais de Saúde Mental no contexto da RPB.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2017
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2016
  • Aceito
    07 Nov 2016
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