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Integrando emoções e racionalidades para o desenvolvimento de competência nas metodologias ativas de aprendizagem

Integración de emociones y racionalidades para el desarrollo de competencia en las metodologías activas de aprendizaje

Resumos

Sustentado em uma prática educacional construtivista, dialógica e baseada em competência, este artigo discute uma tradição racionalista/objetivista de ensino-aprendizagem. Expressões artísticas, especialmente cinematográficas, são apresentadas como disparadores educacionais. Educandos organizados em pequenos grupos compartilham, correlacionam e conversam sobre suas emoções, possibilitando uma melhor compreensão das racionalidades envolvidas no processo de aprendizagem. Como os grupos apresentam diferentes estágios de problematização das emoções, propomos categorias para apoiar docentes e integrantes na identificação da natureza conversacional dos grupos, favorecendo suas intervenções e contribuições para o desenvolvimento individual e social dos participantes, com referência a um perfil de competência.

Aprendizagem ativa; Competência profissional; Educação; Emoções; Arte


Sustentado en una práctica educativa constructivista, dialógica y basada en competencia, este artículo discute una tradición racionalista/objetivista de enseñanza–aprendizaje. Expresiones artísticas, especialmente cinematográficas, se presentan como gatillos educativos. Educandos organizados en pequeños grupos comparten, correlacionan y conversan sobre sus emociones, posibilitando una mejor comprensión de las racionalidades envueltas en el proceso de aprendizaje. Como los grupos presentan diferentes estadios de problematización de las emociones, proponemos categorías para dar apoyo a docentes e integrantes en la identificación de la naturaleza conversacional de los grupos, favoreciendo sus intervenciones y contribuciones para el desarrollo individual y social de los participantes, con referencia a un perfil de competencia.

Aprendizaje activo; Competencia profesional; Educación; Emociones; Arte


This paper discusses a rationalist/objectivist tradition of teaching and learning, with the support of a constructivist, dialogic and competence-based educational practice. Artistic expressions, particularly cinematographic ones, are presented as educational triggers. Students are organized into small groups in which they share, correlate and discuss their emotions, allowing for a better understanding of the rationalities involved in the learning process. As the groups present different stages of problematizing their emotion, we propose categories to support teachers and members in identifying the conversational nature of the groups, supporting their interventions and contributions for the individual and social development of the participants, with reference to a proficiency profile.

Active learning; Professional competence; Education; Emotions; Art


Introdução

Vivemos, na contemporaneidade, importantes dilemas educacionais que, por mais evidentes que possam parecer, mantêm-se distanciando discursos e práticas educativas. Se de um lado ampliam-se as reflexões sobre as necessidades de transformação dos modelos de ensino-aprendizagem voltados ao desenvolvimento integral dos estudantes, por outro, ainda vemos conservar-se uma tradição de ensino indiferente às novas descobertas sobre como as pessoas aprendem.

Buscando contribuir para a ampliação de experiências com melhoria efetiva nas condições e resultados educacionais, este artigo objetiva discutir a inclusão das emoções em atividades educacionais, contribuindo para a desmistificação da histórica dicotomia “razão e emoção”. Nesse sentido, propomos dispositivos metodológicos construtivistas e dialógicos, capazes de acessar essas duas dimensões de modo interconectado, no processo de aprendizagem e no desenvolvimento de competência.

O privilégio da racionalidade

O privilégio da razão tem raízes em filósofos da Grécia antiga, como Platão, que valorizava o pensamento universal em detrimento das paixões, prazeres e valores individuais. Está presente nas produções de René Descartes (1596-1650), que considerava a existência a partir do ato de pensar, e de Immanuel Kant (1724-1804), que afirmava a impossibilidade do encontro entre a razão e a felicidade 11. Gauthier C, Tardif M. A pedagogia: teorias e prática da antiguidade aos nossos dias. Petropolis. Rio de Janeiro: Vozes; 2010.,22. Gadotti M. História das ideias pedagógicas. 6a ed. São Paulo: Ática; 1998. .

A partir das últimas décadas do século XVII, a valorização da ciência passou a exercer crescente influência na educação. Essa influência produziu expressões que variaram do cientificismo, pela negação de qualquer forma de conhecimento fora da razão, às tendências que buscaram religar ciência e cultura 33. Arantes VA. A afetividade no cenário da educação. In: Oliveira MK, Souza DT, Rego T, organizadores. Psicologia, educação e as temáticas da vida contemporânea. São Paulo: Moderna; 2002. p. 159-74. .

O modelo epistemológico baseado exclusivamente na razão remonta à própria emergência do pensamento científico moderno. A valorização da objetividade, feita por meio do desvelamento, descoberta e manipulação precisas do objeto, com a incessante busca de se retirar as interferências do observador, tem sido realizada desde a construção do método analítico, alcançando sua consagração no século XIX, no chamado círculo de Viena, berço do positivismo lógico. A busca de uma linguagem unificada para a ciência dependia de uma reificação do objeto e de uma busca precisa de sua compreensão 44. Maia CA. Mannheim, Fleck e a compreensão humana do mundo. In: Condé MLL, organizador. Ludwik Fleck, estilos de pensamento na ciência. Belo Horizonte: Fino Traço; 2012. .

O filósofo Rorty 55. Rorty R. Objetivismo: relativismo e verdade. Escritos filosóficos. 2a ed. Rio de Janeiro: Reluma Dumará; 1997. denomina a tradição positivista de objetivista. Para esse autor, a cultura ocidental vem sendo centrada na busca pela “verdade”, presente desde os filósofos gregos, sendo o exemplo mais claro da tentativa de encontrar um sentido para a existência, a partir da negação das emoções em direção à objetividade. Para serem considerados racionais, os procedimentos de justificação precisam conduzir à “verdade”, à correspondência com a realidade, à natureza intrínseca das coisas. Essa objetividade não é construída por meio da compreensão de nós mesmos como membros de algum grupo real ou imaginário, mas pela nossa vinculação a algo que pode ser descrito sem referência a nenhum ser humano em particular (p. 37).

A influência desse modelo positivista sobre o modus operandi da ciência e sua contínua retroalimentação pelas vias educacionais reafirmam o mito da objetividade que se estabeleceu como elemento fulcral na constituição das atividades profissionais contemporâneas, especialmente por meio de sistemas burocráticos e da tendência tecnicista na educação. Objetivos aplicáveis em comportamentos observáveis, regras de conduta e práticas generalizáveis buscam uma isenção objetiva que visa “excluir” as interferências do observador sobre o objeto, favorecendo o controle e a uniformização 11. Gauthier C, Tardif M. A pedagogia: teorias e prática da antiguidade aos nossos dias. Petropolis. Rio de Janeiro: Vozes; 2010. .

Mesmo após a educação formal ter-se focalizado nas ciências e no racionalismo, a prática educacional manteve-se centrada no professor e baseada na repetição, na disciplina e no controle.

Uma tradição secular nas práticas educacionais

Nas escolas das sociedades ocidentais, as ideias e valores da Pedagogia Clássica atravessaram, sem questionamentos, a idade média e a moderna, até meados do século XVIII. A consolidação dessa tradição passou pela educação medieval escolástica, que pretendia conciliar fé e razão, e pelos pensamentos humanista e iluminista da idade moderna (1453-1789), que sobrepuseram a razão à religião 11. Gauthier C, Tardif M. A pedagogia: teorias e prática da antiguidade aos nossos dias. Petropolis. Rio de Janeiro: Vozes; 2010.,22. Gadotti M. História das ideias pedagógicas. 6a ed. São Paulo: Ática; 1998. .

Os valores do Iluminismo enalteceram a liberdade individual e se opuseram ao obscurantismo da Igreja e à prepotência dos governos absolutistas 33. Arantes VA. A afetividade no cenário da educação. In: Oliveira MK, Souza DT, Rego T, organizadores. Psicologia, educação e as temáticas da vida contemporânea. São Paulo: Moderna; 2002. p. 159-74. .

Como reação ao período anterior, de grande concentração do poder no clero e na nobreza, o racionalismo buscou libertar o pensamento da repressão imposta pelo medo do desconhecido e do sobrenatural. Neste sentido, a comprovação de descobertas científicas e a conquista de outros continentes ampliaram o valor da experiência e o papel da objetividade como alicerces da razão e contraponto à crença e ao sobrenatural.

Entretanto, na Pedagogia Clássica, as necessidades, os campos de interesses e o contexto sociocultural dos estudantes não influenciavam a seleção de conteúdos, uma vez que os docentes já sabiam o que deveria ser ensinado e conheciam todas as respostas para supostas perguntas 11. Gauthier C, Tardif M. A pedagogia: teorias e prática da antiguidade aos nossos dias. Petropolis. Rio de Janeiro: Vozes; 2010.,22. Gadotti M. História das ideias pedagógicas. 6a ed. São Paulo: Ática; 1998. .

Somente no fim do século XIX e início do século XX o movimento denominado “Pedagogia Nova” ou “Escola Nova” passou a apontar as limitações e inadequações da Pedagogia Clássica e a importância do uso de metodologias baseadas na experiência e maior proatividade dos estudantes. Embora inovador por ser centrado nas necessidades dos estudantes, o movimento escolanovista teve baixa adesão em relação ao modelo tradicional, em função das mudanças nos papéis e na relação professor-aluno e da necessidade de redução do número de estudantes por classe, com maior disponibilização de recursos educacionais 11. Gauthier C, Tardif M. A pedagogia: teorias e prática da antiguidade aos nossos dias. Petropolis. Rio de Janeiro: Vozes; 2010.,22. Gadotti M. História das ideias pedagógicas. 6a ed. São Paulo: Ática; 1998. .

A ciência e a educação na saúde

As áreas de conhecimento que implicam intervenções no mundo, para além do objetivo de conhecer, podem ser consideradas como áreas de “ciência aplicada”; nelas, as regras gerais devem ser adaptadas às “situações concretas” 11. Gauthier C, Tardif M. A pedagogia: teorias e prática da antiguidade aos nossos dias. Petropolis. Rio de Janeiro: Vozes; 2010. (p. 362). Nesse contexto, profissões cuja prática representa uma ciência aplicada, que envolve a dimensão afetiva das pessoas e suas relações com o mundo, deveriam valorizar o desenvolvimento de capacidades cognitivas e afetivas dos educandos, por meio de uma abordagem que possibilite a interconexão das múltiplas dimensões envolvidas nas práticas laborais.

Em relação ao campo da Saúde, há uma tensão entre as concepções de ciência básica e aplicada. A tradição positivista da ciência básica dificulta o reconhecimento dos elementos transversais e fundantes do comportamento humano que se conectam à dimensão biológica e atravessam o processo saúde-doença. Nesse sentido, tão importantes quanto a identificação de necessidades vinculadas à dimensão biológica são aquelas relacionadas ao componente subjetivo e social que condicionam tanto a produção de saúde quanto o adoecimento das pessoas.

Embora possamos reconhecer movimentos de indução à formação de profissionais de saúde com um perfil mais holístico no tocante ao cuidado integral das pessoas 66. Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ/IMS, ABRASCO; 2006. , esse processo mostra dificuldades em gerar respostas com a rapidez necessária ao enfrentamento dos desafios do mundo do trabalho. Dessa forma, a capacitação de profissionais inseridos no sistema de saúde tem sido uma demanda incontestável para a gestão de pessoas.

Para o enfrentamento do desafio de capacitar profissionais de saúde inseridos no mundo do trabalho, há iniciativas educacionais voltadas ao desenvolvimento de novas capacidades, nos âmbitos da graduação 77. Ministério da Saúde (BR). Ministério da Educação. Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde – Pró-Saúde: objetivos, implementação e desenvolvimento potencial. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. e da pós-graduação 88. Ministério da Saúde (BR). Portaria GM/MS nº 3276 de dezembro de 2007. Dispõe sobre as regras e critérios para apresentação, monitoramento, acompanhamento e avaliação de projetos do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS). Diário Oficial da União. 27 Dez 2013. . Essas inciativas visam ampliar tanto a compreensão quanto as possibilidades de intervenção nos fenômenos de saúde-doença, no sentido da promoção de um cuidado integral.

A integração das dimensões humanas

Na esteira do resgate e reconhecimento das emoções como parte integrante do modo como os seres humanos se relacionam e produzem sua cultura, podemos identificar alguns autores que, por meio de investigações e intervenções nos campos da pedagogia, psicologia, medicina e sociologia trouxeram novas evidências sobre a participação das emoções no processo de aprendizagem. Embora existam diferenças entre as concepções que abordam as emoções nesse processo, destacamos dois consensos referentes ao valor atribuído à exploração da dimensão emocional nas interações humanas e à valorização da indissociabilidade entre as dimensões afetiva e racional. Nesse contexto, as teorias psicogenéticas de Piaget, Vygostsky e Wallon tiveram um importante papel na valorização da emoção no desenvolvimento e na aprendizagem humanas 99. La Taille Y, Oliveira MK, Dantas H. Piaget; Vygotsky; Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus; 1992. .

Para Piaget 1010. Piaget J. Biologia e conhecimento: ensaio sobre as relações entre as regulações orgânicas e os processos cognoscitivos. Petrópolis: Vozes; 1973. , afetividade e moral se conjugam harmoniosamente com a razão e, nesta relação, destaca que “[...] toda conduta, qualquer que seja, contém sempre um aspecto energético ou afetivo e um aspecto estrutural ou cognitivo” (p. 266). De acordo com esse autor, o desenvolvimento afetivo, assim como o cognitivo, ocorre em etapas que constroem o caráter moral, em uma relação entre a autonomia do sujeito e as regras sociais 1111. Piaget J. O juízo moral na criança. São Paulo: Grupo Editorial Summus; 1994. .

Vygotsky 1212. Vygotsky LS. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes; 1999. , por outro lado, destaca o caráter histórico e social no desenvolvimento das emoções e explora a mútua influência dos processos cognitivos e afetivos. Segundo Rego 1313. Rego TC. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. Petrópolis: Vozes; 2013. , para esse autor, os “[...] desejos, necessidades, emoções, motivações, interesses e inclinações do indivíduo dão origem ao pensamento e este, por sua vez, exerce influência sobre o aspecto afetivo-volitivo” (p. 122).

De modo mais específico, Wallon 1414. Wallon H. Do ato ao pensamento: ensaio de psicologia comparada. Petrópolis: Vozes; 2015. diferencia emoção e afetividade. Para ele, as emoções apresentam um componente fundamentalmente orgânico na interação entre os sujeitos e o meio, sendo capazes de produzir impacto nas outras pessoas e de se propagarem no meio social; a afetividade, por sua vez, é simultaneamente social e biológica, sendo que a forma mais profunda de aprender ocorre com envolvimento afetivo 1515. Galvão I. Henri Wallon: uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. 23a ed. Petrópolis: Vozes; 2014. .

Esse arcabouço teórico fundamentou a teoria interacionista da educação, que explica o fenômeno da aprendizagem pela interação entre sujeitos e o mundo 1616. Becker F. Educação e construção do conhecimento. 2a ed. Porto Alegre: Penso; 2012. . Segundo essa concepção, tanto a razão quanto a afetividade são construídas por meio da interação entre os sujeitos e da interação destes com o mundo e, a partir delas, transformam-se e reinventam-se como entidades distintas e, ao mesmo tempo, indissociáveis 1616. Becker F. Educação e construção do conhecimento. 2a ed. Porto Alegre: Penso; 2012. .

Mais recentemente, autores do campo da neurociência, como Damásio 1717. Damasio A. O erro de Descartes: emoção razão e o cérebro humano. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2006. e LeDoux 1818. LeDoux JE. The emotional brain. New York: Simon and Schuster; 1996. , e da psicologia, como Fridja 1919. Fridja NH. The psychologists’ point of view. In: Lewis M, Haviland-Jones JM, Barret LF, editors. Handbook of emotions. 2nd ed. New York: Guilford Press; 2000. e Goleman 2020. Goleman D. Emotional intelligence: issues in paradigm building. In: Cherniss C, Goleman D, editors. The emotionally intelligent workplace. San Francisco: Jossey-Bass; 2001. p. 13-26. , aprofundaram o estudo das emoções como um componente constituinte das pessoas e parte integrante do processo de ensino-aprendizagem 2121. Bransford JD, Brown AL, Cocking RR, editors. How people learn: brain, mind, experience and school. Washington: National Academy Press; 2001. . Embora estes estudos tragam novas informações sobre os fenômenos e mecanismos que subjazem a interação entre emoção e razão, Maturana 2222. Maturana HR. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Ed. da UFMG; 2001. considera que pertencemos a uma cultura que ainda confere ao racional uma validade transcendente, enquanto atribui às emoções um caráter arbitrário.

No bojo desta e de outras tensões; por exemplo, entre objetivo e subjetivo; e entre ciência e arte, emerge a teoria da complexidade, que, de acordo com Morin 2323. Morin E. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2003. , liga, contextualiza e globaliza saberes e perspectivas até então considerados antagônicos ou ambíguos. Assim, o pensamento complexo permite articular disciplinas e dimensões de um modo mais sistêmico e holístico, tratando aspectos aparentemente antagônicos de um determinado fenômeno como complementares.

Dispositivos voltados à integração emoção-razão

A escolha e organização de dispositivos voltados à integração emoção-razão se fundamentam: (i) na educação interacionista, que reconhece as emoções como parte integrante das pessoas que se relacionam e produzem cultura; (ii) nas metodologias ativas, que requerem proatividade, engajamento, colaboração e cooperação dos educandos no processo de aprender; (iii) na aprendizagem significativa, que implica a construção de sentidos frente a um determinado objeto ou conteúdo; e (iv) no pensamento complexo, que requer o diálogo entre dimensões aparentemente antagônicas e contraditórias. Nesse contexto, a aprendizagem é um processo que conduz “[...] à integração, modificação, estabelecimento de relações e coordenação de esquemas de conhecimento que já possuímos, dotados de uma certa estrutura e organização que varia, em vínculos e relações, a cada aprendizagem que realizamos” 2424. Coll C. Psicologia e currículo: uma aproximação psicopedagógia à elaboração do currículo escolar. 5a ed. São Paulo: Ática; 1987. (p. 20).

A partir deste referencial, destacamos um dispositivo que favorece a explicitação de emoções que subjazem às racionalidades. A arte cinematográfica associada ao uso de metodologias ativas, em diálogo com o perfil profissional, é a base das atividades chamadas de “viagem educacional”. Estas têm sido utilizadas com três propósitos principais: explicitar emoções e sentimentos; identificar o impacto que as emoções produzem e sua articulação com racionalidades; e fazer dialogar emoção e razão com o perfil de competência profissional em processos de capacitação.

Comparado outros métodos, o uso de filmes tornou-se um profícuo campo de estudos com vantagens destacadas por diversos autores 2525. McHugo GJ, Smith CA, Lanzetta JT. The structure of self-reports of emotional responses to film segments. Motiv Emot. 1982; 6(4):365-85.,2626. Westermann R, Spies K, Stahl GU, Hesse F. Relative effectiveness and validity of mood induction procedures: analysis. Eur J Soc Psychol. 1996; 26(4):557-80. entre as quais tem-se: facilidade de aplicação em cenário educacional; potência de determinados trechos para produzirem alterações subjetivas e, inclusive, fisiológicas; e amplo e dinâmico escopo das cenas cinematográficas que fornecem um modelo simulado da realidade, sem os problemas éticos e práticos da vida real.

Uma meta-análise conduzida por Westermann, Spies, Stahl e Hesse 2626. Westermann R, Spies K, Stahl GU, Hesse F. Relative effectiveness and validity of mood induction procedures: analysis. Eur J Soc Psychol. 1996; 26(4):557-80. mostrou que, entre outras técnicas, os clipes de filme são indutores mais potentes, tanto de estados de humor positivos como negativos. A mais ligeira perturbação em nossas retinas e nos tímpanos, ou mesmo a visita de uma memória inesperada, pode disparar instantâneas alterações emocionais. E com elas, alteram-se as possíveis operações sobre a nova configuração que se estabelece no sistema nervoso. Medo, alegria, solidariedade, nojo, inveja e ciúmes são alguns entre tantos estados emocionais que podem emergir nessa interação.

A escolha do termo “viagem educacional” visa potencializar a ideia de singularização esperada na interação de cada educando com o disparador utilizado na atividade educacional. Também nele está contemplado o absoluto respeito à interpretação e associações singulares realizadas pelos participantes, no sentido do amplo entendimento de que estas são originadas nos esquemas construídos pelo sujeito em experiências prévias 2727. Padilha RQ, Lima VV, Pereira SMSF, Siriane MO, Ribeiro ECO, Petta HL, et al. Metodologias Ativas. Caderno do curso. São Paulo: Instituto Sírio-Libanês de Ensino e Pesquisa; 2016. .

Na maior parte das vezes, os disparadores das viagens são filmes escolhidos pelos docentes segundo uma determinada intencionalidade educacional, embora haja a utilização de outros dispositivos originados pela criatividade e talentos de educandos e docentes envolvidos, como: dramatizações, produções musicais, dança e poesia, entre outros. Quando o disparador é um filme, a atividade é chamada de cineviagem; para dispositivos que envolvem maior expressão corporal ou sensorial dos participantes, utilizamos a denominação de instalações 2727. Padilha RQ, Lima VV, Pereira SMSF, Siriane MO, Ribeiro ECO, Petta HL, et al. Metodologias Ativas. Caderno do curso. São Paulo: Instituto Sírio-Libanês de Ensino e Pesquisa; 2016. .

Nessa ação educacional, destacamos cinco características que favorecem a integração da razão e emoção. A primeira: o real deixa de ser uma petição de obediência e passa a ser uma possiblidade coordenada na linguagem. No que diz respeito à prática pedagógica, o foco sai do docente e da transmissão instrutiva para a construção de saberes, que integra diferentes dimensões constitutivas (emocionais, históricas, culturais) tanto do educando quanto de outros envolvidos na dinâmica educacional 2828. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática pedagógica. São Paulo: Paz e Terra; 2011. .

O processo conversacional é um substrato fundamental para o tensionamento do já conhecido e para a emergência de novas concepções. Quando o foco sai do objeto e vai para a interação, a forma de avaliação da eficácia do processo educacional não é mais a aproximação a um conhecimento ideal, onisciente, universal, mas sim uma avaliação da mobilização de capacidades para enfrentar, com sucesso e de modo contextualizado, os problemas da prática 2828. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática pedagógica. São Paulo: Paz e Terra; 2011. .

A segunda: a confiança no desenvolvimento das capacidades para aprender a aprender e do raciocínio crítico reflexivo dos educandos. Essa postura liberta os professores da necessidade de transmitir toda a extensão de conteúdos considerados necessários e favorece a oferta de atividades que promovam a ampliação da busca por informações, associada à análise crítico-reflexiva e contextualização das mesmas. Não significa abrir mão da intencionalidade educacional ou, ainda, da organização de atividades e elaboração de disparadores do processo ensino-aprendizagem, entretanto, requer o deslocamento de foco dos conteúdos, exclusivamente selecionados pelo professor, para incluir as necessidades de aprendizagem dos educandos, segundo os problemas a serem enfrentados 1212. Vygotsky LS. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes; 1999.,2222. Maturana HR. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Ed. da UFMG; 2001.

23. Morin E. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2003.
-2424. Coll C. Psicologia e currículo: uma aproximação psicopedagógia à elaboração do currículo escolar. 5a ed. São Paulo: Ática; 1987.,2929. Lima VV. Espiral construtivista: uma metodologia ativa de ensino-aprendizagem. Interface (Botucatu). 2017; 21(61):421-34. .

A terceira: a utilização do contexto como recurso para potencializar a aprendizagem significativa. Essa articulação se apoia no reconhecimento da utilidade dos saberes a serem aprendidos e no favorecimento da transferência dessas aprendizagens para uma nova situação. No formato de situações prevalentes no exercício profissional, os desafios educacionais devem ser apresentados do modo como se apresentam no cotidiano 2121. Bransford JD, Brown AL, Cocking RR, editors. How people learn: brain, mind, experience and school. Washington: National Academy Press; 2001.,2323. Morin E. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2003. .

A quarta: o desenvolvimento concomitante de capacidades para o uso do método científico e para a identificação e compreensão das emoções, dos valores e preferências que subjazem nossas racionalidades possibilitam o acesso e a problematização de esquemas cognitivos e emocionais previamente estabelecidos e que, como elemento isolado, pode ser considerado o componente mais influente no processo de aprendizagem 1414. Wallon H. Do ato ao pensamento: ensaio de psicologia comparada. Petrópolis: Vozes; 2015.,2222. Maturana HR. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Ed. da UFMG; 2001.,2424. Coll C. Psicologia e currículo: uma aproximação psicopedagógia à elaboração do currículo escolar. 5a ed. São Paulo: Ática; 1987. .

Por último: o uso de estratégias de metacognição da aprendizagem favorece o reconhecimento de facilidades e dificuldades, permitindo uma abordagem singularizada para o acompanhamento do desenvolvimento de cada educando, embora grande parte do processo ocorra em pequenos grupos, nos quais a colaboração e a cooperação expressam o investimento na construção de novas racionalidades e sentimentos, por meio das interações 2121. Bransford JD, Brown AL, Cocking RR, editors. How people learn: brain, mind, experience and school. Washington: National Academy Press; 2001. .

Os movimentos da viagem educacional

As viagens educacionais são desenvolvidas em dois movimentos: o primeiro, em grande grupo, destinado à exposição dos participantes à vivência; e o segundo, em pequenos grupos, destinado ao compartilhamento de emoções e sentimentos mobilizados pela atividade. No primeiro movimento, o foco da atividade se concentra na mobilização de emoções, consideradas ações corporais, passíveis de serem externamente observadas, uma vez que expressam um conjunto de alterações no estado físico do corpo, como na respiração, na circulação, na voz, na expressão facial ou em outras posturas corporais. No segundo movimento, o foco se volta para os sentimentos, que representam a experiência invisível, de caráter mental, relacionada à percepção ou interpretação das emoções expressas pelas ações corporais.

Cabe destacar que nem todos os sentimentos são diretamente provenientes das emoções, uma vez que, para além da percepção do estado corporal, criada pelos objetos ou situações, aqueles também podem ser derivados da subjetividade no contato com objetos e dos pensamentos gerados nesse processo 1919. Fridja NH. The psychologists’ point of view. In: Lewis M, Haviland-Jones JM, Barret LF, editors. Handbook of emotions. 2nd ed. New York: Guilford Press; 2000. .

Sempre que possível, sugerimos a realização do primeiro movimento como última atividade em um determinado dia e o compartilhamento como atividade subsequente ou primeira do dia seguinte. Realizado no dia seguinte, o compartilhamento da viagem busca promover um breve espaço individual para reflexão, sem perder o “calor” e a memória da mobilização desencadeada pela interação com o disparador.

A utilização de pequenos grupos para o compartilhamento dos sentimentos disparados pela viagem visa ampliar as possibilidades de interação entre os sujeitos, a partir de um determinado conteúdo acessado pela emoção. Os pequenos grupos são comunidades de aprendizagem, acompanhados por professores, que desenvolvem atividades em um programa educacional. Como essas atividades envolvem um trabalho coletivo, há a necessidade de serem estabelecidos pactos para o trabalho didático. Os pactos devem explicitar a promoção de um ambiente seguro, sigiloso e de confiança mútua, particularmente favorável ao compartilhamento de emoções e sentimentos.

Em termos operacionais, o professor deve iniciar o momento de compartilhamento com orientações em relação ao registro das emoções ou sentimentos. Deve solicitar que cada educando registre em uma folha de papel ou em uma cartolina colorida uma ou poucas palavras que expressem suas emoções e/ou a atribuição de significados promovidos pelo disparador. Somente após esse registro, os participantes expressam verbalmente as associações ou interpretações representadas pelas palavras registradas. O papel do facilitador é importante para assegurar que todos os educandos possam ter espaço de fala e serem respeitados no compartilhamento dos significados percebidos ou em construção.

As folhas ou cartelas coloridas, que por si só expressam diversidade, devem ser fixadas em um mural ou painel, que pode ser a própria parede da sala do pequeno grupo. A colocação das tarjetas cumpre o papel de ampliar a visibilidade das emoções, não havendo uma ordenação ou categorização específica para isso. Como esse recurso visual também é utilizado para atividades que predominantemente mobilizam o domínio cognitivo, o uso das cartelas ou tarjetas para registrar emoções ganha, por meio desse recurso, o mesmo status do domínio hegemonicamente privilegiado.

Além desses aspectos, o mural comunica que aquele conjunto, embora individualmente originado, passa, em alguma dimensão, a pertencer ao grupo. Nesse sentido, os próximos movimentos são fundamentais e definidores do modo como o grupo se relaciona com os conteúdos explicitados.

Cada um dos integrantes explica as palavras ou expressões que escolheu para representar as emoções e sentimentos disparados no contato com a produção artística, visando torná-las mais conscientes e reflexivas. Questionamentos sobre a pertinência dos sentimentos expostos são desencorajados, e essa condução visa favorecer a ampliação do grau de liberdade de expressão nesta atividade. Entretanto, o impacto que a emoção dos demais participantes dispara em cada um pode e deve ser, igualmente, compartilhada. A partir do reconhecimento de caráter de propagação da emoção no meio social, cada um de nós nos construímos na interação com outros e, por meio dessa interação, podemos desenvolver a construção de padrões éticos de convivência social.

Para além do compartilhamento, o processo reflexivo pode ganhar maior densidade ao ser solicitada, ao fim da atividade, a elaboração de uma narrativa reflexiva individual que dialogue com as reflexões produzidas com a proposta de perfil de competência que orienta a iniciativa educacional. Essa narrativa usualmente é compartilhada com o docente em momentos específicos, destinados ao acompanhamento do portfólio de cada educando.

Uma abordagem pedagógica para apoiar o compartilhamento da viagem

Com base no repertório construído a partir do compartilhamento de viagens educacionais, da taxonomia de Krathwohl et al. 3030. Krathwohl DR, Bloom BS, Masia BB. Taxonomy of educational objectives: handbook II: affective domain. New York: McKay; 1964. do domínio afetivo, dos campos de significado de Phenix 3131. Phenix PH. Realms of meaning. New York: McGraw-Hill Book Co; 1964. e da experiência de outros autores acerca de conteúdos de humanidades na formação em saúde 3232. Tapajós R. Objetivos educacionais na pedagogia das humanidades médicas: taxonomias alternativas (campos de significado e competências). Rev Bras Educ Med. 2008; 32(4):500-6. , apresentamos uma abordagem para apoiar a reflexão sobre emoções e racionalidades.

Diferentemente da taxonomia de Krathwohl et al. 3030. Krathwohl DR, Bloom BS, Masia BB. Taxonomy of educational objectives: handbook II: affective domain. New York: McKay; 1964. , que é uma categorização hierárquica do domínio afetivo, os campos de significado de Phenix 3131. Phenix PH. Realms of meaning. New York: McGraw-Hill Book Co; 1964. trazem a ideia de categorias que coexistem, de modo complementar. Considerando essas duas referências, construímos um conjunto de categorias que permite apoiar a identificação da natureza das conversações de participantes e grupos que exploram suas emoções e racionalidades. O reconhecimento dessas categorias favorece a identificação de necessidades de aprendizagem, à luz de um determinado perfil profissional, em permanente construção.

Assim, nos âmbitos individual e grupal, a natureza das conversações no compartilhamento das viagens educacionais pode apresentar, predominantemente, um dos seguintes caráteres:

  • Descritivo – Ocorre quando os educandos descrevem ou fazem uma resenha do disparador. Embora possamos reconhecer que, mesmo quando descrevemos uma situação, fazemos uma seleção daquilo que relatamos, essa narrativa tende a revelar uma percepção bastante superficial dos sentimentos e de como as emoções interferem na nossa racionalidade ou, ainda, de como esta é utilizada para justificar ou negar nossas preferências, sem que desse processo tenhamos consciência.

  • Simbólico – Ocorre quando o compartilhamento é trazido a partir de uma identificação de significados que a obra supostamente contém. Há uma tentativa de interpretação da intencionalidade do autor ou do educador que selecionou o disparador. Os educandos estabelecem uma correlação direta entre elementos da obra e o que consideram que deveria ser interpretado, sem explicitarem seu próprio julgamento.

  • Valorativo – Ocorre quando os educandos compartilham seu posicionamento crítico em relação à situação abordada pelo disparador ou ao comportamento dos personagens, posicionando-os frente ao próprio conjunto de valores. Nesse padrão de compartilhamento, o educando explicita seus julgamentos, atribuindo valores aos fenômenos ou comportamentos que envolvem conhecimento moral e conduta pessoal e que favorecem o reconhecimento da relação entre racionalidades e emoções.

  • Reflexivo – Ocorre quando no compartilhamento é trazido um diálogo entre o conhecimento de si mesmo e a obra. Nesta natureza de compartilhamento, os próprios valores são reconhecidos e, ao mesmo tempo, tensionados e deslocados no sentido de uma ampliação de identificação e entendimento de valores distintos dos seus. A possibilidade reflexiva tende a problematizar a relação entre racionalidades e emoções, favorecendo a aceitação da diversidade de valores e a iluminação de pontos cegos;

  • Reflexivo emocional – Ocorre quando o compartilhamento revela sentimentos subjacentes disparados pela propagação da emoção de outros participantes no compartilhamento. Para além dos próprios valores e reflexões, são refletidos sentimentos que se conservam nas relações, possibilitando o reconhecimento e um exercício de metalinguagem sobre as emoções, de modo que construa um diálogo com os valores trazidos pelo coletivo de participantes no compartilhamento de suas emoções e sentimentos.

Cabe ao professor, nessa atividade, apoiar o grupo no reconhecimento dos aspectos que predominam no compartilhamento. Essa problematização favorece a identificação de facilidades e dificuldades na exploração do binômio emoção-razão e promove o desenvolvimento de uma autonomia colaborativa entre os participantes que permite revelar os fundamentos emocionais que subjazem à cultura do grupo.

Esta abordagem não é uma tentativa de esgotar as possibilidades ou de construir uma hierarquia entre as categorias, mas de apoiar docentes e participantes na identificação de potencialidades, limites e desafios na exploração das emoções e das racionalidades construídas nas trajetórias prévias e em processo de reconstrução, considerando-se o desenvolvimento de um perfil de competência profissional.

A potência da viagem como atividade educacional

É na criação de espaços conversacionais, gerados sobre a confiança no potencial da linguagem, que se estrutura a atividade pedagógica aqui apresentada. Esses espaços são instituídos na expressão, respeito e valorização da diversidade e na legitimação do outro na convivência e interação. Segundo Wallon 1414. Wallon H. Do ato ao pensamento: ensaio de psicologia comparada. Petrópolis: Vozes; 2015. , “não existe conceito, por mais abstrato que seja, que não implique alguma imagem sensorial, e não existe imagem, por mais concreta que seja, que não tenha por base uma palavra [...]; é nesse sentido que nossas experiências mais individuais já são moldadas pela sociedade” (p. 223). Assim, nas viagens educacionais, exploramos o papel da estética e da arte na formação, problematizando a indissociabilidade entre razão-emoção na construção de identidade ética e profissional 1414. Wallon H. Do ato ao pensamento: ensaio de psicologia comparada. Petrópolis: Vozes; 2015. .

Em relação ao papel da Arte na formação profissional, Castro 3333. Castro A. Inversão da verdade: notas sobre o nascimento da tragédia. Kriterion. 2008; 49(117):127-42. destaca a frase do filósofo Nietzsche: “Nós temos a arte a fim de não morrer de verdade” (p. 2). Nessa mesma direção, Guattari 3434. Guatari F. O novo paradigma estético. In: Schnitman DF, Littlejohn S, organizadores. Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas; 1996. chama a atenção que os paradigmas da tecnociência colocam acento em um mundo objetual de relações e funções, pondo sistematicamente entre parênteses os afetos subjetivos, de tal modo que o finito, o delimitado por coordenadas, vem sempre ali, para primar sobre o infinito de suas referências virtuais. Pelo contrário, na arte, a finitude do material sensível converte-se em suporte de uma produção de afetos e perceptos que tende a se afastar dos marcos e coordenadas preexistentes.

Para além das considerações que evidenciam o potencial da arte na melhoria da condição humana, seja ela individual ou relacional, toda proposta de contato dos educandos com uma produção de arte carrega consigo uma intencionalidade pedagógica. No entanto, por mais que os objetivos educacionais do uso de uma obra cinematográfica possam ser explicitados, essa proposição está inerentemente desvestida de qualquer previsibilidade sobre o devir das reflexões que o grupo fará. Ao assistirem a um filme, documentário ou qualquer outra produção artística, os integrantes constroem um mosaico de expressões que registra o conjunto de percepções que o professor não controla. Em contraste com um texto tecnocientífico, que contém universalizações sobre determinado assunto, uma obra cinematográfica ou similar não vem estabelecida de uma “verdade” preexistente. Diferentes concepções emergem, naturalmente, a partir de uma observação reflexiva. Os infindáveis pontos cegos de cada um dos integrantes vão sendo iluminados à luz dos olhares dos outros. Das visões compartilhadas são construídas novas realidades, coordenam-se consensualmente percepções e emoções na linguagem.

Nesse sentido, Maturana 2222. Maturana HR. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Ed. da UFMG; 2001. distingue como objetividade, entre parênteses, o domínio ontológico em que a realidade é uma proposição explicativa. Nenhuma perturbação externa tem o potencial de especificar as mudanças internas, apenas dispara alterações determinadas na própria estrutura daquele que observa. Cada um dos interagentes do processo dialógico tem uma história, interações culturais precedentes e, especialmente, um fluir de emoções cambiantes que determinam as distinções, percepções que emergem no espaço conversacional. Nesta proposta, os integrantes passam a aprofundar as relações e ampliam seu potencial de reconhecimento das emoções que subjazem e se conservam na dinâmica interativa.

No tocante ao cenário para o compartilhamento das emoções emergentes, a organização do compartilhamento em pequenos grupos, dispostos em círculos, traduz uma configuração coletiva propícia às expressões mais horizontalizadas, que valorizam a solidariedade e a colaboração humanas. Comparada aos modelos convencionais de educação – nos quais o professor geralmente ocupa um papel destacado à frente e os estudantes são organizados em fileiras nas quais dividem seus olhares entre o docente e as nucas dos colegas –, a organização do cenário em uma roda de conversações traduz, em si, uma intencionalidade educacional. A configuração em círculo, que inclui o professor, traz elementos que favorecem o resgate daquilo que Maturana 3535. Maturana HR. Ontologia do conversar. In: Magro C, Grasciano ME, Vaz N, organizadores. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Ed. Da UFMG; 2002. p. 195-209. chamou de “ pegajosidad biológica ” e que livremente traduzimos para “visgo biológico”, isto é, o prazer da companhia fruto de nossa deriva filogenética. Para esse autor, nossa espécie é o presente de uma história evolutiva de 3,5 milhões de anos de compartilhamentos: de encontros e interações recorrentes e sustentadas em emoções colaborativas, de aceitação do outro como um legítimo outro, no espaço de convivência 3535. Maturana HR. Ontologia do conversar. In: Magro C, Grasciano ME, Vaz N, organizadores. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Ed. Da UFMG; 2002. p. 195-209. . Destaca, ainda, a emergência da linguagem como um processo de coordenação de condutas em nossa linhagem biológica que só foi possível nesse contexto emocional.

Tomasello et al. 3636. Tomasello M, Carpenter M, Call J, Behne T, Moll H. Understanding and sharing intentions: the origins of cultural cognition. Behav Brain Sci. 2005; 28(5):675-91. propuseram que o evento crítico para a diferenciação entre a cognição e a primata é uma “motivação” exclusivamente humana para compartilhar intencionalidade com outros indivíduos humanos. Como consequência disso, a espécie humana teria desenvolvido complexas formas de colaboração que resultaram nas organizações culturais das sociedades modernas.

Uso da viagem educacional em currículos orientados por competência

Embora a viagem educacional possa ser amplamente utilizada em diferentes iniciativas educacionais, seu uso em currículos orientados por competência potencializa a construção da identidade profissional, uma vez que as situações originadas na interação com outros têm potencial para produzir importantes impactos emocionais.

As situações profissionais a serem enfrentadas no cotidiano do trabalho requerem tanto capacidades cognitivas e psicomotoras como atitudinais. Contrariamente às crenças pregressas de nossa cultura, o pensamento lógico – o raciocínio – que emerge do neocórtex, parte superior e mais recente do cérebro, não evoluiu com a função de se sobrepor às emoções que emergem nas partes mais antigas do cérebro, o sistema límbico 1919. Fridja NH. The psychologists’ point of view. In: Lewis M, Haviland-Jones JM, Barret LF, editors. Handbook of emotions. 2nd ed. New York: Guilford Press; 2000. . Ao contrário, estudos da neurociência mostram que as operações racionais emergem integradas e são indissociáveis daquelas emocionais 1717. Damasio A. O erro de Descartes: emoção razão e o cérebro humano. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2006.

18. LeDoux JE. The emotional brain. New York: Simon and Schuster; 1996.

19. Fridja NH. The psychologists’ point of view. In: Lewis M, Haviland-Jones JM, Barret LF, editors. Handbook of emotions. 2nd ed. New York: Guilford Press; 2000.

20. Goleman D. Emotional intelligence: issues in paradigm building. In: Cherniss C, Goleman D, editors. The emotionally intelligent workplace. San Francisco: Jossey-Bass; 2001. p. 13-26.
-2121. Bransford JD, Brown AL, Cocking RR, editors. How people learn: brain, mind, experience and school. Washington: National Academy Press; 2001. .

Nesse sentido, Maturana 3737. Maturana HR. Biologia do fenômeno social. In: Magro C, Grasciano ME, Vaz N, organizadores. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Ed. da UFMG; 2002. p. 195-209. define as emoções como predisposições corporais que fundamentam os domínios de ação. Mudam as emoções, alteram-se as operações, o modo de pensar e inclusive as concepções de realidade. Não se trata de usar a racionalidade para que haja uma percepção mais clara e aproximada da objetividade pretendida, ou seja, a apreensão “real” do objeto, ou qualquer situação externa ao observador.

De acordo com a concepção desse autor, o que outrora se distinguia como uso da razão, em contraposição aos ruídos passionais, nada mais é do que a abertura para mudanças emocionais; para a emergência de novas emoções capazes de sustentar outros padrões de raciocínio. A racionalidade operada sobre a raiva diferencia-se quando se processa sob o domínio da serenidade. Operações racionais construídas com base no ciúme ou inveja emergem de forma substancialmente diferentes quando acontecem, por exemplo, sob o domínio da confiança 3737. Maturana HR. Biologia do fenômeno social. In: Magro C, Grasciano ME, Vaz N, organizadores. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Ed. da UFMG; 2002. p. 195-209. .

Finalmente, a construção de identidade ética e profissional é favorecida pelas reflexões produzidas pela viagem em diálogo com o perfil de competência desejado. O compartilhamento dos sentimentos produzidos pela arte abre um espaço que possibilita a distinção de emoções que se entrelaçam na constituição daquilo que Maturana 3838. Maturana HR, Verden-Zöller G. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. São Paulo: Palas Athena; 2004. chamou de cultura, uma rede fechada de conversações.

A capacidade de distinguir as emoções no processo conversacional pode tanto contribuir para a compreensão da cultura que ali emerge quanto ajuda os participantes desta atividade a encontrarem, em seus diálogos, refinamentos de linguagem que os permitam compreender os aspectos emocionais que se conservam de forma recorrente na cultura do grupo. Compreender emoções e racionalidades que compõem a cultura em que estamos imersos, assim como os domínios que sustentam nossas atividades no trabalho, pode descortinar novas práticas, considerando-se o que a sociedade espera de um profissional competente.

Considerações finais

A integração da Arte na educação profissional é uma estratégia não apenas voltada à aproximação da dimensão emocional aos ambientes técnico-científicos e educacionais, mas opera, especialmente, sobre a premissa da indissociabilidade entre razão e emoção.

Ao nos aprofundarmos na compreensão das emoções como predisposições corporais que fundamentam domínios de ação das mais refinadas atividades racionais, vemos emergir um espaço que favorece o desenvolvimento de competência na formação e capacitação profissionais. Imersos em um contexto social de recorrentes expressões de confronto e exclusão, as dinâmicas dialógicas propiciadas pela abordagem pedagógica aqui proposta criam ambientes conversacionais capazes de resgatar comportamentos empáticos.

A confiança de que nossa biologia colaborativa conserva a nossa integração, mesmo em meio à expressão de sentimentos reforçados por uma cultura competitiva e excludente, torna possível utilizar as viagens educacionais como uma ação educacional em disciplinas ou atividades curriculares interdisciplinares específicas, embora seu uso tenha maior potência quando empregada ao longo de um programa ou iniciativa educacional, no sentido de reafirmar a indissociabilidade entre razão e emoção.

Desse modo, ousamos conversar sobre as mais diversificadas emoções e construir condições para que expressões emocionais éticas e solidárias sejam não apenas resgatadas nos momentos reflexivos do contato com as expressões artísticas, mas que também sejam conservadas na dinâmica de outras ações educacionais e, especialmente, disseminadas nos ambientes de trabalho.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Dez 2017
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    12 Out 2016
  • Aceito
    23 Maio 2017
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