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Práticas colaborativas nas urgências em Saúde: a interprofissionalidade do Programa PermanecerSUS, Secretaria Estadual de Saúde da Bahia, Brasil * * Este artigo é parte dos resultados de pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) sob termo de outorga PPP 057/2011.

Prácticas colaborativas en las urgencias en Salud: la interprofesionalidad del Programa “PermanecerSUS”, Secretaría Estadual de Salud de Bahia, Brasil

Resumos

Este artigo apresenta e discute o Programa PermanecerSUS como uma proposta de educação interprofissional (EIP) à formação em Saúde. Possui abordagem qualitativa, sob a perspectiva da Etnografia Institucional (EI). A discussão se respalda no conteúdo registrado no diário de campo construído pelo pesquisador-etnógrafo durante a observação participante em duas unidades de urgência hospitalar, na cidade de Salvador, Bahia, Brasil. Os resultados sugerem que o programa desenvolve competências como o trabalho em equipe, a intercomunicação e a solução de problemas em conjunto entre os estudantes; e proporciona integração educação e trabalho. Entretanto, os desafios do PermanecerSUS estão pautados em proporcionar melhorias na relação comunicacional entre os estagiários e profissionais do serviço e investir na formação dos preceptores do estágio, com perspectivas de mudanças das práticas e impactos à qualidade da assistência nos serviços de saúde.

Educação interprofissional; Colaboração interprofissional; Trabalho em equipe; Aprendizado colaborativo


Este artículo presenta y discute el Programa PermanecerSUS, como una propuesta de Educación Interprofesional para la formación en Salud. Tiene un abordaje cualitativo, bajo la perspectiva de la Etnografía Institucional. La discusión se respalda en el contenido registrado en el diario de campo construido por el investigador-etnógrafo, durante la observación participante en dos unidades de urgencias hospitalarias, en la ciudad de Salvador, en el Estado de Bahia, Brasil. Los resultados sugieren que el programa desarrolla competencias, tales como el trabajo en equipo, la intercomunicación, la solución de problemas en conjunto entre los estudiantes y proporciona integración entre educación y trabajo. No obstante, los desafíos del PermanecerSUS siguen la pauta de proporcionar mejoras en la relación de comunicación entre los pasantes y profesionales del servicio e invertir en la formación de los preceptores de la pasantía, con perspectivas de cambios de las prácticas e impactos para la calidad de la asistencia en los servicios de salud.

Educación interprofesional; Colaboración interprofesional; Trabajo en equipo; Aprendizaje colaborativo


This article presents and discusses the PermanecerSUS Program a proposal of interprofessional education to the formation in Health. It has a qualitative approach in the perspective of Institutional Ethnography. The discussion focuses on the content registered in the field diary constructed by the researcherethnographer during participant observation sessions carried out at the urgent care units of two hospitals located in the city of Salvador, State of Bahia, Brazil. The results suggest that the program develops competencies such as teamwork, intercommunication and joint solution of problems among students, and integrates education and work. However, the challenges of the PermanecerSUS are based on improving the communication relationship between interns and service professionals and investing in the education of internship preceptors, with perspectives of changes in practices and impacts on the quality of care in health services.

Interprofessional education; Interprofessional collaboration; Teamwork; Collaborative learning


Introdução

O modelo público de assistência à saúde no Brasil exige formação de profissionais capacitados para trabalhar em equipe e preparados para enfrentar os desafios do sistema de saúde contemporâneo.

Para Almeida Filho et al. 11. Almeida Filho N, Santana LAA, Santos VP, Coutinho D, Loureiro S. Formação médica na UFSB: I. Bacharelado interdisciplinar em saúde no primeiro ciclo. Rev Bras Educ Med. 2014; 38(3):337-48. , entre os principais desafios na área da formação em saúde, encontramos a fragmentação do ensino em disciplinas, a organização da academia/serviços em departamentos, a divisão técnica do trabalho e a valorização da especialização, o que diverge, portanto, do pensamento complexo e do cuidado integral à saúde propostos por Morin 22. Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5a ed. Porto Alegre: Sulina; 2007. e Lalonde 33. Lalonde M. A new perspective on the health of canadians: a working document [Internet]. Otawa: Minister of Supply and Services of Canada; 1981 [citado 29 Set 2017]. Disponível em: http://www.phac-aspc.gc.ca/ph-sp/pdf/perspect-eng.pdf.
http://www.phac-aspc.gc.ca/ph-sp/pdf/per...
, respectivamente.

Segundo Batista 44. Batista NA. Educação interprofissional em saúde: concepções e práticas. Cad Fnepas. 2012; 2(1):25-8. , a formação para integralidade do cuidado e do pensamento complexo traduzem a compreensão de que a prática em saúde demanda um trabalho que transcende os afazeres individualizados de cada profissão, assumindo a importância da equipe. Esse tipo de configuração possibilita a cooperação para o exercício de práticas transformadoras.

Contudo, conforme nos aponta Frenk et al. 55. Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, Cohen J, Crisp N, Evans T, et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. Lancet. 2010; 376(9756):1923-58. , em quase todos os países a formação não tem sido capaz de superar as desigualdades no campo da Saúde, principalmente por causa da rigidez curricular, das dificuldades profissionais, da pedagogia estática, da falta de adaptação às necessidades sociais e do mercantilismo nas profissões.

Nesse cenário, a Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2010, publicou o documento Framework for Action on Interprofessional Education and Collaborative Practice 66. World Health Organization. Framework for action on interprofessional education and collaborative practice: report of a WHO Study Group Health Professions Network Nursing and Midwifery Office within the Department of Human Resources for Health. Geneva: WHO; 2010. , no qual ratificou que, para o alcance da agenda da saúde global, há a necessidade em maximizar o potencial dos profissionais de saúde por meio de uma colaboração entre profissionais de diferentes campos do conhecimento, suscitando perspectivas de desenvolvimento de EIP nas universidades e nos centros de pesquisas.

Por EIP, a OMS 66. World Health Organization. Framework for action on interprofessional education and collaborative practice: report of a WHO Study Group Health Professions Network Nursing and Midwifery Office within the Department of Human Resources for Health. Geneva: WHO; 2010. define como o aprendizado entre duas ou mais profissões com a finalidade de promover e alcançar resultados positivos. Já a prática colaborativa é a aplicação desse aprendizado nas mais diversas ações em benefício dos pacientes e de suas famílias.

Nesse sentido, a Secretaria Estadual de Saúde da Bahia (Sesab), em parceria com três instituições de ensino superior da Bahia, desenvolveu um projeto de reorientação da formação em saúde a partir da Política Nacional de Humanização (PNH) 77. Ministério da Saúde (BR). HumanizaSUS: política nacional de humanização: a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. , pautado na potencialização do acolhimento de práticas humanizadas nos serviços de saúde, do trabalho em equipe e da colaboração interprofissional entre os futuros profissionais da saúde: o PermanecerSUS.

O objetivo deste estudo é, portanto, apresentar e discutir o programa PermanecerSUS como uma proposta de educação interprofissional para formação em Saúde.

De projeto à programa: o PermanecerSUS

Em 2007, a Sesab, por meio da consolidação do Plano Estadual de Saúde da Bahia (PES-BA) 2008-2011 88. Secretaria da Saúde do Estado da Bahia. Plano Estadual de Saúde do Estado da Bahia (PES) 2008-2011. Rev Baiana Saude Publica. 2009; 33 Supl 1:13-87. , criou a linha de ação para fortalecer a gestão do trabalho e da educação permanente em saúde. Dentre outras ações estratégicas, destacamos a implementação do dispositivo do acolhimento presente na PNH (HumanizaSUS) em sete unidades hospitalares da rede própria, por meio do projeto PermanecerSUS.

Finalmente, o “Compromisso 9 – Expandir, qualificar e humanizar a rede de urgência e emergência no SUS-BA” 99. Secretaria da Saúde do Estado da Bahia. Plano Estadual de Saúde do Estado da Bahia (PES) 2012-2015. Rev Baiana Saude Publica. 2012; 36 Suppl 1:1-166. (p. 131), do PES-BA 2012-2015, efetivou o PermanecerSUS como programa e o inseriu em maternidades, urgências e emergências de hospitais da rede estadual.

Assim, a criação do programa PermanecerSUS, em 2008, teve como objetivo central proporcionar vivência aos estudantes da área da Saúde nesses espaços e contribuir para a melhoria dos atendimentos.

No momento, os estudantes são provenientes dos cursos da área da Saúde, como Bacharelado Interdisciplinar em Saúde, Enfermagem, Farmácia, Fonoaudiologia, Fisioterapia, Medicina, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço Social e Saúde Coletiva de diversas universidades e faculdades do estado da Bahia. São regidos por um contrato de estágio extracurricular por vinte horas semanais (16 horas práticas e quatro em educação permanente), recebem bolsa-auxílio de R$ 455,00 e transporte, sendo direcionados aos serviços em grupos de cinco a seis membros e sob a supervisão de um preceptor, que mantém vínculo profissional com a unidade de saúde. Assim, como está disposto no texto-base regimental do PermanecerSUS, há preocupação da coordenação do programa em mesclar os grupos de estágio com as diversas áreas do conhecimento, concebendo uma prática interprofissional.

Cabe-nos ressaltar que esses estagiários utilizam a sua prática para a escuta, afastando-se de procedimentos clínicos e técnicos, com o objetivo de enxergar, compreender e dirimir as situações-problemas que interferem diretamente no atendimento humanizado na rede de atenção à saúde.

Durante os encontros de educação permanente, os estudantes discutem sobre situações diversas, abordando conhecimentos teóricos, políticos e filosóficos, e, sobretudo, compartilhando suas experiências enquanto equipe de saúde.

Outra particularidade pauta-se na dinâmica cotidiana das vivências. Os estudantes, ao chegarem às sete horas para o plantão matutino e uma hora para o vespertino, concentram-se na sala de apoio do programa, discutem os atendimentos realizados do dia anterior e traçam objetivos para o dia corrente. No fim da jornada, são convidados a registrar no livro de ocorrências os atendimentos e encaminhamentos realizados.

Ainda sobre a dinâmica cotidiana, destacamos o trabalho desenvolvido pelos estudantes no decorrer da sua prática: geralmente, posicionam-se em lugares estratégicos, como na recepção ou no espaço de pré-atendimento. No primeiro momento, o estagiário observa a demanda do usuário no local de realização da ficha de atendimento. Posteriormente, realiza o acolhimento por meio da escuta ampliada, buscando outros dados, como a história pregressa, social e de saúde e doença de cada indivíduo. Em posse dessas informações, direciona o usuário para o ambiente de atendimento com o profissional de saúde ou indica outro local/unidade de saúde mais adequado para a resolução do problema. O estagiário acompanha o desenvolvimento, a internação e, consequentemente, a alta hospitalar daqueles que terão sua demanda atendida na unidade de saúde em que estão.

Por fim, atualmente, o PermanecerSUS está presente em mais de 15 unidades da rede própria de atendimento da Sesab, desde a atenção básica à alta complexidade, e já capacitou, desde 2008, aproximadamente, novecentos estudantes.

Método, locais e percurso da pesquisa

Por entender a saúde como um campo transdisciplinar 1010. Canesqui AM. Produção científica das ciências sociais e humanas em saúde e alguns significado. Saude Soc. 2012; 21(1):15-23. , que necessita de objetos, práticas e de pesquisas apoiadas em outras ciências de cunho antropológico 1111. Langdon EJ, Follér M-L, Maluf SW. Um balanço da antropologia da saúde no Brasil e seus diálogos com as antropologias mundiais. Anu Antropol. 2012; I:51-89. , optamos por trabalhar com a pesquisa de campo etnográfica, com abordagem qualitativa, sob a perspectiva da EI.

A EI direciona sua investigação para a ocorrência das relações sociais na experiência cotidiana das instituições. Por meio do mapeamento das interconexões entre os aspectos locais da vida cotidiana e os processos de administração governamentais, busca-se relacionar os “textos” (normas, leis) previamente construídos com o fazer diário das pessoas 1212. Devault ML, McCoy L. Institutional ethnography, using interviews to investigate ruling relations. In: Holstein JA, Gubrium JF, editors. Handbook of interview research. Thousand Oaks/London: Sage; 2002.,1313. Campbell M, Gregor FM. Mapping social relations: a primer in doing institutional ethnography. Ontario: Garamonder Press; 2008. . Assim, a EI permite realizar uma análise crítica sobre as relações de poder e das práticas normatizadas presentes nas instituições de saúde, além de contribuir para a formação de uma consciência política dos indivíduos, colaborando para o aumento da reflexão crítica das relações cotidianas no mundo, que envolvem poder e dominação.

Destacamos que esse trabalho é parte do projeto maior “PermanecerSUS: análise dos efeitos de sua implantação para trabalhadores da saúde, usuários e acadêmicos” desenvolvido pelo grupo de pesquisa Promoção e Qualidade de Vida do Instituto de Artes, Ciências e Humanidades Professor Milton Santos, da Universidade Federal da Bahia, entre os anos de 2011 a 2015, e contou com diversas técnicas de coletas de dados: técnica documental, entrevista semiestruturada, grupos focais, observação participante e diário de campo. Contudo, para esse manuscrito, utilizamos os registros do diário de campo durante a observação participante, no período compreendido entre setembro de 2013 a janeiro de 2014 durante as manhãs e tardes em dias úteis, no pronto-socorro (urgência) adulto de dois hospitais gerais públicos, localizados na cidade de Salvador, Bahia, Brasil. Denominamos tais locais como Hospital A e Hospital B. Essas instituições se caracterizam por atender a demanda espontânea e referenciada e possuir diversas especialidades clínicas. O Hospital A é exclusivo para adultos, enquanto o Hospital B atende adultos, urgência pediátrica, obstetrícia e maternidade de alto risco. Em cada hospital, para a observação participante, dispusemos de, aproximadamente, um mês e ١٥ dias.

Ademais, as reflexões aqui trazidas sustentam-se essencialmente na escuta de conversas, situações vividas, comentários informais e do próprio desenvolver das relações, registrados no diário de campo. Conforme Weber 1414. Weber F. A entrevista, a pesquisa e o íntimo, ou por que censurar seu diário de campo? Horiz Antropol. 2009; 15(32):157-70. , o diário de campo “é um instrumento que o pesquisador se dedica a produzir dia após dia ao longo de toda a experiência etnográfica” (p. 157).

Para as anotações da observação participante, não foi utilizado nenhum aparelho gravador, apenas o registro em papel, que posteriormente foi transcrito em documento eletrônico no Microsoft Word® 2013. A construção do diário de campo seguiu o agir das situações; contudo, tínhamos como objetivo principal analisar os impactos do Programa PermanecerSUS para a formação do estudante, futuro profissional de saúde. Assim, voltávamos o nosso olhar para algumas questões centrais, como: Como acontece o trabalho em equipe? Existe colaboração? De que forma o estudante percebe a importância do programa para a sua formação? Existe escuta ao usuário de saúde? As demandas do usuário são atendidas com qualidade? O profissional de saúde compreende as ações do Programa PermanecerSUS?

A pesquisa foi aprovada sob o número 002-11 do Comitê de Ética em Pesquisa, do Instituto de Saúde Coletiva/Universidade Federal da Bahia e seguiu as exigências da Resolução no 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde.

Notas sobre o PermanecerSUS e a interprofissionalidade

Hoje é o quinto dia de observação! Ao transitar pela emergência, percebi um fluxo intenso, macas pelos corredores e vários pacientes aguardando internação. Chegando à sala do PermanecerSUS, estavam todos os estagiários reunidos, discutindo sobre os atendimentos do dia anterior. Um relato me chamou a atenção: uma estudante de Fisioterapia sinalizou a dificuldade que sentiu em solucionar um problema simples de transferência do paciente, com leito já reservado em outra unidade, devido ausência de sinais vitais na ficha inicial, sendo que o profissional do dia se recusava atualizar o relatório, alegando ser obrigação de quem o atendeu no dia da admissão. Depois de algum tempo e com a ajuda de um outro estudante, conseguiram transferir o paciente. (Diário de Campo – Hospital B)

Conforme destacamos no trecho relatado, uma das estratégias adotadas pelo PermanecerSUS é a discussão dos casos atendidos, oportunizando a compreensão dos eventos individuais com as possibilidades de solução e intervenção em equipe. Para Batista 44. Batista NA. Educação interprofissional em saúde: concepções e práticas. Cad Fnepas. 2012; 2(1):25-8. , esse tipo de proposta reitera a importância da discussão dos papéis profissionais, do trabalho em equipe, do compromisso na solução de problemas e da negociação na tomada de decisão, traduzidas como características marcantes da educação interprofissional.

Durante a observação participante, foi possível apreender que os estudantes percebem a importância do PermanecerSUS como indutor de práticas colaborativas e do trabalho em equipe, pois valoriza as diferentes profissões, compreende suas peculiaridades e as integram como parceiras na construção do sistema de saúde. Nesse sentido, Barros e Ellery 1515. Barros ERS, Ellery AEL. Colaboração interprofissional em uma unidade de terapia intensiva: desafios e possibilidades. Rev Rene. 2016; 17(1):10-9. acentuam que a prática do trabalho em equipe só será colaborativa quando houver vivências cotidianas e maior integração entre ensino e trabalho nos centros de formação. Por fim, enquanto proposta de estágio extracurricular para formação, o PermanecerSUS reafirma e suscita nos estudantes a necessidade de incorporar em suas práticas a atenção integral à comunidade, constituindo-se, portanto, como alternativa entre ensino e trabalho.

Acabei de presenciar um caso no corredor: mulher, aproximadamente 50 anos, chegou relatando dores de cabeça, após o atendimento com o médico foi orientada a procurar o serviço de Atenção Básica de seu bairro e fazer acompanhamento com profissional de saúde. A paciente saiu da sala [em voz alta], queixando-se que tivera sido negligenciado atendimento. Após abordagem e esclarecimentos sobre os atendimentos hospitalares, por dois estagiários do PermanecerSUS, a paciente compreendeu o estado, gravidade, de sua patologia e se comprometeu a buscar atendimento na rede básica. (Diário de Campo – Hospital B)

Konder e O’Dwyer 1616. Konder MT, O’Dwyer G. As unidades de pronto-atendimento na Política Nacional de Atenção às Urgências. Physis. 2015; 25(2):525-45. constataram que, no Brasil, um dos grandes problemas dos serviços de urgências hospitalares é a superlotação. Dentre as causas, destacam-se problemas estruturais, políticos, de gestão e de falta de comunicação dos (entre) profissionais da saúde. Podemos comprovar o problema de falta de comunicação por meio do relato da observação participante acima. Certamente, se o profissional que atendeu a usuária tivesse sanado suas dúvidas, ou talvez conduzido para outros colegas, a exemplo dos estagiários do PermanecerSUS, ou ainda se houvesse uma pré-escuta qualificada, como Atendimento com Classificação de Risco (ACCR), evitaria o desgaste emocional e a insatisfação da usuária.

De acordo com Inoue et al. 1717. Inoue KC, Belluci Júnior JA, Papa MAF, Vidor RC, Matsuda LM. Avaliação da qualidade da classificação de risco nos serviços de emergência. Acta Paul Enferm. 2015; 28(5):420-5. , a ACCR emergiu da Política Nacional de Atenção às Urgências 1818. Ministério da Saúde (BR). Política Nacional de Atenção às Urgências. Brasília: Ministério da Saúde; 2003. e se caracteriza como um método que classifica os usuários de acordo com a gravidade do seu caso, reorienta o processo de triagem e possibilita atendimento por prioridades.

Tecidas breve considerações e resguardadas discussões acerca da ACCR, verificamos que o fluxo do atendimento no Hospital B diverge do A:

Permaneci próximo a uma fila que se formava onde estavam alguns pacientes aguardando atendimento. Após ouvir queixas de demora, voltei a atenção à conversa entre duas senhoras: a última que chegava sozinha se queixava de fortes dores no abdômen, o que fez com que a outra, ao perceber que não estava com a ficha de atendimento em mãos, orientasse a procurar um dos estagiários do PermanecerSUS. Este, por sua vez, direcionou a usuária ao lugar correto, para realização da triagem e deste para consequente atendimento de prioridade. (Diário de Campo Hospital A)

No evento acima, evidenciamos que aqueles usuários que chegam ao serviço sozinhos não encontram direcionamento: são eles que construirão o seu próprio itinerário dentro do pronto-socorro hospitalar, o que pode ocasionar contratempos, como insatisfação, superlotação e até mesmo complicações para o tratamento. Outrossim, os direcionamentos por meio da escuta e do acolhimento pelo estagiário do PermanecerSUS permitem a possibilidade de maior satisfação dos usuários e, consequentemente, maior fluidez dos serviços na urgência.

Nessa perspectiva, os estudos de Morphet et al. 1919. Morphet J, Griffiths DL, Crawford K, Williams A, Jones T, Berry B, et al. Using transprofessional care in the emergency department to reduce patient admissions: a retrospective audit of medical histories. J Interprof Care. 2016; 30(2):226-31. e Jakobsen et al. 2020. Jakobsen RB, Gran SF, Grimsmo B, Arntzen K, Fosse E, Frich JC, et al. Examining participant perceptions of an interprofessional simulation-based trauma team training for medical and nursing students. J Interprof Care. 2018; 32(1):80-8. comprovaram que equipes interprofissionais, quando incentivadas a trabalhar juntas, reduzem a admissão hospitalar, aumentam a avaliação positiva de atendimento e desenvolvem competências e habilidades essenciais – como a comunicação – nos serviços de saúde. Assim, a prática colaborativa e o trabalho em equipe, realizados no PermanecerSUS, como estratégias da EIP podem romper os desafios que se encontram na dimensão relacional entre os profissionais de saúde, gestores e usuários nas urgências hospitalares.

Em contrapartida, alguns profissionais efetivos das urgências dos Hospitais A e B não enxergam os estagiários do PermanecerSUS como facilitadores e integrantes da assistência de saúde, o que sugere a não compreensão da efetividade do trabalho em equipe, da prática colaborativa e da interprofissionalidade como ferramentas que auxiliam na dinamicidade do seu trabalho, conforme observamos nos seguintes eventos:

É o meu 22o dia! Como de comum na passagem do plantão entre os estagiários, foi discutida a dificuldade que os mesmos possuem em se relacionar com um dos coordenadores médico do pronto-socorro. Um estudante do curso de Medicina se posicionou contrário à unanimidade do grupo, relatando que sempre é bem recebido. Nessa hora, uma estudante de Serviço Social interferiu: “você é bem-atendido porque, diferente de nós, você usa jaleco branco, com o símbolo de Medicina”. (Diário de Campo – Hospital B)

Curioso com a situação, fui, informalmente, questionar a um estagiário de Medicina o porquê dele usar jaleco branco, divergindo dos outros estagiários, que utilizam jaleco azul, próprio do PermanecerSUS. A resposta que obtive é que recebia maior atenção por parte dos profissionais e dos usuários e que a preceptora não se opunha a tal prática. (Diário de Campo – Hospital A)

Além da não aceitação dos estagiários pelos profissionais, os dois relatos da observação participante deflagram questões essenciais que divergem da integralidade do cuidado e da educação interprofissional.

A primeira é o reconhecimento de um modelo de atenção à saúde centrada ainda na figura do profissional médico, descaracterizando outros profissionais, também necessários ao sistema de saúde. Nesse sentido, Koifman 2121. Koifman L. O modelo biomédico e a reformulação do currículo médico da Universidade Federal Fluminense. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2001; 8(1):49-69. nos alerta de que o desenvolvimento da Medicina moderna tem influenciado um processo de trabalho profissional autônomo e individualista. Em outra perspectiva, os estudos de Silva et al. 2222. Silva KM, Monteiro NF, Pinto JHP. Humanização em saúde: relação entre os profissionais de saúde. Rev Cienc Saude. 2016; 6(2):1-15. reiteram a ausência de comunicação entre esses profissionais com os demais, item essencial para uma relação interprofissional de qualidade.

A segunda é o papel do preceptor do estágio, essencial para o processo de (re)formação e direcionamento dos objetivos do PermanecerSUS. Sobre o preceptor, Correa et al. 2323. Correa GT, Carbone TRJ, Rosa MFAP, Marinho GD, Ribeiro VMB, Motta JIJ. Uma análise crítica do discurso de preceptores em processo de formação pedagógica. Pro-Posições. 2015; 26(3):167-84. apontam que uma das suas funções é a construção de soluções para os problemas surgidos em campo durante a prática de saúde. Os mesmos autores reiteram que os preceptores, em sua maioria, são exímios profissionais técnicos do trabalho que executam na sua área de formação na graduação, como enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas e ou médicos. Contudo, um dos problemas é a capacitação pedagógica, no sentido de promover um processo ensino-aprendizagem que ultrapasse o modelo de transmissão de conhecimento, promova a reflexão sobre as práticas em saúde, favoreça a emancipação dos sujeitos e sobretudo reflita sobre os processos de trabalho.

Ainda sobre os dois relatos, sabendo que não é esse o objetivo principal do presente trabalho, é preciso discutirmos, mesmo que de forma pontual, acerca da representação social do profissional médico e o uso do jaleco branco.

Para Sêga 2424. Sêga RA. O conceito de representação social nas obras de Denise Jodelet e Serge Moscovici. Anos 90. 2000; 8(13):128-33. , “as representações sociais se apresentam como uma maneira de interpretar e pensar a realidade cotidiana [...] desenvolvida pelos indivíduos e pelos grupos para fixar suas posições [...]” (p. 128).

Da mesma forma, Moscovici 2525. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Rio de Janeiro: Vozes; 2013. fundamenta que a representação social se apresenta por meio de objetos simbólicos e significantes. No caso, o jaleco branco e o brasão de Medicina se caracterizam como tal e concernem poder aos dois estagiários do PermanecerSUS, fazendo-os ter mais acesso aos profissionais de saúde e aos usuários, em uma realidade socialmente construída, na qual o profissional médico é o detentor da cura e do alívio do sofrimento. Consideramos tal ação como um desafio do programa, uma vez que contraria as práticas interprofissionais e de comunicação entre os demais profissionais, em uma perspectiva ampliada de saúde.

Por fim, conforme nos aponta Peduzzi 2626. Peduzzi M. O SUS é interprofissional. Interface (Botucatu). 2016; 20(56):199-201. , as profissões não são estáticas, sendo, portanto, dinâmicas e que precisam ampliar seu escopo de prática, na perspectiva de atuar em conformidade com a integralidade do cuidado e com a complexidade dos atores que constituem o Sistema Único de Saúde (SUS).

Considerações finais

Os resultados deste estudo indicam que a proposta de reorientação da formação em saúde, desenvolvida pela Secretaria Estadual de Saúde da Bahia – o Programa PermanecerSUS – concretiza uma experiência promissora de EIP, mantém a prerrogativa do ensino em saúde, baseada na complexidade dos saberes, na integralidade dos sujeitos e no trabalho em equipe, desenvolvendo competências como a resolução de problemas em conjunto e a comunicação interprofissional, essenciais para aqueles que irão e/ou atuarão no SUS. Contudo, os desafios do programa se apresentam na necessidade de criar alternativas para envolver os estagiários com os profissionais do serviço, fazer com que estes compreendam a efetividade da colaboração interprofissional e, por fim, repensar a formação dos preceptores dos serviços, em uma perspectiva de redirecionamento de suas práticas como formador.

Referências

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    Este artigo é parte dos resultados de pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) sob termo de outorga PPP 057/2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2017
  • Aceito
    08 Abr 2018
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