Introdução
As Residências em Saúde em Área Profissional (RAP), nas modalidades Multiprofissional (RMS), Uniprofissional (RUS), ou, ainda, Integradas (RIS), se configuram como um convite para a formação dos profissionais de saúde, no Brasil, para o Sistema Único de Saúde (SUS). Nessa formação, não se pensa apenas no “ser profissional”, mas no “ser sujeito histórico”, cidadão que se implica nos processos sociais vivenciados. Essa implicação deve ser facilitada por uma formação voltada para a transformação da realidade e para o enfrentamento dos dilemas e desafios colocados cotidianamente1.
Ao se discutir sobre possibilidades de Educação Permanente em Saúde (EPS), as Residências em Saúde mostram-se como relevante processo formativo e um dos eixos de ação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde2. A vivência dos programas de Residência em Saúde se configura como uma forma de possibilitar a busca pela integralidade em saúde. Participar de um processo formativo que se baseia na construção articulada de diferentes profissões da saúde, buscando construir um saber comum, onde se agreguem as contribuições dos diferentes núcleos profissionais, efetiva, de fato, uma prática renovadora na saúde3.
No Brasil, um decreto nacional definiu, em 1977, a criação da Residência Médica, modalidade de pós-graduação lato sensu, caracterizada pela formação em serviço. Com o decorrer dos anos, esse passa a ser considerado o “padrão ouro” na especialização médica. A proposta de uma Residência em Saúde multiprofissional surgiu pela primeira vez, no Brasil, em 1978, quando, no Rio Grande do Sul, foi criado um programa que objetivava formar profissionais com uma visão integrada de saúde e com perfil humanista e crítico. A partir da década de 1990, sob orientação dos Fóruns Participativos da Saúde e na condição de importante estratégia na busca da integralidade, começam a surgir diferentes programas de RMS4.
A partir de 2003, houve uma maior interlocução entre Educação e Saúde, com a intenção do governo de oferecer vagas multiprofissionais para o máximo de categorias profissionais, como forma de incentivar o trabalho em equipe e a construção da integralidade do cuidado na formação em saúde. Neste mesmo ano é criada a Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde (SGTES), secretaria do Ministério da Saúde (MS), com o objetivo de gerir especificamente a formação de recursos humanos em saúde4. Então, em 2005, a Lei 11.129 e a Portaria Interministerial MS/MEC Nº 2117 instituem a Residência Multiprofissional em Saúde e a Residência em Área Profissional da Saúde5.
Por RMS podemos compreender os programas em modalidade de ensino de pósgraduação lato sensu, destinados às profissões da saúde, excetuada a médica, sob a forma de curso de especialização, caracterizado por ensino em serviço, com carga horária de 60 horas semanais, duração mínima de dois anos e em regime de dedicação exclusiva. Podendo incluir todas as profissões da saúde6. Em 2014, uma Portaria Interministerial incluiu, ainda, a Física Médica e a Saúde Coletiva7. Para ser caracterizado como RMS, o programa deve ser constituído com, no mínimo, três dessas profissões6.
Nas leis iniciais que regulamentaram tais modalidades de Residência em Saúde, são utilizados os termos “Residência Multiprofissional” e em “Área Profissional” (para uma profissão de saúde), diferenciadas da já existente “Residência Médica”. A partir de 2014, a Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde (CNRMS) passou a se referir àquelas como “RAP”, diferenciando suas modalidades em “Multiprofissional” e “Uniprofissional”. O termo “Residência Integrada” aparece como um modelo de se pensar e fazer as Residências, que só é encontrado em alguns programas, ainda não tendo sido adotado pela CNRMS.
Importante sinalizar que, neste trabalho, optamos por utilizar os termos oriundos da política de criação (RMS e RAP), até por serem mais encontrados na literatura científica nacional. E incluímos o termo RIS, por ser fruto de um programa ao qual estivemos vinculados e por acreditarmos em seu potencial de integração.
Em discussões realizadas em um encontro nacional de Residências – e que contou com a participação de coordenadores, preceptores, apoiadores e residentes multiprofissionais de programas existentes no Brasil em 2006 –, chegou-se à conclusão de que tais programas apresentavam grande variedade de desenhos metodológicos, mas todos, em uníssono, defendiam a utilização de metodologias ativas e participativas, e a EPS como eixo pedagógico central4.
O aumento no número de RIS/RMS/RAP nos últimos anos nos leva a pensar sobre a importância que tais programas de pós-graduação vêm tendo na formação do profissional de saúde no Brasil, pois, a cada ano, são autorizados novos programas. A partir disto, tivemos o objetivo geral de analisar o estado da arte das Residências Integradas, Multiprofissionais e em Área Profissional em Saúde, no período de 2006 a 2016, nas línguas portuguesa, inglesa e hispânica.
Metodologia
Esta pesquisa fez parte da dissertação de mestrado do autor principal8, onde foi realizada uma Revisão Integrativa de Literatura (RINT)9 resgatando o que se tem produzido sobre RIS/RMS/RAP na literatura científica brasileira e internacional, no período de 2006 a 2016, a partir de artigos científicos identificados nas bases de dados SCIELO, LILAC, MEDLINE e Portal de Periódicos da CAPES.
Definimos como descritores de busca dos artigos, a partir de consulta realizada no Medical Subject Headings (MeSH) e nos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS): “Internato não médico” e “Educação de pós-graduação”; “Residência multiprofissional”, como descritor não controlado. E incluímos, a partir de sugestão de Dallegrave e Ceccim10, o termo “Residências em saúde”. Em inglês, utilizamos os termos: “Internship, nonmedical”, “Education, graduation”, “Multiprofessional Residence” e “Residence in Health”. E em espanhol: “Internado no Médico”, “Educación de Posgrado”, “Residencia Multiprofesional” e “Residencia en Salud”.
Utilizamos uma matriz para análise dos artigos, adaptada a partir de um instrumento validado11, composta por: título do artigo, periódico onde foi publicado, ano de publicação, autores e local, palavras-chave, questão da pesquisa, objetivos, sujeitos do estudo, metodologia empregada, principais resultados, principais discussões, principais conclusões e pesquisas futuras necessárias.
A partir da busca realizada, foram encontrados 1.306 resultados, mas somente 109 estavam dentro dos critérios de inclusão estabelecidos: a) artigos publicados em periódicos científicos; b) trabalhos cujo objeto de pesquisa referia-se a programas de Residências em Saúde, nas modalidades RIS/RMS/RAP; c) trabalhos publicados no período de 2006 a 2016, nos idiomas português, espanhol e inglês. E definimos como critérios de exclusão: a) publicações do tipo cartas, resenhas, editoriais, livros, capítulos de livros e boletins informativos; b) artigos que não estivessem disponibilizados on-line, gratuitamente, no formato completo para análise.
Como ferramenta de análise dos dados qualitativos, foi utilizada a Análise Temática, que consiste em descobrir os núcleos de sentido de uma comunicação. A Análise Temática tem a noção de tema como uma afirmação a respeito de um determinado assunto. O tema é uma unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado, segundo a teoria que serve de guia12,13.
Os diversos temas foram extraídos dos artigos científicos a partir de três etapas13: na “pré-análise” do material, realizamos a leitura flutuante dos artigos selecionados, sendo possível tomar conhecimento das principais questões abordadas nos estudos e preencher os aspectos gerais da matriz de análise, que traziam recortes dos textos nas unidades de registro já apresentadas. A “exploração do material” ocorreu após leitura detalhada das matrizes de análise, e, posteriormente, ocorreu a classificação e agregação dos dados em dimensões temáticas, a partir de sentidos semelhantes. O “tratamento e interpretação dos resultados” se deu a partir das dimensões temáticas, onde realizamos interpretações e inferências por meio de aportes teóricos, que deram sustentação ao estudo.
Neste artigo, apresentaremos as dimensões temáticas que abordam os sentidos atribuídos e a organização didática dos programas de RIS/RMS/RAP. A dimensão temática, organização didática das residências, foi dividida em três subtemas: Formatos de implementação e organização das Residências em Saúde; Concepções de ensino -aprendizagem e métodos de avaliação; e Preceptoria e tutoria.
Resultados e discussões
Sentidos atribuídos às Residências em Saúde
Nesta categoria temática, os principais conteúdos dizem respeito às percepções, representações sociais e ideias associadas aos programas de RIS/RMS/RAP. Aqui são apresentados os principais sentidos atribuídos a estas modalidades de pós-graduação.
As RIS/RMS/RAP são programas em crescimento no Brasil e estão se consolidando devido ao seu formato de aprendizagem, agregando ensino e serviço, tendo como finalidade formar profissionais qualificados com foco no trabalho interprofissional e diretrizes para o trabalho no SUS14,15. As RIS/RMS/RAP trabalham com a imersão “no” e “pelo” trabalho16.
O objetivo dos programas de Residência é a capacitação dos profissionais de saúde para que melhor possam atuar em um mundo globalizado, que requer novas formas de trabalho e ações condizentes com as novas tecnologias e necessidades17. Em uma pesquisa sobre motivação para cursar a Residência, todos os residentes ingressaram no programa devido à necessidade de especialização exigida pelo mercado de trabalho18.
As RIS/RMS/RAP “agregam diversos campos de saberes e têm por princípio o ensino, a pesquisa e a intervenção, envolvendo instituições públicas e privadas em todas as regiões do país” (p. 348). Estes programas apresentam, como principal desafio, a superação de limitações decorrentes da formação original dos profissionais, contribuindo para uma atuação contextualizada e comprometida com o SUS19.
Em pesquisa realizada em um programa de residência integrada em saúde, um dos objetivos era formar profissionais para tornarem-se lideranças científicas, políticas e técnicas. Desse modo, percebe-se a finalidade de se prepararem os profissionais para assumirem espaços de assistência nos serviços de saúde, gestão de programas e políticas, além de serem atores na construção do conhecimento20.
Podemos pensar também que as RIS/RMS/RAP devem se constituir como programas de cooperação intersetorial, para favorecerem a inserção qualificada dos jovens profissionais de saúde no mercado de trabalho, criando uma nova cultura de intervenção21,22. O que, algumas vezes, pode ocupar um lugar de disputa nos serviços, com os estagiários dos diferentes cursos de graduação que também ocupam o mesmo espaço físico, insuficiente; ou, mesmo, com os funcionários que se sentem ameaçados, desconsiderados, incomodados e invadidos21. As atividades exercidas pelos residentes podem, em alguns casos, parecer semelhantes às desenvolvidas pelos graduandos em estágio curricular supervisionado23. O que pode gerar uma dubiedade no papel de residente19.
Para se referirem às RMS brasileiras, Dallegrave e Kruse afirmam que são comuns as palavras: “construção inovadora”, “criar novas práticas em saúde”, “transformação das condições de vida”, “modificar a estrutura social”, “novo projeto para a saúde e sociedade” (p. 218)24. Em pesquisa canadense, a maioria dos participantes de um programa de Residência em Farmácia indicou que os projetos de aprendizagem em serviço complementam os programas universitários; a Residência levou a uma maior conscientização sobre as necessidades das pesquisas; houve aumento do seu próprio conhecimento; e as habilidades de comunicação foram aprimoradas25.
Organização didática das Residências em Saúde
Formatos de implementação e organização das Residências em Saúde
O ingresso dos profissionais nos programas de RIS/RMS/RAP, no Brasil, pode ocorrer por meio das seguintes etapas: I) prova objetiva eliminatória (contendo questões divididas entre conhecimentos específicos e comuns); II) avaliação curricular do profissional, e III) entrevista ou prova prática26. Mas não há um padrão sobre esse processo seletivo, que pode variar.
Na realidade americana, foi descrito o formato de seleção para vagas de residência, incluindo: entrevistas, exigência de vinculação com uma instituição de ensino reconhecida e nota global do aluno27. Também foi desenvolvido um formulário de avaliação confiável para os candidatos durante as entrevistas de seleção28.
Em um programa de Residência de Enfermagem americano, enfermeiros de todo o país são entrevistados e selecionados para receberem uma bolsa de estudos de um ano. A Residência contempla uma experiência de pós-graduação em tempo integral, de quarenta horas por semana, e todo candidato já deve ter um mestrado em ciências da Enfermagem29.
Em uma pesquisa americana que investigou 33 programas de Farmácia de um ano, 78,5% permitem que os residentes realizem rodízios em outros locais, se as experiências específicas não estiverem disponíveis no próprio serviço; 87,9% dos programas exigem que os residentes tenham experiência em suporte básico de vida; 84,8% dos programas permitem que seus residentes cumpram funções de preceptoria junto a estudantes, e 72,7% oferecem um estágio em docência. Além disso, a maioria dos programas tinha um componente eletivo obrigatório e exigia que os residentes apresentassem resultados de projetos de pesquisa27.
No Brasil, o Projeto Pedagógico (PP) das RIS/RMS/RAP deve estar em consonância com a PNEPS2,30. Em estudo sobre os PP de RMS, foi encontrada uma diversidade de termos relacionados aos prefixos “multi” e “inter” e aos adjetivos “profissional” e “disciplinar”, e nenhum PP apresentou a definição desses termos e concepções. Os resultados não demonstraram uniformidade entre os programas, revelando uma gama de formatos de organização didática e pedagógica, e diversos sistemas de avaliação31.
É fundamental contar com a articulação de coordenadores, gestores, tutores e preceptores, para traçar uma proposta de ensino-aprendizagem no serviço, por meio de estratégias que possibilitem ao residente uma imersão nos locais de produção do cuidado e colocando, aos trabalhadores, o exercício contínuo de análise do sentido das práticas, propiciando o estabelecimento de ações questionadoras e de ressignificação32.
Os trabalhadores da rede de atenção à saúde, algumas vezes, não participam do processo de implantação das Residências, e muitos residentes, quando chegam às unidades, encontram grande resistência da equipe, que, na maioria das vezes, conhece pouco sobre o programa e convive com uma realidade de sucateamento dos equipamentos e desvalorização do trabalho profissional14,21.
Ao ingressar na Residência, pode ser interessante que, em um primeiro momento, o grupo de residentes passe por um período de observação, para que as intervenções possam ser baseadas nas necessidades da população33. Visto, ainda, que o despreparo inicial para lidar com as variadas demandas pode exigir dos residentes maior esforço e disposição, em um momento de apoio e construção conjunta de referenciais utilizados em sua formação34.
É descrita a necessidade de um “diagnóstico do território” ou “territorialização”, que é um dos pressupostos básicos da dinâmica de trabalho da Estratégia Saúde da Família, para se poder planejar e desenvolver intervenções efetivas, conhecendo a comunidade, os recursos disponíveis, as demandas existentes, a realidade dos usuários, das famílias e das próprias equipes35,36.
As atividades realizadas pelos residentes podem ser organizadas de modo que 50% do período de trabalho sejam dedicados às atividades em equipe e os outros 50% às atividades específicas de cada profissão. Pode ser elaborada uma planilha mensal de produção, para se comparar o impacto do trabalho dos residentes nos serviços37.
Em outra pesquisa, os atendimentos do programa de RMS são realizados de forma conjunta por parte dos profissionais que integram as equipes38. Complementando com um processo coletivo semanal, onde residentes, tutores e preceptores podem discutir casos clínicos, para reavaliação das condutas, e propostas de novas ações39.
O importante é que os residentes possam atuar nos níveis de: promoção da saúde, prevenção de doenças, diagnóstico precoce, adesão terapêutica, redução de agravos, cuidados paliativos, reabilitação, desenvolvimento de pesquisas clínicas, epidemiológicas e sociais, buscando ações interdisciplinares, intersetoriais e interinstitucionais que permitam acesso ao conhecimento requerido pelas especificidades do cuidado40.
As instituições e os serviços de saúde vinculados à formação em RIS/RMS/RAP necessitam realizar trocas de experiências constantes, com o objetivo de qualificar a formação e o trabalho em saúde. Os residentes necessitam participar também de atividades científicas, acadêmicas, sociais e educacionais41.
Por fim, uma estratégia interessante na organização de programas de RIS/RMS/ RAP diz respeito a algumas horas semanais para o encontro do próprio coletivo de residentes. Este coletivo deve ser coordenado pelos próprios residentes e pode realizar diversas atividades temáticas, ou lúdicas, e também de cunho político42.
Concepções de ensino-aprendizagem e métodos de avaliação
Como pode ser possível que profissionais de diversas especialidades se formem com base em um eixo comum?26 De fato, em muitas instituições no Brasil ainda se privilegia um modelo de saúde disciplinar, com prioridade para a formação especializada, organizado sob a égide “flexneriana”, de forma fragmentada, mecanicista, cartesiana e com um modelo biologicamente centrado19,21,43–46.
Considera-se, então, como mudança social, especificamente na política de saúde, “concretizar os paradigmas do ‘fazer saúde’ vinculados aos determinantes sociais, e que negam os informes flexnerianos” (p. 17)43. Este trabalho fragmentado, repetitivo e rotineiro está sendo substituído por novas formas de organização, em um trabalho polivalente, integrado em equipe, com mais flexibilidade e autonomia, um espaço de formação em processo de construção, unindo aprendizagens problematizadoras, trabalho e política19,45.
O processo de trabalho envolve dimensões organizacionais, técnicas, sociais e humanas. Os saberes organizacionais e técnicos são apenas alguns dos aspectos envolvidos na transformação das práticas de saúde. A formação dos profissionais deve envolver aspectos sociais e humanos, como valores, sentimentos, visão de mundo e as diferentes visões sobre o SUS47.
O currículo do curso de RMS da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ), por exemplo, é fundamentado: na metodologia de construção curricular baseada em competências (conhecimentos, habilidades e atitudes), na concepção do profissional reflexivo e na articulação entre trabalho e formação48.
A aprendizagem significativa também é um princípio fundamental das RIS/RMS/ RAP, referindo-se a uma pedagogia que propõe, ao profissional de saúde, um papel mais ativo no processo, potencialmente mais significativo e relacionado com suas experiências prévias. Em um contexto significativo, acredita-se que o residente consiga exercitar o desenvolvimento do raciocínio, da crítica e da transformação, tornando-se sujeito integrante e participante de sua formação, potencializando a sua consolidação como ator político17,30,42.
A RMS pode ser considerada uma estratégia de educação interprofissional em saúde (EIS). Na EIS, estudantes de duas ou mais profissões aprendem de forma interativa e engajada, com os membros do grupo, sobre suas profissões; há um compromisso entre os sujeitos envolvidos em buscar a resolução de problemas e a negociação nas tomadas de decisão em uma perspectiva colaborativa. Os autores que discutem EIS afirmam que esta se apresenta como uma importante estratégia para formar profissionais aptos para o trabalho em equipe, prática essencial para a integralidade do cuidado38.
A RIS/RMS/RAP, como um espaço intercessor para o desenvolvimento das ações de EPS, EIS, aprendizagem significativa e interdisciplinaridade, pode propiciar o encontro dos integrantes da Residência por meio: dos seminários, preceptorias, aulas teóricas, atividades de campo, construindo relações e interações entre eles. O encontro entre profissionais, residentes e usuários, onde se desenvolve a produção do cuidado, configura-se como cenário para a produção pedagógica, permitindo a troca de saberes afetivos e cognitivos30.
As diretrizes pedagógicas dos programas de RIS/RMS/RAP devem adotar estratégias metodológicas que transcendam a sala de aula, levando os residentes para a prática e possibilitando atividades interdisciplinares em diferentes áreas profissionais, colocando-os em contato com temas como: Humanização, EPS, Trabalho em Equipe e Integralidade, dentre outros40.
É clara a importância dos eixos norteadores do processo ensino-aprendizagem dos programas de RIS/RMS/RAP, sobretudo do cenário de educação em serviço, da concepção ampliada de saúde e da PNEPS. Todavia, o fato de a concepção de ensino -aprendizagem ter como cenário a educação em serviço não garante, necessariamente, a construção de um conhecimento transformador21.
Pode ser utilizada a metodologia da problematização, uma estratégia de ensino que vislumbra a formação de profissionais mais atuantes, meditativos e questionadores, capazes de trabalhar em equipe e de aprender juntos. O processo de reflexão desencadeia uma procura dos fatores explicativos em termos de soluções para os problemas. Os conteúdos são reconstruídos pelos residentes, que precisam reorganizar os materiais e adaptá-los às suas estruturas cognitivas45.
Rodas de discussão ou seminários são facilitadores do processo de ensinoaprendizagem49–51. Já que um dos principais espaços pedagógicos são os momentos de discussão da prática em pequenos grupos junto às preceptorias e tutorias. Compreende-se que esses pequenos grupos são importantes para a expressão dos sujeitos, são espaços para sínteses coletivas e para o exercício de novas conformações da relação educador-educando, e os disparadores desse processo reflexivo devem ser questões e problemas da realidade42,45.
Podem ser utilizados: diários reflexivos, tendo como referência os diários de campo da Antropologia, como um instrumento de desabafos, notas, impressões, observações e primeiras teorizações; e o portfólio reflexivo da Educação, como uma narrativa de caráter biográfico. O diário reflexivo pode ser o principal suporte para reuniões de orientação, e os residentes podem apresentá-lo mensalmente, relatando seu cotidiano nos cenários de aprendizagem48,52.
A utilização de estudos de caso também é viável, procedimento geralmente utilizado com o objetivo de se compreender a complexidade do quadro apresentado pelo paciente e planejar a intervenção. Assim, deve integrar as diferentes áreas do conhecimento, de forma a favorecer a singularidade de cada indivíduo e situação, implicando a realização de uma observação direta e cuidadosa52.
Em uma experiência canadense, são apresentadas definições de “estilos de aprendizagem”, como uma característica de comportamentos cognitivo, afetivo e psicossocial, que serve para indicar relativamente como os estudantes interagem com o ambiente de aprendizagem. Os estilos de aprendizagem podem mudar a partir das experiências; e perceber o estilo de um estudante pode auxiliar no processo de ensino -aprendizagem53. Um programa americano de Residência de Farmácia utiliza a Taxonomia de Bloom (conhecimento, compreensão, aplicação, análise, síntese e avaliação) na organização de seus objetivos54.
Além de indefinições no campo pedagógico e metodológico, pode haver um vazio no campo da avaliação, seja por falta de parâmetros mínimos, seja pela incipiência de métodos e instrumentais. E isso pode ser um problema para o desenvolvimento da RIS/RMS/RAP55. Com relação aos métodos avaliativos, a existência de instrumentos confiáveis é importante tanto para a tomada de decisão, quanto para a elaboração de intervenções efetivas na melhoria da formação dos profissionais. Os instrumentos devem ser adaptados às necessidades locais, fazendo-se importante a revisão periódica dos modelos, visando sua adequação para contemplar novos aspectos46.
A utilização de portfólios avaliativos, com objetivo de fornecer um registro a médio e longo prazo da evolução do rendimento e da evolução diante das atividades, permite uma avaliação mais concisa e fidedigna das competências adquiridas pelo residente durante um certo período. O portfólio é um instrumento de aprendizagem que “possibilita um pensar crítico-reflexivo do residente, o que torna o processo de reflexão como o componente principal para crescimento profissional, com vistas a mudar práticas tradicionais” (p. 111)56.
Em uma experiência da Espanha, o principal objetivo da avaliação é otimizar a aprendizagem dos residentes, proporcionando motivação e orientação. O principal método de avaliação nesse país segue o modelo de uma normativa do Ministério da Saúde, sendo uma ficha de avaliação continuada, onde se qualifica o residente em uma escala de 0 a 3 em cinco dimensões de conhecimentos e habilidades, e em sete dimensões de atitude. Alguns locais ainda solicitam um memorial anual, chamado “livro do residente”, onde se registra o cumprimento de procedimentos, técnicas e méritos, além de entrevistas e cartas de autorreflexão57.
Preceptoria e tutoria
As RIS/RMS/RAP, como modelos de aprendizado na prática, possibilitam a sensibilização e introjeção do trabalho interprofissional tanto para os residentes como para os demais envolvidos: tutores, preceptores e gestores32. Há uma dupla condição de aprendizado no trabalho por meios dos programas de Residência em Saúde: a do profissional residente e a do profissional preceptor10.
O preceptor é o profissional que participa do processo de formação em saúde ao articular a prática ao conhecimento científico. Este ator precisa dominar a prática clínica, bem como os aspectos pedagógicos relacionados a ela, e, nessa dinâmica, conta com o apoio do tutor, que atua como orientador acadêmico, responsável direto pela implementação do plano pedagógico58.
É essencial o papel do preceptor no sentido de favorecer a articulação do ensinoserviço17. Neste sentido, não reconhecer o processo de ensino como inerente à prática pode levar o preceptor a simplesmente delegar suas atividades ao residente e não estabelecer uma verdadeira relação pedagógica. É necessário que o preceptor compreenda que, enquanto prática educativa, sua atividade demanda planejamento, competência e criatividade. O preceptor e o residente compartilham o ensinar e aprender, a partir da troca de experiências, reflexões sobre a prática e reconstrução do conhecimento em cenários reais58.
Os preceptores precisam reconhecer que há um processo dialético de ensino e aprendizagem, realizado com uma perspectiva educativa e pedagógica que vai além da mera transmissão de conhecimentos, de tal forma a permitir que os residentes adquiram conhecimento aplicável em situações consideradas complexas e contraditórias45.
O sucesso ou não da aprendizagem nas RIS/RMS/RAP pode se fundamentar na afetividade, confiança, empatia e no respeito entre residentes, preceptores e tutores17. Afinal, o conhecimento também se faz no campo das relações interpessoais, em uma dinâmica constante entre ensinar e aprender59, e o preceptor assume um papel mediador nesse processo17,60.
Existem limites e potencialidades neste processo, há limites de ordem pessoal, profissional e institucional. A pouca percepção dos preceptores sobre seu papel educativo, por exemplo, pode ser um fator dificultador das Residências em Saúde43. Sendo a prática colaborativa e a troca de saberes apontadas como principais facilitadores do trabalho nas RIS/RMS/RAP32.
Um problema a ser enfrentado é que as necessidades de aprendizagem dos residentes por vezes não coincidem com a visão dos preceptores e tutores. É importante um reconhecimento desses atores sobre as necessidades atuais do residente45. A falta de treinamento, a falta de motivação, a falta de condições de trabalho e a falta de ética de alguns residentes também podem ser fatores que causam impacto nos preceptores, com relação à questão do ensino-aprendizagem60.
A fundamentação didático-pedagógica para o exercício da preceptoria – necessidade unânime entre os preceptores – pode incluir os temas oriundos das principais demandas destes, com destaque para a reflexão sobre: seu papel, direitos, atribuições e responsabilidades, técnicas de ensino, avaliação de aprendizagem e problematização dos conhecimentos61.
Considerações finais
Neste estudo objetivamos analisar o estado da arte das RIS/RMS/RAP, no período de 2006 a 2016, nas línguas portuguesa, inglesa e hispânica. Apresentamos as dimensões temáticas que abordaram os sentidos atribuídos e a organização pedagógica dos programas de RIS/RMS/RAP.
Os sentidos atribuídos às Residências em Saúde se dão a partir de muitas percepções: dos coordenadores de programas, das IES, dos preceptores, dos tutores, dos professores e dos residentes, e, também, de quem escreve e pesquisa sobre a temática. Evidenciamos que a principal motivação para realizar a residência é a necessidade de especialização exigida pelo mercado de trabalho. Os artigos publicados nos EUA, Canadá e Espanha relataram resultados de pesquisa sobre programas de Residências em Área Profissional, especificamente para as profissões de Farmácia e Enfermagem. Estes programas têm um caráter complementar à graduação, e dão ênfase à formação para pesquisa e docência. No Brasil as residências em saúde representam projetos de educação pelo trabalho para superação de limitações da graduação.
Sobre a organização pedagógica das Residências, muitos artigos trouxeram importantes questões sobre como conduzir os processos de ensino-aprendizagem em serviço, destacando-se a utilização de metodologias ativas de aprendizagem, como a problematização e o trabalho em pequenos grupos. As funções estruturantes do preceptor e tutor foram destacadas, bem como a articulação dos programas com as realidades regionais. Como metodologia de avaliação dos residentes, foi mencionado o uso do Portfólio Reflexivo e outros modelos de avaliação mais tradicionais, realizado pelos preceptores e tutores.
A formação em saúde ainda é um “nó crítico” das propostas que apostam na mudança do modelo assistencial em saúde no Brasil. Destacamos alguns desafios para o processo de ensino-aprendizagem nos contextos concretos do SUS: falta de diálogo entre profissionais, preceptores e tutores; falta de preparação para o trabalho coletivo, inclusive, para a produção de conhecimento; falta de profissionais com perfil e disponibilidade para a preceptoria/tutoria. Além de que, é comum, na área da saúde, a tendência de profissionais atuarem de forma isolada, dissociada e fragmentada.
As residências em saúde se apresentam como projetos vigorosos de formação profissional com uma grande diversidade de sentidos atribuídos e organizações didáticas. Novos estudos serão necessários para que sejam identificadas as melhores estratégias para o aperfeiçoamento da educação pelo trabalho proposta por estes programas.
Como continuidade do presente estudo, sugerimos a realização de outras pesquisas que prossigam na investigação das Residências em Saúde, em especial sobre o impacto na formação dos residentes sobre o sistema de saúde e seu custo-efetividade; podem ser feitas também análises mais aprofundadas sobre outros programas nacionais que trabalhem com Residências em Área Profissional, ou com relação a outras experiências internacionais.
Por fim, avaliamos que as Residências em Saúde têm um potencial enorme de (trans)formação dos trabalhadores de saúde, e, para tanto, devem ser fruto de contínuas pesquisas, alvo de investimentos dos Ministérios da Saúde e Educação, em contínuo aprimoramento dos recursos humanos para o SUS; e, a longo prazo, talvez, podem vir a se tornar também o “padrão ouro” da formação de profissionais de saúde, assim como já acontece na Medicina.