Introdução
Este ensaio conceitual deriva de um estudo qualitativo sobre gosto, sabor e paladar na experiência alimentar que nos conduziu às áreas de Neurociência, Psicologia, Biologia e Nutrição, indicando ser este um tema interdisciplinar e trabalhado sob diversas abordagens1-8. Atualmente, a Neurociência tem dedicado mais esforços para aprofundar o entendimento sobre o processo de reconhecimento e processamento do sabor e tem despertado interesse do público em geral por sua relação com a culinária e a gastronomia. Apesar dos avanços científicos observados nos últimos anos, a terminologia empregada na literatura, sobretudo na língua portuguesa, é bastante imprecisa, incluindo o uso do mesmo termo com diferentes sentidos e o uso de diferentes termos como sinônimos, o que pode dificultar o entendimento desse objeto e a interpretação de conteúdos publicados4,6. O propósito desta comunicação é analisar e demarcar conceitos referentes ao gosto, sabor e paladar a partir de novas descobertas científicas, o que poderá contribuir para uma maior precisão no uso dos termos em publicações sobre o tema.
De fato, a definição corrente para esses termos em linguagem culta não científica trazida por dicionários de renome, tanto na língua portuguesa quanto na língua inglesa, evidencia a maleabilidade e falta de unicidade dos significados (quadro 1)9,10.
Quadro 1 Definição dos termos empregados em português e inglês no campo da percepção sensorial dos alimentos.
Gosto | 1. Sentido pelo qual se distinguem sabores; paladar. 2. Propriedade que tem certas substâncias de impressionar o paladar. 3. Sensação gustativa de determinadas substâncias, sabor. “Gosto de abacaxi”; “gosto de chocolate”. |
Paladar | 1. Função sensorial que permite a percepção dos sabores pela língua e sua transmissão do nervo gustativo ao cérebro, região na qual são recebidos e analisados. |
Sabor | 1. Sensação que certos corpos ou substâncias exercem sobre os órgãos do paladar. 2. Propriedade que esses corpos ou substâncias têm de impressionar o paladar, gosto. 3. O sentido do gosto, do paladar. |
Taste | 1. The flavour of something, or the ability of a person or animal to recognize different flavours: “I love the taste of garlic”; “I didn´t like red wine before, but I acquired a taste for”. |
Flavour / Flavor(e) | 1. How food or drink tastes, or a particular taste itself: “Add a little salt to bring out the flavours of the herbs”; “This wine has a light, fruity flavour”. |
Fonte: Houaiss, 2009; Cambridge, 2009.
Existe, porém, um movimento marcante no meio científico no sentido de unificação na definição e uso desses termos. Na busca de uma melhor compreensão da evolução do significado dos termos em questão, foi realizado um levantamento de publicações que abordam aspectos ligados à conceitualização da percepção sensorial dos alimentos.
Como a maior parte dos artigos existentes está publicado em língua inglesa, utilizamos aqui os termos flavour e taste, como originalmente aparecem nas publicações. Após a análise da evolução cronológica desses conceitos, foi avaliada a possibilidade de correspondência entre os termos em inglês e em português. Os trabalhos considerados nesta busca foram dispostos em uma linha do tempo (figura 1).

Fonte: próprio autor.
Figura 1 Linha cronológica do levantamento de artigos relacionados à flavour/taste.
O uso indistinto dos termos taste e flavour para referenciar as qualidades sensoriais dos alimentos já era apontado por John Prescott em 1999, que definiu flavour como uma construção “cognitiva” feita a partir da integração fisiológica dos diferentes sistemas sensoriais (olfato e gustação), não sendo a simples convergência dos componentes do sentido, mas uma experiência sensorial única. O mesmo autor descreveu taste como a percepção sensorial do alimento na cavidade oral1.
Segundo Chandrashekar et al.11, o taste é essencial na construção do flavour e é definido pela sensação derivada do estímulo que moléculas solúveis na saliva promovem nos receptores celulares das papilas gustativas presentes na língua, palato mole e região orofaríngea. O taste é expresso nas qualidades: doce, salgado, umami, azedo, amargo e gorduroso12.
Seguindo a mesma linha, em 2008, um artigo bastante referenciado – “Mammalian taste perception”5 – coloca que o sentido do taste é ativado a partir do contato de componentes químicos nos receptores celulares presentes nas papilas gustativas da cavidade oral5. O sistema gustativo é composto por papilas multicelulares, munidas de receptores específicos para cada um dos tipos de taste, inervados por neurônios sensitivos que transmitem a informação recebida para áreas específicas no cérebro13.
Além das papilas gustativas e de seus receptores químicos, a cavidade oral ainda contém outros receptores: mecanorreceptores, termorreceptores e nociceptores (receptores da dor) que são responsáveis pela percepção da textura, temperatura, adstringência e dor, que, combinados aos demais sentidos – olfato (retronasal e ortonasal), visão (cores, volume e formato), audição (sons da mastigação) e sistema motor (mastigação e deglutição) –, constituem o aparato sensorial utilizado na interação com os alimentos7.
Os trabalhos dentro da Neurociência têm contribuído significativamente para a forma como entendemos os conceitos de taste e, principalmente, de flavour. Gordon M. Shepherd3, em 2006, em um artigo publicado na revista Nature, coloca que a percepção do flavour é uma das mais complexas habilidades humanas e envolve todos os sentidos, em particular o sentido do olfato3. Em seu livro Neurogastronomy7, considerado um marco entre os estudos sensoriais8, o autor diz: “o flavour está no cérebro e não no alimento”, ou seja, a ideia defendida é muito clara: o cérebro é que constrói o flavour. O flavour é criado com base no conjunto dos sinais captados pelo paladar que é moldado no cérebro, sendo, assim, uma sensação multimodal e interpretativa7.
O sistema que cria o flavour no cérebro recebe as informações multimodais (provenientes do odor, do gosto, da visão, da audição, etc.) e as converte em representações neurais. A complexa rede dos diferentes receptores localizados no nariz, boca e garganta é conectada e unificada dentro do sistema nervoso central, produzindo uma percepção que conhecemos por flavour do alimento14. A percepção do flavour é influenciada ainda por características pessoais, experiências anteriores e fatores culturais que interferem na afinidade por um alimento ou preparação15,16.
Os prejuízos trazidos pela confusão no uso dos termos taste e flavour no meio científico e, em especial, na prática clínica são discutidos por Boltong et al.6,17. Os autores chamam a atenção para as alterações do paladar sofridas por muitos pacientes, que são, em geral, relatadas como alterações do taste, quando na verdade podem estar relacionadas a outros dois sistemas sensoriais totalmente independentes: tato e olfato.
Os termos em português referentes aos aspectos sensoriais (sabor, gosto e paladar) ainda não sofreram mudanças na linguagem culta e coloquial, geradas pelas descobertas científicas recentes. Nem mesmo na ciência há precisão nos usos desses termos, o que limita a possibilidade de se estabelecer a correspondência entre estes e os termos em inglês aqui discutidos.
Na definição trazida pelo dicionário Houaiss (quadro 1), observa-se que a palavra “gosto” é inicialmente colocada como sinônimo de “paladar”. Em seguida, é inserida como uma propriedade do alimento e, finalmente, como sensação gustativa, remetendo ao conceito de taste, embora os exemplos (“gosto de abacaxi ou de chocolate”) sugira uma correspondência ao flavour.
Já a definição de “paladar” traz uma clara correspondência ao conceito de taste, embora seja posteriormente, na definição de “sabor”, tratado como conjunto de órgãos do sentido.
Em relação à definição de “sabor”, pode-se fazer correspondência a flavour, embora seja também tratado como sinônimo de “gosto” e “paladar”.
Quando recorremos à literatura, observa-se a mesma dúvida quanto ao emprego dos termos. Netto4, no livro “Paladar”, define paladar como a sensação do alimento sólido ou líquido colocado dentro da cavidade oral. Posteriormente, o paladar é relacionado à estimulação química dos corpúsculos gustativos e das terminações nervosas livres do nariz, da boca e das áreas da garganta, ou ainda definido como a mistura complexa de impulsos sensoriais composto de gosto, olfato e sensação tátil dos alimentos. No mesmo livro, a palavra “gosto” é usada para descrever a sensação produzida pela colocação do alimento na boca, experimentada durante a estimulação dos quimiorreceptores orais, em uma clara correspondência ao termo taste.
A partir da revisão de literatura realizada e, principalmente, dos conceitos trazidos por Gordon Shepherd, foi criado o quadro ilustrativo18 a seguir (figura 2), no qual fica esquematizado o sentido do taste, que, combinado aos outros sistemas sensoriais utilizados na interação/reconhecimento do alimento, é interpretado no cérebro, órgão no qual é criado o flavour. Os termos em português aparecem associados aos termos em inglês, nas várias possibilidades de correspondência, como discutido anteriormente.

Fonte: Meirelles, CS; Palazzo, CC; Sicchieri, JMF; Diez-Garcia, RW, 2017. Reprodução da imagem autorizada pelas autoras.
Figura 2 Esquema ilustrativo do conceito de taste, flavour/flavor, paladar, sabor e gosto.
As palavras “gosto” e “sabor” aparecem como termos genéricos, podendo significar tanto flavour quanto taste. A palavra “paladar” foi empregada para definir todo o equipamento utilizado na percepção sensorial dos alimentos.
Finalmente, fazemos aqui uma proposta de unificação na definição dos termos:
Paladar: Reconhecimento dos alimentos por meio do equipamento sensorial.
Gosto: Sensação gerada pelo estímulo do sistema gustativo, correspondente ao termo taste.
Sabor: Percepção gerada e interpreta pela combinação do estímulo dos vários sistemas sensoriais componentes do paladar. Correspondente ao termo flavour.
Considerações finais
A precisão no uso dos termos incorporando as novas descobertas e tendo correspondentes no inglês científico se faz necessária para uma melhor compreensão das publicações da área de percepção sensorial dos alimentos.
Em língua inglesa, houve grandes avanços nesse sentido, embora a correspondência para os termos em língua portuguesa ainda permaneça bastante flexível. A proposta de unificação na definição dos termos visa contribuir para uma comunicação mais clara e efetiva, com caráter inovador, tanto na prática clínica quanto na divulgação científica.