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Entre a mulher e a salvação do bebê: experiências de parto de mulheres com HIV

Between the woman and saving the baby: HIV-positive women’s experiences of giving birth

Entre la mujer y la salvación del bebé: experiencias de parto con mujeres portadoras de VIH

Resumos

O artigo analisa a experiência de parto de mulheres com HIV na perspectiva da bioética feminista. Trata-se de um estudo de casos múltiplos com seis mulheres entrevistadas na gestação e três meses depois do parto. Como resultados, apontamos a pouca participação na escolha da via de parto, a falta de orientações no pré-natal, inclusive quanto à prevenção da transmissão vertical (TV) e o pouco uso de analgesia ou técnicas de alívio da dor, evidenciando falhas no processo de cuidado humanizado. O medo da transmissão para o filho(a) se soma à centralidade conferida à prevenção da TV e à salvação do bebê. A saúde sexual e reprodutiva e o enfrentamento do diagnóstico pelos casais não foram foco de cuidado, denotando hierarquias reprodutivas e carência de uma atenção integral.

Saúde da mulher; HIV; Parto; Gestação


This article analyzes HIV-positive women’s experiences of giving birth from the perspective of feminist bioethics. A multiple case study was conducted with six women interviewed during pregnancy and three months after giving birth. The findings reveal that the women showed limited participation in choosing the mode of delivery, lack of antenatal guidance – including prevention of vertical transmission (VT) –, and limited use of analgesia and pain management techniques, demonstrating flaws in the humanized care process. Fear of mother-to-child transmission of HIV is merged with the central importance of the prevention of VT and saving the baby. Sexual and reproductive health and coping with HIV in couples were not the focus of care, denoting reproductive hierarchies and the lack of comprehensive care.

Women’s health; HIV; Delivery; Pregnancy


El artículo analiza la experiencia de parto de mujeres portadoras de HIV en la perspectiva de la bioética feminista. Se trata de un estudio de casos múltiples con seis mujeres entrevistadas durante la gestación y tres meses después del parto. Como resultados, señalamos la poca participación en la elección de la vía de parto, la falta de orientaciones en el prenatal, incluso en lo que se refiere a la prevención de la transmisión vertical (TV) y el poco uso de analgesia o técnicas de alivio del dolor, poniendo en evidencia fallos en el proceso de cuidado humanizado. El miedo de la transmisión para el hijo/a se suma a la centralidad otorgada a la prevención de la TV y a la salvación del bebé. La salud sexual y reproductiva y el enfrentamiento del diagnóstico por parte de las parejas no fueron el enfoque del cuidado, denotando jerarquías reproductivas y la carencia de una atención integral.

Salud de la mujer; HIV; Parto; Gestación


Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS) preconiza o acesso ao aconselhamento, acompanhamento e tratamento do HIV ao longo da gestação e pós-parto de mulheres vivendo com HIV (MVH), prevendo inclusive políticas de proteção aos direitos reprodutivos e promoção da saúde sexual, embora o cenário atual de ataque às políticas públicas venha ameaçando tais conquistas11. Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para prevenção da transmissão vertical de hiv, sífilis e hepatites virais. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais; 2018. , 22. Seffner F, Parker R. Desperdício da experiência e precarização da vida: momento político contemporâneo da resposta brasileira à aids. Interface (Botucatu). 2016; 20(57):293-304. . A notificação do HIV em gestantes é obrigatória e quanto antes iniciar a profilaxia com antirretrovirais (ARV), maiores as chances de redução da TV e melhor acompanhamento da criança exposta11. Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para prevenção da transmissão vertical de hiv, sífilis e hepatites virais. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais; 2018. .

No Rio Grande do Sul as taxas de TV são preocupantes. Em 2016, a taxa de detecção de casos de gestantes vivendo com HIV foi de 8,8 casos para cada mil nascidos vivos; três vezes superior à média nacional33. Brasil. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico HIV e Aids, 2018. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais; 2018. . Porto Alegre é a capital do país com a maior taxa, com 21,1 casos/mil nascidos vivos33. Brasil. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico HIV e Aids, 2018. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais; 2018. . As taxas de TV chegaram a 6,2% em 2010, diminuindo para 2,6% em 201544. Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre. Boletim Epidemiológico Número 68. Porto Alegre: Coordenadoria Geral de Vigilância em Saúde, Equipe de Vigilância das Doenças Transmissíveis; 2018. . Os casos de TV concentram-se nos bairros com menor renda e níveis de escolaridade, altas taxas de fecundidade e alto consumo de drogas55. Wachholz NR, Stella IM, Cunha J. Transmissão materno-infantil do HIV em Porto Alegre - avaliação do período 2001-2005 e reflexão sobre o papel dos atores envolvidos no controle deste agravo. Porto Alegre: Coordenadoria Geral de Vigilância em Saúde, Secretaria Municipal da Saúde; 2006. , evidenciando múltiplas vulnerabilidades que dificultam o acesso aos serviços de saúde.

Sobre isso, o conceito de vulnerabilidade é útil para destacar a relação entre suscetibilidades individuais ao adoecimento e aspectos coletivos; e, com base nos direitos humanos, auxiliou na redefinição de estratégias de enfrentamento que estigmatizavam as pessoas no início da epidemia66. Ayres JRC, Paiva V, Buchalla CM. Direitos Humanos e Vulnerabilidade na prevenção e promoção da saúde: uma introdução. In: Paiva V, Ayres JRC, Buchalla CM, editores. Vulnerabilidade e direitos humanos: prevenção e promoção da saúde. Livro 1: da doença à cidadania. Curitiba: Juruá; 2012. p. 271-311. . Nesse cenário, a perspectiva da bioética feminista77. Diniz D, Guilhem D. Bioética feminista: o resgate político do conceito de vulnerabilidade. Rev Bioet. 1999; 7(2):181-8. também tem contribuído para desvelar o papel das assimetrias de gênero na dinâmica da epidemia88. Guilhem D, Azevedo AF. Bioética e gênero: moralidades e vulnerabilidade feminina no contexto da Aids. Rev Bioet. 2008; 16(2):229-40. . Estudos revelam um complexo cenário de vulnerabilidade das mulheres frente ao HIV ligado às desigualdades de gênero, interseccionadas com outros marcadores sociais (de classe, de raça, etc.) e associadas ao padrão heteronormativo e a um ideal de maternidade99. Ashaba S, Kaida A, Coleman JN, Burns BF, Dunkley E, O’Neil K, et al. Psychosocial challenges facing women living with HIV during the perinatal period in rural Uganda. PLoS One. 2017; 12(5):e0176256. , 1010. Azevedo AF, Guilhem D. A vulnerabilidade da gestante na situação conjugal de sorodiferença para o HIV/Aids. DST - J Bras Doenças Sex Transm. 2005; 17(3):189-96. . A crença na proteção do casamento; a confiança no parceiro; a dependência socioeconômica e afetiva, bem como as condições de educação e emprego mais precárias, acabam por restringir as possibilidades de muitas mulheres de negociar relações sexuais seguras, levando-as à infecção e limitando sua capacidade de lidar com a doença. Após a infecção pelo HIV, essa trajetória de vulnerabilidades se potencializa pelas dificuldades com o tratamento, acesso aos serviços, estigma e o temor de infectar seus filhos e parceiros1010. Azevedo AF, Guilhem D. A vulnerabilidade da gestante na situação conjugal de sorodiferença para o HIV/Aids. DST - J Bras Doenças Sex Transm. 2005; 17(3):189-96. , 1111. Colvin CJ, Konopka S, Chalker JC, Jonas E, Albertini J, Amzel A, et al. A systematic review of health system barriers and enablers for antiretroviral therapy (ART) for HIV-infected pregnant and postpartum women. PLoS One. 2014; 9(10):e108150. .

A maternidade das MVH é impactada pelas sobrecargas psicossociais relativas ao sigilo e estigma, além do forte temor da TV99. Ashaba S, Kaida A, Coleman JN, Burns BF, Dunkley E, O’Neil K, et al. Psychosocial challenges facing women living with HIV during the perinatal period in rural Uganda. PLoS One. 2017; 12(5):e0176256. , 1212. Carvalho FT, Piccinini CA. Maternidade em situação de infecção pelo HIV: um estudo sobre os sentimentos de gestantes. Interaçao Psicol. 2006; 10(2):345-55. . A prevenção da TV exige adesão rigorosa aos ARV com acompanhamento pré-natal detalhado, sendo o parto crucial para a prevenção, em função da maior chance de infecção do bebê11. Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para prevenção da transmissão vertical de hiv, sífilis e hepatites virais. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais; 2018. . A via de parto é decidida conforme a história obstétrica atual e passada da mulher e, principalmente, considerando a carga viral no fim da gestação. Outros cuidados são necessários durante o trabalho de parto e parto, tais como usar AZT intravenoso; fazer parto empelicado (quando possível); e evitar bolsa d’água rota por mais de quatro horas, fórceps e episiotomia. Após o parto, a mulher recebe inibidor de lactação, o bebê usa xarope de AZT nas primeiras 48 horas de vida e ganha fórmula láctea até o sexto mês, tendo acompanhamento pediátrico específico11. Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para prevenção da transmissão vertical de hiv, sífilis e hepatites virais. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais; 2018. .

O parto é um evento marcante na vida das mulheres, cercado de preocupações diante das possíveis dores, da saúde da mãe e do bebê. O nascimento é altamente medicalizado nas culturas ocidentais, com características tecnocráticas que privilegiam as intervenções (muitas vezes desnecessárias), o que tem contribuído para o grande número de cesáreas e situações de violência obstétrica e de falta de autonomia das mulheres1313. Leão MRC, Riesco MLG, Schneck CA, Angelo M. Reflexões sobre o excesso de cesarianas no Brasil e a autonomia das mulheres. Cienc Saude Colet. 2013; 18(8):2395-400. , 1414. Diniz SG. Gênero, saúde materna e o paradoxo perinatal. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum. 2009; 19(2):313-26. . No cenário do HIV, sendo o parto crucial para prevenir a TV, este tende a ser ainda mais perpassado por intervenções médicas, muitas vezes desconhecidas da parturiente1212. Carvalho FT, Piccinini CA. Maternidade em situação de infecção pelo HIV: um estudo sobre os sentimentos de gestantes. Interaçao Psicol. 2006; 10(2):345-55. . O medo e a culpa quanto à possível infecção do bebê e à não amamentação se ampliam com os julgamentos morais e o estigma a que estão expostas como mães, tanto em sua comunidade quanto nos serviços de saúde.

Entendemos as maternidades no contexto da soropositividade dentro da problematização apontada por Meyer1515. Meyer DEE. Educação, saúde e modos de inscrever uma forma de maternidade nos corpos femininos. Movimento. 2003; 9(3):33-58. , a qual postula que os corpos de gestantes e mães têm sido capturados pelas biopolíticas contemporâneas como centrais para a gestão da vida nas sociedades ocidentais, salientando sua responsabilidade por produzir filhos saudáveis e, consequentemente, pela solução de vários problemas sociais. Múltiplos enunciados científicos, da mídia, dos dispositivos de medicalização e de programas e políticas de saúde reiteram e naturalizam características e valores ideais para as mulheres-mães, contribuindo para a construção social e cultural da maternidade e da relação mãe-filho como crucial para a saúde física, cognitiva e psicológica da criança1616. Meyer DEE. Uma politização contemporânea da maternidade: construindo um argumento. Genero. 2005; 6(1):81-104. . Apesar das conquistas civis e sociais das mulheres, a criação dos filhos ainda é tarefa prioritariamente feminina, o que a tornou também mais complexa1616. Meyer DEE. Uma politização contemporânea da maternidade: construindo um argumento. Genero. 2005; 6(1):81-104. . Contrariamente, as mães que estão fora desses padrões são consideradas “mães de risco” e tornam-se alvos de intervenções e práticas de saúde específicas, como no caso das MVH.

Nesse contexto, a prioridade em “salvar o bebê” teria um lugar central, a despeito da garantia de direitos sexuais e reprodutivos dessas mulheres1717. Barbosa RHS. Mulheres, reprodução e Aids: as tramas da ideologia na assistência à saúde de gestantes HIV-positivas [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2001. . Com a centralidade da profilaxia da TV na gestação de MVH e a grande medicalização envolvida, é importante entender como elas vivem esse momento e suas percepções sobre o cuidado recebido, o que pode influenciar seu posterior engajamento com o tratamento e com sua saúde1818. Cichowitz C, Watt MH, Mmbaga BT. Childbirth experiences of women living with HIV: a neglected event in the prevention of mother-to-child transmission care continuum. AIDS. 2018; 32(11):1537-9. . Porém, as experiências do parto no contexto do HIV são pouco discutidas pela literatura, sendo este o foco do presente artigo.

Metodologia

Utilizou-se a estratégia de estudo de casos múltiplos1919. Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2a ed. Porto Alegre: Bookman; 2001. , de caráter qualitativo, exploratório e longitudinal, para analisar as experiências de parto de MVH, abarcando desde as expectativas na gestação até as percepções após três meses do nascimento do bebê. O estudo de caso foi empregado procurando preservar as características holísticas e significativas do fenômeno nos contextos de vida1919. Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2a ed. Porto Alegre: Bookman; 2001. .

A pesquisa fez parte de uma pesquisa maior intitulada “Aspectos psicossociais, adesão ao tratamento e saúde da mulher no contexto do HIV/aids: contribuições de um programa de intervenção da gestação ao segundo ano de vida do bebê (PSICAIDS)”, que acompanhou setenta MVH da gestação aos dois anos do bebê entre 2006 e 2010. As participantes foram recrutadas em um hospital público de Porto Alegre que tinha uma Linha de Cuidado para pessoas com HIV. O projeto incluía MVH maiores de 18 anos, não usuárias de drogas e sem debilidades físicas severas ou distúrbios mentais. Destaca-se que o protocolo de profilaxia da TV vigente na época da participação das gestantes na pesquisa não difere substancialmente das atuais recomendações quanto ao parto de MVH11. Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para prevenção da transmissão vertical de hiv, sífilis e hepatites virais. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais; 2018. , com exceção do uso de AZT injetável no trabalho de parto que hoje não precisa ser usado por MVH com carga viral indetectável a partir da 34a semana gestacional.

Vinte mulheres participaram do Estudo 1 do projeto maior que contemplava a gestação e o pós-parto. As mulheres eram convidadas a participar da pesquisa no pré-natal. No terceiro trimestre, elas respondiam uma entrevista em profundidade sobre a gestação, relações familiares, diagnóstico de HIV e profilaxia da TV. Aos três meses do bebê, eram entrevistadas sobre aspectos do parto, experiência de maternidade, vínculo mãe-bebê, relações familiares e profilaxia da TV. Desse universo empírico, selecionamos seis casos com o critério de que as narrativas contemplassem, com maior riqueza, as expectativas e experiências do parto.

As seis mulheres moravam em Porto Alegre e tiveram diagnóstico de HIV nessa gestação ou na anterior. As idades variavam entre 18 e 31 anos, com escolaridade baixa e, entre as quatro que trabalhavam fora de casa, todas relataram ocupações não especializadas. As mulheres declararam terem se infectado via relação sexual com seus parceiros atuais ou anteriores. Na gestação, todas moravam com o pai do bebê, com exceção de Vanessae e Todos os nomes ou características que pudessem identificar as participantes foram alterados. . O quadro 1 sumariza outras características dos casos.

Quadro 1
Características gerais das mulheres com HV entrevistadas

Os dados foram analisados mediante análise de conteúdo temática2020. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12a ed. São Paulo: Hucitec; 2010. , envolvendo leituras sucessivas das entrevistas transcritas e da escuta dos áudios. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética do Grupo Hospitalar Conceição (no 06/06), e todas as mulheres assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), atendendo à regulamentação da pesquisa com seres humanos na época (Resolução 196/1996).

As análises resultaram em dois eixos temáticos intitulados “A salvação do bebê como foco e a mulher como coadjuvante” e “Experiências de parto e vulnerabilidades em saúde sexual e reprodutiva no contexto do HIV”. A seguir, as categorias são descritas e ilustradas com vinhetas.

Resultados e discussão

A salvação do bebê como foco e a mulher como coadjuvante

Nesta categoria, discutiremos como a salvação do bebê se torna central na experiência das MVH durante o pré-natal, com o concomitante apagamento das expectativas, planejamento ou tomada de decisão sobre o parto e o processo reprodutivo.

Quando entrevistadas durante a gestação, as mulheres expressaram sentimentos e vivências que remetiam à centralidade da saúde do bebê. Os temores sobre o parto eram comuns entre as gestantes e quase que inteiramente definidos pelo risco de infecção do bebê, redimensionando até suas experiências anteriores de parto, como narrou Lucia: “[Hoje] minha preocupação maior não é o que vai acontecer comigo, é o que vai acontecer com ele... Antes eu não tinha nada e eu me preocupava, agora que eu tenho [HIV], minha preocupação é em dobro...”.

Essas sensações apareciam reforçadas por silêncios, ações e discursos dos profissionais de saúde que ressaltavam a preocupação com o risco da TV, havendo poucos indícios de que outros aspectos do cuidado de saúde das MVH eram abordados no pré-natal. Coadunando com Barbosa e Casanova2121. Barbosa RHS, Casanova A. Pré-natal e transmissão vertical do HIV: a perspectiva de profissionais da rede pública de saúde do município do Rio de Janeiro. In: Bosi MLM, Mercado FJ. Pesquisa qualitativa de serviços de saúde. Petrópolis: Vozes; 2004. p. 278-336. , ao se referirem aos protocolos de TV, os serviços de saúde acabam assumindo uma posição de interdição em relação à gestação, mas desconsideram, entre outras questões, os efeitos deletérios da intervenção medicamentosa para as mulheres.

A maior preocupação das mães era que o filho(a) nascesse com saúde e que não se infectasse no parto, sendo esse sentimento enfatizado quando era a primeira gestação soropositiva: “Quando eu descobri que ele [filho] podia nascer com algum problema, daí eu fiquei bem chateada... Fiquei confusa até, às vezes eu pensava bom, às vezes pensava no ruim” (Julia). Mesmo entre as que já tinham engravidado antes, percebeu-se que o medo de que a criança nascesse com algum problema ou com o HIV as fazia repensar a gestação e culpar-se por qualquer “mal” que pudesse acontecer.

Era como se precisassem focar-se estritamente na prevenção da TV, agarrando-se à esperança da não infecção dos filhos e priorizando a adesão aos ARV: “Me preocupa o que vai acontecer com ele [filho] depois que ele nascer, entendeu, esse é meu medo agora” (Lucia).

Para Julia, a preocupação maior era com a possibilidade de malformação, pois ao engravidar estava tomando um ARV que, conforme descobrira posteriormente, podia fazer mal ao bebê. A medicação foi imediatamente suspensa e o esquema, alterado. Porém, quando contou para a família e o marido, foi chamada de irresponsável, aumentando sua ansiedade. Ela se culpava por não ter descoberto mais cedo a gestação e mudado os ARV, evitando mais esse risco para o filho.

A “salvação do bebê” se torna prioritária e, com isso, a maioria dessas mulheres procura os serviços de saúde1212. Carvalho FT, Piccinini CA. Maternidade em situação de infecção pelo HIV: um estudo sobre os sentimentos de gestantes. Interaçao Psicol. 2006; 10(2):345-55. . Percebe-se, portanto, uma intensa moralização do processo de gestação de MVH, remetendo-as constantemente ao ideal de “boa mãe”2222. Robles AF. Da gravidez de “risco” às “maternidades de risco”. Biopolítica e regulações sanitárias nas experiências de mulheres de camadas populares de Recife. Physis. 2015; 25(1):139-69. e situando-as como “escravas do risco”2323. Guilhem D. Escravas do risco: bioética, mulheres e aids. Brasília: Editora UnB, Finatec; 2005. .

O medo da morte ou da debilidade do bebê também foi recorrente, denotando a transposição ao corpo do filho(a) da culpa e do julgamento social pelo fato de seu corpo carregar uma “ameaça”. O parto em si, como experiência que inaugura a relação com o bebê, dava lugar à ênfase das mulheres na esperança de não infecção do filho(a), o que parecia ser reforçado pela ausência do assunto no pré-natal.

Sobre a via de parto, as mulheres se remetiam às experiências anteriores, preferindo aquela que achavam menos dolorida ou que tinham vivenciado. Porém, suas escolhas ou preferências não eram exploradas no pré-natal pelos profissionais, sendo que o foco principal das consultas era a adesão aos ARV. Abordar as preferências e preocupações da mulher quanto ao parto aparecia como algo de menor importância frente à necessidade de procedimentos técnicos para prevenção da TV, os quais prescindem da “decisão” da mulher, já que é nesse momento que grande parte das infecções ocorrem11. Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para prevenção da transmissão vertical de hiv, sífilis e hepatites virais. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais; 2018. , 1818. Cichowitz C, Watt MH, Mmbaga BT. Childbirth experiences of women living with HIV: a neglected event in the prevention of mother-to-child transmission care continuum. AIDS. 2018; 32(11):1537-9. . Por outro lado, destaca-se que, em meio a tantas restrições e medidas de prevenção da TV, uma escuta sensível dos medos e expectativas e o estímulo ao planejamento do parto compartilhado com as mulheres poderia lhes dar mais segurança para participar efetivamente desse evento.

Por exemplo, Rosa teve sintomas graves de depressão por não esperar a gestação no contexto do HIV e as orientações da médica a ajudaram a entender que a adesão estrita aos ARV aumentaria as chances de o filho nascer sem a doença, tranquilizando-a. Contudo, ela não relatou ter tido orientações sobre o parto no contexto do HIV, dos cuidados que deveria ter ou em que condições poderia ter um parto cesáreo ou normal. Apesar disso, na entrevista, resgatou suas experiências anteriores como tentativa de deliberar sobre o nascimento do filho. Assim, ficou evidente o apagamento do processo de planejamento quanto ao parto (que envolvia, por exemplo, decisões sobre via de parto, manejo da dor e recuperação) que, nos relatos, quando aparecia, era referido de maneira breve e superficial.

Apesar da preocupação central com a TV, as mulheres viviam isso de modo diferente. Dentre as que já tinham tido uma vivência de gestação e parto com HIV (Joana e Michele), emergiram preocupações mais amenas quanto à prevenção, abrindo espaço para expectativas mais concretas e a busca por ter alguma gerência sobre a via de parto. Joana, por exemplo, esperava o terceiro filho e queria uma cesariana, pois precisou fazê-la após um longo e dolorido trabalho de parto do segundo filho. Além do HIV, a vivência anterior afetava as expectativas sobre o novo parto, sendo que os maiores temores se ligavam à dor e a desfechos negativos para a criança. Michele e Rosa tiveram partos normal e cesáreo e preferiam o último, pois achavam as dores do parto vaginal muito fortes e sofridas: “Queria cesariana, que quando eu ganhei meu gurizinho era parto normal, o último que eu tive, né. E a minha menina foi cesariana. Fui experimentar as duas partes e digamos que a cesariana foi menos dolorida” (Rosa). Essas mulheres tinham sua escolha pautada pela experiência da dor. Em contrapartida, Lucia e Vanessa tiveram somente parto normal e queriam a mesma via, vendo-o como mais saudável.

Na perspectiva da humanização assistencial, métodos não farmacológicos de alívio da dor podem favorecer uma experiência mais prazerosa, auxiliando a mulher a lidar com o processo2424. Jones L, Othman M, Dowswell T, Alfirevic Z, Gates S, Newburn M, et al. Pain management for women in labour: an overview of systematic reviews. Cochrane Database Syst Rev. 2012; (3):CD009234. . Embora o uso desses métodos coadune com as recomendações de uma assistência ao parto humanizada2525. Brasil. Ministério da Saúde. Humanização do parto e do nascimento: Cadernos HumanizaSUS. Brasília: Ministério da Saúde, Universidade Estadual do Ceará; 2014. , muitos hospitais não dispõem deles e/ou não possuem um processo de trabalho e a estrutura física adequada para empregá-los, seja por falta de conhecimento dos profissionais ou pela banalização das intervenções médicas. Esse cenário favorece intervenções desnecessárias, potencializadas, no contexto do HIV, pela prevenção da TV. Assim, a inexistência dessas opções sublinha a posição dessas mulheres como coadjuvantes.

No interjogo entre os cuidados de saúde que priorizam a profilaxia da TV e a posição subjetiva, socialmente construída, de mãe protetora e cuidadosa, a situação dessas mães parece expressar uma rede de vulnerabilidade moral88. Guilhem D, Azevedo AF. Bioética e gênero: moralidades e vulnerabilidade feminina no contexto da Aids. Rev Bioet. 2008; 16(2):229-40. , 2222. Robles AF. Da gravidez de “risco” às “maternidades de risco”. Biopolítica e regulações sanitárias nas experiências de mulheres de camadas populares de Recife. Physis. 2015; 25(1):139-69. . Ou seja, ao mesmo tempo em que a maternidade é culturalmente estimulada e conotada como algo natural que deve ser vivido por todas as mulheres, também é recriminada quando seus corpos, condições ou opções de vida fogem a esse ideal, como é o caso das MVH, que, na maioria, têm trajetórias atravessadas por profundas desigualdades sociais.

Identificaram-se vulnerabilidades específicas ligadas às trajetórias de vida de algumas mulheres que as expunham a tais julgamentos e a vivências mais conturbadas de nascimento do(a) filho(a). Por exemplo, Lucia perdeu seu primeiro filho por uma doença relacionada ao diagnóstico de HIV, não realizado na época; Ana, por ter tido vontade de realizar um aborto após a descoberta da terceira gestação não planejada na presença do HIV; e Rosa, por apresentar um quadro de depressão e ter precisado de internação.

Percebe-se que esse trabalho emocional das mães diante do risco de infecção do filho(a) pelo HIV se dá em um cenário relacional e social de culpas e julgamentos moralizantes quanto à responsabilização exclusiva da mulher pelo planejamento familiar e pela prevenção da TV.

Experiências de parto e vulnerabilidades em saúde sexual e reprodutiva no contexto do HIV

Nesse item, analisamos as experiências de parto das MVH e seus relatos sobre o apoio e cuidados nesse momento. À luz dos direitos sexuais e reprodutivos e da bioética feminista77. Diniz D, Guilhem D. Bioética feminista: o resgate político do conceito de vulnerabilidade. Rev Bioet. 1999; 7(2):181-8. , 1414. Diniz SG. Gênero, saúde materna e o paradoxo perinatal. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum. 2009; 19(2):313-26. , 2626. Mattar LD, Diniz CSG. Hierarquias reprodutivas: maternidade e desigualdades no exercício de direitos humanos pelas mulheres. Interface (Botucatu). 2012; 16(40):107-20. , discutem-se as dificuldades vividas por essas mulheres na atenção aos seus desejos, necessidades e preocupações durante o nascimento dos filhos e os primeiros meses, tanto em relação aos cuidados com o bebê quanto consigo mesmas.

Sobre a via de parto, cinco mulheres tiveram partos normais e apenas uma (Joana) realizou cesariana. Entre as que tiveram parto normal, Lucia, Julia e Michele queriam essa via de nascimento, Vanessa não tinha preferência e Rosa desejava uma cesariana. Na gestação, Joana disse que queria a terceira cesariana e que, se possível, faria a laqueadura nessa oportunidade, pois teve os filhos muito próximos e tinha dificuldade com outros métodos contraceptivos. Nesse caso, percebeu-se a falta de orientação sobre a impossibilidade de realizar a laqueadura intraparto. Porém, mais grave do que essa desinformação foi a ausência de um processo de atenção que auxiliasse suas decisões reprodutivas desde o pré-natal.

Outra situação de desrespeito se apresentou a Joana quando chegou ao hospital e, segundo sua narrativa, precisou se esforçar para convencer o médico de plantão a realizar a cesariana, indicada pelo pré-natalista: “Tive que convencer o médico a fazer cesárea, pois ele queria parto [normal], pois ele falou que eu era muito nova para ter a terceira cesárea”. O último exame de carga viral de Joana, no terceiro trimestre gestacional, resultou abaixo de 1.000 cópias, não representando risco acrescido de TV11. Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para prevenção da transmissão vertical de hiv, sífilis e hepatites virais. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais; 2018. . Portanto, a indicação da vida de parto deveria ser decidida por indicação obstétrica.

A relação cesariana-parto normal vem sendo discutida, mostrando que mulheres com cesariana anterior podem ter parto vaginal sem complicações, principalmente, sem ruptura uterina2727. Cunningham FG, Leveno KJ, Bloom SL, Hauth JC, Rose DJ, Spong CJ. Cesariana anterior. In: Cunningham FG, Leveno KJ, Bloom SL, Hauth JC, Rose DJ, Spong CJ, editores. Manual de obstetrícia de Williams. 23a ed. Porto Alegre: McGraw-Hill, Artmed; 2012. p. 564-76. . A chance de ruptura uterina seria de 0,6 em 1,8% em mães com uma cesariana anterior e que podem fazer parto normal2727. Cunningham FG, Leveno KJ, Bloom SL, Hauth JC, Rose DJ, Spong CJ. Cesariana anterior. In: Cunningham FG, Leveno KJ, Bloom SL, Hauth JC, Rose DJ, Spong CJ, editores. Manual de obstetrícia de Williams. 23a ed. Porto Alegre: McGraw-Hill, Artmed; 2012. p. 564-76. , enquanto o risco aumenta duas vezes naquelas com mais de uma incisão prévia, como Joana, que estava na terceira gestação com intervalo menor do que um ano da segunda. Para além de desconsiderar o risco eventual de um parto normal após duas cesáreas prévias, o obstetra plantonista parece ter agido mais pautado no fato de que Joana poderia ter um parto normal, conforme o protocolo da TV11. Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para prevenção da transmissão vertical de hiv, sífilis e hepatites virais. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais; 2018. , do que em função do desejo explícito dela e da indicação de cesariana do pré-natalista, acordada previamente.

Muitas mulheres realizam cesáreas por acharem – ou serem levadas a considerar pela assistência – o melhor e mais seguro tipo de parto, especialmente entre aquelas com acesso a planos privados de saúde1313. Leão MRC, Riesco MLG, Schneck CA, Angelo M. Reflexões sobre o excesso de cesarianas no Brasil e a autonomia das mulheres. Cienc Saude Colet. 2013; 18(8):2395-400. , 2828. Melchiori LE, Maia ACB, Bredariolli RN, Hory RI. Preferência de gestantes pelo parto normal ou cesariano. Interaçao Psicol. 2009; 13(1):13-23. . Ou seja, apesar de a Organização Mundial de Saúde recomendar que o índice de cesarianas não ultrapasse 15-20%, verifica-se a prática da “cesárea de rotina” no sistema privado de saúde1414. Diniz SG. Gênero, saúde materna e o paradoxo perinatal. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum. 2009; 19(2):313-26. . No sistema público, embora também sejam altas as taxas de cesariana, as mulheres estariam menos sujeitas a intervenções, mas mais expostas a tratamento autoritário, discriminatório e degradante1414. Diniz SG. Gênero, saúde materna e o paradoxo perinatal. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum. 2009; 19(2):313-26. . Segundo as recomendações para uma assistência humanizada ao parto, com a valorização da autonomia da mulher e a garantia dos seus direitos reprodutivos, o processo de decisão pela via de parto deveria ser conduzido de modo a contemplar a escolha informada da mulher e a redução de agravos à saúde materna e fetal2525. Brasil. Ministério da Saúde. Humanização do parto e do nascimento: Cadernos HumanizaSUS. Brasília: Ministério da Saúde, Universidade Estadual do Ceará; 2014. .

Os relatos das MVH endossam evidências sobre as dificuldades que as mulheres, no geral, enfrentam na escolha da via de parto2828. Melchiori LE, Maia ACB, Bredariolli RN, Hory RI. Preferência de gestantes pelo parto normal ou cesariano. Interaçao Psicol. 2009; 13(1):13-23. . Os dados mostraram que, em muitos momentos, os desejos maternos não eram considerados pelas equipes de saúde, prevalecendo a opinião do médico e a passividade das mulheres. Mais do que julgar se as escolhas e preferências da mulher são adequadas ou não do ponto de vista técnico, entende-se que esse processo reflete o contexto social e cultural das famílias, além das expectativas quanto ao acesso e à qualidade do cuidado durante o parto. O desejo pela cesárea, entre usuárias do SUS, seria uma opção diante de experiências anteriores negativas ou expectativas de agressões, desatenção e abandono. O manejo da dor, o apoio e a orientação dos profissionais às mulheres/famílias ajudariam a modificar o imaginário do parto normal como algo sofrido e dolorido.

Quanto à percepção do trabalho de parto e parto, as entrevistadas referiram que o parto “foi rápido”, “muito dolorido” ou “tranquilo”. Lucia disse ter realizado anestesia peridural e, por isso, avaliou sua experiência positivamente. Julia, por sua vez, relatou que, apesar de dolorido, o nascimento foi um alívio. Nenhuma mulher referiu ter usado métodos não farmacológicos do alívio da dor, embora estes possam tornar mais prazeroso o trabalho de parto, em conjunto com a presença e o apoio empático dos profissionais da saúde e acompanhante2424. Jones L, Othman M, Dowswell T, Alfirevic Z, Gates S, Newburn M, et al. Pain management for women in labour: an overview of systematic reviews. Cochrane Database Syst Rev. 2012; (3):CD009234. . A ansiedade, principalmente em MVH que temem intensamente a TV, pode aumentar os níveis de dor. Apesar de as mães relatarem vivências de dor, suas maiores preocupações eram com o bebê, como reflete a pergunta de Julia à médica quando o filho nasceu: “Ele é inteirinho, doutora?”. Assim, assistir a essas mulheres no trabalho de parto e parto implica em atentar para os fortes sentimentos de culpa e medo frente à possível infecção do bebê.

A presença do acompanhante no parto também tem sido valorizada, pois o apoio contínuo é associado a diversos desfechos positivos para a mãe e o bebê2929. Bohren M, Hofmeyr G, Sakala C, Fukuzawa R, Cuthbert A. Continuous support for women during childbirth. Cochrane Database Syst Rev. 2017; 7:CD003766. . Ainda que não esteja fisicamente ao lado das parturientes, saber que algum familiar está aguardando na sala de espera pode reduzir os medos e anseios em torno do parto, como relatou Rosa. Ainda que o/a familiar esteja ansioso e nervoso pelo parto, este(a)s trazem conforto, como relataram Julia e Ana, acompanhadas pelos pais dos seus bebês.

Michele, Vanessa e Rosa não tiveram acompanhante no parto. Michele ficou sozinha no hospital, pois o marido estava trabalhando e só fez sua baixa hospitalar, enquanto sua mãe cuidava dos outros filhos. A tia de Vanessa, sua parente mais próxima, cuidava de seu filho e outras crianças da família. Nesses casos, as entrevistadas enfatizaram o cuidado dos profissionais. Michele ficou satisfeita com o cuidado dos profissionais, especialmente das enfermeiras. As demais também referiram boa atenção das enfermeiras durante o parto, pontuando que foram ajudadas nos momentos de fazer força e que estas permaneciam atentas às parturientes. Nessas situações, o apoio dos profissionais parece ser mais determinante na percepção da mulher sobre a experiência do parto, sendo possível que estes sejam mais sensíveis com aquelas que estão sozinhas.

Os relatos destacaram o cuidado recebido quanto à aplicação das medidas profiláticas e a percepção de não discriminação e discrição sobre o diagnóstico de HIV. Como visto anteriormente, as mães tendiam a concentrar-se na não infecção da criança, focando menos o parto em si, dado o contexto moral e programático de “salvação do bebê”.

Todas as entrevistadas fizeram o AZT intravenoso no trabalho de parto. Todavia, a narrativa de Julia evidenciou necessidades não atendidas no pré-natal. Ela ficou um longo tempo em casa esperando até que as contrações apertassem para ir ao hospital. Chegando lá, Julia já estava com dilatação avançada e recebeu o AZT intravenoso por apenas uma hora das três recomendadas11. Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para prevenção da transmissão vertical de hiv, sífilis e hepatites virais. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais; 2018. . Nesse momento, soube que deveria ter ido com antecedência e ficou muito apreensiva, com medo de infectar o filho. Apesar de ser seu segundo filho, era a primeira gestação no contexto do HIV e ela afirmou não ter sido informada disso antes. Entende-se que a consulta ginecológica e de pré-natal, em qualquer situação, deve possibilitar diálogos em que dúvidas e orientações sobre o planejamento reprodutivo e a gestação sejam discutidas, considerando o contexto de vida da usuária, fomentando o autocuidado e abrindo espaço para suas decisões, por exemplo, quanto ao parto2525. Brasil. Ministério da Saúde. Humanização do parto e do nascimento: Cadernos HumanizaSUS. Brasília: Ministério da Saúde, Universidade Estadual do Ceará; 2014. . Porém, frequentemente se observa que o acompanhamento pré-natal é visto pelas mulheres como prescritivo e voltado à saúde do bebê3030. Duarte SJH, Andrade SMO. O significado do pré-natal para mulheres grávidas: uma experiência no município de Campo Grande, Brasil. Saude Soc. 2008; 17(2):132-9. . Quando situações mais complexas como o HIV se somam a esse contexto, atenção adicional seria necessária para garantir atitudes e escolhas pautadas pelo maior benefício da criança e da mulher.

Ainda que as mulheres, no geral, tenham referido satisfação com a atenção durante o parto e que isso reflete o cuidado e a preocupação das equipes, alguns relatos apontaram dificuldades. A pouca agência na decisão sobre a via de parto, a falta de orientações no pré-natal – inclusive quanto à prevenção da TV – o pouco uso de analgesia e a ausência de técnicas não farmacológicas de alívio da dor exemplificam falhas no cuidado humanizado. Usuárias do SUS, como as participantes, tendem a ficar mais suscetíveis às atitudes dos profissionais e à forma de organização do trabalho na maternidade, sendo enquadradas, mais facilmente, em uma posição passiva e obediente3131. Santos LM, Pereira SSC. Vivências de mulheres sobre a assistência recebida no processo parturitivo. Physis. 2012; 22(1):77-97. . Portanto, as MVH estariam em situações de maior vulnerabilidade quanto à medicalização excessiva e a perda da autonomia no parto, já que o medo e a culpa pelo risco da TV se somam à ênfase das políticas e dos profissionais na prevenção da TV.

A pouca continuidade entre o pré-natal e a atenção ao parto acrescentou desafios para as mulheres, pois, além de não conhecerem os profissionais na maternidade, não havia a preparação de um plano de parto ou de ambientação no hospital. Joana mostra como tal insegurança era prevista no pré-natal, pois precisava fazer uma cesariana: “Não sei quem estará lá de médica [no hospital] para me atender”.

Sobre a laqueadura, Joana e Vanessa expressaram esse desejo já na gestação. Porém, não tinham recebido encaminhamento após três meses do parto, mostrando as contradições na atenção às MVH, pois, quando engravidam, tendem a ser recriminadas99. Ashaba S, Kaida A, Coleman JN, Burns BF, Dunkley E, O’Neil K, et al. Psychosocial challenges facing women living with HIV during the perinatal period in rural Uganda. PLoS One. 2017; 12(5):e0176256. . A esterilização envolve consultas com equipe multidisciplinar de saúde e em conjunto com o parceiro, podendo ser feita após 42 dias do parto, salvo em situações de cesarianas sucessivas que ofereçam risco à mulher2525. Brasil. Ministério da Saúde. Humanização do parto e do nascimento: Cadernos HumanizaSUS. Brasília: Ministério da Saúde, Universidade Estadual do Ceará; 2014. . Assim, é importante que, para além das orientações sobre a profilaxia da TV e os cuidados do bebê, atente-se para a saúde integral dessas mulheres.

No pós-parto, as entrevistadas ressaltaram ter recebido orientações sobre como preparar e dar a fórmula láctea para seus filhos, não havendo relatos sobre orientação anticoncepcional. Similarmente, elas enfatizavam o acompanhamento da criança, visando o diagnóstico negativo de HIV: “Depois que a Natalia nasceu, só estou fazendo exames, não estou mais tomando as medicações. A Natalia tomou todos os remédios direitinho” (Vanessa).

A centralidade do filho(a) nas suas vidas é sublinhada pelas ações do serviço, pois, não sendo mais gestantes, não tinham mais «prioridade» na marcação de consultas. Após o parto, as mulheres que desejavam a laqueadura não relataram orientação ou retomada do assunto nas consultas. Sobre isso, o conceito de hierarquias reprodutivas2626. Mattar LD, Diniz CSG. Hierarquias reprodutivas: maternidade e desigualdades no exercício de direitos humanos pelas mulheres. Interface (Botucatu). 2012; 16(40):107-20. aponta como a posição subalterna e de reprovação social da maternidade soropositiva (em que se acrescem aspectos como pobreza, raça e tipo de parceria sexual) implica em crescentes dificuldades no exercício dos direitos humanos. Defende-se que uma abordagem integral à saúde das MVH inclui a sexualidade e a reprodução na perspectiva dos direitos humanos, buscando promover sua autonomia e agência, além da inclusão dos parceiros88. Guilhem D, Azevedo AF. Bioética e gênero: moralidades e vulnerabilidade feminina no contexto da Aids. Rev Bioet. 2008; 16(2):229-40. . Além da laqueadura e da anticoncepção oral, o acesso a outros métodos reversíveis de longa duração e a abertura para planejar novas gestações, se assim desejado, ampliariam o escopo das ações de saúde e de prevenção do HIV.

Entre os casos, todas referiram que os parceiros sabiam do seu diagnóstico, sendo que um deles era infectado, três não e dois desconheciam seu status sorológico. A sorodiscordância com o parceiro trazia desafios para a saúde sexual e reprodutiva das mulheres, como ilustra a situação de Michele. O marido não lidava bem com o diagnóstico da mulher e temia fazer o exame. Ele não se envolveu com a chegada da primeira filha e ela atribuía essa indiferença à presença do HIV e ao seu desejo por um menino. Na gestação, o marido ajudou em alguns momentos, porém, aos poucos, foi se distanciando e abandonou a família no primeiro mês da filha, indo morar com outra mulher, sem apoiar Michele nem financeiramente. Situação parecida foi vivida por Vanessa, pois, após descobrir a gravidez e, ao mesmo tempo, o HIV, o parceiro a abandonou sem informá-la se sabia ou não de sua própria sorologia. Os padrões sexuais e conjugais socialmente estabelecidos para as mulheres se reafirmam quando estas se infectam pelo HIV na relação com o companheiro pois, nesta situação, a infecção é “consequência” de ser esposa. Contudo, se a mulher adquire o HIV em uma relação anterior, tais valores são questionados, impondo-se conflitos, o medo do julgamento, a instabilidade da relação e a vulnerabilidade moral1010. Azevedo AF, Guilhem D. A vulnerabilidade da gestante na situação conjugal de sorodiferença para o HIV/Aids. DST - J Bras Doenças Sex Transm. 2005; 17(3):189-96. . Nesses casos, diagnosticar os parceiros no pré-natal pode prevenir agravos à saúde destes, oferecer suporte adequado ao casal e, em particular, às MVH, atentando para situações de abandono, violência física e psicológica.

Por fim, embora todas as participantes tenham aderido ao tratamento e seus filhos não tenham contraído o HIV, muitos aspectos de seus contextos de vida desafiavam sua saúde. O caso de Vanessa ilustra como, apesar das diversas vulnerabilidades em sua trajetória de vida, conseguiu lidar com o HIV na gestação e aderir com sucesso aos ARV ( quadro 2 ). Vanessa pode ser uma exceção ou o será até quando lhe for possível manter-se no “fio da navalha”. Muitas outras MVH podem estar em pior situação para lidar com condições rivalizadas pela pobreza e pela violência ao aderir ao tratamento e acompanhamento da sua saúde e dos filhos. Redes sociais precárias; e dificuldade em sustentar e cuidar dos filhos – muitos ainda pequenos, como é o caso entre as mães entrevistadas – são fatores determinantes e exigem políticas públicas voltadas ao contexto e às necessidades dessas mulheres99. Ashaba S, Kaida A, Coleman JN, Burns BF, Dunkley E, O’Neil K, et al. Psychosocial challenges facing women living with HIV during the perinatal period in rural Uganda. PLoS One. 2017; 12(5):e0176256. , 1111. Colvin CJ, Konopka S, Chalker JC, Jonas E, Albertini J, Amzel A, et al. A systematic review of health system barriers and enablers for antiretroviral therapy (ART) for HIV-infected pregnant and postpartum women. PLoS One. 2014; 9(10):e108150. .

Quadro 2
Caso Vanessa: no “fio da navalha”

Considerações finais

A gestação na presença do HIV não necessariamente reduz os sentimentos positivos quanto à maternidade e ao filho, mas, certamente, impõe muitos temores e cuidados estritos para prevenir a TV, particularmente, no nascimento. Como foi visto, vivências de culpa e medo de transmitir o HIV para o filho(a) se somam à centralidade que as políticas e ações em saúde conferem à profilaxia que, em diferentes sentidos, tanto possibilitava quanto obstaculizava a promoção de direitos sexuais e reprodutivos das MVH.

Temores comuns à gestação tonalizavam-se pela ênfase na salvação do bebê, dificultando o protagonismo das MVH. Apesar de assumir uma posição de obediência frente à profilaxia e à intensa medicalização, até certo ponto necessária, as mulheres manifestaram desejos sobre a via de parto e sobre como queriam vivenciar esse momento. A experiência ou notícia da dor do parto vaginal foi decisiva para algumas desejarem cesarianas, ensejando o quanto a dor é negligenciada no processo de cuidado, marcando-o como acontecimento negativo e intransponível. Paradoxos e violências vividas por usuárias do SUS na atenção ao parto também estavam presentes para as MVH, como o pouco uso de métodos não farmacológicos de alívio da dor e a dificuldade de pactuar conjuntamente as ações e em basear as intervenções em evidências científicas.

Viu-se que o nascimento não era abordado no pré-natal e que, por vezes, a mulher não possuía informações importantes sobre a profilaxia, sublinhando sua submissão aos profissionais de saúde e sua vulnerabilidade moral frente à proteção do bebê. Entende-se que o diálogo deve ser fortalecido no sentido do vínculo e do apoio sem julgamentos às mulheres, empoderando-as quanto ao parto na presença do HIV. Essa atitude impactaria na prevenção da TV ao possibilitar que elas atuassem mais ativamente diante da falta de continuidade entre o cuidado de pré-natal e do parto, garantindo também a proteção aos seus direitos à informação, à saúde e à integridade física. Embora a prioridade da profilaxia da TV seja indiscutível, deve-se atentar para os contextos sociais de pobreza, violência e exclusão de direitos já vivenciados por elas e que dificultam ainda mais seu autocuidado.

O estudo evidenciou inúmeras dificuldades na atenção à saúde sexual e reprodutiva e para manter o tratamento de HIV após o parto entre MVH, ratificando a centralidade da salvação da criança e a marginalização de seus direitos reprodutivos. Uma escuta humanizada dos profissionais às MVH, na gestação, parto e pós-parto poderia revelar situações de violência e abandono e propiciar uma atenção preventiva e promotora da sua saúde e autonomia, considerando as múltiplas vulnerabilidades que muitas delas vivenciam.

Agradecimentos

Agradecemos às mulheres interlocutoras do estudo. O projeto de pesquisa que originou o trabalho contou com financiamento do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CNPq) – 485204/2006-1; 475203/2008-9.

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    Todos os nomes ou características que pudessem identificar as participantes foram alterados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    04 Out 2018
  • Aceito
    28 Maio 2019
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