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A formação médica socialmente referenciada e as políticas mercadológicas de regulação da qualidade

Em meio a uma conjuntura nacional fortemente marcada pelo ethos da competitividade, da performatividade e da meritocracia, estranho seria que políticas públicas tão caras à população, como as de Educação e Saúde, não fossem atropeladas. Trata-se de abrir espaço à privatização sem maiores constrangimentos sequestrando dos brasileiros (em especial dos mais fragilizados socialmente) o direito de ter um futuro digno e seguro. Assistimos ainda perplexos (porém indignados) ao desmantelamento de nossa frágil democracia. Como nos comportaremos frente às descontinuidades do Programa Mais Médicos (PMM)? Ou, o que é pior, como nos comportaremos a sua pseudomanutenção com os rearranjos de conveniência? Um dos pilares que mais corre risco é o da formação médica e, por conseguinte, as políticas públicas que a regulam. As descontinuidades já em curso prenunciam a posterior eliminação das transformações recém-implementadas.

Nessa perspectiva, a leitura do texto de Chioro e colegas mostrou-se preciosa por duas razões:

Pelo rigor com que recupera os tensos movimentos que acompanham e demarcam um ciclo de políticas que desafia estruturas pesadas e conservadoras tais como as da Saúde. As marcas do modelo hospitalocêntrico e a justificação nada justificável de concentração dos cursos de Medicina em determinadas e privilegiadas regiões do país que remanescem, mesmo e apesar das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) - 2001 e 2014 - explicitarem que o Sistema Único de Saúde (SUS) é o ordenador da formação em saúde. Os argumentos trazidos à tona pelos autores revelam a distância e as contradições que existem entre o que se aprova e o que se executa de fato, destacando a relevância de mecanismos de regulação mais contundentes evidenciados em programas organicamente concebidos e negociados em múltiplas instâncias.

Pela postura de não neutralidade assumida pelos autores ao descreverem, analisarem e exercitarem formas de prospecção acerca das repercussões advindas de alterações das políticas públicas que buscavam reorientar o eixo de formação médica. A não neutralidade não se atém aos aspectos científicos da escritura do texto (como pesquisador da área), mas se inscreve também na forma como os autores, compreendendo-se como profissionais de Saúde engajados na luta pelo SUS, usam-se de forma protagônica quando ocupam espaços políticos, exercendo uma gestão pública disposta a induzir e fomentar mudanças na forma de ensinar e produzir saúde. Depreende-se daí a indissociabilidade dos valores que nos acompanham em nossas diversas formas de atuar em diferentes cenários e exercer influência tanto nas microdecisões quanto no âmbito macro. Qualquer concessão ou justificativa para o não agir em conformidade com os valores que regem nosso trabalho merece esclarecimento.

Isso posto, ao nos defrontarmos com a historicidade das políticas de saúde e a forma como os mecanismos de regulação acionados pelo Estado evidenciaram avanços significativos tentando construir uma linha de coerência entre os diferentes programas voltados à formação médica, temos que lamentar, profundamente, as repercussões que se avizinham frente às descontinuidades dos programas e das parcerias entre Ministério da Saúde (MS) e Ministério da Educação (MEC). Os desafios da sustentabilidade do SUS não prescindem da reorientação do eixo da formação dos médicos e dos demais profissionais da saúde.

As DCN tornaram clara a exigência de uma reforma curricular que afetasse o perfil do médico requerido pelo SUS. Cuidadosamente indicaram a necessidade de integração ensino-serviço, a centralidade da atenção básica na formação, a relevância dos métodos ativos de aprendizagem e a impropriedade de formar um médico distante da perspectiva da interprofissionalidade. Criteriosamente indicaram as parcerias mais resolutas entre as universidades e as secretarias de saúde, firmadas por meio dos Contratos Organizativos de Ação Pública Ensino-Saúde Coapes, entre outras coisas. Reforçaram a necessidade de que os instrumentos de avaliação da qualidade dos cursos de Medicina fossem construídos incluindo dimensões e indicadores próprios da área e que atentassem para a especificidade do compromisso social do futuro médico junto com os serviços de saúde.

A compreensão da delicadeza da mudança fomentou um sem número de programas e ações, inclusive intersetoriais, visando garantir uma maior aderência dos cursos de Medicina aos novos requerimentos da formação médica. Se inicialmente o foco visou afetar o provimento e a expansão de vagas médicas, a grande mudança ocorreu na forma de entender e estabelecer regras para tal processo, invertendo a lógica do mercado como o indicador para a abertura dos novos cursos para atender às demandas legítimas de saúde da população, em especial àquela situada em áreas remotas e distantes dos interesses dos empresários da Educação.

Políticas públicas de Saúde detentoras de compromisso social, tais como o PMM, corajosamente demonstraram ser possível conceber, negociar e implementar determinadas formas de regulação da formação médica com seus previsíveis desdobramentos na qualidade da atenção à saúde da população tergiversar, no entanto, nesse campo é perigoso.

Observa-se que há um campo aberto a disputas que afetam os destinos dos brasileiros no que concerne à saúde como direito inalienável a ser garantido para todos. E há responsabilidades do Estado no que concerne ao respeito às conquistas constitucionais entre as quais se inscreve o SUS. De forma complexa e contraditória, houve certa disjunção temporal entre as conquistas sociais e as normativas que serviriam como balizamento à ação do Estado em defesa das necessidades de saúde da população. Tal hiato contou com a ajuda nada desinteressada de parte da corporação médica que resistiu fortemente aos avanços contidos nas políticas indutoras de mudanças na formação dos médicos que beneficiariam exatamente aqueles que mais necessitam do SUS ou que apenas têm no SUS sua possibilidade de atenção à saúde.

Observamos, atônitos, o crescimento de discursos desqualificadores do SUS e de políticas indutoras de mudanças na lógica da formação médica que são preocupantes. Parece que foram novamente autorizados. Discursos proferidos por profissionais médicos e endossados por suas corporações que se contrapõem às novas DCN e que desconhecem (negam) os avanços do PMM. Para Ball, recorrendo a Foucault, pensar a política como discurso significa pensar “[...] como discursos são construídos e como eles mudam, mas também como eles moldam todos os dias a existência, isto é, em parte pelo menos, como eles ‘formam os objetos de que falam’”11 Ball S. What is policy? 21 years later: reflections on the possibilities of policy research. Discourse. 2015; 36(3):306-13. (p. 2).

Se considerarmos as repercussões desses discursos conservadores fortemente afetados pelo ethos do mercado nas subjetividades dos futuros profissionais médicos, podemos incutir/reforçar o desinteresse por uma Medicina entendida como prática social inserida em um país carente de uma assistência humanizada e integral. Podemos também produzir médicos que se negam a atuar em regiões remotas, sonegando de tantos brasileiros o direito sagrado de ter acesso a tratamento digno e resoluto.

Mas como atores políticos podemos também surpreender e ultrapassar os limites impostos e desconstrutores de programas, voltados a uma formação médica ampliada, organicamente pensada, executada e avaliada que revelou, nos limites temporais de sua existência, a potência que possuía, tendo como um de seus indicadores de êxito ter levado a brasileiros a experiência única de ser cuidado. Os avanços dos números dos programas no que tange às metas atingidas e as repercussões positivas nas vidas dos usuários indicam os riscos da estagnação conforme o texto evidencia.

O que explicaria a pouca disposição para o engajamento neste modelo de formação médica que olha de modo implicado para a realidade de saúde da população brasileira? O que estaria por trás das resistências explicitas ou subliminares que ganharam força após 2016? Há espaços para reação propositiva22 Freitas LC. Os reformadores empresariais da educaça~o e a disputa pelo controle do processo pedago´gico na escola. Educ Soc. 2014; 35(129):1085-114.,33 Sordi MRL, Varani A, Mendes GSCV, organizadoras. Qualidade(s) da escola pública: reinventando a avaliação como resistência. Uberlândia: Navegando Publicações; 2017. diante do que Ball chama de os terrores da perfomatividade44 Ball S. Reformar escolas/reformar professores e os terrores da performatividade. Rev Port Educ. 2002; 15(2):3-23., que acabam afetando a própria subjetividade do que é ser profissional nestes tempos nebulosos?

Mais do que nunca é necessário reagirmos a esse estado de conformismo social55 Sousa Santos B. Para uma pedagogia do conflito. In: Silva HL, Azevedo JC, Santos ES. Novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais Porto Alegre: Sulina; 1996. e atuarmos politicamente em nossos espaços de trabalho. Reconhecer as lógicas impostas pelas políticas neoliberais implica a luta pela superação de uma visão estática e racional da política. Para Ball66 Ball S. Textos, discursos y trayectorias de la política: la teoria estratégica. Paginas. Rev Esc Cienc Educ. 2002; 3(2):19-33., as políticas são estabelecidas em arenas de disputas sociais, econômicas, ideológicas, etc. O discurso político, por algum momento, torna-se hegemônico, mas estará sempre em disputas com outros discursos que se fazem presentes nessas arenas.

Podemos refletir a respeito das políticas em termos de espaços e em termos de tempo, de trajetórias políticas, movimentos de políticas no decorrer do tempo e de uma variedade de espaços. Uma política tem uma trajetória semelhante à de um foguete: decola, atravessa o espaço e depois aterrissa. Algumas vezes, acidenta-se; em outras, atinge uma realização espetacular, mas move-se no decorrer do tempo e, em algumas vezes, simplesmente desaparece77 Mainardes J, Marcondes MI. Entrevista com Stephen Ball: um diálogo sobre justiça social, pesquisa e política educacional. Educ Soc. 2009; 30(106):303-18. (p. 306-7).

Parece necessário admitir que nossas conquistas transformadas em políticas públicas de Saúde referenciadas nos interesses da população sofreram forte abalo. Porém, estas que se insinuam e que nos preocupam não se estabelecerão linearmente. Encontrarão atores políticos, situados em diferentes espaços, comprometidos com o bem comum e cientes de seu contexto de influência na realidade; e certamente saberão resistir e lutar em nome de bandeiras históricas.

Trata-se de reinventar possibilidades emancipatórias. Algumas vezes, certa desobediência político-pedagógica aos padrões de qualidade que pretendem nos impor no campo da formação médica pode retratar a coragem cívica88 Afonso AJ. Para uma conceptualização alternativa de accountability em educação. Educ Soc. 2012; 33(119):471-84. que estamos dispostos a praticar em nome dos direitos à saúde de nossa população.

References

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    Sousa Santos B. Para uma pedagogia do conflito. In: Silva HL, Azevedo JC, Santos ES. Novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais Porto Alegre: Sulina; 1996.
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  • 8
    Afonso AJ. Para uma conceptualização alternativa de accountability em educação. Educ Soc. 2012; 33(119):471-84.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    17 Dez 2018
  • Aceito
    04 Jan 2019
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