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Percepções da integração ensino-serviço-comunidade: contribuições para a formação e o cuidado integral em saúde* * Pesquisa financiada pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e por bolsa de iniciação científica do Programa PIBIC-CNPq.

Perceptions of teaching-service-community integration: contributions to health education and to comprehensive healthcare

Percepciones de la integración enseñanza-servicio-comunidad: contribuciones para la formación y el cuidado integral en salud

Resumos

O presente estudo objetiva conhecer a percepção dos sujeitos no processo de ensino-aprendizagem-cuidado no Sistema Único de Saúde (SUS), com base no perfil profissional e nas competências e habilidades recomendadas nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) dos cursos de graduação da saúde. Trata-se de pesquisa qualitativa realizada por meio de técnicas de entrevista não diretiva e grupos focais, envolvendo 42 participantes, sendo: professores, estudantes e gestores das instituições de ensino além de usuários, profissionais e gestores da Secretaria Municipal de Promoção de Saúde (SEMUS). A percepção dos diferentes sujeitos que produzem e vivenciam a integração ensino-serviço-comunidade (IESC) revela afinidade com o perfil profissional e com as competências e habilidades comuns recomendadas nas DCNs dos cursos de graduação da área da saúde. A IESC é compreendida como espaço necessário para a efetivação das DCNs e para se alcançar o perfil profissional proposto.

Política pública; Sistemas de saúde; Serviços de integração docente-assistencial; Diretrizes curriculares nacionais


The study aims to investigate the perception of subjects in the teaching-learning-care process within the Brazilian National Health System (SUS), based on the professional profile and on the skills and competencies recommended by the National Curricular Guidelines (DCNs) for undergraduate programs in the area of health. It is a qualitative research carried out through non-directive interviews and focus groups, involving 42 participants: teachers, students and managers of education institutions, as well as users, professionals and managers of the Municipal Health Promotion Department (SEMUS). The perception of different subjects who produce and experience teaching-service-community integration (TSCI) reveals affinity with the professional profile and with the common skills and competencies recommended by the DCNs. TSCI is understood as a necessary space for the fulfilment of the DCNs and of the proposed professional profile.

Public policy; Health systems; Teaching care integration services; National curricular guidelines


El presente estudio tiene el objetivo de conocer la percepción de los sujetos en el proceso de enseñanza-aprendizaje-cuidado en el Sistema Brasileño de Salud (SUS), con base en el perfil profesional y en las competencias y habilidades recomendadas en las Directrices Curriculares Nacionales (DCNs) de los cursos de graduación de la salud. Se trata de una encuesta cualitativa por medio de técnicas de entrevista no-directiva y grupos focales, envolviendo a 42 participantes, siendo ellos: profesores, estudiantes y gestores de las instituciones de enseñanza, además de usuarios, profesionales y gestores de la Secretaría Municipal de Promoción de Salud (SEMUS). La percepción de los diferentes sujetos que producen y experimentan la integración enseñanza-servicio-comunidad (IESC) revela afinidad con el perfil profesional y con las competencias y habilidades comunes recomendadas en las Directrices Curriculares Nacionales (DCNs) de los cursos de graduación del área de la salud. La IESC se entiende como un espacio necesario para hacer efectivas las DCNs y para alcanzar el perfil profesional propuesto.

Política pública; Sistemas de salud; Servicios de integración docente-asistencial; Directrices curriculares nacionales


Introdução

No Brasil a IESC representa relevante estratégia para a efetivação do SUS ao articular e buscar sinergia entre a formação profissional, oferecida pelos cursos de graduação, e o serviço de atenção à saúde ofertado no SUS. Dessa forma, no contexto das políticas ministeriais da área da educação e da saúde, é possível identificar estratégias tanto de regulação, como as DCNs, quanto de fomento. Dentre as mais relevantes políticas de fomento financiadas pelo Estado brasileiro, destacam-se os programas da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), órgão criado para atender às políticas dos ministérios da Saúde e da Educação11. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 569, de 8 de Dezembro de 2017. Brasília: Conselho Nacional de Saúde; 2017..

No contexto da formação em saúde desenvolvida no SUS, as críticas ao “modelo tradicional” estão na base da reforma sanitária brasileira, constituindo um problema a ser enfrentado, devido à tendência à perpetuação de modelos conservadores nas instituições de ensino, centrados prioritariamente em aparelhos, sistemas orgânicos e tecnologias altamente especializadas, gerando dependência de procedimentos e equipamentos de apoio diagnóstico e terapêutico. A hegemonia da abordagem biomédica e de densa tecnologia prejudica a produção de subjetividade, as habilidades de pensamento e o conhecimento dos princípios do SUS. Tal crítica pode ser estendida ao trabalho, pois na prática dos serviços é possível perceber abordagens e ações perpetuadas na lógica da medicalização, verticalização de programas e ações fragmentadas22. Ceccim BR, Feuerwerker LCM. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis. 2004; 14(1):41-65.,33. Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. O sistema de saúde brasileiro: história, avanços e desafios. Lancet. 2011; 377(9779):1778-97. (Série Saúde no Brasil)..

Como alternativa ao modelo biomédico, o cuidado integral compreende o usuário do sistema de saúde sujeito no seu contexto biopsicossocial, pois implica uma interação especial entre profissional e usuário, na qual o afeto e a empatia são fundamentais, enxergando o usuário em sua dimensão integral. Dessa forma, a integralidade seria o princípio norteador das práticas em saúde, determinando uma nova forma de cuidar. Trata-se de um conceito complexo e polissêmico, na medida em que serve como visão filosófica e orienta as práticas de cuidado, devendo também orientar simultaneamente o ensino, a partir de práticas que priorizem o encontro entre o profissional e usuário no seu contexto de vida, na sua realidade e no seu território44. Kalichman AO, Ayres JRCM. Integralidade e tecnologias de atenção à saúde: uma narrativa sobre contribuições conceituais à construção do princípio da integralidade no SUS. Cad Saude Publica. 2016; 32(8):e001834..

Nesse contexto, a IESC pode representar uma possibilidade para qualificar simultaneamente a formação e o cuidado em saúde no SUS, com vistas a alcançar a efetivação de seus princípios, como a integralidade do cuidado, com maior resolutividade da atenção em saúde. O objetivo do presente estudo é conhecer a percepção dos sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem-cuidado nos cenários do SUS, tendo como base o perfil profissional e as competências e habilidades comuns recomendadas nas DCNs dos cursos de graduação da área da saúde.

IESC: uma política em construção

A proposta de integrar as instituições de ensino com o serviço público da área da saúde no Brasil não é recente. Inicialmente denominada Integração Docente Assistencial (IDA), já era preconizada desde a década de 1970 pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC). Nessa época, já se recomendava a conjugação de esforços entre instituições de educação superior e serviços de saúde. Três aspectos eram destacados: a prestação de serviços adequados às necessidades concretas da população, a produção de conhecimentos e a formação dos recursos humanos55. Caetano JÁ, Diniz RCM, Soares E. Integração docente-assistencial sob a ótica dos profissionais de saúde. Cogitare Enferm. 2009; 4(14):638-44..

Em continuidade ao avanço da integração do ensino com o serviço no Brasil, destacam-se os projetos da Uma Nova Iniciativa na Relação dos Profissionais de Saúde: União com a Comunidade (UNI), que a partir de 1990, envolveram 23 cidades da América Latina, seis delas no Brasil (Botucatu, Marília, Londrina, Natal, Salvador e Brasília). O principal objetivo era estimular o desenvolvimento simultâneo da educação e da assistência à saúde com ações comunitárias, criando e difundindo modelos passíveis de replicação nesses campos a partir de fomentos internacionais66. Kisil M, Chaves M. Programa UNI: una nueva iniciativa en la educación de los profesionales de la salud. Battle Creek: W. K. Kellogg Foundation; 1994..

No contexto político e acadêmico, essas iniciativas deram origem à Associação Brasileira Rede Unida (Rede Unida), que reúne projetos, instituições e pessoas interessadas na mudança da formação dos profissionais de saúde e na consolidação de um sistema de saúde equitativo, eficaz e com forte participação social77. Redeunida. Apresentação: Associação Brasileira Rede Unida [Internet]. Porto Alegre: Redeunida; 2019 [citado 12 Ago 2019]. Disponível em: http://www.redeunida.org.br/en/institucional/apresentacao/
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Acompanhado esse movimento, no ano de 2015, a Semus de Blumenau, SC e a Universidade Blumenau receberam um incentivo financeiro do Ministério da Saúde e da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) pelo reconhecimento do projeto intitulado “Inovasus: por uma Política Municipal de Saúde em Blumenau, SC”, para desenvolver uma política participativa de IESC. Esse processo foi concretizado em sete eventos, envolvendo estudantes, professores e gestores das instituições de ensino, além de usuários, profissionais e gestores do SUS com objetivo de divulgar a relevância e sensibilizar para a construção de uma política municipal de IESC, que foi definida coletivamente na 2ª Conferência Municipal de IESC de Blumenau em 2018.

O município conta com uma universidade pública constituída como autarquia municipal, de natureza jurídica pública conforme a lei municipal. Essa instituição possui 11 cursos de graduação da área da saúde e um programa de pós-graduação em nível de mestrado em Saúde Coletiva. Dessa forma, a cidade apresenta uma história de integração entre o ensino e o SUS na área da saúde, iniciada há duas décadas, acompanhando as políticas interministeriais de educação e saúde.

Diretrizes curriculares para os cursos da saúde: princípios comuns

Conforme a Lei 8.080/9088. Brasil. Presidência da República. Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 20 Set 1990., compete ao SUS o ordenamento da formação na área da saúde. Esse preceito legal concretiza-se como um grande desafio para o SUS e as instituições de ensino superior (IES), demandando a reforma de currículos e práticas, superando concepções fortemente arraigadas no contexto acadêmico.

Para orientar as IES e impulsionar mudanças em direção aos princípios do SUS, o MEC publicou sucessivas edições das DCNs para os cursos da Saúde a partir do ano 2000. Destaca-se a formação de um profissional generalista, com formação humanista, incluindo o SUS como cenário de ensino-aprendizagem, em oposição ao modelo considerado hegemônico99. Almeida M. Diretrizes curriculares nacionais para os cursos universitários da área da saúde. 2a ed. Londrina: Rede Unida; 2005..

Há que se considerar a autonomia universitária na definição dos currículos de graduação e a competência do MEC na avaliação e regulação das IES no Brasil, gerando relativo tensionamento institucional. Cabe destacar ainda a atuação do Conselho Nacional de Saúde (CNS) que, na Resolução nº 569 de 2017, reafirma a prerrogativa constitucional do SUS como ordenador da formação da área da saúde. O Parecer Técnico do CNS nº 300/2017 apresenta os princípios gerais a serem incorporados nas DCNs da saúde, constituindo elementos norteadores para os currículos e as atividades didático-pedagógicas; propõe ainda o perfil dos egressos e aprova os pressupostos, princípios e diretrizes comuns a todos os cursos que devem ser construídos na perspectiva do controle/participação social em saúde1010. Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Secretaria Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Brasil [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2017 [citado 18 Ago 2017]. Disponível em: http://portalms.saude.gov.br/sgtes
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Apesar das especificidades de cada curso, é possível identificar semelhanças comuns a todos os profissionais: “Os cursos visam um profissional da saúde com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, para atuar em todos os níveis de atenção à saúde do sistema de saúde vigente no país”1111. Jankevicius JV, Humerez DC. Conceitos básicos das diretrizes curriculares nacionais (DCNs) dos cursos de graduação da área de saúde [Internet]. Brasília: Conselho Federal de Enfermagem; 2015 [citado 10 Ago 2019]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/conceitos-basicos-dasdiretrizes-curriculares-nacionais-dcns-dos-cursosd-graduacao-da-area-desaude_36239.html
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Todos os cursos da saúde apresentam pelo menos seis competências e habilidades gerais em comum1111. Jankevicius JV, Humerez DC. Conceitos básicos das diretrizes curriculares nacionais (DCNs) dos cursos de graduação da área de saúde [Internet]. Brasília: Conselho Federal de Enfermagem; 2015 [citado 10 Ago 2019]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/conceitos-basicos-dasdiretrizes-curriculares-nacionais-dcns-dos-cursosd-graduacao-da-area-desaude_36239.html
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: “atenção à saúde”: ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde; “tomada de decisões”: uso apropriado dos recursos disponíveis; “comunicação”: interação e confidencialidade com os profissionais da saúde e com o público; “liderança”: trabalho em equipe multidisciplinar; “administração e gerenciamento”: do SUS; “educação permanente”: capacidade de aprender continuamente e “aprender a aprender”.

Percurso metodológico da pesquisa

A pesquisa, de abordagem qualitativa, foi desenvolvida por meio de técnicas de entrevista não diretiva e grupos focais. Participaram 42 voluntários, sendo: professores, estudantes e gestores das instituições de ensino, usuários do SUS, profissionais e gestores da SEMUS do município de Blumenau – estado de Santa Catarina.

Na técnica de grupo focal, a escolha dos participantes foi intencional, envolvendo estudantes inseridos no SUS e usuários, em um total de vinte participantes, considerando a maior viabilidade para reunião desses segmentos e a relevância de sua implicação com o tema do ensino, aprendizagem e cuidado.

Foram realizados dois grupos focais, sendo um com 13 estudantes (E) e outro com sete usuários (U). Os grupos tiveram duração de uma hora e meia e de duas horas, respectivamente, conduzidos de modo que os participantes esboçassem seus sentimentos e pensamentos de forma livre, instigados a refletir sobre os temas. Nos encontros, a temática utilizada foi a relevância da presença do estudante nos cenários de prática e implicações para a formação e o cuidado. As questões disparadoras para o desenvolvimento dos grupos focais foram “Como vocês percebem a presença do estudante no SUS?” e “Como isso pode contribuir para a formação e o cuidado?”. As discussões foram registradas em gravação de áudio, com consentimento dos participantes. A atividade foi conduzida por duas moderadoras, sendo uma assistente social, estudante de mestrado, e uma estudante de graduação em psicologia.

Além dos grupos focais, foram realizadas 22 entrevistas individuais não estruturadas na modalidade não dirigida, em ambiente reservado, sendo todas gravadas em áudio para posterior transcrição. As perguntas utilizadas foram: “qual é a sua concepção ou ideia sobre a relação entre o ensino (estudantes), serviço de saúde (equipes do SUS) e comunidade (usuários)? Quais suas experiências com essa integração? O que você propõe para melhorar essa relação?”

Das entrevistas participaram cinco docentes (D), quatro gestores de IES (GE), quatro gestores do SUS (GS), cinco profissionais do SUS (P) e quatro representantes do Controle Social (CS), todos com experiência em IESC. Após as transcrições das falas dos participantes, foi realizada análise considerando as competências e habilidades gerais comuns recomendadas nas DCNs referentes às 14 profissões da área da saúde1111. Jankevicius JV, Humerez DC. Conceitos básicos das diretrizes curriculares nacionais (DCNs) dos cursos de graduação da área de saúde [Internet]. Brasília: Conselho Federal de Enfermagem; 2015 [citado 10 Ago 2019]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/conceitos-basicos-dasdiretrizes-curriculares-nacionais-dcns-dos-cursosd-graduacao-da-area-desaude_36239.html
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A escolha dos sujeitos participantes do estudo considerou a necessária experiência prévia em atividades de Iesc, sendo possível a articulação dos dados coletados nas duas técnicas, grupos focais e entrevistas, devido à convergência dos objetivos e similaridade dos roteiros utilizados na coleta dos dados, sendo ambas as técnicas conduzidas pelos mesmos pesquisadores. O convite para participação foi direcionado aos profissionais das equipes da atenção básica que identificaram e convidaram os usuários. Os docentes e os gestores foram diretamente convidados pelos pesquisadores.

O referencial utilizado para a análise dos dados foi o conceito da educação baseada na comunidade (EBC), considerando sua perspectiva global para a educação em saúde e sua relevante trajetória no Brasil, com destaque para a inserção na realidade, a superação da relação teoria-prática, o potencial protagonismo dos diferentes sujeitos e a articulação das atividades de ensinar, aprender e cuidar1212. Bollela VR, Germani AC, Campos HH, Amaral EM. Educação baseada na comunidade para as profissões da saúde: aprendendo com a experiência brasileira. Ribeirão Preto: FUNPEC-Editora; 2014.. Adicionalmente, as DCNs deram origem às categorias de análise, com base nas falas dos sujeitos, considerando as competências e habilidades comuns recomendadas para as profissões da área da saúde1111. Jankevicius JV, Humerez DC. Conceitos básicos das diretrizes curriculares nacionais (DCNs) dos cursos de graduação da área de saúde [Internet]. Brasília: Conselho Federal de Enfermagem; 2015 [citado 10 Ago 2019]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/conceitos-basicos-dasdiretrizes-curriculares-nacionais-dcns-dos-cursosd-graduacao-da-area-desaude_36239.html
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Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o protocolo nº 2.025.638/2017.

Reverberações das DCNs no contexto da IESC

Atenção à saúde: ser capaz de promover ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde

Houve falas desta categoria em todos os segmentos, sendo mais presente entre os profissionais do SUS e docentes, revelando que a presença dos estudantes possibilita maior diversificação das atividades na equipe:

Eu aprendi muito com elas [estagiárias]. Houve troca, tanto que elas me deixaram segura [...] assim [...] pros pacientes, pra passar aquela orientação [promoção de saúde] pra eles. (P2)

As falas apontam o estudante como alguém que colabora com o serviço e que potencializa o trabalho, ampliando a cobertura. Nesse sentido, estudo de revisão1313. Mendes TMC, Bezerra HS, Carvalho YM, Silva LG, Souza CMCL, Andrade FB. Interação ensino-serviço-comunidade no Brasil e o que dizem os atores dos cenários de prática: uma revisão integrativa. Rev Cienc Plur. 2018; 4(1):98-116. identificou a ampliação de atividades diferenciadas nas unidades de saúde como consequência positiva da IESC, bem como a melhoria da qualidade do serviço.

As falas a seguir apontam para a ampliação das práticas para além do foco na doença, incluindo a prevenção e a promoção de saúde:

Eles [estudantes] veem uma possibilidade de fazer e praticar saúde, de prevenção, não só doença. E promover saúde. (U1)

As atividades que são feitas na unidade trazem usuários pra dentro da unidade não só numa condição de uma patologia, mas uma condição de prevenção, ou até mesmo de promoção de saúde. (D1)

No entanto, é necessário reconhecer os empecilhos e entraves no processo de integração:

A unidade [de saúde] fica lá com toda a demanda que eu gerei enquanto professora, mas não me interessa, só volto lá final de janeiro. Então, como quebrar esse intervalo pra poder propiciar um bom trabalho? (D4)

[...] Parece que tem muitos professores que percebem isso [importância de ensinar no SUS], mas parece que tem um empecilho no caminho, que é a instituição [de ensino]. (E3)

[...] A universidade tem uma tendência maior de se fechar e achar que é dona do conhecimento, e o mercado olha a academia justamente desse jeito, porque a gente tem uma dificuldade de unir teoria e prática. (GE1)

[...] O nosso profissional de saúde não se vê como preceptor, ele não se vê como alguém que vai estar em contato com acadêmico, e que vai estar apoiando esse acadêmico, não temos essa identidade. (GS1)

As falas revelam a necessidade de arranjos institucionais, rompendo com a cultura de “uso do cenário” apenas como prática. Tal relação entre ensino e serviço pode prejudicar tanto o cuidado ao usuário quanto a formação profissional. Nesse sentido, políticas institucionais precisam ser estabelecidas para superar os desafios apresentados nas falas dos sujeitos no presente estudo1313. Mendes TMC, Bezerra HS, Carvalho YM, Silva LG, Souza CMCL, Andrade FB. Interação ensino-serviço-comunidade no Brasil e o que dizem os atores dos cenários de prática: uma revisão integrativa. Rev Cienc Plur. 2018; 4(1):98-116..

Tomada de decisões: uso apropriado de recursos disponíveis

Esta categoria foi observada na fala de um docente e de estudantes como sujeitos ativos no processo, capazes de tomar decisões:

Foi um desafio [...] Várias situações que aconteceram que a gente teve que aprender a contornar. Foi uma dificuldade que a gente teve que aprender com ela. [...] O estudante também tem que estar preparado pra chegar lá. Ele tem que botar na cabeça dele de como ele vai chegar, o que ele vai fazer lá. (E1)

A Iesc se configura como propiciadora de metodologias ativas caracterizadas pela problematização, potencializando autonomia intelectual. Inseridos no contexto, os estudantes se deparam com os problemas da população, desenvolvendo habilidades para intervir nos cenários e tomar decisões1414. Brandão ERM, Rocha SV, Silva SS. Práticas de integração: reorientando a formação médica. Rev Bras Educ Med. 2013; 37(4):573-7..

No Gradua [projeto PET-Saúde] eu tenho uma autonomia que a preceptora me permite ter. A gente treina antes, a gente sabe o que vai falar, pesquisa, entrevista... a gente já vai preparado. (E5)

Esse momento de liberdade que ele tem de estar na unidade, de projetar junto com a demanda da unidade, de estar trabalhando dentro do SUS como petiano é bem diferente [da sala de aula]. (D4)

Da mesma forma, estudo sobre a perspectiva de estudantes envolvidos em atividades de EBC, realizado na universidade de Gezira, no Sudão, identificou a possibilidade de tomada de decisão em intervenções apropriadas às demandas e necessidades da comunidade1515. Elamin SAE, Ahmed AAH, Sovla HMMK, Younis AAH, Mukhtar WNO. Community-based medical education from Gezira medical students’ perspective. J Med Educ. 2018; 17(4):215-21..

Comunicação: interação e confidencialidade com profissionais e o público

Os participantes do presente estudo apontam a IESC como potencializadora da interação entre os sujeitos envolvidos no ensino-aprendizagem e no cuidado. São valorizados aspectos como o contato com a realidade da comunidade e mudanças comportamentais e éticas. A vivência direta com a equipe e com os usuários proporciona empatia e compreensão do processo saúde-doença:

Acho que a experiência pra eles [estudantes] quando vêm trabalhar no SUS é boa por causa disso, trabalho, de se darem bem com a equipe da unidade e com a própria comunidade. (P2)

A ida dos estudantes nas unidades cria o paradigma de conhecer o trabalho prático da saúde pública e as realidades locais vividas pelas unidades. Esta ação tem fundamental importância no atendimento à população e, não menos importante, na formação dos estudantes. (GS2)

Os profissionais do SUS valorizam a comunicação e a interação dos estudantes com a comunidade, indicando a necessidade de melhorar essa habilidade com os estudantes; e inserindo o preceptor e a comunidade no contexto do ensino:

Eu vi uma falta de comunicação do estudante com a comunidade [...]. Parece que vinham só pra cumprir a carga horária. [...] Eu senti essa falta do contato das estagiárias com a comunidade, [...] de fazer as visitas com os agentes de saúde. (P2)

Estudo de pesquisa-ação realizado na Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, utilizando a estratégia de EBC, defende um engajamento autêntico da comunidade na formação de profissionais de saúde, com ênfase crescente na responsabilidade social. Consideram os pacientes “especialistas em experiências vividas” e valorizam as oportunidades desses de “retribuírem” e melhorarem os cuidados de saúde, assumindo um papel ativo na educação dos profissionais de saúde. Enfatizam que os pacientes e as organizações comunitárias têm uma gama de conhecimentos que podem ajudar a preparar profissionais de saúde para trabalhar em parceria com pacientes, comunidades e outros profissionais. Por fim, concluem que as parcerias entre comunidade e universidade em nível institucional ajudam as universidades e as escolas profissionais de saúde a serem mais responsivas socialmente e prestarem contas às comunidades que servem1616. Kline C, Asadian W, Godolphin W, Graham S, Hewitt C, Towle A. From “academic projectitis” to partnership: community perspectives for authentic community engagement in health professional education. Engaged Scholar J. 2018; 4(1):79-96..

Estudo de revisão1717. Kuabara CTM, Sales PRS, Marin MJS, Tonhom SFR. Integração ensino e serviços de saúde: uma revisão integrativa da literatura. REME Rev Min Enferm. 2014; 18(1):195-201. encontrou desafios nas relações assimétricas e de poder entre os atores envolvidos, com resistência para trabalhar em conjunto, dificuldades institucionais relacionadas ao distanciamento entre o ensino e o serviço e ações desarticuladas, não planejadas em conjunto. Tais dificuldades impactam no processo de trabalho e na aprendizagem do estudante, bem como no cuidado ao usuário.

O desenvolvimento dessa habilidade de comunicação no contexto da Iesc depende do desejo anterior de integrar ações e objetivos. Pressupõe que integrar indica conexão e vínculo entre sujeitos diferentes por objetivos comuns e respeito aos objetivos das partes, superando limitações e dificuldades, em um movimento de reciprocidade. O diálogo, portanto, é peça fundamental e a base para fortalecer a Iesc1818. Brehmer LCF, Ramos FRS. Experiências de integração ensino-serviço no processo de formação profissional em saúde: revisão integrativa. Rev Eletronica Enferm. 2014; 1(16):228-37..

Percebemos uma concordância entre diferentes segmentos de participantes a respeito de como a Iesc possibilita a quebra de velhos paradigmas, em uma visão mais realista do SUS, rompendo preconceitos para uma melhor interação e confidencialidade entre estudantes, profissionais e a comunidade:

Muitas pessoas nunca fizeram atendimento no SUS [...] quer dizer, fizeram mas não sabem, e acabam ficando numa bolha, [...] bem preconceituosa, [...], e quando vai pra campo, se transforma, vê uma outra realidade, acaba aprendendo coisas novas que [...] não tem material teórico suficiente que dê conta da experiência de você viver. (D6)

Vejo que quando eles [estudantes] não conheciam esse programa [de extensão], eles viam o SUS de uma maneira diferente, tipo um ESF cheio de macas e doentes, e agora eles enxergam o SUS de outra maneira, e pensam em trabalhar no SUS quando se formar. (U1)

Outro estudo1919. Fonsêca GS, Junqueira SR, Zilbovicius C, Araujo ME. Educação pelo trabalho: reorientando a formação de profissionais da saúde. Interface (Botucatu). 2014; 18(50):571-83. também encontrou resultados que apontam para a quebra de paradigmas e preconceitos por parte dos estudantes que vão para os cenários do SUS. Os estudantes encontram realidades diferentes, um sistema de saúde diferente do que o imaginado, o que desperta, segundo os autores, surpresa e admiração.

Essa categoria, que enfatiza a necessidade de uma maior interação e confidencialidade entre estudantes, equipe e usuários do serviço, identifica-se com a Política Nacional de Humanização2020. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização. Formação e intervenção. Brasília: Ministério da Saúde; 2010.. Dessa forma, a perspectiva de formação mais humanizada, na qual o estudante é sujeito ativo que agrega, trabalhando junto com a equipe, é recorrente nas falas dos participantes, conforme segue:

Nosso petiano [estudante do projeto de extensão PET – Gradua-SUS] precisa do usuário, ele se sensibiliza com o usuário, e o usuário já sente essa diferença [...] ele tem uma escuta qualificada [...] ele tem a oportunidade, a afetividade. (D4)

Entrei [no projeto] pra entender a realidade da comunidade [...]. É muito gratificante ir lá e ver que o que você tá falando lá tá trazendo alguma coisa pro paciente. E isso pra mim é o que mais me enriquece, é o que me faz continuar no PET. (E4)

No sentido de fortalecer a comunicação na IESC, estudo evidencia a importância de sensibilizar os atores envolvidos, principalmente estudantes, no processo de integração ensino-serviço-comunidade ao relatar uma experiência exitosa da reorientação da formação profissional em saúde para a melhoria do cuidado em saúde. Os resultados obtidos com a implementação do programa apontam para a qualificação do serviço, o fortalecimento do vínculo entre as instituições e os agentes envolvidos e resultando em uma aprendizagem mais crítica e reflexiva2121. Torres CPT, Marini D, Munhoz KJ, Roda MAS, Hadida MV, Maruta CA. Nova visão da integração ensino-serviço para melhoria do cuidado à saúde. Bol Instit Saude. 2018; 19 Supl:63-6..

Liderança: trabalho em equipe multidisciplinar

Embora o tema da liderança não tenha aparecido de forma direta nas falas, a integração de conhecimentos na perspectiva da formação e do trabalho na saúde esteve presente e tem sido valorizada e concretizada a partir do interprofissionalismo2222. Buring SM, Bhushan A, Broeseker A, Conway S, Duncan-Hewitt W, Hansen L, et al. Interprofessional education: definitions, student competencies, and guidelines for implementation. Am J Pharm Educ. 2009; 73(4):1-8.. Essa categoria foi representada entre estudantes e docentes.

As seguintes falas dos estudantes indicam o reconhecimento do trabalho multidisciplinar da equipe como algo presente, positivo e necessário para a formação:

Ela é de enfermagem, ela é de psicologia, a gente trabalha junto [...] Eu aprendo muito mais com os profissionais do NAD, eles me deram o conhecimento que eu tenho pra atuar lá. (E5)

A minha prática no SUS não vai ser só medicina. [...] Que lá no campo o docente consiga fazer essa multidisciplinaridade, e ter esse interprofissionalismo. A gente precisa aprender a ter essa associação com outras pessoas. (E4)

Nas falas dos sujeitos a seguir se percebe um desejo por mudanças curriculares que incentivem práticas interdisciplinares, com integração entre os cursos para o trabalho em equipe multidisciplinar:

Matérias que envolvam mais cursos, tem que fazer essa integração. (E3)

A gente tá só entre estudantes da medicina [no curso], e chega lá e vê que não é assim na unidade [de ESF], tem enfermeiro, técnico, psicólogo, e todo mundo tem que trabalhar junto, então acho que essa política [IESC] também mostra um pouco isso e que a universidade deixa muito a desejar. (E5)

A universidade está falhando quando deixa aquelas disciplinas de eixo comum como ética e saúde comunitária [...] nossa não está boa, não estamos unidos o suficiente. (D3)

A habilidade de liderança nas equipes de atenção à saúde não foi diretamente referida nas falas dos participantes deste estudo, sendo também sintomático o fato de haver uma escassez de pesquisas acerca do tema. No entanto, consideramos a interprofissionalidade e o trabalho em equipe multidisciplinar fatores essenciais no desenvolvimento de habilidades de liderança.

Nesse sentido, estudo evidencia o papel da EBC na reorientação da formação profissional na direção de aprimorar e desenvolver habilidades de liderança e trabalho em equipe de estudantes nos cenários de prática1515. Elamin SAE, Ahmed AAH, Sovla HMMK, Younis AAH, Mukhtar WNO. Community-based medical education from Gezira medical students’ perspective. J Med Educ. 2018; 17(4):215-21..

É importante considerar a IESC enquanto cenário estratégico para a EBC e como potencializadora de habilidades e competências preconizadas pelas DCNs.

Administração e gerenciamento no SUS

O desafio da gestão no SUS passa pela formação e qualificação de profissionais para exercerem essa função, principalmente na dimensão da administração e do gerenciamento dos serviços. Conforme relatos de estudos2323. Ferreira J, Santos LES, Vilas Boas JCB, Hachem HJ. Gestão e saúde pública. Preparação profissional e outros problemas na gerência do SUS. Rev Jus Navigandi [Internet]. 2018 [citado 10 Ago 2019]. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63470/gestao-e-saude-publica
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,2424. Polati AM, Oliveira DGS, Amaral VS, Expedito AC, Resende MAS, Oliveira DM. Os desafios da gestão do SUS sob a ótica de gestores municipais de saúde. J Manag Prim Health Care [Internet]. 2016 [citado 10 Ago 2019]; 7(1):2. Disponível em: http://www.jmphc.com.br/jmphc/article/view/348
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, identifica-se uma formação deficiente do próprio gestor frente à complexidade do SUS, evidenciada pelo fato de a maioria dos gestores não apresentarem formação ou experiência prévia no setor saúde. Também nessa dimensão, a formação no SUS representa um diferencial segundo os gestores:

Eu sou um profissional diferente por isso, na minha formação eu tive oportunidade de participar não do modelo PET [projeto de extensão], mas de participar da pesquisa e extensão enquanto estudante, e eu me sentia diferente dos meus colegas, e como profissional isso me agregou muito [...] Oportunidades que acabei tendo, a forma de pensar, talvez até por essa experiência estou no cargo que hoje ocupo [gerente de saúde]. (GS1)

É um profissional diferente [aquele que vivencia a IESC], é um profissional que chega para desenvolver o seu trabalho, entendendo melhor o sistema, sabendo se colocar dentro desse sistema, fazendo os questionamentos e reivindicações coerentes; na nossa prática diária, isso é um divisor claro. (GE1)

Denota-se a necessidade de se considerar as atividades e os cenários de gestão e gerenciamento como campo de atuação na Iesc para além dos serviços de atenção.

Estudo realizado nos EUA pela Associação de Programas Universitários em Administração em Saúde (AUPHA), utilizando abordagem curricular e avaliação baseados em competências, identificou, na formação de estudantes de graduação, um aumento de ênfase em gerenciamento de relacionamento, trabalho em equipe e competências interpessoais. Também verificou, nos últimos sete anos, uma duplicação da participação de preceptores na avaliação das competências de estudantes de graduação2525. Cellucci LW, Molinari C, Young J. Competency-based education in undergraduate programs certified by the association of university programs in health administration. J Health Admin Educ. 2018; 35(2):175-85..

As características da IESC apresentam grande potencial para o desenvolvimento dessas competências.

Educação permanente: aprender continuamente e aprender a aprender

Na perspectiva dos estudantes entrevistados, ficou evidente a percepção do SUS como potencializador da aprendizagem com autonomia, não limitada no docente ou na sala de aula:

[...] Acho de extrema importância o ensino se juntar com o serviço [...] pra que a gente consiga aprender, porque é ali que a gente vai aprender, [...] aprender na prática, longe dessa teoria que em sala de aula [...]. (E1)

O ensino não é só o professor. [...] A comunidade principalmente, porque é nela que tu vai aprender, ela tem que estar junto no meio e nos nortear, porque senão a gente não sabe como intervir e como melhorar. (E4)

Eu acho que [o SUS] é nosso principal local de aprendizagem. (E5)

Na perspectiva desses estudantes, o SUS é considerado um local de aprendizagem essencial. Nesse sentido, Campos et al.2626. Campos FE, Brenelli SL, Lobo LC, Haddad AE. O SUS como escola: a responsabilidade social com a atenção à saúde da população e com a aprendizagem dos futuros profissionais de saúde. Rev Bras Educ Med. 2009; 33(4):513-4.defendem o SUS como escola e criticam a aprendizagem centrada no docente por considerá-la “socialmente irresponsável”. Segundo os autores, o aprendizado requer elaboração e transformação do novo conhecimento com ênfase nos processos biopsicossociais em um contexto ampliado.

Em concordância com tais dados, estudo sobre a percepção de estudantes de odontologia a respeito da inserção destes no SUS identifica a ESF como propiciadora de experiências de aprendizagem fora da sala de aula, contexto no qual os estudantes entendem o território como lugar que ensina, não apenas onde se pratica. Os estágios são compreendidos como potencializadores de habilidades e competências do estudante, pois possibilitam a problematização e planejamento contextualizados na realidade do serviço2727. Forte FDS, Pontes AA, Morais HGF, Barbosa AS, Sousa Nétto OB. Olhar discente e a formação em Odontologia: interseções possíveis com a Estratégia Saúde da Família. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170407..

No contexto institucional acadêmico, é necessário avaliar a consolidação das DCNs nos cursos, acompanhando as mudanças curriculares. Segundo os relatos a seguir, é possível perceber um distanciamento do currículo tradicional – ainda hegemônico nas IES – em relação ao SUS, apontando que o serviço público de saúde é pouco considerado na academia:

Acho que isso é uma dificuldade nacional dos cursos de graduação da saúde. O SUS é pouco mostrado. (E2)

Nem todos os currículos têm essa ligação direta do ensino com o estágio no SUS ou com disciplinas no SUS. [...] Então, acho que ainda tem alguns caminhos para serem melhorados... organizados. (D1)

Porém, estudo2828. Costa MV, Borges FA. O Pró-PET-Saúde frente aos desafios do processo de formação profissional em saúde. Interface (Botucatu). 2015; 19(1):753-63. apresenta argumentos que reconhecem mudanças curriculares pautadas pela aproximação com o SUS como avanço, dimensão identificada no relato a seguir:

Os nossos cursos, principalmente o curso de farmácia, ele mudou bastante a estratégia dele de estágio, por força das DCNs, então não tem muita escapatória – e faz sentido que seja assim, ele é muito voltado para o SUS. (D2)

O reconhecimento da institucionalização dessa relação do ensino com o serviço também reforça essa categoria:

Não existe mais formar ou capacitar os estudantes sem ir pro serviço, então por outro lado eu vejo que nem sempre o estudante tem essa percepção. Quem vai ter que orientar... tem que ter o projeto político pedagógico da universidade para poder conduzir essa organização. [...] Vejo que o estudante precisa, é [...] compreender a importância de ele estar inserido [no SUS]. (D3)

Mendes et al.1313. Mendes TMC, Bezerra HS, Carvalho YM, Silva LG, Souza CMCL, Andrade FB. Interação ensino-serviço-comunidade no Brasil e o que dizem os atores dos cenários de prática: uma revisão integrativa. Rev Cienc Plur. 2018; 4(1):98-116. também identificaram o desafio da institucionalização das práticas de Iesc, além da rigidez das universidades em relação às grades curriculares e o pouco envolvimento dos docentes no processo de trabalho. Apontam a importância de a academia se implicar no processo e dar suporte às unidades do SUS, na formação tanto dos preceptores quanto dos acadêmicos.

Discussão

No presente estudo, focamos o objetivo de analisar a coerência com o perfil profissional, competências e habilidades recomendadas nas DCNs dos cursos de graduação da saúde, considerando a relevância histórica desse marco regulatório na política de formação em saúde no Brasil, apesar da profusão de temas surgidos dos relatos, referentes à percepção dos sujeitos no processo de ensino-aprendizagem-cuidado no SUS.

Merece destaque a variedade de segmentos de sujeitos que participaram do presente estudo, que, no contexto do ensino-aprendizagem, do serviço e do cuidado em saúde, ocupam papéis marcadamente distintos, assim como motivações e interesses aparentemente paralelos ou excludentes. Nesse sentido, em uma visão mais pragmática: o estudante quer aprender, o professor pretende ensinar, o usuário deseja ter sua demanda de saúde atendida e os gestores do ensino e do serviço visariam à realização de suas diferentes missões institucionais, a partir de certas metas e critérios preestabelecidos. Dessa forma, os “quereres” dos diferentes sujeitos participantes da IESC, reunidos em atividades práticas, no calor do fazer cotidiano dos serviços, podem iniciar uma verdadeira fervura em um caldeirão de conflitos. Entretanto, a dimensão educativa desse processo, com base em princípios éticos e referenciais teóricos e metodológicos apropriados, alimentados pela realidade objetiva dos cenários de prática, podem promover a ressignificação desses papéis e a convergência em atividades que pareciam paralelas e divergentes, mesclando as participações dos sujeitos nas mais diversas possibilidades, como: o estudante que cuida, o usuário que ensina, o docente que aprende, o gestor que ressignifica sua missão institucional, enfim, todas as possibilidades estão postas, desde que cada um não perca de vista suas atribuições e responsabilidades, desenvolvendo competências e habilidades nesse complexo eixo de ensinar, aprender e cuidar.

Considerações finais

Considerando as especificidades de cada segmento de participantes da IESC, sendo esses estudantes; docentes; profissionais de saúde; e usuários do SUS e gestores das IES e do SUS, seria de se esperar que cada grupo apresentasse diferentes percepções e intencionalidades nesse encontro oportunizado pela Iesc, sendo observados relatos espontâneos relacionados ao lugar e ao papel que cada sujeito ocupa nos processos de ensino-aprendizagem-cuidado.

Conforme os relatos, o referencial teórico da integralidade revela-se como valor, com potencial para ressignificação de seus papéis e práticas, em um contexto muito mais amplo do que a assistência, além de ser balizador para orientar e explicar a realidade vivenciada na dimensão da IESC.

Em uma dimensão estratégica, a EBC encontra, nos cenários do SUS e da vida em comunidade, as condições necessárias para colocar em prática seus referenciais e metodologias, oportunizando respostas mais apropriadas para as demandas e necessidades encontradas nas equipes de saúde e na comunidade, sendo capaz de conferir maior sentido e legitimidade à presença dos estudantes nesses cenários.

Dessa forma, a percepção dos sujeitos é permeada por suas vivências e o conhecimento dessas percepções é fundamental para a consolidação de uma política de IESC que não se limite a uma carta formal sobre as intenções do Estado ou das instituições envolvidas. Tal política deve considerar os significados dessa integração atribuídos pelos diferentes sujeitos, em um processo de educação permanente, junto com os trabalhadores do SUS e das IES, incluindo a comunidade e mantendo canais contínuos e compartilhados de comunicação e planejamento participativo para pactuações e regulamentações colaborativas.

Diante do desafio de implantar a IESC, seu direcionamento deve ser baseado na percepção dos diferentes sujeitos que a produzem e vivenciam no seu cotidiano, que, no presente estudo, revelou afinidade com o perfil profissional, assim como com as competências e habilidades comuns recomendadas nas DCNs dos cursos de graduação da área da saúde. Dessa forma, a IESC pode ser compreendida como espaço virtuoso para a efetivação de competências e habilidades para se alcançar o perfil profissional proposto nos marcos regulatórios da graduação em saúde e da atenção no SUS ao possibilitar uma formação em saúde identificada com as DCNs e, simultaneamente, um cuidado integral a partir de práticas inovadoras de ensino, pesquisa e extensão realizadas nos cenários do SUS e em seus territórios.

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    Pesquisa financiada pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e por bolsa de iniciação científica do Programa PIBIC-CNPq.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2019
  • Aceito
    17 Mar 2020
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