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A febre maculosa brasileira e o discurso da mídia impressa: perspectivas de atores envolvidos* * Este artigo é resultado de uma dissertação de mestrado em Saúde Coletiva do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pela bolsa de auxílio à pesquisa de pós-graduação.

Brazilian spotted fever and the print media’s discourse: perspectives from actors involved

La fiebre maculosa brasileña y el discurso de los medios impresos: perspectivas de los actores envueltos

Resumos

A febre maculosa brasileira (FMB) é uma doença infecciosa com alta letalidade que mobiliza ações de prevenção e controle com grande impacto na opinião pública. A capivara é fundamental na epidemiologia da doença, servindo como dispersora do vetor infectado. Objetiva-se compreender e analisar o discurso da FMB entre representantes da sociedade, circulante em um meio de comunicação impresso do município de Campinas, São Paulo, Brasil. Partindo da análise exploratória dos dados e seguindo para a análise do discurso (AD), as discursividades foram observadas. Com diferentes ressonâncias, relacionavam-se aos óbitos pela doença e ao abate das capivaras, com preferência para alguns protagonistas do discurso e apagamento de outros sujeitos. Privilégios para divulgação de notícias parciais e sensacionalistas reforçaram a polarização sobre o tema. Concluiu-se que houve pouca contribuição para uma comunicação em saúde crítica e colaborativa, essencial para a consciência sanitária da população.

Febre maculosa brasileira; Análise do discurso; Mídia; Prevenção


Brazilian Spotted Fever (BSF) is a highly lethal infectious disease that mobilizes prevention and control actions that have a large impact on public opinion. The capybara is fundamental in the epidemiology of the disease, as it serves as the spreader of the infected vector. The aim of this study is to understand and analyze the society representatives’ discourse about BSF that circulates in a printed means of communication of the city of Campinas, State of São Paulo, Brazil. Starting with exploratory data analysis and moving on to discourse analysis, we investigated the discursivities: with different resonances, they were related to deaths caused by the disease and to the slaughter of capybaras. Preference was given to some protagonists of the discourse, while other subjects were obliterated. Dissemination of partial and sensational news strengthened the polarization about the theme. We concluded that there was a scarce contribution to a critical and collaborative communication in the area of health, essential for the population’s sanitary awareness.

Brazilian spotted fever; Discourse analysis; Media; Prevention


La fiebre maculosa brasileña (FMB) es una enfermedad infecciosa con alta letalidad que moviliza acciones de prevención y control con gran impacto en la opinión pública. El carpincho es fundamental en la epidemiología de la enfermedad, sirviendo como diseminador del vector infectado. El objetivo es comprender y analizar el discurso de la FMB entre representantes de la sociedad, circulante en un medio de comunicación impreso del municipio de Campinas, São Paulo, Brasil. Partiendo del análisis de exploración de los datos y continuando para el análisis del discurso, se observaron las discursividades. Con diferentes resonancias, se relacionaban a los fallecimientos por la enfermedad y a la matanza de los carpinchos. Preferencias para algunos protagonistas del discurso, apagándose otros sujetos. Privilegios para divulgación de noticias parciales y sensacionalistas reforzaron la polarización sobre el tema. Se concluyó que hubo poca contribución para una comunicación de salud crítica y colaborativa, esencial para la conciencia sanitaria de la población.

Fiebre maculosa brasileña; Análisis del discurso; Medios; Prevención


Introdução

A FMB é uma infecção aguda grave provocada pela bactéria Rickettsia rickettsii11. Piza J. Considerações epidemiológicas e clínicas sobre o Tifo Exantemático de São Paulo. In: Piza J, Meyer J, Salles G, editores. Tifo Exantemático de São Paulo. São Paulo: Sociedade Impressora Paulista; 1932. p. 11-119.. A transmissão se dá por meio da picada do carrapato, associada no Brasil, principalmente, ao gênero Amblyomma22. Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo. Divisão de Zoonoses. Febre Maculosa. In: Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, Coordenadoria de Controle de Doenças, Centro de Vigilância Epidemiológica. Guia de vigilância epidemiológica. São Paulo; 2012. p. 63-70.. A doença apresenta alta letalidade se não tratada precocemente. Entre 2000 e 2018, 2090 casos foram confirmados no Brasil, sendo 1541 (74%) registrados na região Sudeste, com letalidade de 44% (673 óbitos). O estado de São Paulo concentra 981 casos, 47% de todos os confirmados no país33. Oliveira SV, Guimarães JN, Reckziegel GC, Mariano B, Neves DC, Medeiros De Araújo-Vilges K, et al. An update on the epidemiological situation of spotted fever in Brazil. J Venom Anim Toxins Incl Trop Dis. 2016; 22(22):2-8. doi: http://dx.doi.org/10.1186/s40409-016-0077-4.
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Na região metropolitana de Campinas, a capivara (Hydrochoerus hydrochaeris) possui papel central na epidemiologia da doença. É um hospedeiro natural com capacidade de ampliar o número de carrapatos infectados, uma vez que mantém altos níveis circulantes de bactérias na corrente sanguínea. A maioria dos casos de FMB está relacionada ao aumento populacional desses mamíferos44. Souza CE, Moraes-Filho J, Ogrzewalska M, Uchoa FC, Horta MC, Souza SSL, et al. Experimental infection of capybaras Hydrochoerus hydrochaeris by Rickettsia rickettsii and evaluation of the transmission of the infection to ticks Amblyomma cajennense. Vet Parasitol. 2009; 6(161):116-21.,55. Labruna MB. Controle do agente etiológico e vetores da febre maculosa brasileira: epidemiologia da febre maculosa no estado de São Paulo. In: Meira AM, Cooper M, Ferraz KMPMB, Monti JA, Caramez RB, Delittii WBC, organizadores. Febre maculosa: dinâmica da doença, hospedeiros e vetores. Piracicaba: ESALQ/USP; 2013. p. 55-62..

A destruição das matas nativas e modificações antrópicas dos espaços naturais aumentam a população de capivaras e mudam seus comportamentos. Estas possuem alta capacidade reprodutiva, principalmente por terem seus predadores naturais diminuídos, devido ao desmatamento e à ocupação da terra. O aumento da produção agrícola permite maior disponibilidade de fonte de alimento para esses mamíferos66. Ferraz KMPMB, Ferraz SFB, Moreira JR, Couto HTZ, Verdade LM. Capybara (Hydrochoerus hydrochaeris) distribution in agroecosystems: a cross-scale habitat analysis. J Biogeogr. 2007; 34(2):223-30.,77. Szabó MPJ, Pinter A, Labruna MB. Ecology, biology and distribution of spotted-fever tick vectors in Brazil. Front Cell Infect Microbiol. 2013; 3(27):1-9..

Humanos não participam da propagação da FMB e infectam-se acidentalmente, sendo os casos associados ao convívio com espécies de carrapatos, responsáveis pela manutenção da infecção na natureza88. Lemos ERS, Machado RD, Coura JR, Guimarães MAAM, Chagas N. Epidemiological aspects of the brazilian spotted fever: serological survey of dogs and horses in an endemic area in the state of São Paulo, Brazil. Rev Inst Med Trop. 1996; 38(6):427-30.,99. Paddock CD, Brenner O, Vaid C, Boyd DB, Berg JM, Joseph RJ, et al. Short report: concurrent Rocky Mountain spotted fever in a dog and its owner. Am J Trop Med Hyg. 2002; 66(2):197-9.

Embora as ações de vigilância tenham se modificado com os avanços do Sistema Único de Saúde (SUS), ainda há desafios a serem superados. Contextos sociais, culturais e epidemiológicos são discretamente incluídos nas propostas. Medidas de impacto exigem abordagens específicas para diferentes regiões do país, adaptando ações de controle, intervenção e educação.

A comunicação em saúde tem importância na criação de estratégias para viabilizar a efetivação do SUS, divulgando informações sobre promoção da saúde e saúde das populações e ainda habilita o cidadão no exercício de seus direitos e do controle social1010. Fausto Neto A. Comunicação e mídia impressa: estudo sobre a AIDS. São Paulo: Hacker Editores; 1999.,1111. Araújo IS, Cardoso JM. Comunicação e saúde. 20a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.. O acesso à informação é fundamental para reduzir iniquidades e promover transformações sociais necessárias para a qualidade de vida e bem-estar mais democrático das populações1111. Araújo IS, Cardoso JM. Comunicação e saúde. 20a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007..

Partindo do princípio de que a prevenção de novos casos de FMB, principalmente os que evoluem para óbito, depende da interação de setores da sociedade, em especial do papel da comunicação em saúde, objetivou-se analisar os discursos de representantes da sociedade envolvidos com a temática no município de Campinas, São Paulo, que circularam em um meio de comunicação impresso.

Método

O estudo utilizou abordagem qualitativa para acessar os discursos e suas produções de sentido nos diálogos que se estabeleceram entre setores da população e um meio de comunicação. Saúde e doença envolvem uma complexa interação entre os aspectos físicos, psicológicos, sociais e ambientais da condição humana, fundamentais para compreensão do contexto e de atribuição de significados1212. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 7a ed. São Paulo: Hucitec; 2000..

Aspectos sociais e subjetivos vão muito além dos determinantes biológicos e ambientais. O referencial metodológico de base qualitativa instiga o aprofundamento dessas relações e propõe melhor compreensão dos aspectos que têm levado à perpetuação e à reemergência das doenças no Brasil.

Nesse contexto, foram analisadas matérias divulgadas no jornal impresso de um veículo de comunicação local, no município de Campinas, estado de São Paulo. Realizaram-se primeiramente coleta dos dados e análise exploratória, possibilitando a identificação de atores envolvidos e temas centrais, determinando critérios de inclusão e exclusão das notícias. Em seguida, entre as matérias selecionadas, foram analisados qualitativamente os textos, valendo-se da teoria da AD de linha francesa, proposto por Michel Pêcheux1313. Orlandi EP. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 12a ed. Campinas: Pontes editores; 2015.,1414. Henry P. Os fundamentos teóricos da “análise automática do discurso” de Michel Pêcheux (1969). In: Hak T, Gadet F, editores. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5a ed. Campinas: Unicamp; 2014. p. 11-38., procedendo à interpretação dos resultados e apresentação da síntese do conhecimento.

A AD, como dispositivo teórico-metodológico, foi utilizada para compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, e parte do trabalho social geral constitutivo do homem e da sua história1313. Orlandi EP. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 12a ed. Campinas: Pontes editores; 2015.. A AD reside na articulação de três regiões do conhecimento científico: o materialismo histórico, a linguística e a teoria do discurso, atravessados e articulados por uma teoria da subjetividade, de natureza psicanalítica1515. Pêcheux M, Fuchs C. A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas (1975). In: Gadet F, Hak T, editores. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5a ed. Campinas: Unicamp; 2014. p. 159-250.. O discurso é a materialização da ideologia, e a língua, a materialização do discurso. Não há linguagem sem sujeito e não há sujeito sem ideologia; o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido1313. Orlandi EP. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 12a ed. Campinas: Pontes editores; 2015..

O jornal Correio Popular, mídia utilizada neste estudo, foi escolhido devido à sua relevância na região metropolitana de Campinas. Circula em mais de 56 cidades da região, com tiragem diária de 35.000 exemplares, sendo que aos domingos são 42.000 exemplares1616. Grupo Rede Anhanguera de Comunicação. Número de exemplares impressos por dia do Correio Popular [Internet]. Campinas: Grupo RAC; 2019 [citado 4 Fev 2018]. Disponível em: http://www.gruporac.com.br
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. Embora a escolha de uma única fonte de informação traga limitações para o estudo, considera-se, entretanto, que ela possa conduzir pautas temáticas que seriam abordadas também por outros veículos de comunicação.

Foram considerados os textos que tinham como tema central a febre maculosa brasileira e suas implicações, identificando assuntos que permeiam essa temática e que foram polêmicos no município, motivando interesses da mídia e de grupos, expressos nas publicações.

A busca foi feita por palavra-chave no sítio eletrônico do jornal, usando a expressão “febre maculosa”, delimitada pelo período de 2008 a 2016, incluindo os textos com a doença como tema central, sejam estes sobre transmissão; espécies animais envolvidas; medidas de controle e prevenção; impactos à saúde dos sujeitos e coletivos; e manejo de espécies silvestres. Foram excluídos aqueles que se referiam a doenças em outros municípios que não Campinas, os que tratavam de assuntos diferentes ou que tinham apenas citado a febre maculosa.

Na descrição quantitativa, foram utilizados apenas os artigos publicados na seção do Caderno Cidades (114 textos) devido à abordagem mais ampla do tema, e considerando que as outras seções expõem respostas aos artigos publicados neste caderno.

Com isso, a partir do reconhecimento de padrões, delimitaram-se as categorias temáticas como estratégia para definir as centralidades que emergiram dos textos selecionados, como parte do exercício preliminar de análise. Para a AD, esse procedimento possibilita ao analista ter as primeiras impressões do discurso construído e as formações discursivas inseridas.

Devido à intensificação na divulgação midiática sobre a doença em função da polêmica envolvendo os casos, óbitos e estratégias de controle e prevenção, definiu-se como período do estudo os anos de 2008 a 2016. Ler jornais, assistir a noticiários e acompanhar discussões geradas na época permitiu identificar que tal fato teve repercussão na mídia e na população de Campinas. Um fato que é retomado, revisado, analisado, especificado, detalhado, correlacionado a outros similares ou tornados similares, definido como acontecimento histórico, motiva este estudo analítico do discurso, como definido por Possenti, em 20061717. Possenti S. Análise do discurso e acontecimento. In: Navarro P. Estudos do texto e do discurso. São Carlos: Editora Claraluz; 2006. p. 93-108..

Com a morte de um trabalhador do parque urbano Lago do Café no dia 18 de junho de 2008, localizado no bairro Taquaral, a equipe de vigilância em saúde do município identificou a presença de grupos de capivaras residindo no local e vivendo livremente pela área. Foi possível constatar infestação de carrapatos em uma grande extensão do parque, fator que, associado à presença das capivaras e à grande circulação de pessoas, aumentou o risco de transmissão da doença nessa área específica1818. Secretaria da Saúde do Estado São Paulo. Superintendência de Controle de Endemias do Estado de São Paulo. Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Diretrizes de combate à febre maculosa. São Paulo; 2008.

19. Souza CE, Calic SB, Camargo MCGO. O papel das capivaras Hydrochaeris hydrochaeris na cadeia epidemiológica da febre maculosa brasileira. Rev Bras Parasitol Vet. 2004; 13 Supl 1:203-5.
-2020. Souza CE, Souza SSL, Lima VLC, Calic SB, Camargo MCGO, Savani ESMM, et al. Serological identification of Rickettsia spp from the spotted fever group in capybaras in the region of Campinas - SP - Brazil. Cienc Rural. 2008; 38(6):1694-9.

Entre as orientações técnicas para o manejo da espécie silvestre, constava a eutanásia, recomendada pelos órgãos públicos envolvidos nas estratégias de evitar novos casos de febre maculosa. A notícia foi divulgada pelo jornal no dia 20 de agosto de 2008, depois de confirmado o caso humano e a possibilidade de outros animais estarem infectados pela bactéria1818. Secretaria da Saúde do Estado São Paulo. Superintendência de Controle de Endemias do Estado de São Paulo. Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Diretrizes de combate à febre maculosa. São Paulo; 2008.,2121. Prefeitura Municipal de Campinas. Secretaria Municipal de Saúde. Coordenadoria de Vigilância em Saúde. Informe febre maculosa brasileira [Internet]. Campinas; 2011 [citado 24 Mar 2017]. Disponível em: http://www.saude.campinas.sp.gov.br/saude/vigilancia/informes/inf_maculosa.pdf
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Após essa divulgação técnica pela mídia, outros setores da sociedade se manifestaram contrários à decisão e a questionaram. A partir da polêmica, diferentes setores se manifestaram contra e a favor da decisão de eutanásia das capivaras, iniciando-se na mídia local, a publicação de diversos artigos jornalísticos discutindo ações e a doença no município.

Buscou-se compreender como o discurso sobre a febre maculosa como uma doença grave e que traz riscos à saúde foi referida na mídia, entendendo contextos e sentidos produzidos por ela. Assim, foi necessário elaborar alguns recortes discursivos presentes no material, nesse momento incluindo outras seções do jornal para dar suporte à análise. Segundo Orlandi1313. Orlandi EP. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 12a ed. Campinas: Pontes editores; 2015., todo discurso é parte de um processo discursivo mais amplo que recortamos. A forma do recorte determina o modo da análise e o dispositivo teórico da interpretação que é construído, por isso, o dispositivo analítico pode variar nas diferentes tomadas que se faz do material.

Resultados e discussão

Foram identificados 313 textos que se enquadraram nos critérios estabelecidos. As seções que tiveram maior frequência foram o Caderno Cidades, com 114 textos (36,4%), e o Correio do Leitor, com 129 (41,2%) cartas publicadas, geralmente respostas dos leitores a determinado assunto publicado anteriormente. O ano de 2011 concentrou a maioria das publicações, com destaque para as mesmas seções, Cidades e Correio do Leitor. Foram 53 (16,9%) notícias que ganharam a capa da edição nesses nove anos e 17 (5,4%) artigos de opinião.

Explorar os artigos midiáticos e reconhecer padrões permitiu observar prioridades quando se conta um fato, bem como quais atores foram mobilizados para fundamentar o argumento proposto. As falas e os textos escritos estão impregnados da cultura e do contexto daquele que ali se expressa. A interpretação desses materiais é considerada uma difícil tarefa de captar o sentido não aparente dos discursos2222. Macedo LC, Larocca LM, Chaves MMN, Mazza VA. Análise do dicurso: uma reflexão para pesquisar em saúde. Interface (Botucatu). 2008; 12(26):649-57..

Os eixos temáticos propostos como categoria de análise foram: informações gerais sobre a febre maculosa, como aspectos da doença, ações de prevenção e controle e educação em saúde; o manejo e abate de capivaras; e o olhar para as populações vulneráveis.

Concepções sobre a doença: controle, prevenção e ações educativas

De modo geral, do total de notícias, 57 (50%) agregavam informações gerais sobre a febre maculosa, 14 (12,3%) apresentavam os aspectos da doença, 34 (29,8%), as medidas de prevenção e controle e 9 (7,9%) incluíam as ações de educação em saúde.

A forma como as informações sobre a febre maculosa brasileira circulava na mídia nos materiais analisados permitiu contextualizar a doença aos leitores que ainda não eram familiarizados com o tema, fazendo referências às formas de transmissão; agente etiológico; vetores; hospedeiros envolvidos no ciclo; sinais clínicos e sintomas; tratamentos e diagnósticos; incidência; e letalidade. Considerando o contexto em que foram escritas, em meio a um intenso debate, discutindo os casos e óbitos, a divulgação desses aspectos foi fundamental para dar visibilidade ao conhecimento produzido sobre a doença.

O olhar para as mortes

A divulgação de informações sobre a febre maculosa girou em torno dos relatos de óbito, considerando a relevância da letalidade elevada. Apesar do potencial informativo e educativo da mídia, os jornais privilegiaram a circulação de assuntos de caráter de denúncia, sem aprofundar nos fatores determinantes da situação de saúde2323. Rangel-S ML. Dengue: educação, comunicação e mobilização na perspectiva do controle - propostas inovadoras. Interface (Botucatu). 2008; 12(25):433-41..

Na perspectiva da AD, depara-se com o funcionamento da língua já partindo dos títulos das notícias sobre morte, notando uma regularidade na construção de uma cultura do medo. Embora seja uma doença com baixa incidência na população, pode gerar agravamento clínico levando à morte dos pacientes. Dessa forma, títulos como “Homem morre e saúde investiga febre maculosa”2424. Medeiros D. Homem morre e saúde investiga febre maculosa. Correio Popular. 6 Set 2008; Cidades: A12. (p. A12) produzem um efeito de sentido que provoca estado de alerta, até mesmo pânico, para que o leitor tome a dimensão da gravidade que é ser afetado.

Outra dimensão foi caracterizar a febre maculosa como a vilã da saúde pública, observado na manchete “Maculosa mata três pessoas em 10 dias em Campinas”2525. Félix L. Maculosa mata três pessoas em 10 dias em Campinas. Correio Popular. 27 Out 2012; Cidades: A16. (p. A16), que posiciona apenas o fator biológico como o sujeito da ação e único responsável pelas mortes. Não se amplia a concepção sobre outros fatores condicionantes da saúde, além de não colocar em discussão a dimensão cultural, social e subjetiva envolvida na morte desses sujeitos, ao mesmo tempo em que são banalizadas.

Os óbitos anunciados como processos em investigação podem provocar sentidos em torno da dúvida, com desdobramentos: um referente à dificuldade do diagnóstico da febre maculosa, devido a seus sintomas inespecíficos, o outro descaracterizando a dimensão de gravidade, levando o leitor a duvidar da ocorrência desses casos, ainda a serem confirmados. Há ainda um sentido policialesco: o de investigar um crime, provocando outro direcionamento no discurso.

O discurso da morte suspeita ou confirmada como sentinela para desencadear ações de prevenção e controle pauta-se no funcionamento da língua como forma de expor a preferência nas estratégias da gestão pública, particularmente nas ações educativas, apreendidas do texto pelo uso dos sinais temporais de futuro, como “ação vem depois”, e “campanha deve ser realizada”. Nessas situações, o conhecimento sobre as características sazonais da doença poderia ser usado como aliado nas ações preventivas, evitando novos óbitos.

Apesar de as mortes serem sentinelas na divulgação de notícias, nem todas as mortes ressoaram no meio de comunicação. No período, é estabelecida aqui uma contradição no sentido de valorizar as mortes por febre maculosa, uma vez que somente algumas delas são escolhidas para publicação.

Percorrendo os sentidos produzidos na perspectiva da concepção da doença, é imprescindível pontuar os principais protagonistas desses discursos e que são mobilizados pelo jornal para fundamentá-lo. A posição da mídia passa por disputas em um campo de forças, em que contribui para localizar o discurso e influenciar aqueles que serão predominantes. O discurso centrado nos óbitos mobiliza médicos, coordenadores de vigilância, secretários de saúde e de meio ambiente como principais enunciadores, com pouco foco em outros atores sociais, como familiares, trabalhadores dos parques onde houve óbitos e moradores do entorno desses parques.

Os enunciadores do discurso

Dentro das ações de prevenção e controle da febre maculosa divulgadas, constatou-se que estas ficaram restritas ao controle vetorial e ao manejo da capivara. Atenta-se para aqueles que enunciam os discursos que emergem dos textos – os profissionais e técnicos da saúde. Esse funcionamento legitima o discurso que é posto e produz formas simbólicas de representação da sua relação com a realidade concreta.

O manejo ambiental, controle da infestação de carrapatos, evitar contato com as áreas de risco (que são aquelas com presença de carrapatos, capivaras e casos confirmados), realização de orientações sobre a busca pelos serviços de saúde na presença de sintomas, diagnóstico precoce e busca pela importância de antecedentes epidemiológicos foram algumas das ações descritas.

Os 34 textos que trouxeram a perspectiva da prevenção e controle correspondiam a 30% dos artigos analisados. De maneira geral, a exposição do assunto concentrou-se nas ações desenvolvidas para controlar o vetor, como limpeza e capina dos terrenos onde há intensa infestação, uso de carrapaticidas e vigilância acarológica. Diante dessas preferências, sujeitos como secretários de saúde e do meio ambiente; gestores de vigilâncias; veterinários; médicos sanitaristas; e coordenadores de instituições como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e a Superintendência de Controle de Endemias (Sucen) foram aqueles que ganharam local de fala para debater o assunto.

É comum nas doenças infecciosas transmitidas por vetores a preferência pelo controle vetorial. No controle da dengue, essa característica é mais familiar para o leitor, que se habitua dizer o “combate à dengue” associando ao combate do mosquito2323. Rangel-S ML. Dengue: educação, comunicação e mobilização na perspectiva do controle - propostas inovadoras. Interface (Botucatu). 2008; 12(25):433-41.. Nos textos sobre febre maculosa, esse funcionamento também esteve presente, entretanto, o discurso marcado pelo paradigma médico centrado silencia o contexto histórico, social e econômico; as subjetividades; e o fato de que essas doenças acometem grupos demográficos e sociais diversos, estando associadas ao contexto de pobreza.

Os rumos das ações preventivas são definidos por profissionais da área técnica, especialistas que são interpelados pelo discurso científico e técnico. Legitima-se esse discurso na posição do jornal, que também valida a autoridade desses sujeitos. Retiram da discussão outros setores da população também interessados e envolvidos no tema, mas que nesse momento não tiveram seu lugar de fala autorizado pelo meio de comunicação.

O discurso autorizado e legítimo que tende a desqualificar a competência dos sujeitos não institucionais e pretende “instruir” a população sobre as condutas corretas compreende que esses sujeitos estão limitados em sua capacidade de captação das orientações.

Nesse sentido, circula o argumento de culpabilizar a população por não compreender ou obedecer a ordem prescrita pelos serviços técnicos, posicionando-os como passivos no entendimento de um problema importante. São saberes e práticas que reforçam o conceito de passividade do público a que são direcionadas as ações comunicativas, reduzindo-os à condição de receptores2626. Campos GWS. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Cienc Saude Colet. 2000; 5(2):219-30..

Nos últimos anos, foi incluído como um dos objetivos do trabalho em saúde a ampliação da autonomia das pessoas cujo discurso e a participação popular não são tradicionalmente considerados. Autonomia como processo de coconstituição de maior capacidade dos sujeitos de compreenderem e agirem sobre si mesmos e sobre o contexto2727. Onocko RTC, Campos GWS. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Junior MD, Carvalho YM, editores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 669-88.. O procedimento dominante na medicina tem sido, em princípio, aquele que desautoriza o saber e a prática sobre saúde produzidos fora de sua própria racionalidade2626. Campos GWS. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Cienc Saude Colet. 2000; 5(2):219-30.. Alguns interlocutores do campo médico-sanitário são resistentes em construir um diálogo com a população e trazer para o debate a construção coletiva do saber. Vê-se esse discurso legitimado também pela mídia, no momento em que se colocam como protagonistas do discurso de prevenção somente os sujeitos institucionais, técnicos e científicos. Entretanto, os saberes coletivos contribuem para compor um conhecimento amplo e integrado.

Reforçar ou romper com as tradições da educação em saúde

As práticas de comunicação e educação hegemônicas no campo da saúde pública no Brasil caracterizam-se por possuírem uma modelagem centralizada, vertical e unidirecional, orientadas pela visão de que informações e conhecimentos estão concentrados e devem ser difundidos2323. Rangel-S ML. Dengue: educação, comunicação e mobilização na perspectiva do controle - propostas inovadoras. Interface (Botucatu). 2008; 12(25):433-41.. Os conhecimentos sobre a doença são repassados às comunidades por meio da mídia de massa, utilizando seus discursos, valores e experiências. Da mesma forma, essas concepções foram utilizadas para divulgação dos assuntos sobre a febre maculosa brasileira.

É preciso compreender como as práticas educativas são veiculadas nos meios de comunicação, entendendo que comunicar saúde tem contribuição para o processo de aprendizagem, podendo subsidiar a criação de uma consciência sanitária da população.

As ações educativas e estratégias de educação em saúde preconizadas pelos manuais técnicos de saúde ressoavam pouco nas publicações do jornal, em apenas 9 (7,9%) notícias e ficaram restritas aos momentos de ocorrência de casos ou óbitos da doença, sendo que, nos anos 2008, 2009, 2013 e 2016 não houve nenhuma publicação. As notícias que circularam apresentaram regularidades em torno de um processo de significação que indicava um alerta para a gravidade da febre maculosa e a necessidade de as pessoas estarem vigilantes e terem cuidado com a saúde diante da gravidade da doença.

Vale ressaltar que, mesmo com a significação em torno do medo e do risco de contaminação, há uma desvalorização do tema, uma vez que são publicadas em pequenos quadros nos cantos das páginas, dividindo espaços com outras notícias.

Educar não deve ser um simples ato de transmitir informação. O processo de aprendizagem deveria promover transformação social e fazer com que aqueles que estão envolvidos no processo possam ser autônomos nas decisões que demandam suas escolhas.

Observa-se a unilateralidade da informação por meio de marcadores linguísticos para designar que o principal alvo (população) recebesse as devidas orientações para cuidados com a saúde. Nesse caso, a população é aquela que recebe a ação e a que será orientada e esclarecida pelos agentes da ação. De acordo com o discurso da mídia, esses agentes são aqueles apropriados de um conhecimento científico necessário para desenvolvê-las.

Há uma responsabilização dos sujeitos em adotar práticas de cuidado, que muitas vezes não fazem sentido a eles. O uso das expressões “devem adotar” ou “deve fazer” sugere um diálogo que não está aberto para discutir as ações propostas e demonstra pouca flexibilidade para contribuições, trazendo as marcas da unidirecionalidade nas práticas educativas, nas quais não há espaço para a escuta.

Os campos da comunicação, informação e saúde apontam para uma interface entre essas três dimensões, não se reduzindo a uma visão instrumental, ou seja, da comunicação e informação como um conjunto de ferramentas de transmissão de conteúdos a serviço da saúde, mas também como processos sociais de produção de sentidos, em espaços de lutas e negociações. A comunicação e a informação devem ser pensadas visando aperfeiçoar o sistema público de saúde e assegurar a participação dos cidadãos na construção das políticas públicas da área. Para isso, é fundamental pensá-las com base nos princípios e diretrizes do SUS1111. Araújo IS, Cardoso JM. Comunicação e saúde. 20a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007., permitindo que as práticas comunicativas compartilhem conhecimentos e contribuam para a conquista de melhores condições de saúde, além de incluir estratégias de educação, persuasão, mobilização da opinião pública, participação social e promoção de audiências críticas2727. Onocko RTC, Campos GWS. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Junior MD, Carvalho YM, editores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 669-88.. Dessa forma, é necessário promover a mobilização social e democratização da informação para o acesso a conhecimentos e construção de relações recíprocas por parte da população, a fim de que esta modele sua própria conduta, seja enquanto indivíduos, seja enquanto corpo social.

Manejo de capivaras: um embate entre posições

O manejo de capivaras foi o assunto que sobressaiu entre as notícias do período, dando a impressão de ser o aspecto mais relevante dentro do ciclo da doença. Sem desconsiderar a importância das justificativas técnicas para as medidas de controle e considerando a relevância do assunto, pretende-se problematizar o destaque que foi dado nos editoriais, comparado a outros pontos importantes que constroem uma noção integrada de saúde.

As principais questões sobre manejo, tanto referentes ao abate ou confinamento quanto às estratégias de controle populacional por esterilização, foram abordadas em 66 (57,9%) dos 114 textos. A escolha desse tema foi influenciada principalmente pela divulgação do parecer técnico favorável ao abate desses animais como medida de controle da febre maculosa no parque Lago do Café, em 2008 e 2011, e em 2015 em condomínio residencial. O ano de 2011 foi o de maior número de edições envolvendo esse tema, seguido pelo ano de 2015.

Em 32 (60%) das capas das edições incluídas neste estudo, o foco era as capivaras. Um jogo de palavras materializou a oposição nas opiniões dos sujeitos, acentuando a polarização, distorcendo a realidade e contribuindo para a estigmatização das capivaras. Na capa: “Capivara: inocente ou vilã?”2929. Medeiros D. Capivara: inocente ou vilã? Correio Popular. 2010 Nov 20; Capa., o uso da palavra “inocente” trouxe um sentido de ausência de culpa das capivaras em transmitir a doença, em oposição à palavra “vilã”, que culpabiliza o animal, produzindo, assim, um imaginário de representações artísticas, de personagens de fábulas. Já a capa “Intrusa ou sobrevivente”3030. Mozer B. Intrusa ou sobrevivente. Correio Popular. 26 Jul 2011; Capa. posiciona o animal como invasor do espaço urbano, ocupando parques públicos, contrário ao sentido de sobrevivência à degradação ambiental que se configura nos tempos modernos.

O funcionamento da língua, nesse caso, reforça o estigma que se faz sobre as capivaras como as responsáveis pela doença da febre maculosa, reproduzindo assim uma visão limitada sobre o papel desses animais, uma vez que a transmissão da doença se faz pelo carrapato e em contexto ecológico específico.

Conforme o debate se materializa, as posições vão sendo demarcadas e surgem os principais protagonistas mediadores do debate sobre as capivaras na mídia: os profissionais técnicos das vigilâncias, junto com o secretário de saúde e ativistas das organizações não-governamentais (ONGs) protetoras de animais.

Os profissionais técnicos apresentam uma visão da saúde pública que prioriza a proteção coletiva da vida humana e na qual as ações se justificam do ponto de vista epidemiológico, apresentando os motivos pelos quais as decisões foram tomadas e justificadas.

Diante de um contexto polêmico, permeado por manifestações públicas de reprovação das medidas e defesa da vida dos animais, a mídia reforça o caráter negativo das ações, projetando nos profissionais técnicos a responsabilidade pelo dilema.

Em um certo momento dos textos, foi utilizada a palavra “sacrifício” para designar a eutanásia dos animais. Nesse sentido, compreende-se que essa palavra poderia ter sido usada a partir de um de seus significados literais, como o ato de ofertar algo ou alguém a uma divindade, simbolizada na morte, indicando um paralelo com a oferenda das capivaras em troca da vida humana. Carrega um sentido exagerado e sensacionalista para apontar a morte desses animais e polemiza mais o debate. A forma como as informações são editadas produz um efeito de sentido que considera que os profissionais técnicos não se sensibilizam com a situação, nem com a vida desses animais. Infere também aos técnicos uma crueldade com as capivaras, verificadas pelas expressões “praga urbana” e “ratazana”, destacadas pelo jornal, ao reproduzirem a fala destes profissionais.

Embora explicite que as decisões são conduzidas a partir de diretrizes técnicas e protocolos oficiais, a mídia faz parecer que as decisões são individuais de profissionais de saúde, partindo para um conflito pessoal. Não problematiza a precariedade dos serviços de saúde, tanto de prevenção quanto de assistência, e não aponta a sobrecarga de funções, insuficiência de servidores, ausência de políticas públicas adequadas para manejo ambiental e fiscalização de degradação de áreas ambientais de mata ciliar, além das disputas políticas.

Por outro lado, destaca-se a participação das ONGs, representantes de parcela da população, que compõem o debate sobre o manejo de capivaras, mas que estabelecem um discurso de defesa e proteção aos animais. Trata-se de um discurso de resistência diante das proposições de eutanásia das capivaras, contrapondo-se aos técnicos da saúde, marcado pelo diálogo pouco sensível sobre a saúde das populações humanas e pelo uso de palavras que reforçam esse sentido, como nas expressões “tentam barrar o sacrifício” ou “pedido de liminar na Justiça para tentar impedir imediatamente a matança”3131. Mozer B. Saúde confirma eutanásia de capivaras. Correio Popular. 12 Fev 2011; Cidades: A12. (p. A12).

Regularidades são observadas no discurso de resistência em que se configurou a participação das entidades protetoras dos animais. Manifestações e protestos contra o abate das capivaras acirrou o debate em torno das ações públicas de saúde e se apropriaram do discurso jurídico para fundamentar suas oposições, exigindo do Estado a tutela dos animais.

Já na população de leitores do jornal, revelada pelos recortes da seção Correio do Leitor, a repercussão gerou discursos inflamados. Há a materialização da polarização do discurso e posicionamentos radicais, como o debate marcado pela falta de informações sobre as principais características da doença e determinantes mais complexos da transmissão. Fica evidente o poder de comunicação que a mídia tem para sugestionar o comportamento da sociedade, influenciando, reduzindo e polarizando a discussão.

Embora essa análise do discurso da mídia seja perpassada pelos discursos de outros setores da sociedade, ela reproduz o cotidiano que se estabeleceu no período e provocou a polarização desse tema. As manchetes e notícias que transcorreram sobre o manejo e abate de capivaras foram sensacionalistas e tendenciosas, pois reforçaram um aspecto da cadeia de transmissão da doença, e não uma abordagem mais abrangente. Esse efeito contribui para gerar pânico na população baseado no medo e corroborado por um discurso que não problematiza a ocupação desenfreada e não planejada das cidades, além de não discutir a questão da especulação imobiliária, responsável por uma pressão em favor das ocupações das terras. Tal efeito não estimula, portanto, a preservação e manutenção das áreas naturais de matas, habitat natural desses mamíferos.

As mortes de pessoas não reabrem a discussão sobre urbanização, degradação do ambiente, ocupação desorganizada dos espaços urbanos, interesses imobiliários, desigualdades sociais, baixa escolaridade da população, dificuldade de acesso aos conhecimentos sobre doenças, educação como transformadora e não carregada de autoritarismo e verticalidade, ou mesmo condições de trabalho às quais os funcionários dos parques públicos estão submetidos. Em vez disso, percebe-se a mobilização em torno de opiniões polarizadas, agressivas e autoritárias de cada parte dessa relação de forças entre interlocutores, reforçando a incapacidade para contemplar os múltiplos aspectos que permeiam as enfermidades e que deveriam ser considerados na construção das políticas de saúde.

O silenciamento dos sujeitos no discurso da mídia

Para entender a perspectiva da população vulnerável, ou seja, daqueles que estão submetidos às situações de risco, levou-se em conta a visão destes diante do problema da febre maculosa, visando perceber se havia espaço para essas vozes e se esta era uma preocupação do jornal.

Em 18 (15,8%) das notícias publicadas sobre febre maculosa no período, circulavam algumas opiniões da população, sem considerar aqui os ativistas das ONGs em defesa dos animais. O ano com a maior frequência de circulação dessas falas foi 2011, sendo que em 2015 e em 2016 nenhuma notícia apareceu sob essa perspectiva.

A análise do discurso destaca a palavra que não é dita, que é silenciada, apagada do discurso. O silêncio é o lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido faça sentido, que o dizer signifique, indicando que o sentido pode sempre ser outro1313. Orlandi EP. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 12a ed. Campinas: Pontes editores; 2015.. O apagamento dos sujeitos vulneráveis à infecção no discurso da mídia mostra uma superficialidade na exposição das opiniões, problematizando o que interessa à mídia de fato. São notícias polêmicas, sensacionalistas, que tendem a atrair mais os leitores, independentemente do caráter informativo ou comunicativo, importante ou não para o saber em saúde.

Na AD, formação ideológica é o conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem “individuais”, nem “universais”, mas que se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas em relação às outras3232. Santos SF, Baronas RL. Análise do discurso: apontamentos para uma história da noção-conceito de formação discursiva. Bakhtiniana. 2009; 1(1):165-9..

Percebe-se, entre os recortes, uma significação assentada no efeito da desinformação da população, discurso marcado pela ignorância. Expressões como “Não sei de nada” e “Não sabia” em relação à presença de carrapatos nos parques e à possibilidade de contaminação por maculosa são recorrentes e materializam esse sentido.

Duas pessoas entrevistadas pelo jornal ocupam posições de análise: uma é moradora da propriedade anexa ao parque Lago do Café e a outra, trabalhadora desse mesmo parque. Como efeito, expor o desconhecimento acerca da situação epidemiológica e de risco assume importante significado nesse processo de entendimento do discurso.

Sentidos estabilizados como em “Sempre peguei carrapato e nunca tive problemas”3333. Facchin J. Lago do café será interditado. Correio Popular. 18 Out 2008; Cidades: A14. (p. A14), relatado por uma pessoa entrevistada, sugerem que o sentido da formação discursiva não é o mesmo que dos agentes de saúde pública. Quem os enunciam são sujeitos que sempre tiveram contato com áreas de vegetação e, desde a infância, foram picados por carrapato, mas não têm a percepção de risco.

A mídia como estratégia de comunicação em saúde não falha na tarefa de comunicar, mas sim pauta a banalização das mortes e a ignorância dos sujeitos. No espaço discursivo e ideológico no qual se desenvolvem as formações discursivas e em que se observa o funcionamento do interdiscurso, as relações de dominação e contradição são observadas. A exemplo dessa análise, os papéis dos agentes de saúde pública e da mídia são complexos e desafiadores.

É necessário problematizar a forma como os sujeitos são informados pela mídia e exigir maior compromisso com as questões de saúde. Há uma grande responsabilidade nessa construção do imaginário e significados que provocam na população, sem reforçar antigos paradigmas e fomentar polarizações.

Considerações finais

O estudo procura compreender, por meio da análise do discurso, os sentidos produzidos nas discursividades sobre a febre maculosa brasileira no jornal impresso Correio Popular de Campinas. Considerou-se o funcionamento dos discursos interpelados pelo social, pelo histórico e pela ideologia. Há destaque para as equipes técnicas de saúde, gestão municipal e ambientalistas protetores dos animais; e apagamento da participação popular.

Reproduz o senso comum valorizando enunciados alarmantes e sensacionalistas, com materialidades em torno das capivaras e óbitos pela doença, com diferentes ressonâncias. A divulgação de informações contribui com a comunicação sobre saúde à população, entretanto, tais informações reforçam o discurso biomédico e científico, centrado na figura de sujeitos com autoridade de fala.

Há uma disputa de poderes no diálogo da mídia, refletidas nos discursos contraditórios e conflitantes. São questões complexas, que dependem de esforços políticos para que sejam (des)construídas, mas que precisam ser discutidas, principalmente com a reemergência das doenças infecciosas, diante da degradação ambiental, que encontram na estrutura social moderna espaços para se restabelecerem.

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    Este artigo é resultado de uma dissertação de mestrado em Saúde Coletiva do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pela bolsa de auxílio à pesquisa de pós-graduação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2019
  • Aceito
    16 Mar 2020
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