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Abordagem profissional em tempos de pandemia: o que aprendemos com o Zika vírus?

Abordaje profesional en tiempos de pandemia: ¿qué aprendemos con el Zika virus?

Resumos

A formação de vínculo entre famílias de crianças com Síndrome Congênita do Zika (SCZ) e profissionais de saúde é condição sine qua non para o desenvolvimento das crianças afetadas. O estudo objetiva compreender a perspectiva de mães de crianças com SCZ acerca da abordagem profissional e da formação de vínculos no processo de cuidado em saúde durante a epidemia de Zika vírus. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritivo-exploratória que entrevistou 25 mães. Os resultados revelam que os profissionais de saúde tiveram práticas de desumanização da assistência e cometeram violência obstétrica. Contrapondo a desumanização, também houve casos esporádicos de práticas humanizadas com formação de vínculo. Os resultados deste estudo apontam a necessidade de estratégias e intervenções em prol de melhor atendimento à gestante com diagnóstico de malformação congênita e adequado manejo na abordagem de doenças emergentes e pandemias.

Palavras-chave
Zika virus; Infecção por Zika vírus; Prática profissional; Humanização da assistência; Saúde da mulher


La formación de vínculo entre familias de niños con Síndrome Congénito del Zika y profesionales de salud es condición sine qua non para el desarrollo de los niños afectados. El objetivo del estudio es comprender la perspectiva de madres de niños con SCZ sobre el abordaje profesional, formación de vínculos en el proceso de cuidado de la salud durante la epidemia de Zika Vírus. Se trata de un estudio cualitativo, descriptivo-exploratorio, que entrevistó a 25 madres. Los resultados revelan que los profesionales de salud tuvieron prácticas de deshumanización de la asistencia y cometieron violencia obstétrica. Contraponiendo la deshumanización, también hubo casos esporádicos de prácticas humanizadas con formación de vínculo. Los resultados de este estudio señalan la necesidad de estrategias e intervenciones en pro de una mejor atención a la gestante con diagnóstico de malformación congénita y adecuado manejo en el abordaje de enfermedades emergentes y pandemias.

Palabras-chave
Zika virus; Infección Zika virus; Práctica profesional; Humanización de la asistencia; Salud de la mujer


The bonding between families of children with Zika Congenital Syndrome and health professionals is a sine qua non for the development of the affected children. This study aims to know the perspective of mothers of children with ZCS regarding the professional approach, forming bonds in the health care process during the Zika Virus epidemic. It is a qualitative, descriptive-exploratory research, with interview of 25 mothers. The results reveal that health professionals had practices of dehumanizing care and committed obstetric violence. In contrast to dehumanization, there have also been sporadic cases of humanized practices with bonding. The results of this study point to the need for strategies and interventions for better care for pregnant women with a diagnosis of congenital malformation and adequate management in addressing emerging diseases and pandemics.

Keywords
Zika virus; Zika virus infection; Professional practice; Humanization of care; Women’s health


Introdução

A circulação do Zika vírus no Brasil foi identificada pela primeira vez em abril de 2015, por meio de inúmeros casos de uma doença exantemática. Em outubro do mesmo ano, foi emitido alerta acerca de uma epidemia de microcefalia em Pernambuco, com alterações radiológicas sugestivas de infecção congênita. Em seguida, tornou-se conhecida a Síndrome Congênita do Zika (SCZ), condição nova descrita pela primeira vez com base no surto ocorrido no Brasil11 Eickmann SH, Carvalho MD, Ramos RC, Rocha MA, Linden V, Silva PF. Síndrome da infecção congênita pelo vírus Zika. Cad Saude Publica. 2016; 32(7):e00047716. Doi: https://doi.org/10.1590/0102-311X00047716.
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O ineditismo da associação causal entre o Zika vírus e as más-formações congênitas, somado à fragilidade dos protocolos clínicos iniciais e à insuficiência de informações 22 Victora CG, Schuler-Faccini L, Matijasevich A, Ribeiro E, Pessoa A, Barros FC. Microcephaly in Brazil: how to interpret reported numbers? Lancet. 2016; 387(10019):621-4. Doi: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(16)00273-7.
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, pode ter afetado o cuidado em saúde – entendido aqui como o encontro entre trabalhador de saúde e usuário –, sendo o resultado do trabalho profissional desenvolvido cotidianamente no interior de sistemas e serviços de saúde33 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, UERJ/IMS, ABRASCO; 2009. (Clássicos para integralidade em saúde).,44 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho, interação e saber nas práticas de saúde. Rev Baiana Enferm. 2017; 31(1):e21847.. Nesse sentido, a condição de emergência sanitária gerada pelo Zika vírus pode ter ampliado características que já ocupam o cotidiano do trabalho, influenciando a produção do cuidado e a humanização do encontro terapêutico33 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, UERJ/IMS, ABRASCO; 2009. (Clássicos para integralidade em saúde). entre os profissionais de saúde e as mulheres, mães de crianças com SCZ.

Assim, a formação de vínculo entre famílias de crianças com SCZ e profissionais é condição sine qua non para o desenvolvimento das crianças afetadas, haja vista que o Ministério da Saúde (MS) preconizou que o cuidado a essas crianças deve ser produzido no espaço multidisciplinar, por longo período e de forma intensa55 Hasue RH, Aizawa CYP, Genovesi FFA. Síndrome congênita do vírus Zika: importância da abordagem multiprofissional. Fisioter Pesqui. 2017; 24(1):1-1. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/1809-2950/00000024012017.
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Poucos estudos discutem a abordagem dos trabalhadores de saúde e em que potência transcorreu a construção e/ou (des)construção de vínculo assistencial66 Seixas CT, Baduy RS, Cruz KT, Bortoletto MSS, Slomp JH, Merhy EE. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170627. com as famílias afetadas pela SCZ. É importante conhecer a atuação desses profissionais da saúde nesses encontros/(des)encontros com usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) diante de epidemias e pandemias emergenciais, como a SCZ. A finalidade é provocar a reflexão e o balizamento dessas condutas no que se refere à produção de cuidado, à formação de vínculo, ao acolhimento, ao encaminhamento e à mitigação do sofrimento das famílias afetadas.

O aumento da frequência de emergências em saúde pública desafiam as atitudes, as práticas profissionais e a produção do cuidado em saúde, e trazem à tona um (des)cuidado que “coisifica” as pessoas e as relações construídas no campo da saúde. Tal fato evidencia a necessidade de resgate do valor da solidariedade social, em busca de superação de uma visão individualista das ações humanas44 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho, interação e saber nas práticas de saúde. Rev Baiana Enferm. 2017; 31(1):e21847.. Nesse sentido, o estudo proposto objetivou dar voz e conhecer a perspectiva de mães de crianças com SCZ acerca da abordagem profissional e da formação de vínculos no processo de cuidado em saúde em tempos de Zika vírus.

Método

Trata-se de pesquisa do tipo descritivo-exploratória, de abordagem qualitativa, que integra uma pesquisa mais ampla intitulada “As políticas públicas de saúde em situações de emergência: o surto do Zika vírus”. Nela foram entrevistados gestores de saúde e mães de crianças com SCZ para compreender a percepção desses atores sobre o surto.

O presente estudo foi realizado no Brasil, no estado do Espírito Santo, com 25 mulheres que tiveram filhos acometidos de SCZ. Inicialmente, os pesquisadores se dirigiram ao Comitê de Microcefalia da Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo para levantamento dos casos que perfazem, de novembro de 2015 a dezembro de 2016, 49 recém-nascidos confirmados para SCZ, sendo dez abortos ou natimortos77 Secretaria do Estado da Saúde do Espírito Santo (SESA). Sesa divulga boletim de Zika e Microcefalia [Internet]. Espírito Santo: SESA; 2016 [citado 24 Jun 2020]. Disponível em: http://saude.es.gov.br/Not%C3%ADcia/sesa-divulga-boletim-de-zika-e-microcefalia-26
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. Foram convidadas a participar da pesquisa todas as 39 mães de bebês nascidos vivos.

Das 39 elegíveis, não participaram da pesquisa: quatro mulheres que se mudaram do estado em busca de melhor atendimento de saúde para seus bebês; duas mães menores de idade, que não obtiveram autorização dos pais; uma mãe moradora de rua que não foi encontrada; uma mãe que entregou a criança a um abrigo com destituição de pátrio poder; duas mães que perderam seus bebês em ٢٠١٧, por complicações do quadro da SCZ; uma mãe cujo bebê estava internado na Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica; e três mães que não quiseram conceder entrevista.

Para a coleta de dados, realizaram-se entrevistas com um roteiro semiestruturado e perguntas abertas e fechadas. As entrevistas foram realizadas em 2017, individualmente, gravadas por meio de registro de áudio. O diário de campo também foi utilizado para anotações de observações feitas durante os encontros com as mulheres.

Todas as entrevistas foram transcritas na íntegra e analisadas conforme a técnica de análise de conteúdo, modalidade temática. A Análise de Conteúdo Temática é um subtipo de análise de conteúdo. É importante esclarecer que está ligada à noção de tema, o qual pode ser graficamente apresentado por meio de uma palavra, uma frase, um resumo. A análise temática segue uma trajetória que consiste em: categorização, inferência, descrição e interpretação. A categorização demanda, do pesquisador, grande conhecimento em descobrir um plano classificatório adequado. A inferência é feita quando se deduz, de maneira lógica, algo do conteúdo que está sendo analisado. A descrição é definida como enumeração das características do texto, resumida após tratamento analítico; e a interpretação é a significação concedida a essas características que foram enumeradas durante a descrição88 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: edições 70; 2009..

Os resultados e a discussão dos dados foram organizados em categorias analíticas empíricas, ou seja, categorias que emergiram dos dados e não definidas a priori, a fim de facilitar a análise e a observância das nuances do objeto em estudo. As categorias foram agrupadas em dois temas dicotômicos, a saber: a desumanização da assistência e a perda da dimensão cuidadora; e a humanização da assistência e as potencialidades (re)construtivas na formação de vínculo assistencial.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob o Protocolo n. 1.730.231/2016, respeitando integralmente a Resolução n. 466/2012, e também pelo Comitê de Ética Internacional (Pahoerc), sob o Parecer Paho-2017-02-0013. Foi apresentado o Termo Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) a todas as participantes desta pesquisa, sendo identificadas pela letra M e os respectivos números referentes à sequência da transcrição das entrevistas.

Resultados e discussão

A desumanização da assistência e a perda da dimensão cuidadora

Trabalho em saúde centrado na lógica instrumental como produtor de (des) cuidado

Durante o surto de SCZ, ainda não existiam informações suficientes que pudessem fundamentar o processo de trabalho dos profissionais de saúde. Muitas gestantes com sintomas sugestivos de infecção por Zika vírus eram tratadas como tendo outras patologias, sem que houvesse investigação clínica epidemiológica e escuta qualificada99 Diniz D. Zika: from the Brazilian backlands to global threat. London: Zed Books; 2017. p. 12-4.. Acredita-se que essas gestantes, ao acessarem o serviço de saúde, desejavam uma prática clínica centrada nelas. A insegurança técnica dos trabalhadores de saúde deveria ser compartilhada com essas mulheres, criando protagonismo e corresponsabilidade, princípios arraigados na humanização em saúde1010 Martins CP, Luzio CA. Política HumanizaSUS: ancorar um navio no espaço. Interface (Botucatu). 2017; 21(60):13-22..

Eu só soube da microcefalia quando ele nasceu... Com uns quatro meses de gestação, eu havia sentido certa dor nas costas e percebido o aparecimento de umas manchas vermelhas, mas eu fui ao hospital e a minha médica me passou apenas um antialérgico. (M7)

Nos primeiros casos diagnosticados, mulheres e bebês, no puerpério imediato, foram submetidas a medidas de precaução e isolamento, com a desconfiança por parte dos profissionais de que SCZ fosse infectocontagiosa. Essa prática, além de não encontrar cotejamento em literatura científica, aumentava a sensação de desamparo das mulheres.

Eu perguntei para a enfermeira o motivo de me levarem para o isolamento, logo depois da cesariana. Ela me disse que era porque eu havia tido o Zika, e que esse vírus ainda permanecia no organismo da pessoa por muito tempo. (M1)

Cabe ressaltar que as tecnologias leves-duras e duras1111 Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2005., por meio de protocolos e manuais robustos, não são suficientes no trato da complexidade das relações que envolvem o processo saúde-doença-cuidado do Zika vírus. A dimensão micropolítica, que mobiliza a criatividade, a adaptação crítica à realidade, as reações na interação com o outro e com os processos subjetivos, é necessária no emaranhado da produção em saúde. Nesse sentido, o cuidado integral dessas mulheres exige tempo e, inicialmente, essa relação entre profissional e usuária foi muito frágil, causando estranhamento e produzindo um cuidado pouco “autonomizador” para essas mulheres.

A ausência de protocolos e manuais robustos colaborou para que profissionais ficassem receosos com as condutas adotadas, as quais, somadas à prática centrada na doença, no modelo médico-hegemônico e no trabalho focado na lógica instrumental1212 Ayres JRCM. Risco e imponderabilidade: superação ou radicalização da sociedade disciplinar? Cad Saude Publica. 2001; 17(6):1297-8., trouxeram fragmentação do cuidado e sofrimento das mães.

Minha filha ficou internada lá no hospital só para ser pesquisada. Para ver se era por causa do Zika mesmo.(M4)

O meu filho nasceu no auge do Zika, mas não pediram nem um exame da placenta... Os médicos não estavam preparados. (M6)

No ideário social do trabalhador de saúde “sabe-tudo”, deve-se admitir que esse lugar do “não saber”, para muitos trabalhadores, envolve uma sensação de certo fracasso profissional. Mas essa sensação pode estar vinculada à formação em saúde com enfoque no trabalho instrumental e pouco relacional, insuficiente para a produção do cuidado em saúde66 Seixas CT, Baduy RS, Cruz KT, Bortoletto MSS, Slomp JH, Merhy EE. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170627.,1313 Ceccim RB, Feuerwerker LCM. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis. 2004; 14(1):41-65..

É necessário sair de uma posição de suposto saber e compreender que, no trabalho em saúde, aprendemos uns com os outros continuamente. E valorizar o momento de encontro com o usuário, a escuta, suas histórias e experiências, reconhecendo que todos criam soluções para responder às questões complexas do cotidiano1414 Carvalho MS, Merhy EE, Sousa MF. Repensando as políticas de saúde no Brasil: educação permanente em saúde centrada no encontro e no saber da experiência. Interface (Botucatu). 2019; 23:e190211..

Supõe-se que, em meio a um cenário conturbado, os profissionais não desejavam tomar para si a responsabilidade de fechar o diagnóstico de SCZ, cuja abordagem necessita de delicadeza devido às suas implicações1515 Luisada V, Fiamengui-JR GA, Carvalho SG, Assis-Madeira EA, Blascovi-Assis SM. Experiências de médicos ao comunicarem o diagnóstico da deficiência de bebês aos pais. Cienc Saude. 2015; 8(3):121-8. Doi: https://doi.org/10.15448/1983-652X.2015.3.21769.
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Eu só soube da microcefalia quando ele nasceu e, mesmo assim, nos documentos colocavam que era suspeita. (M3)

[...] na última ultrassonografia que eu fiz a doutora disse que achava que a cabeça dela estava menor do que o normal, mas que não iria diagnosticar como microcefalia. (M4)

Uma das participantes da pesquisa relata, também, a ausência da equipe de saúde no preparo familiar para a chegada da criança, conforme exposto abaixo:

Com o passar das ultrassonografias, fomos vendo que ele tinha pé torto congênito, fêmur encurtado, cardiomegalia, ascite... Só que, ainda assim, ninguém me preparou para ter uma criança especial! Independente dos médicos saberem se era por causa do Zika ou não, eles sabiam o que iria acontecer... Por exemplo, uma criança que tem má-formação do cerebelo, quais as consequências? Foi mais ou menos isso que eles foram nos falar quando ele nasceu, mas por que não falaram antes? Nós achávamos que os pés tortos seriam o maior trabalho que nós teríamos com ele! Nós não ficávamos procurando o que era isso ou aquilo, nós esperávamos ouvir do nosso médico! Nós confiávamos nele. (M6)

Uma importante estratégia para o preparo familiar é a participação em grupos terapêuticos, uma vez que proporcionam um espaço de compartilhamento de experiências e reflexão1616 Nobre MIRS, Macedo TP, Moraes ACB, Montilha RCL. Grupo terapêutico: preparo familiar para inclusão. J Res Spec Educ Needs. 2016; 16(1):568-72.. É no encontro – sobretudo na dimensão relacional do trabalhador de saúde com essas usuárias – que a potência do vínculo poderia ter reorganizado os processos de trabalho como produção de prática do cuidado. Nesse sentido, o vínculo é um potente indicador de positividade nas relações de cuidado. Apesar de algo passível de ser construído, mas que também pode ser desconstruído – ou nunca ser alcançado –, tal vínculo precisa, portanto, ser cuidado66 Seixas CT, Baduy RS, Cruz KT, Bortoletto MSS, Slomp JH, Merhy EE. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170627.,1717 Slomp Junior H, Feuerwerker LCM, Land MGP. Educação em saúde ou projeto terapêutico compartilhado? O cuidado extravasa a dimensão pedagógica. Cienc Saude Colet. 2015; 20(2):537-46.

Comunicação ineficaz produtora de práticas desumanizadoras

O cuidado humanizado é uma prática indispensável nos serviços de saúde1818 Santos MM, Boing E, Oliveira ZAC, Crepaldi MA. Diagnóstico pré-natal de malformação incompatível com a vida: implicações psicológicas e possibilidades de intervenção. Rev Psicol Saude. 2014; 6(1):64-73.. É incontestável a importância do saber técnico-científico; entretanto, sem o acréscimo de empatia, escuta e diálogo, o usuário tende a não experienciar o atendimento como satisfatório1919 Dodou HD, Rodrigues DP, Oriá MOB. O cuidado à mulher no contexto da maternidade: caminhos e desafios para a humanização. J Res Fundam Care Online. 2017; 9(1):222-30.. O acolhimento, dispositivo da Política Nacional de Humanização (PNH), deve estar presente como o cerne na relação entre equipes/serviços e usuários/populações. Com uma escuta qualificada oferecida pelos trabalhadores às necessidades do usuário, é possível garantir a ele o acesso oportuno às tecnologias adequadas às suas necessidades, ampliando a efetividade das práticas de saúde2020 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização - HumanizaSUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2013..

Contrapondo a PNH, uma prática desrespeitosa frequente contra a usuária é o falar da situação de saúde da criança na sua presença, mas como se ela não estivesse ali, revelando total anulação do outro como sujeito2121 Aguiar JM. Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2010.. Práticas de desumanização do cuidado permearam as falas das mulheres, com relatos de serem ignoradas enquanto os profissionais de saúde discutiam o caso dos filhos em sua presença, como se a mãe fosse invisível:

“Tem um negócio estranho aqui”, aí falou assim com a secretária dele: “Chama o outro doutor lá”, chamou o outro doutor, veio, daí quando eu olho, três doutor dentro da sala... Eu disse: “Misericórdia!”, já comecei a ficar assustada...Aí ele: “Precisa ficar assustada não, pode ficar tranquila!”, aí o outro foi e falou: Tem jeito não! Pode colocar aí na conclusão do exame, microcefalia mesmo”. Aí eu peguei e fiquei assim olhando... Aí ele falou assim: “Boa sorte!” (M23)

Ninguém explicava nada. E, aí foi quando a doutora chegou com uma série de acadêmicos lá e aí, a médica lá, né: Ó, isso daqui é uma criança, provável de Zika congênita, ela tem microcefalia, não sei o quê’. Foi na hora que eu olhei assim, tipo assim. Aí na hora eu falei: Doutora, só um minuto, foi confirmado? A microcefalia? Ela falou: Foi. Ninguém chegou: Olha mãe[...]. Foi dessa forma que eu ouvi. Eles tavam lá, conversando entre eles lá, ela explicando cada caso, pra eles aprenderem. Aí ela pegou e falou dessa forma. Essa é uma criança, com microcefalia, tem má-formação, calcificação, Zika congênita, tal. Aí eu olhei assim, aí, tipo assim, Meu Deus. [...]. Aí ali naquele momento e eu queria gritar, eu queria de alguma forma extravasar. M2

Corrobora, para a invisibilidade dessas mães, a armadura biomédica de negar a escuta, oriunda do padrão da formação profissional em saúde, o qual, desde suas origens, tem produzido “detentores do saber” que dominam a vigência das práticas. É sabido que esse discurso anulou a escuta – ao menos a escuta de intensidade –, pois o importante era o diagnóstico da doença e a prescrição do tratamento, independentemente da singularidade que congrega a trajetória de cada usuário. Para ruptura desse modelo, a educação permanente em saúde tem o intuito de fomentar, trazer transformações do trabalho, dando espaço ao pensamento reflexivo, crítico e criativo2222 Collar JM, Almeida Neto JB, Ferla AA. Educação permanente e o cuidado em saúde: ensaio sobre o trabalho como produção inventiva. Saude Redes. 2015; 1(4):53-64..

Nesse sentido, a comunicação eficaz durante todo encontro com o usuário é um dispositivo potente para que o vínculo se estabeleça. Além disso, é fundamental na comunicação do diagnóstico de uma deficiência. A adesão ao tratamento e a produção de cuidado “autonomizador” estão diretamente relacionadas à comunicação adequada entre usuários e profissionais de saúde33 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, UERJ/IMS, ABRASCO; 2009. (Clássicos para integralidade em saúde)..

Frequentemente, os profissionais, pouco empáticos, permearam os (des)encontros utilizando comunicações grosseiras e rudes:

Ele virou e falou assim: Ele vai ser assim para sempre, o cérebro dele está todo danificado. Ele não tem cérebro; e eu não respondi, fiquei na minha. Aquilo desceu assim, como se eu tivesse engolido uma pedra. (M18)

No hospital, um neuro perguntou para o meu esposo se ele sabia que nossa filha tinha microcefalia com hidrocefalia, e disse que por causa disso ela não teria nenhum movimento do pescoço para baixo. Falou desse jeito! (M4)

A médica do meu lado falando: Você sabe que a sua filha tem microcefalia? Eu falei: Não, eu não sabia. Tipo assim, eu estava até então esperando a hidrocefalia. Aí ela: É, ela tem. Eu falei: Nossa, mas não parece. Ela parece sim, a cabeça dela é pequena, virou as costas e saiu. Desse jeito. Assim, na hora eu não sabia se eu chorava, porque eu não estava esperando, ou se eu voava no pescoço dela. Tipo assim, poderia ter sido um pouco mais delicada, que é um momento difícil. Ela virou as costas e saiu, eu fiquei lá. (M14)

Na pesquisa realizada pela Human Rights Watch2323 Human Right Watch. Esquecidas e desprotegidas: o impacto do vírus Zika nas meninas e mulheres no nordeste do Brasil [Internet]. New York: Human Right Watch; 2017 [citado 24 Jun 2020]. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/report/2017/07/13/306163
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, a notícia que as mulheres receberam de uma anomalia no desenvolvimento de seus filhos, no momento do parto, e a experiência que tiveram diante da forma como os profissionais de saúde as trataram, provocaram um profundo impacto psicossocial. Muitas delas não receberam informações sobre o diagnóstico, nem apoio psicológico ou aconselhamento para ajudá-las a lidar com a dura notícia. Outros estudos também mostraram o despreparo dos profissionais para o momento de revelação do diagnóstico da SCZ2424 Missel A, Costa CC, Sanfelice GR. Humanização da saúde e inclusão social no atendimento de pessoas com deficiência física. Trab Educ Saude. 2017; 15(2):575-97..

Outra queixa foi o desprestígio na coparticipação da família no tratamento. Algumas entrevistadas apontaram a dificuldade em participar dos serviços de estimulação precoce em seus respectivos municípios.

Eles não deixam nós entrarmos para acompanhar a fisio e a fono. (M4)

Eles não deixam nós acompanharmos as sessões [...]. Chegamos a ter um desentendimento com a fono. (M7)

É preciso compreender que a produção de cuidado integral só ocorrerá se houver autonomia para as famílias, incluindo sua participação em todos os encontros dos trabalhadores de saúde com as crianças com SCZ.

Por se tratarem de crianças que demandam acompanhamento rotineiro de diversos profissionais de saúde, o vínculo entre a família e o serviço de saúde acaba sendo estabelecido pela própria convivência, e promove a possibilidade de efetivar os cuidados ofertados por meio do ensino aos pais. O apoio familiar pode ser determinante para a obtenção do desenvolvimento da criança, pois, quando bem instruídos, os familiares podem continuar a estimulação em casa2525 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Diretrizes de estimulação precoce: crianças de zero a 3 anos com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. Brasília: Ministério da Saúde; 2016..

Violência obstétrica

Outra forma de desumanização da assistência, encontrada neste estudo, foi a violência obstétrica. Essa terminologia foi proposta para a identificação de qualquer ato de violência direcionado à mulher grávida ou parturiente, ou ao seu bebê, praticado durante a assistência profissional, que signifique desrespeito à sua autonomia, à sua integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e preferências2626 Pitanguy J. Os direitos reprodutivos das mulheres e a epidemia do Zika vírus. Cad Saude Publica. 2016; 32(5):e00066016.. Se a prática da violência obstétrica é grave em si mesma, maior ainda é a que ocorre contra mulheres como as mães de bebês com deficiência.

Partindo do pressuposto de que o desrespeito à autonomia da gestante é violência obstétrica, neste estudo houve sonegação de informação do profissional para com a mãe, em uma tentativa de dominação do corpo da mulher, impossibilitando-a de tomar decisões autônomas sobre seu corpo e sua vida.

Quando foi esse ano que eu levei a neném no posto médico, eu perguntei para ela: Doutora, por que a senhora não me falou a verdade? Ela falou bem assim que ficou com medo de eu abortar a menina. Eu ia abortar uma criança com quatro meses na minha barriga, a criança se mexendo já? Então, desde o início da gravidez já tinha o problema da microcefalia, só que ela não me orientou em nada. (M16)

No que se refere ao direito ao aborto – prática, em regra, criminalizada no Brasil –, as recomendações da Organização das Nações Unidas (ONU) para os países que enfrentaram e enfrentam a epidemia do Zika vírus eram de assegurar um acesso pleno ao planejamento familiar e de realizar revisão das legislações punitivas em relação ao abortamento legal2626 Pitanguy J. Os direitos reprodutivos das mulheres e a epidemia do Zika vírus. Cad Saude Publica. 2016; 32(5):e00066016..

Outra conduta que pode ser considerada violência obstétrica é infantilizar a mulher por intermédio de diminutivos, em que a relação hierárquica posta entre o profissional e a usuária está intimamente associada à objetificação do outro2727 Daneluci RC. Instituições públicas de saúde e mulheres gestantes: (im)possibilidades de escolhas? [tese]. São Paulo: Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo; 2016..

A médica chegou na recepção e perguntou: Qual é a mãezinha que está em sofrimento?. (M1)

Em alguns momentos, a mulher foi ignorada e tratada de forma ríspida, não tendo seu protagonismo respeitado:

Ele: Olha, eu vou fazer esse parto dessa menina, mas eu tenho duas coisas para falar. Falou: Olha, esse neném, ou ele já vai nascer morto ou ele só vai viver duas horinhas, não vai passar de duas horas, que ele vai viver. Desse jeito. Eu falei: É? Pode fazer meu parto. Quando tirou da minha barriga esse menino, eu me lembro como se fosse hoje, esse menino chorou tanto e tanto, e a cabeça dele nasceu normal. Chorou aquele choro de neném normal. (M17)

Eu me lembro que quando a doutora tirou ele, ela disse: É microcefalia mesmo. Foi a única coisa que eu escutei ela falar. Depois disso ela saiu e deixou até um outro médico me costurando. (M1)

Quando ele nasceu, eu ouvi o médico falando que a cabecinha dele era pequena, mas a minha médica disse: “Não! Que pequena?!, mas eles não me explicaram nada. (M7)

Estudos recentes2828 Hamad GBNZ, Souza KV. Síndrome congênita do Zika Vírus: conhecimento e forma da comunicação do diagnóstico. Texto Contexto Enferm. 2020; 29:e20180517. Doi: https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2018-0517.
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,2929 Alves RLC, Dos Reis, Safatle YB. “Mães de micro”: perspectivas e desdobramentos sobre cuidado no contexto da síndrome congênita do zika vírus (SCZV) em Recife/PE. Altera Rev Antropol. 2019;1(8):115-45. Doi: https://doi.org/10.22478/ufpb.2447-9837.2019v1n8.42464.
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revelaram violência obstétrica durante o parto dos bebês com SCZ, e geraram graves impactos na saúde mental das mulheres.

Ainda há escassez, no campo científico, quanto ao parto da mulher com criança com deficiência. Estudo com essas mulheres demonstrou experiência tátil diferente com seus filhos nos momentos seguintes ao parto, devido ao comportamento demonstrado pelos profissionais da saúde. Normalmente, quando uma criança nasce típica, é festejada e entregue à mãe com satisfação; no entanto, quando há suspeita de que a criança tenha deficiência, ela é deixada ao lado da mãe, como se o profissional ficasse constrangido de entregá-la3030 Falkenbach AP, Drexsler G, Werler V. A relação mãe/criança com deficiência: sentimentos e experiências. Cienc Saude Colet. 2008;13 Suppl 2:2065-73..

Humanização da assistência e as potencialidades (re) construtivas na formação de vínculo assistencial

O conceito de humanização é polissêmico, e o MS tem tensionado práticas de humanização do cuidado desde a implantação da PNH. Nesse sentido, a humanização da saúde é entendida como um movimento que busca melhoria do atendimento e um ambiente propício para o desenvolvimento do cuidado. Nas práticas de humanização, estabelecem-se a valorização da dimensão subjetiva e os direitos dos usuários, a sua autonomia e o protagonismo, a construção de redes cooperativas e solidárias de produção da saúde3131 Mongiovi VG, Anjos RCCBL, Soares SBH, Lago-Falcão TM. Reflexões conceituais sobre humanização da saúde: concepção de enfermeiros de Unidades de Terapia Intensiva. Rev Bras Enferm. 2014; 67(2)306-11..

Surgiram relatos de práticas humanizadoras e (re)construtoras de vínculo com uma profissional de saúde: a neuropediatra que cuidava das crianças com SCZ. Afetos foram mencionados, incluindo a maneira cuidadosa e a delicadeza em fornecer as informações sobre os sintomas, o zelo com a criança, futuras complicações e a atenção com a saúde da mãe:

Ah, ela é uma pessoa especial demais. Ela é daquele tipo de profissional que ela não te bota pra baixo, em momento algum. Ela é um profissional que te faz enxergar horizonte, te faz enxergar que tudo é possível. (M6)

É, estava bem assim, nervosa na primeira consulta, fiquei muito nervosa assim. Aí ela me acalmou muito assim, conversou comigo. Tipo assim, falou: Olha, se você precisar de alguma coisa, eu aqui nas terças e nas sextas, você pode me procurar qualquer horário. (M17)

A doutora é maravilhosa. A gente não tem o que reclamar dela não. Ela é muito atenciosa, ela é uma médica exemplar assim, sabe? Aquele tipo de profissional que você vê que tem amor ao que faz. (M15)

A forma com que o profissional de saúde desenvolve os primeiros contatos com a família é, sem dúvida, um momento de maior sensibilidade na relação entre profissional da saúde e mãe/família. O vínculo ocorrerá por meio desse encontro e está intimamente relacionado com a capacidade de encontrar apoio.

Nesse encontro33 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, UERJ/IMS, ABRASCO; 2009. (Clássicos para integralidade em saúde)., o cuidado produzido não será apenas conduta assistencial, mas uma prática no exercício da Atenção à Saúde pautada na integralidade, uma prática cuidadora3232 Ceccim RB, Carvalho YM. Ensino da saúde como projeto da integralidade: a educação dos profissionais de saúde no SUS. In: Pinheiro R, Ceccim RB, Mattos RA. Ensinar saúde: a integralidade e o SUS nos cursos de graduação na área de saúde. Rio de Janeiro: Abrasco, CEPESQ; 2005., mediante a qual as tecnologias relacionais produzem cuidado integral e “autonomizador” – a autonomia entendida como liberdade de agir e de decidir do sujeito de acordo com seus valores, prioridades, desejos, crenças e autodeterminação. Esse cuidado “autonomizador” deve ser construído na relação entre profissional de saúde e usuário, com eixo na escuta como produtora da autonomia3333 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 39a ed. São Paulo: Paz e Terra; 1996.,3434 Merhy EE. O desafio da tutela e da autonomia: uma tensão permanente do ato cuidador [Internet]. Belo Horizonte: NESCON Biblioteca Virtual; 1998 [citado 12 Nov 2019]. Disponível em: https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/0276.pdf
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A escuta qualificada é primordial no conforto e no auxílio para a mãe, pois ajuda a evitar a apreensão de angústias, medos e traumas, contribuindo na consolidação de um processo em que a família precisa ser valorizada, pois somente assim é possível transmitir estima e confiança para os pais3030 Falkenbach AP, Drexsler G, Werler V. A relação mãe/criança com deficiência: sentimentos e experiências. Cienc Saude Colet. 2008;13 Suppl 2:2065-73.. A aceitação e a adaptação podem ser definidas pela sensibilidade do profissional de saúde, tornando-se essenciais para o empoderamento e o equilíbrio familiar3535 Oliveira MC, Moreira RCR, Lima MM, Melo RO. Vivências de mães que tiveram filhos com microcefalia. Rev Baiana Enferm. 2018; 32:e26350. Doi: https://dx.doi.org/10.18471/rbe.v32.26350.
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Um fato comum relatado é a proximidade e a facilidade de acesso aos cuidados dessa profissional, seja pelo telefone seja pessoalmente no consultório. O carinho dispensado às mães e crianças também é algo enfatizado, descrevendo-a como um anjo na vida dessas famílias.

Nossa, ela é uma mulher, é uma neuro perfeita. Eu só tenho elogios pra ela, porque ela é muito atenciosa. Ela me atende, eu mando foto da bebê, eu mando tudo qualquer evoluçãozinha eu mando... Ela acompanha. Agora mesmo, esse mês, eu fui três vezes nela, ela fez o eletro, ela acompanhou o eletro. (M21)

Ela, pra mim, ela é um anjo de Deus. E que Deus enviou ela, porque uma mulher igual aquela, minha filha... ela é tão bem falada pelos outros, e ela trata tanto bem os pacientes dela, né? E tanto os acompanhantes. E ela é ótima demais. Aquela mulher é ouro. (M1)

Ela é aquele tipo de médica que você chega, não entra com o seu bebê no consultório. O meu, ela entra com ele no colo. Eu levo a bolsa. Ela é muito carinhosa. Fico até sem palavras para elogiá-la de tão boa que para mim ela é. Ela é uma médica que, se a mãe não aparece na consulta, ela liga. (M18)

A doutora x, ah, aquela ali é um anjo, aquela mulher. Nossa, ela que me encaminhou pro Centro de Referência em Deficiência. E eu ganhei, lá me escreveram já, pra poder ganhar uma cadeira, pra ela, pro pescoço, negocinho dos pés. Foi tudo ela. Ela que colocou de frente com tudo, pra mim. Ah, ela me ajudou bastante. Os remédios que ela tomava, clonazepam que ela toma. Tem um outro. Eu não tinha dinheiro pra comprar, ela me dava. Me dava o dinheiro pra mim comprar. (M8)

As mães, até então desamparadas, desinformadas, tiveram um “encontro” singular com uma profissional de saúde que utilizava os eixos norteadores de atenção humanizada – como a capacidade de acolhida e escuta –, que são componentes diferenciais na produção do cuidado integral e “autonomizador”. Estudo recente3535 Oliveira MC, Moreira RCR, Lima MM, Melo RO. Vivências de mães que tiveram filhos com microcefalia. Rev Baiana Enferm. 2018; 32:e26350. Doi: https://dx.doi.org/10.18471/rbe.v32.26350.
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também encontrou práticas humanizadas dos profissionais de saúde para com as mães que tiveram filhos com microcefalia, incluindo relatos de escuta qualificada e compreensão do processo psíquico vivenciado.

Houve, também, relatos de bons encontros com outros profissionais, como parte do cotidiano de cuidados com os bebês, conforme observado nas falas que seguem:

Eu recebo o benefício desde quando ele nasceu. Quem deu entrada em tudo, para mim, foi a assistente social. Ela me ajudou bastante! Me orientou em tudo! Têm ótimas pessoas cuidando dele. E a neuropediatra dele?! Ela foi quem me deu uma luz! (M1)

Eu amo a fisioterapeuta dele! Ela é muito atenciosa, muito boa! (M3)

Foi a neuropediatra quem abriu o leque para nós! É ela quem manda minha filha para tudo quanto é médico. É a madrinha da minha filha! (M4)

Nesse contexto, a equipe interprofissional tem papel importante na disponibilidade de informações claras e no reconhecimento da rede de apoio social acessível à mãe e a seus familiares, para melhorar a qualidade de vida e a compreensão dessas mães sobre a SCZ2828 Hamad GBNZ, Souza KV. Síndrome congênita do Zika Vírus: conhecimento e forma da comunicação do diagnóstico. Texto Contexto Enferm. 2020; 29:e20180517. Doi: https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2018-0517.
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Um profissional humanizado, que trata o indivíduo de forma individualizada, empática e ética, ultrapassa o saber tecnicista e soma a ele a capacidade de se diferenciar mediante o desenvolvimento da escuta e do acolhimento, fundamentando práticas de qualidade reconhecidas pelos usuários do serviço de saúde3636 Ferreira LR, Artimann E. Discursos sobre humanização: profissionais e usuários em uma instituição complexa de saúde. Cienc Saude Colet. 2018; 23(5)1437-50..

Considerações finais

Este estudo demonstrou, sob a perspectiva das mães de crianças com SCZ, a importância de produção de cuidado e a formação de vínculos no processo de cuidado em saúde. Por meio da voz dessas mulheres, na visão das pessoas que fazem uso dos serviços, tornaram-se visíveis as crises entre os saberes e os fazeres no processo de trabalho em saúde, reforçando a importância da educação permanente em saúde como potente indutora de mudanças nos respectivos serviços.

Atos de (re)construção do cuidado foram revelados por meio da comunicação eficaz, da formação de vínculo, da escuta qualificada e da humanização da assistência; e atos de (des)cuidado ocorreram por práticas desumanizadas, desrespeitosas e até mesmo configuração de violência obstétrica com essas mulheres. A intensidade dos seus depoimentos foi um marcador avaliativo do (des)cuidado recebido e da qualidade da clínica que foi ofertada pelos profissionais, e os resultados demonstraram que eles deveriam ser incentivados a escutar os usuários dos serviços de saúde no país.

Nesse sentido, o trabalho em saúde – como produção de cuidado, como aprendizagem no/pelo cotidiano do trabalho, como formação profissional, como trabalho em equipe e como trabalho colaborativo intersetorial, em sua maior parte – não satisfez a expectativa de cuidado e tampouco a necessidade dessas mulheres. Tal resultado, que grita na fala das mulheres deste estudo, revela grave crise de uma insuficiência que se encontra no cotidiano do trabalho. Essa crise está relacionada à formação centrada no modelo biomédico, em um modelo de Atenção à Saúde fragmentado, dificultando o cuidado integral.

Para romper com essa lógica, é necessário que se tensione a formação em saúde no país, visando uma formação crítica, reflexiva e humana, que culmine na melhoria efetiva do atendimento perante a manifestação de novas epidemias e pandemias.

Os resultados deste estudo nos chamam a atenção para a necessidade de novas estratégias e intervenções que apontem para o melhor atendimento à gestante com diagnóstico de malformação congênita de sua criança, e também um adequado manejo na abordagem de doenças emergentes e pandemias.

Dessarte, torna-se necessário repensar e ressignificar o processo de formação do profissional de saúde, articulando sua relação não só com os aspectos da doença – os técnico-científicos e os instrumentais –, mas também com a saúde, a vida, a felicidade, o afeto e a produção do cuidado fomentador de cidadania, a solidariedade e a inclusão dos atores envolvidos.

Agradecimentos

Agradecemos às mulheres, mães de crianças com SCZ, que abriram suas casas e seus corações para os pesquisadores.

  • Financiamento

    Este estudo foi financiado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), por meio do edital Programa Conjunto HRP/TDR/OPS de Pequeñas Subvenciones a la Investigación sobre el Brote del Virus de Zika en las Américas.
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Editado por

Editor
Rosamaria Giatti Carneiro
Editor associado
Stela Nazareth Meneghel

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2020
  • Aceito
    27 Out 2020
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