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Impasses e potências: o matriciamento como dispositivo de cuidado

Impasses and potentialities: matrix support as a care device

Callejones sin salida y potencias: el apoyo matricial como dispositivo de cuidado

Resumos

O objetivo deste artigo é apresentar e discutir parâmetros que otimizem o matriciamento em saúde mental como dispositivo de cuidado. Trata-se de estudo qualitativo, orientado pelas teorias psicanalíticas de grupo. Observamos, registramos e analisamos seis reuniões de matriciamento entre serviços especializados e Atenção Primária à Saúde (APS). As principais dificuldades encontradas se referiam a assegurar horários e espaços para as reuniões, bem como disparidades na compreensão sobre a tarefa. Em contrapartida, identificamos também momentos que evidenciam um cuidado mútuo, em sintonia com a literatura sobre as relações entre equipes e usuários. Concluímos destacando a importância do conhecimento sobre os processos psíquicos em jogo no grupo de profissionais, favorecendo, assim, maior clareza sobre sua tarefa e consequente engajamento dos participantes, potencializando o matriciamento como dispositivo de cuidado, tanto dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto dos profissionais.

Palavras-chave
Saúde mental; Atenção Primária à Saúde; Apoio matricial; Clínica ampliada; Grupo


The article presents and discusses parameters that optimize matrixing in mental health as a care device. We conducted a qualitative study guided by group psychoanalytic theories. We observed, recorded and analyzed six matrixing meetings between specialist services and primary health care services. The main difficulties found were finding time and spaces for meetings and differences in understanding about tasks. On the other hand, we observed moments that reveal mutual care in tune with the literature on health team and service user relations. We conclude by highlighting the importance of knowledge about the psychic processes at stake in groups of professionals, facilitating greater clarity regarding tasks and resulting in the consequent engagement of participants (both public health service users and health professionals), thus enhancing matrixing as a care device.

Keywords
Mental Health; Primary Health Care; Matrix Support; Extended Care; Group


El objetivo de este artículo es presentar y discutir parámetros que optimicen el apoyo matricial en salud mental como dispositivo de cuidado. Se trata de un estudio cualitativo orientado por las teorías psicoanalíticas de grupo. Observamos, registramos y analizamos seis reuniones de apoyo matricial entre servicios especializados y Atención Primaria de la Salud (APS). Las principales dificultades encontradas se referían a asegurar horarios y espacios para las reuniones, así como disparidades en la comprensión sobre la tarea. En contrapartida, identificamos también momentos que ponen en evidencia un cuidado mutuo, en sintonía con la literatura sobre las relaciones entre equipos y usuarios. Concluimos subrayando la importancia del conocimiento sobre los procesos psíquicos en juego en el grupo de profesionales, favoreciendo de tal forma una mayor claridad sobre su tarea y el consecuente compromiso de los participantes.

Palabras clave
Salud mental; Atención primaria de la salud; Apoyo matricial; Clínica ampliada; Grupo


Introdução

Neste artigo, buscaremos apresentar e discutir parâmetros que otimizem o matriciamento em saúde mental como dispositivo de cuidado. Compreendemos o cuidado tanto dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto entre os pares profissionais de forma não dissociada. Este artigo foi construído a partir da pesquisa de mestrado1Cohen MC. Escutando o matriciamento: caminho para um resgate da dimensão clínica no trabalho em rede no SUS? [dissertação]. São Paulo: Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo; 2018. de um dos autores e da experiência prévia de ambos.

O matriciamento, ou apoio matricial, formulado originalmente por Gastão Wagner de Souza Campos2Campos GWS. Equipes de referência e apoio especializado matricial: uma proposta de reorganização do trabalho em saúde. Cienc Saude Colet. 1999; 4(2):393-404., foi definido, posteriormente, como “um novo modo de produzir saúde em que duas ou mais equipes, num processo de construção compartilhada, criam uma proposta de intervenção pedagógico-terapêutica”3Chiaverini DH, Gonçalves DA, Balester DA, Tófoli LF, Chazan LF, Almeida NS, et al. Guia prático de matriciamento em saúde mental. Brasília: Ministério da Saúde; 2011. (p. 13).

Considerando o fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS) como fundamental para a organização do sistema de saúde em todos os níveis de atenção de maneira integrada, Barbara Starfield destaca que:

A atenção primária é aquele nível de um sistema de serviço de saúde que oferece a entrada no sistema para todas as novas necessidades e problemas, fornece atenção sobre a pessoa (não direcionada para a enfermidade) no decorrer do tempo, fornece atenção para todas as condições, exceto as muito incomuns e raras, e coordena ou integra a atenção fornecida em algum outro lugar ou por terceiros. Assim, é definida como um conjunto de funções que, combinadas, são exclusivas da atenção primária.4Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da saúde; 2002. (p. 28)

A complexidade da APS é ainda intensificada considerando-se o foco do SUS na promoção e prevenção de saúde para além da recuperação. Tal perspectiva se desdobra em uma organização territorial de serviço, centrada em equipes de referência, favorecendo o acompanhamento e vínculo longitudinais com os usuários, coordenando seu cuidado. A organização a partir do território e da APS articula-se também com a compreensão de que o processo saúde-doença constitui-se um reflexo das complexas relações da população com seu meio comunitário, o que é comumente denominado nas portarias pelo termo “biopsicossocial”:

Enfim: [...] “O homem é um ser integral, biopsicossocial, e deverá ser atendido com esta visão integral por um sistema de saúde também integral, voltado a promover, proteger e recuperar sua saúde”.5Brasil. Ministério da Saúde. ABC do SUS – doutrinas e princípios. Brasília: Ministério da saúde; 1990. (p. 5)

Tal compreensão fundamenta o princípio de integralidade, atributo fundamental da APS e pilar da organização da oferta de serviços de saúde no SUS e, especialmente, na Estratégia Saúde da Família (ESF). Nesse sentido, a busca por atendimento, longe do território de moradia e referência do usuário, em serviço de atenção especializada, sem a devida necessidade, pode comprometer esse olhar integral. Disso deriva a preocupação com apoios especializados às equipes de ESF, com um duplo objetivo: diminuir os encaminhamentos para fora da APS e fortalecer um trabalho articulado em rede. Assim, esse apoio especializado seria fornecido pelas equipes de Apoio Matricial, ou seja, equipes com uma formação especializada que oferecem suporte técnico e clínico, ampliando a resolubilidade das ações da ESF.

Cabe destacar que a compreensão do cuidado a partir de uma visão integral do ser humano também encontra destaque no Movimento Sanitário e na Reforma Psiquiátrica, contemporâneos à construção e fortalecimento do SUS. O Movimento Sanitário surgiu ao lado de outros movimentos que buscavam redemocratizar o Brasil após a Ditadura Militar. Desse movimento, surgiu a proposta da Reforma Sanitária, que teve como objetivo a implantação do SUS. A Reforma Psiquiátrica, por sua vez, caracteriza-se pela busca de uma rede de cuidados para as pessoas com transtornos psíquicos graves organizada em contraposição a um modelo de cuidado centralizado, excludente e asilar. Assim, essa rede substitutiva teria como horizonte um cuidado inclusivo que possibilitasse o trânsito da pessoa na vida sem a retirar de seu meio para então a tratar.

Nesse sentido, o fortalecimento das equipes de ESF por meio do apoio matricial em saúde mental harmoniza-se com a perspectiva da Reforma Psiquiátrica1Cohen MC. Escutando o matriciamento: caminho para um resgate da dimensão clínica no trabalho em rede no SUS? [dissertação]. São Paulo: Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo; 2018., permitindo a manutenção e fortalecimento dos vínculos vividos pelo sujeito em seu território. Por exemplo, no matriciamento entre as equipes de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e das Unidades Básica de Saúde (UBS), no contexto aqui estudado, espera-se que as equipes de ESF possam cuidar dos usuários com questões de saúde mental com o apoio dessa equipe especializada. Ainda se espera que, nesse matriciamento, sejam elaboradas estratégias compartilhadas de cuidado para os casos atendidos em comum, pois se almeja que o vínculo do usuário com a UBS continue sendo prioritário mesmo em momentos em que necessite de atenção especializada.

Cabe destacar que o matriciamento não é realizado apenas entre a UBS e serviços de atenção especializada, mas também – e principalmente – entre equipes de ESF e Núcleos Ampliados de Saúde de Família e Atenção Básica (Nasf-AB), equipes com formação especializada que atuam com as equipes de referência, estas de formação generalista2Campos GWS. Equipes de referência e apoio especializado matricial: uma proposta de reorganização do trabalho em saúde. Cienc Saude Colet. 1999; 4(2):393-404.. Os Nasf-AB surgem com o objetivo de aumentar o escopo de trabalho e resolutividade das UBS, tendo o apoio matricial como principal estratégia6Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes do NASF. Brasília: Ministério da Saúde; 2009.,7Brasil. Ministério da Saúde. Núcleos de Apoio à Saúde da Família – Volume 1: ferramentas para a gestão e para o trabalho cotidiano. Brasília: Ministério da Saúde; 2014..

Sublinhemos que, de acordo com a literatura normativa, o apoio matricial pode se operacionalizar a partir de uma dimensão técnico-pedagógica ou de uma dimensão clínico-assistencial3Chiaverini DH, Gonçalves DA, Balester DA, Tófoli LF, Chazan LF, Almeida NS, et al. Guia prático de matriciamento em saúde mental. Brasília: Ministério da Saúde; 2011.. A primeira dialoga com o campo da educação permanente, fundamental no cotidiano dos serviços de saúde do SUS, podendo ser exercida de diversas maneiras, com objetivos relacionados a transmitir e ampliar o conhecimento por meio da troca de saberes diante das necessidades clínicas que emergem no exercício do cuidado. A segunda diria respeito à ação direta do especialista com o usuário, que seria decidida a partir da necessidade identificada pelos profissionais, podendo ser realizada de maneira compartilhada ou não com a equipe de referência, mas sempre de forma articulada e com foco na integralidade do cuidado.

Embora essas duas dimensões sejam muito importantes na organização do SUS, no escopo específico deste artigo propomos um ângulo distinto, no qual as fronteiras entre elas se borram. Como veremos a seguir, embasados na tradição psicanalítica do trabalho com grupos e instituições, entendemos as reuniões de matriciamento como um espaço potente não só para o cuidado dos usuários, mas também como uma estratégia de cuidado dos profissionais. Ou, dito de outro modo, a dimensão clínico-assistencial se beneficiaria enormemente ao podermos tratar com os profissionais as formas como são afetados pelos usuários. Ocorre que, ao fazermos isso, contribuímos para mitigar riscos de que o processo de trabalho adoeça os profissionais. Nesse sentido, poderíamos argumentar que há algo de clínico no matriciamento para os profissionais que dele participam. De outro lado, ao encontrar um espaço para tratar como são afetados pela relação com os usuários, os profissionais podem fazer a experiência consigo mesmos do cuidado em saúde mental, o que tem um valor pedagógico. Escolhemos assim falar em dimensão do cuidado no matriciamento, entendendo que, sob esse nome, articulam-se aspectos tanto da dimensão clínico-assistencial quanto da dimensão técnico-pedagógica. De fato, ao cuidar ou ser cuidado, o ser humano é mobilizado em sua subjetividade. Ao seguir um tratamento de saúde, o usuário é atravessado por emoções, construções de sentido e outros elementos, e parte disso atinge o profissional de saúde, que também pode ser tomado por fortes afetos, ideias variadas, etc. A psicanálise construiu um conhecimento sobre esse processo calcado nos conceitos de transferência e contratransferência, que apresentaremos resumidamente.

Transferência, em linhas gerais, é a tendência de fragmentos passados se atualizarem nas relações atuais: sentimentos de amor e ódio em relação aos pais podem permear a relação de um usuário com um médico e transformar sua capacidade, por exemplo, de compreender e seguir um tratamento prescrito.

Ser objeto de amor ou ódio de um usuário, por sua vez, não é algo neutro para um profissional de saúde, que, mesmo sem perceber, pode encher-se de grandiosidade frente a usuários que o idolatrem, ou ficar incomodado e esquivar-se de usuários que lhe dirijam parcelas de ódio mais ou menos dissimuladas. Essas reações dos profissionais às transferências dos usuários são chamadas de contratransferência, e são uma matéria-prima importante do que denominamos de dimensão do cuidado do matriciamento.

Os chamados grupos Balint8Balint M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro, São Paulo: Livraria Atheneu; 1988., referência importante para a proposta do matriciamento em saúde9Campos GWS. Um método para a análise e cogestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec; 2013., são originalmente um método para se trabalhar com a contratransferência dos médicos, entendendo que isso seria benéfico não só à saúde dos pacientes, mas à dos profissionais também. Balint criou sua proposta alicerçado na experiência da “escola de Budapeste”, que se formou nos primórdios da psicanálise, e que se destacou justamente pela importância dada ao trabalho com a contratransferência10Soreanu R. O estilo epistêmico de Michael Balint: “Grupos Balint”, utopias médicas e o legado da Escola de Psicanálise de Budapeste. Cad Psicanal. 2018; 40(39):229-50.. Veremos neste texto algumas outras influências dessa escola para o trabalho com profissionais que compartilham o cuidado em instituições.

Tomar Balint como inspiração para o matriciamento não significa segui-lo ao pé da letra, mesmo porque há uma distância considerável entre os grupos Balint e o trabalho possível e desejável no matriciamento. Em especial, interessa-nos que, nos grupos propostos por Balint, os médicos não compartilhavam pacientes em comum. Cada qual trazia ao grupo um relato de caso do modo mais livre possível, sem ler o caso a partir de um relatório (pois isso favorece que se manifestem os fenômenos psíquicos da contratransferência), e era o único no grupo que detinha experiência direta com aquele paciente. A proposta do matriciamento, ao contrário, dirige-se justamente ao compartilhamento da assistência. Outros autores trabalharam a respeito de como as contratransferências despertadas em cada profissional interagem entre si nesses casos, fazendo emergir fenômenos de grupo específicos que merecem nossa atenção.

O trabalho de Stanton e Schwartz11Stanton AH, Schwartz MS. The mental hospital: a study of institutional participation in psychiatric illness and treatment. Nova York: Basic Books; 1954. nos oferece um marco histórico e exemplo claro do que muda nessa situação. Sob forte influência da problemática da contratransferência da escola de Budapeste12Silver A-LS. Countertransference, Ferenczi, and Washington, DC. J Am Acad Psychoanal. 1993; 21(4):637-54., os autores conduziram um estudo de três anos no hospital psiquiátrico Chestnut Lodge, nos Estados Unidos da América. Nele, identificaram uma correlação entre a condição mental dissociada dos internos e as dissociações (conflitos) da equipe profissional. O quadro dos internos facilitaria o surgimento de certos conflitos na equipe profissional que, por sua vez, geravam piora do quadro dos internos. Constataram que esses pacientes melhoravam após tais conflitos serem explicitados e trabalhados dentro da equipe, mesmo sem que fossem abordados com os internos.

Jean-Pierre Pinel13Pinel JP. Les fonctions du cadre dans la prise en charge institutionnelle. Rev Psychother Psychanal Groupe. 1989; 13:77-88., ao revisitar esses autores, nomeou esse fenômeno de “efeito Stanton-Schwartz” e o ampliou em seus estudos para outros contextos de tratamento institucional, identificando diferentes formas e detalhes do processo pelo qual a vida das equipes profissionais é sistematicamente tomada pelos efeitos das transferências dos pacientes sobre os profissionais e da interação entre as contratransferências dos profissionais. Pinel desenvolve assim um entendimento do que denomina de “homologia”, que pode ser uma potente ferramenta no cuidado dos usuários, quando percebida e trabalhada pelos profissionais, ou um caminho para a piora dos quadros dos usuários e para o adoecimento da equipe, quando se falha em tal empreitada.

Segundo Castanho14Castanho P. Uma introdução ao trabalho psicanalítico com grupos em instituições. São Paulo: Linear A-barca; 2018., essa perspectiva de Jean-Pierre Pinel articula-se não só com os trabalhos de Stanton e Schwartz11Stanton AH, Schwartz MS. The mental hospital: a study of institutional participation in psychiatric illness and treatment. Nova York: Basic Books; 1954., mas também com outros estudos. As pesquisas sobre processos paralelos15Morrissey J, Tribe R. Theory and practice: parallel process in supervision. Couns Psychol Q. 2001; 14(2):103-10., sobre a câmara de ecos16Vidal JP. D’un usage du contre-transfert. Des effects du contre-transfert dans les groupes de supervision... à l’objet de l’écoute analytique. Divan Fam. 2006; 17(2):69-86.,17Vidal JP. Les “Redoublements emboîtés”. Le groupe de supervision comme chambre d’échos. Divan Fam. 2007; 19(2):141-52. e sobre a intertransferência18Kaës R. Intertransfert et analyse inter-transférentielle dans le travail psychanalytique conduit par plusieurs psychanalystes. Filigrame. 2004; 13(2):5-15. permitem compreendermos que tais fenômenos podem ocorrer durante uma reunião de matriciamento e ser trabalhados sem a necessidade de uma figura exterior (como seria o caso de um supervisor clínico institucional), pela implicação e compreensão do que está em jogo ao menos por parte dos integrantes da reunião.

Desse modo, sugerimos que, enquanto um caso é discutido no matriciamento, preste-se atenção não somente no que é dito, mas no “como” é dito e no que ocorre no grupo enquanto se fala do caso. Pessoas levantam e saem da reunião quando um caso começa a ser abordado? Surge um clima pesado, ou risos generalizados? Surge um conflito na equipe? Todos esses sinais podem ser indicativos de como aquele caso afeta os profissionais, e, portanto, elementos muito potentes para se compreender o que se passa na relação com o usuário e se pensar nas condutas a serem tomadas.

Além dessa problemática do campo transferencial e contratransferencial implicado na homologia, outros três operadores conceituais da teoria psicanalítica sobre as instituições compareceram fortemente em nossa análise, demandando que sejam mencionados nesta seção: enquadre, tarefa e restos psíquicos.

Bleger19Bleger J. Psicanálise do enquadre psicanalítico. Rev FEPAL [Internet]. 2002 [citado 12 Abr 2020]; 44:103-13. Disponível em: http://fepal.org/images/2002REVISTA/revista%20completa%202.pdf
http://fepal.org/images/2002REVISTA/revi...
é o criador do conceito de enquadre, inicialmente propondo que essa é a parte invariável da experiência analítica que dá continência a sua parte variável, ou seja, ao processo analítico propriamente. Bleger propõe ainda que essa função do enquadre analítico seria também uma função presente nas constâncias da vida social. É por esse alargamento do conceito que podemos pensar o enquadre da reunião de matriciamento e sua relação com a dimensão do cuidado. De fato, os fenômenos do campo transferencial e contratransferencial que abordamos ficam mais claros e podem ser melhor trabalhados quando há um enquadre claro das reuniões de matriciamento. Possuir horário, local e um entendimento comum da tarefa nesse momento são de enorme ajuda.

Tomamos a noção de tarefa e sua centralidade nos processos de grupos de Pichon-Rivière20Pichon-Rivière E. O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes; 2009.. O autor compreende que toda interação humana possui como objetivo a satisfação de necessidades. A tarefa ocuparia esse espaço intermediário entre a necessidade que nos impele ao outro e o objetivo de satisfazê-la, constituindo um processo. A tarefa é permeada por sentimentos, pensamentos e ações. Pichon-Rivière nos fala da transferência com a tarefa, indicando o modo como cada grupo e cada um de seus membros podem vivenciá-la de modo distinto.

Destacamos também a problemática dos restos, de Roussilon21Roussillon R. Espaços e práticas institucionais: quarto de despejo e o interstício. In: Kaës R. A instituição e as instituições: estudos psicanalíticos. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1989. p. 133-51.. Já vimos como os profissionais de saúde são afetados pelo seu contato com os usuários e como essas afetações interagem entre si nas reuniões de matriciamento. Segundo Roussillon, as reuniões que ocorrem com os profissionais em serviços de saúde podem ser valiosas ao trabalho dos profissionais na medida em que possam acolher os “restos”, ou seja, aquilo que advém do fato de o profissional ser afetado pelo atendimento ao usuário em seu processo de trabalho e que forma algum tipo de impasse, como um sentimento difícil de tolerar, uma dificuldade para pensar o caso, etc. Tais restos podem aparecer nas reuniões na forma do relato de um profissional, em conflitos entre profissionais, climas grupais, etc. É importante salientar que, no pensamento de Roussillon, os espaços de reuniões entre profissionais podem ser importantes, não somente como espaços de transformação dos restos (sempre com limites), mas também como um lugar para “depositá-los”, como um “quarto de despejo” no qual os restos podem ficar guardados, contribuindo para o funcionamento do grupo de profissionais na linha de frente.

Método

Atentos à homologia na reunião de matriciamento, optamos pelo método qualitativo, seguimos Turato22Turato ER. Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. Petrópolis: Vozes; 2008., tanto neste texto quanto na dissertação de mestrado, buscando o sentido do fazer humano.

Em contrapartida a uma tradição científica que busca relações de causa e efeito entre os fenômenos, o método qualitativo pretende dar sentidos aos fenômenos através de sua descrição. A leitura dos sentidos que emergem desses fenômenos são próprias ao existir humano e, assim sendo, o pesquisador como tal não consiste em mero observador passivo destes1Cohen MC. Escutando o matriciamento: caminho para um resgate da dimensão clínica no trabalho em rede no SUS? [dissertação]. São Paulo: Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo; 2018.. (p. 64)

A pesquisa respeitou todas as diretrizes da resolução 46623Brasil. Ministério da Saúde. Resolução nº 466, de 12 de Dezembro de 2012. Brasília: Ministério da Saúde; 2012. (em vigor no momento da pesquisa), sendo aprovada pelos Comitês de Ética de Pesquisa (CEP) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) e da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo (SMS/SP), respectivamente, com os números de Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) 61257416.8.0000.5561 e 61257416.8.3001.0086. Após a aprovação, participamos e registramos seis reuniões de matriciamento entre duas UBS e dois Caps no período de março a julho de 2017. Esses serviços estão localizados na Supervisão Técnica de Saúde do Campo Limpo (STS-CL), na cidade de São Paulo.

Como critério de inclusão das UBS e Caps, realizamos, em parceria com a coordenação e interlocução da instituição coparticipante, reuniões que eram consideradas pela equipe como espaços “potentes”, uma vez que o objetivo da pesquisa era resgatar a potência que identificamos no dispositivo de matriciamento. Não consideramos que esse critério possa ter interferido significativamente nos resultados, haja vista a diferença que foi encontrada entre as duas UBS. Consideramos ainda como critério para inclusão que os serviços de saúde fossem geridos pela mesma organização social, por questões relacionadas à viabilidade do cronograma para os trâmites de aprovação dos Comitês de Ética. Supomos que esse critério possa ter interferido mais nos resultados, já que o que foi escutado no grupo trazia ecos de elementos institucionais para além do dispositivo.

Como critério de exclusão, consideramos importante que fossem reuniões em que a autora deste artigo não participasse como profissional de um dos serviços, já que fazia parte de uma das equipes envolvidas nas reuniões. Esse critério foi necessário para embasar metodologicamente e preservar o lugar de observadora que a autora ocupava no grupo, o que teria impacto mais significativo nos resultados.

Cabe destacar que esse lugar não sugere um distanciamento, como característico em uma pesquisa quantitativa, mas sim uma escuta ativa, tendo como ferramenta de análise privilegiada os processos contratransferenciais reconhecidos na pesquisadora. Por isso também optamos que o registro fosse escrito, e não gravado, pois admitimos e trabalhamos com os efeitos da reunião na memória e percepção da pesquisadora. O registro era feito em forma de relato em texto, até uma semana depois do encontro, pela mesma pesquisadora.

Tomamos o lugar do observador da tradição dos grupos operativos24Manigot M. El coordinador ante la pre-tarea. Buenos Aires: Ediciones Cinco; 1988., condizente com o foco na dimensão da homologia que propomos nesta pesquisa. De acordo com o exposto anteriormente, que ressalta que parte do cuidado do usuário é processado nas relações do grupo de profissionais, nossa atenção se abria para a transferência com a pesquisadora, com a tarefa do matriciamento e de cuidar ou entre os profissionais. Tendo isso em vista, a metodologia das reuniões será mais bem descrita na discussão dos dados, já que não intervimos nesse aspecto.

A escolha por seis encontros conjugou necessidades organizativas com o entendimento de que, nesse tipo de pesquisa, é preciso aprofundar a análise de cada encontro e que, baseado na experiência prévia da pesquisadora, tal número nos traria material rico o suficiente e ainda permitiria certa repetição do que emergiria enquanto próprio do dispositivo, aproximando-se do critério de saturação. A repetição favoreceria ainda a percepção da dinâmica transferencial.

Por fim, note-se que os relatos das sessões foram todos lidos e discutidos por um grupo de pesquisadores da área na universidade, momento privilegiado para se trabalhar com os aspectos transferenciais e contratransferenciais nos quais a pesquisadora pudesse estar demasiadamente envolvida. Ou seja, esse grupo proporcionava enquadre e distanciamento frutíferos para o trabalho de análise por meio do pensar compartilhado e da interpretação transferencial e contratransferencial.

Impasses e potências: apresentação e discussão dos dados

Mas o que faziam os participantes das reuniões de matriciamento pesquisadas? Como percebiam o objetivo da reunião? Qual era sua tarefa? Qual era a metodologia adotada para os encontros? Em um caso, pareciam simplesmente focar em “terminar” uma lista de casos cuja urgência tampouco se impunha, ao menos não de maneira explícita. Essa era a situação em que discutiam rapidamente, sem sinais de preocupação com a experiência da discussão. A ideia do matriciamento como momento de “passar” o caso combinava bem com a numerosa “passagem” de profissionais na reunião, que muitas vezes ficavam presentes apenas tempo suficiente para “apresentarem” seu caso. Esse “passar” também podia ser percebido em anseios de sobrecarga e esquivas, como se os casos fossem “batatas quentes”, e a reunião de matriciamento, o momento de passá-las adiante ou receber um novo problema.

O fato de não haver uma urgência explícita sugere que se trate de um fenômeno transferencial com a tarefa da reunião: a urgência não seria daquele espaço, mas transferida de outros momentos e outras questões para ele. A “passagem” de casos em paralelo com a “passagem” de profissionais pelas reuniões se apresenta como um fenômeno de homologia.

Em contrapartida, em outra reunião, a corresponsabilização percebida por consultas conjuntas entre as equipes presentes eram as condutas mais frequentes. Vemos nessa pluralidade de formas de engajamento e proveito das reuniões de matriciamento a circulação de diferentes sentidos, afetos e ações sobre o que deveria nortear esse espaço. Entendemos que o desalinhamento dos entendimentos poderia ser um fator maior que dificulta ou restringe o processo de trabalho, dependendo de qual compreensão se tomar como base.

De todo modo, em ambos os cenários, percebemos que não havia um investimento em pactuar estrategicamente a metodologia que seria utilizada no encontro. As reuniões ocorriam na sala de reuniões das UBS e duravam entre uma e duas horas, de acordo com a disponibilidade de agenda das equipes, e não com a tarefa da reunião. Essas reuniões ocorriam de maneira regular pré-agendada, mensal ou bimestralmente, e a quantidade de profissionais era rotativa e variava bastante, entre dez a trinta profissionais, de acordo com as agendas, e não com a demanda. As categorias profissionais envolvidas eram enfermeiros, médicos de família, psiquiatras, dentistas, fonoaudiólogas, terapeutas ocupacionais, psicólogos, assistentes sociais, artesãos e, em alguns encontros, agentes comunitários de saúde e coordenadores das UBS. Não observamos significativa diferença de acordo com as categorias profissionais da equipe assistencial participante. Destacaremos adiante apenas a diferença percebida diante da participação do coordenador, por este ocupar o lugar de líder do encontro, especialmente em uma reunião. Em nenhuma das reuniões foi utilizado recurso destinado a mobilizar alguma discussão temática preestabelecida, sendo o norteador a lista de casos, visando definir uma conduta com registro em atas. Entendemos que essa lógica ilustra a necessidade de maior investimento e compreensão da potência do dispositivo e a consequente dificuldade na definição do objetivo e entrada no momento da tarefa, bem como a presença de um movimento transferencial pelo qual a reunião de matriciamento assume características de um procedimento exclusivamente objetivo, próprias de outros espaços e relações institucionais.

Além da dimensão transferencial, recorrendo-se ao que Pichon-Rivière20Pichon-Rivière E. O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes; 2009. denomina de tarefa explícita, como aquela que é comunicada ao grupo, entendemos que a tarefa da reunião de matriciamento não deva ser transmitida simplesmente como “passagem de caso”, mas como locus de criação de sentidos a partir das experiências dos profissionais. O modo de comunicar para a equipe aquilo que se pretende fazer no espaço parece-nos variar conforme o território e características da equipe. Na perspectiva da dimensão do cuidado do matriciamento, torna-se fundamental incluir a dimensão dessas ressonâncias do atendimento sobre cada profissional e a equipe.

A compreensão de que, nesse espaço, não cabiam os afetos era contratransferencialmente sentida pela autora como algo que travava sua escrita, um incômodo sem nome, resistindo em passar para a palavra que doía no corpo. Entendemos isso como algo da ordem da resistência, que dizia do grupo, corpo que resistia em ficar na reunião. Essa resistência pode dizer da transferência com a tarefa do cuidado, uma força investida em entender o cuidado como algo que não precise passar pelo afeto. Uma força em suprimir os afetos que emergem e sustentar uma fantasia (ou um ideal) na qual o cuidado possa ser exercido sem se afetar.

A falta de um entendimento e engajamento no plano das ressonâncias subjetivas durante o matriciamento é um dos elementos que prejudicam o enquadre da atividade, mas não o único. Assim, referimo-nos aqui também a algo básico: as dificuldades de reunir os membros das equipes em um mesmo local e horário.

Nas seis reuniões que foram objeto deste estudo, testemunhamos o esquecimento da reunião por parte de quem deveria organizá-la, atrasos de mais de 40 minutos, reuniões que passaram muito do horário ou acabaram muito cedo e, ainda, reuniões com entradas e saídas constantes.

Interpretamos esse funcionamento como retrato de uma falta de contorno, de uma não distinção entre o dentro e o fora da reunião. Contratransferencialmente, a pesquisadora sentia muitas vezes como se ainda estivesse no espaço da recepção e com dificuldade em se concentrar na discussão central.

Do ponto de vista da transferência, entendemos existir um ataque ao que Bleger denomina de enquadre. Novamente estaríamos lidando com uma função defensiva, a serviço de uma utopia na qual o processo de cuidado em saúde poderia ocorrer sem contato humano e afetação recíproca. Infelizmente, tal utopia pode entrar em conluio com sistemas de gestão em saúde na atualidade, aproximando-nos aqui da crítica de Campos9Campos GWS. Um método para a análise e cogestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec; 2013. ao taylorismo no campo da saúde e sua perspectiva do matriciamento como algo que ultrapasse essa lógica.

Infelizmente, entramos em um círculo vicioso: se a angústia de ser afetado em seu processo de trabalho mobiliza ataques a espaços como o de matriciamento, minam-se os espaços necessários para se poder lidar com a angústia, reforçando ainda mais os ataques como forma de se lidar com essa questão.

Outra situação emblemática foi quando acabaram os casos da lista a serem discutidos e, com isso, a reunião foi encerrada 35 minutos antes do previsto. Assim, criamos a hipótese de que a tarefa desses encontros pesquisados é assumida e majoritariamente dar conta de uma lista de casos. Vemos nesse entendimento uma dimensão que pode e deve ser endereçada por estratégias pedagógicas que transmitam a potência desse espaço, mas também deve-se atentar à dimensão transferencial desse fenômeno, em especial à perspectiva de que essas reuniões eram vividas como permeadas por algo desagradável e difícil de sustentar, tal como percebido nas contratransferências da pesquisadora.

Entretanto, é fundamental sublinhar os momentos em que o grupo dá notícias de uma organização e, assim, aproxima-se do potencial da reunião de matriciamento como espaço de cuidado. Ou seja, momentos em que os profissionais podem nutrir-se do encontro e transformar a forma pela qual são afetados pelos usuários, retornando isso ao processo de trabalho. No que observamos, tais momentos implicam também o reconhecimento de que não se dá conta plenamente das demandas psíquicas dos usuários. Quando percebemos não ser onipotentes, podemo-nos abrir ao cuidado partilhado com outros profissionais; e reconhecer e acolher impotências – as nossas e, consequentemente, a dos usuários.

Como exemplo, trazemos a discussão de um caso com significativas marcas de violências, na qual os profissionais se permitiram falar como se sentiam ao atendê-lo, para além de tentar determinar uma conduta. Ou seja, puderam circular sentimentos e afetos com pensamentos e ações. Embora se tratasse de um caso grave, contratransferencialmente o sentimento nesse momento era de pertencimento e comunhão. O peso do atendimento ao caso encontrou na reunião de matriciamento um espaço de partilha e sustentação.

Pelo processo do grupo, entendemos que os encontros a respeito da definição de condutas realizadas e compartilhadas entre os serviços, nos casos específicos estudados, apontavam para uma possibilidade de os profissionais se assumirem impotentes e partilharem com o outro o poder, como se dissessem: “Não damos conta, mas juntos podemos pensar em como seguir”. Entendemos que esses traços de grupo já trazem consigo um efeito de cuidado da equipe e dos usuários.

Nesse sentido, são ilustrativas também situações em que, antes de começar o encontro, os profissionais faziam uma breve roda de apresentações. Não que se apresentar seja uma regra de boa conduta no matriciamento, pelo contrário: quando transformado em regra, pode virar uma forma de burocratizar o espaço. Porém, nas situações pesquisadas, avaliamos que foi uma estratégia que ajudou a delimitar uma fronteira e potencializar o espaço. Talvez seja uma estratégia importante justamente à luz dos esquecimentos, atrasos e dificuldades de inserir o momento do matriciamento que abordamos anteriormente.

Cabe ressaltar que identificamos significativa diferença entre as duas UBS. Uma delas tinha o contorno mais preservado, sendo um dispositivo que, inclusive, em alguns momentos, permitia certo grau de elaboração psíquica nas discussões de caso. Relacionamos essa diferença tanto a características próprias das demandas dos territórios de referência de cada uma delas quanto a especificidades do funcionamento da reunião, como a identificação de uma figura mais clara de coordenador do grupo na UBS em que o contorno estava mais preservado. Entre os dois Caps, não houve diferença significativa.

Tal distinção nos faz pensar que a existência de um líder – ou coordenador do grupo – bem inteirado do sentido da tarefa do matriciamento ajude não só o grupo a estabelecer e sustentar seu enquadre; e, assim, a suportar as ansiedades que surgem quando começamos a falar das condutas sobre o caso, mas também a pensá-las em função do que sentimos em relação a eles. Nas reuniões em que identificamos a existência de alguém que ocupasse essa função, pudemos perceber um maior contorno e continência, e as discussões de caso possibilitaram que afetos emergissem com os pensamentos e discussões de ações. Coincidentemente ou não, essa pessoa ocupava também um lugar de liderança formal, pois era a responsável pela UBS, o que lhe conferia a possibilidade de um investimento em um lugar de saber.

Considerações finais: algumas recomendações

Sugerimos, então, duas principais hipóteses conclusivas e algumas recomendações para que o matriciamento explore seu potencial como dispositivo de cuidado ao usuário a partir do cuidado entre pares.

A primeira hipótese, ilustrada principalmente por meio do enquadre fragmentado, é que o matriciamento é depositário de restos dos processos psíquicos dessas instituições. Para essa hipótese, baseamo-nos em Roussillon21Roussillon R. Espaços e práticas institucionais: quarto de despejo e o interstício. In: Kaës R. A instituição e as instituições: estudos psicanalíticos. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1989. p. 133-51.. Ela implica conceber a carga afetiva depositada no matriciamento como bastante significativa e difícil de ser contida, parecendo desproporcional ao material tratado. Ela também implica que mesmo que não consiga operar como local de elaboração e transformação dos restos, pode ter um valor importante para o funcionamento da equipe como “quarto de despejo”21Roussillon R. Espaços e práticas institucionais: quarto de despejo e o interstício. In: Kaës R. A instituição e as instituições: estudos psicanalíticos. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1989. p. 133-51., permitindo que aspectos psíquicos “tóxicos” sejam nela depositadas de modo a proteger outros espaços do cotidiano profissional. Nesse sentido, frente aos desafios encontrados nesta pesquisa, o ponto principal é cuidar constantemente da delimitação do enquadre do matriciamento. O enquadre não é condição suficiente para que os efeitos da dimensão de cuidado do matriciamento se possa dar, mas é dimensão necessária.

A segunda hipótese é que nessas reuniões os grupos se encontravam em um momento de constituição primitiva, de acordo com Freud25Freud S. Totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras; 2012. p. 13-244.. Compreende-se que os grupos, em sua constituição, passam de um momento em que há um líder, tão poderoso quanto autoritário, que, no vocabulário freudiano, é chamado de “pai primevo”, para o que o autor denomina uma “comunidade de irmãos”. Em Freud25Freud S. Totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras; 2012. p. 13-244., a passagem para a comunidade de irmãos não ocorre automaticamente com a eliminação da figura autoritária, mas exige um trabalho psíquico intenso e, com ele, a internalização da figura de seu poder. Assim, abre-se a possibilidade para uma experiência compartilhada de atribuição de um saber a alguém ou a um ideal, mesmo que estes não sejam tão poderosos quanto o pai primevo. Essa hipótese foi formulada diante de algo que insistia na nossa escuta, uma resistência em formar pares e, com isso, a identificação de que os grupos de profissionais se encontram ainda em um momento anterior à comunidade de irmãos25Freud S. Totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras; 2012. p. 13-244.. Essa percepção se dá por três vias.

A primeira diz respeito a um momento de funcionamento dos grupos no Brasil de modo geral, bem exposta por Castanho26Castanho PCG. O “poder exacerbado” no Brasil e algumas de suas ressonâncias para a infância e juventude. In: Rosa MD, Costa AMM, Prudente S, organizadores. As escritas do ódio. São Paulo: Escuta; 2018. p. 321-43.; a segunda, seguindo a homologia, diz de um reflexo do funcionamento dos grupos nas comunidades em que os serviços de saúde estão inseridos e se justifica pela diferença encontrada em cada uma das UBS, variando em sua função; e a terceira diz respeito à dificuldade identificada de que o grupo investisse libidinalmente em algo (a tarefa) ou alguém (um líder parcial) que substituísse um saber total. Ou seja, seguiam buscando um saber que pudesse dar conta da complexidade do contexto em que estão inseridos, o que lhes distancia dos saberes parciais e reais ali disponíveis para a troca.

Nesse sentido, recomendamos que se reconheça que o grupo está no momento constitutivo e que, dessa maneira, beneficia-se da possibilidade de uma ou mais pessoas ocuparem papeis de liderança. Não sugerimos que sejam líderes totalitários e onipotentes, muito pelo contrário: devem representar e sustentar essa ausência de um saber total e ajudar a conduzir o grupo ao momento da tarefa e reconhecimento dos afetos em jogo. Pensamos em pessoas que portem não todos os saberes, mas um saber sobre a tarefa do matriciamento e algum entendimento sobre a dinâmica transferencial indicada neste texto. Seria importante ainda que os líderes sejam investidos de poder suficiente pelo grupo para que os ajudem a sustentar o enquadre dos encontros, desde pontos básicos como horários e espaços até o imperativo de interditar ataques entre os profissionais nesse espaço.

Enfatizamos ainda a importância de que o grupo se dedique a acordar sua tarefa e a dar espaço ao reconhecimento de seus afetos e limites. Talvez quando pararmos de buscar que esse dispositivo “dê conta” é que poderá surgir sua maior potência de cuidado, para com os usuários e, mutuamente, para com a equipe.

Agradecimentos

Agradecemos aos membros da Clínica de Grupos e Instituições: Abordagem Psicanalítica (Cligiap), grupo de pesquisa registado no CNPq e USP que integra o LIPSIC. Mais especificamente, agradecemos à parceria, ao empenho na leitura, às contribuições para o crescimento do texto e do trabalho e à aposta contínua no prazer do pensar compartilhado e nos grupos. Agradecemos ainda aos colegas Profa Dra Daiana Bonfim, Prof. Dr. Pedro Feliu Ribeiro e Talita Rewa pela leitura cuidadosa e contribuições valiosas.

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Editado por

Editor
Antonio Pithon Cyrino
Editor associado
Tiago Rocha Pinto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2020
  • Aceito
    20 Nov 2020
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