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Cooperação entre academia e governo para avaliar a Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde

Cooperación entre la academia y el gobierno para evaluar la Atención Primaria de la Salud en el Sistema Brasileño de Salud

Resumos

Este artigo analisa o papel da academia na cooperação institucional com o Ministério da Saúde para implementação do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, baseada em um estudo de caso, que combinou análise documental e entrevistas com atores-chave do governo e da academia. A cooperação visou efetivar a avaliação externa do programa e o censo das unidades de saúde do Brasil. Dezenas de instituições acadêmicas mobilizaram seu aparato institucional para realizar atividades de formulação e operacionalização da avaliação, de apoio à gestão e acadêmicas, e conferiram qualificação e legitimação política e técnica ao projeto. Esse processo se desenvolveu sob influência do contexto político-institucional do país e das intervenções balizadas pelas instituições.

Palavras-chave
Políticas públicas de saúde; Sistema Único de Saúde; Atenção Primária à Saúde; Instituições acadêmicas; Avaliação em saúde


Este artículo analiza el papel de la academia en la cooperación institucional con el Ministerio de la Salud para la implementación del Programa de Mejora del Acceso y de la Calidad de la Atención Básica. Se trata de una investigación cualitativa, basada en un estudio de caso que combinó análisis documental y entrevistas con actores-clave del gobierno y de la academia. La cooperación tuvo el objetivo de hacer efectiva la evaluación externa del programa y el censo de las unidades de salud del Brasil. Decenas de instituciones académicas movilizaron su aparato institucional para realizar actividades de formulación y puesta en operación de la evaluación, de apoyo a la gestión y académicas y proporcionaron calificación y legitimización política y técnica al proyecto. Ese proceso se desarrolló bajo la influencia del contexto político-institucional del país y de las intervenciones delimitadas por las instituciones.

Palabras clave
Políticas públicas de salud; Sistema Brasileño de Salud; Atención Primaria de la Salud; Instituciones académicas; Evaluación en salud


This article analizes the role of the university in institutional cooperation with the Brazilian Ministry of Health to implement the Program for Access and Quality Improvement in Primary Care. It is a qualitative research based on a case study that combined document analysis and interviews with key government and academia actors. The cooperation aimed to carry out the External Evaluation of the Program and the census of the Basic Health Units in the country. Dozens of academic institutions mobilized their institutional apparatus to carry out activities for the formulation and operationalization of the evaluation, support for management and academic, and gave qualification and political and technical legitimacy to the project. This process developed under the influence of the country’s political-institutional context and the interventions guided by the institutions.

Keywords
Public health policy; Brazilian National Health System; Primary Health Care; Academic institutions; Health evaluation


Introdução

O processo de reforma do setor público brasileiro, sobretudo a partir dos anos 2000, com a segunda geração de mudanças institucionais, tem influenciado a adoção de novos programas governamentais no campo da saúde na tentativa de melhorar a oferta de serviços aos cidadãos11 Gurgel Junior GD. Health sector reform and social determinants of health: building up theoretical and methodological interconnections to approach complex global challenges. Rev Bras Epidemiol. 2014; 17 Suppl 2: 5367. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/1809-4503201400060005.
https://doi.org/10.1590/1809-45032014000...
. Os esforços nesse contexto da Nova Administração Pública têm levado ao incremento dos processos de cooperação entre a academia e organismos governamentais no Sistema Único de Saúde (SUS). Esse fenômeno é relativamente recente na América Latina e vem sendo objeto de pesquisa científica nos últimos anos22 Pellegrini Filho A. Pesquisa em saúde, política de saúde e equidade na América Latina. Cienc Saude Colet. 2004; 9(2):339-350., visando entender melhor a natureza e o escopo dessas iniciativas de aproximação.

Em 2011, no processo de revisão da política de Atenção Básica (AB) (terminologia equivalente a Atenção Primária, AP) no Brasil, o Ministério da Saúde (MS) lançou o Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), com o objetivo de implementar mudanças para melhorar a capacidade de gestão e a qualidade dos cuidados primários de saúde ofertados à população33 Cavalcanti P, Fernandez M. Programa de melhoria do acesso e da qualidade da atenção básica: uma análise das principais mudanças normativas. Physis. 2020; 30(3):e300323.. Para isso, foram estabelecidas estratégias avaliativas e mecanismos de remuneração por desempenho, na perspectiva de ampliar a capacidade de resposta da AP aos problemas sanitários do país44 Rede de Pesquisa em Atenção Primaria à Saúde da ABRASCO. Contribuição para uma agenda política estratégica para a Atenção Primária à Saúde no SUS. Saude Debate. 2018; 2 Spe 1:406-430..

O programa foi implementado ao longo de três ciclos: o primeiro, de 2011 a 2013; o segundo, de 2013 a 2015; o terceiro, de 2015 a 2019. No início, o programa estava organizado em quatro fases constitutivas de um ciclo programático, cuja revisão normativa ocorrida no terceiro ciclo restringiu a três: adesão e contratualização; certificação; e recontratualização. A avaliação externa, componente da certificação, consiste na verificação de um conjunto de padrões predefinidos por meio da aplicação de instrumentos de coleta sobre as condições de infraestrutura e ambiência e o funcionamento das unidades de saúde, processo de trabalho, oferta de serviços e integração com a rede de Atenção à Saúde e satisfação do usuário33 Cavalcanti P, Fernandez M. Programa de melhoria do acesso e da qualidade da atenção básica: uma análise das principais mudanças normativas. Physis. 2020; 30(3):e300323..

Para execução desse processo avaliativo, entre 2011 e 2019, o MS firmou cooperação com instituições de ensino e pesquisa (IEPs) brasileiras. Parte dessas IEPs tem atuado em parceira com o MS para a efetivação de pesquisas avaliativas da AP desde a década anterior44 Rede de Pesquisa em Atenção Primaria à Saúde da ABRASCO. Contribuição para uma agenda política estratégica para a Atenção Primária à Saúde no SUS. Saude Debate. 2018; 2 Spe 1:406-430.. O PMAQ-AB tornou-se uma oportunidade de aproximação entre governo e academia e de utilização de conhecimento na APS, além da expertise em pesquisas22 Pellegrini Filho A. Pesquisa em saúde, política de saúde e equidade na América Latina. Cienc Saude Colet. 2004; 9(2):339-350.,55 Trostle J, Bronfman M, Langer A. How do researchers influence decision makers? Case studies of Mexican policies. Health Policy Plan. 1999; 14(2):103-114., sobretudo considerando que essa avaliação é um componente fundamental para a implementação do programa e a posterior transferência de recursos financeiros federais aos municípios, correspondentes ao desempenho alcançado nesse processo avaliativo.

As pesquisas científicas sobre o PMAQ-AB têm se limitado a analisar os aspectos relativos ao seu arcabouço teórico-metodológico ou resultados observados nas avaliações66 Rodrigues V, Santos CRI, Pereira MU. A experiência de planejar e operacionalizar o PMAQ-AB no estado do Acre. Saude Debate. 2014; 38 Spe:173-181.

7 Melo DC, Rocha AARM, Aleluia IRS. Avaliação externa do PMAQ-AB: elementos facilitadores e limitantes em capital do Nordeste brasileiro. Rev Eletronica Gest Saude. 2017; 8(1):3-17.

8 Barbosa A. PMAQ-AB nas equipes de Saúde da Família, do distrito de saúde leste, em Campinas-SP [dissertação]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2015.

9 Muramoto FT. Repercussões da avaliação PMAQ-AB no processo de trabalho das equipes de Saúde da Família [dissertação]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2017.
-1010 Sampaio J, Moraes MN, Marcolino EC, Castro ID, Gomes LB, Clementino FS. PMAQ-AB: a experiência local para a qualificação do programa nacional. Rev Enferm UFPE. 2016; 10 Supl 5:4318-4328.. Contudo, não há estudos que explorem em profundidade o papel das IEPs na cooperação como um elemento fundamental de análise no contexto do programa governamental.

Compreender os aspectos relacionados a essa cooperação exige, em um plano de Análise de Política, investigar os fenômenos institucionais e políticos associados aos dispositivos que estruturam o programa. O Neoinstitucionalismo Histórico representa uma abordagem útil para entender o papel das “instituições”, definidas como mecanismos formais e informais que moldam o comportamento dos atores na formulação, na decisão e na implementação de políticas públicas1111 Hall PA, Rosemary TRC. As três versões do neoinstitucionalismo. Lua Nova. 2003; (58):194-224.,1212 Pierson P, Skocpol T. Historical institutionalism in contemporary political science. In: Katznelson I, Miller H, editors. Political science: the state of the discipline. Nova York: W.W. Norton; 2002. p. 693-721., em contextos históricos que demarcam a trajetória dessas iniciativas em uma importante área do SUS.

De um ângulo de análise, a forma de interação política dos atores institucionais reflete a conjugação de esforços e interesses por essa cooperação no âmbito do SUS. Dessa forma, as instituições importam na perspectiva da mudança ou da manutenção do status quo, que devem ser analisadas em associação aos fatos históricos, em uma sequência longitudinal1111 Hall PA, Rosemary TRC. As três versões do neoinstitucionalismo. Lua Nova. 2003; (58):194-224.,1212 Pierson P, Skocpol T. Historical institutionalism in contemporary political science. In: Katznelson I, Miller H, editors. Political science: the state of the discipline. Nova York: W.W. Norton; 2002. p. 693-721., em atividades do setor público da saúde ainda carente de análises científicas mais profundas.

Este estudo analisa o papel das IEPs no âmbito da cooperação institucional com o MS para implementação do PMAQ-AB, sob a perspectiva do Neoinstitucionalismo Histórico, considerando que o contexto e os atores envolvidos no processo são capazes de direcionar as estratégias adotadas em cada circunstância, em função das escolhas dos agentes públicos e das características institucionais da academia e do SUS.

Metodologia

A perspectiva neoinstitucionalista histórica, como modelo de análise de políticas, possibilita investigar aspectos que envolvem a dinâmica político-institucional das políticas públicas no SUS, com ênfase ao processo histórico1111 Hall PA, Rosemary TRC. As três versões do neoinstitucionalismo. Lua Nova. 2003; (58):194-224.,1212 Pierson P, Skocpol T. Historical institutionalism in contemporary political science. In: Katznelson I, Miller H, editors. Political science: the state of the discipline. Nova York: W.W. Norton; 2002. p. 693-721.. Neste estudo, adotou-se essa vertente neoinstitucionalista para compreender a influência dos atores e do contexto político-institucional no processo de construção da política, a fim de identificar os fatores que condicionaram a definição dos interesses dos atores políticos do SUS e as decisões relativas ao programa, assim como realizado por outros autores1313 Ouverney AM, Fleury S. Polarização federativa do SUS nos anos 1990: uma interpretação histórico-institucionalista. Rev Adm Publica. 2017; 51(6):1085-1103.,1414 Souza C. Modernização do Estado e construção de capacidade burocrática para a implementação de políticas federalizadas. Rev Adm Publica. 2017; 51(1):27-45..

Esta pesquisa qualitativa se baseia em um estudo de caso que analisa a institucionalidade e o conjunto de ações realizadas pelas IEPs no PMAQ-AB. A pesquisa foi desenvolvida em duas etapas, combinando os seguintes métodos de investigação: análise documental e entrevistas1515 Yin PK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5a ed. Porto Alegre: Bookman; 2015..

Na primeira etapa, foram selecionados documentos oficiais sobre o PMAQ-AB, publicados de 2011 a 2019, período de desenvolvimento dos três ciclos avaliativos. Como esses documentos continham poucas informações relacionadas à cooperação institucional, foram realizadas entrevistas semiestruturadas visando obter maior detalhamento dos processos e da experiência, especialmente no que se refere ao papel das IEPs durante o período de implementação do programa.

Quadro 1
Caracterização dos documentos analisados

Nas entrevistas, foi utilizado um roteiro para cada perfil de respondente. Optou-se por entrevistar atores-chave e agentes públicos envolvidos com o processo decisório acerca da condução do PMAQ-AB no âmbito dessa cooperação institucional, considerando que são indivíduos com informações fundamentais sobre esse processo. Do MS, as entrevistas envolveram indivíduos com cargo de direção; das IEPs, envolveu coordenadores do projeto das instituições principais (Quadro 2), ou seja, aquelas que receberam recursos financeiros federais e lideraram os processos operacionais para execução do projeto.

Quadro 2
Lista de IEPs principais, estados sob sua responsabilidade e instituições consorciadas

Foram realizadas sete entrevistas com os atores-chave – três do MS e quatro das IEPs –, sendo interrompidas quando constatada redundância de informações, atingindo saturação teórica1616 Patton MQ. Qualitative research & evaluation methods integrating theory and practice. 4a ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2014.. As entrevistas foram transcritas e armazenadas eletronicamente, juntamente com os demais documentos selecionados. A abordagem dos dados baseou-se na análise de conteúdo1717 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2015. conduzida pela leitura flutuante, seguida da exploração do material, em que se identificaram categorias analíticas (Quadro 3). Por fim, as etapas anteriores possibilitaram uma interpretação do conteúdo e compreensão dos significados.

Quadro 3
Categorias que compõem a matriz de análise

Da formulação teórica à execução da avaliação externa

Segundo os entrevistados, a cooperação objetivou realizar a avaliação externa do PMAQ-AB nos três ciclos implementados. No primeiro ciclo, simultaneamente a essa avaliação, as IEPs realizaram o censo das Unidades Básicas de Saúde (UBS) do país, em função do interesse do governo federal em obter dados para direcionar os recursos financeiros do Programa de Requalificação das UBS na melhoria da estrutura física das unidades. Conforme o Participante MS-2,

[...] já que as IEPs iriam a campo fazer coleta de dados do PMAQ-AB, surgiu a ideia de aplicar as questões sobre a estrutura e as condições de funcionamento da UBS para todos dos serviços da AP, independentemente de se as equipes haviam aderido ao programa.

(Participante MS-2)

Os desafios inerentes a um processo dessa envergadura foram evidenciados pelos entrevistados. A Participante IEP-2 lembrou que foi um processo “vultoso” sem precedentes, no qual as IEPs adquiriram expertise em desenvolver estudos censitários em um país de extenso território, com muita diversidade geográfica e política, já que cada ciclo avaliativo envolveu aproximadamente 40 mil UBS devido ao fato de a adesão de equipes ao PMAQ-AB atingir mais de 90%.

Na visão dos participantes, a diversidade de características dos municípios e de realidades da AP brasileira, somada à dimensão do trabalho, gerou a necessidade de mobilização institucional para agregar parceiros de diferentes IEPs do país, formando equipes descentralizadas, embora a carga administrativa e operacional permanecesse na universidade principal, segundo evidências presentes na seguinte fala:

A magnitude do desafio tornou necessário mobilizar pontos de rede em diversos estados […]. Assim foi feito, com uma malha de contatos que mobilizou pesquisadores de referência nas instituições, sobretudo nas universidades públicas federais e estaduais. O desenho operacional da pesquisa constituiu uma rede científica, com coordenadores e um pequeno apoio em cada instituição, para permitir que o efeito em termos do trabalho de campo e da mobilização institucional fosse alcançado.

(Participante EI-1)

As IEPs responsáveis por mais de um estado, de grande extensão territorial e áreas de difícil acesso, com municípios com disparidades político-institucionais em que se localizam milhares de equipes de saúde para visitar, estabeleceram consórcios com instituições locais da mesma natureza (Quadro 1), resultando em mais de 40 IEPs envolvidas no projeto, segundo a Participante IEP-4.

A Participante IEP-4 declarou que a cooperação “foi se estruturando pensando inicialmente no que era importante avaliar na AP para compor uma matriz avaliativa”. Nesse processo, a Rede APS mobilizou a expertise do seu comitê gestor para colaborar com a definição de perguntas-chave norteadoras da avaliação. Essas diretrizes fundamentaram teoricamente o programa e o delineamento dos instrumentos avaliativos para medir o desempenho das equipes1616 Patton MQ. Qualitative research & evaluation methods integrating theory and practice. 4a ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2014., sendo resultantes dessa aproximação institucional do MS com IEPs no contexto das políticas informadas por evidências.

O quadro a seguir consolida as atividades realizadas pelas IEPs, verificadas na análise documental e evidenciadas nas entrevistas.

Quadro 4
Síntese das atividades realizadas pelas IEPs para o desenvolvimento do PMAQ-AB

No primeiro ciclo do PMAQ-AB, quando houve a avaliação externa e o censo, foi necessário adequar os mecanismos de ação e os elementos avaliativos. Por exemplo, na construção do instrumento avaliativo, foi preciso contemplar os objetivos de ambos os programas. Todavia, no trabalho de campo, as IEPs precisaram adotar planejamento logístico para ir a municípios onde fariam avaliação do PMAQ-AB e, em outros, apenas o censo66 Rodrigues V, Santos CRI, Pereira MU. A experiência de planejar e operacionalizar o PMAQ-AB no estado do Acre. Saude Debate. 2014; 38 Spe:173-181.,1818 Gomes LB, Barbosa MG, Ferla AA. Atenção básica: olhares a partir do programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade da atenção básica. Porto Alegre: Rede Unida; 2016.,1919 Fausto MCR, Fonseca HMS. Rotas da Atenção Básica no Brasil: experiências do trabalho de campo PMAQ-AB. Rio de Janeiro: Saberes; 2013.. No segundo e terceiro ciclos, não houve censo, portanto utilizaram-se os mesmos instrumentos avaliativos e estratégia de trabalho de campo para avaliar todas as equipes.

As atividades apresentadas no Quadro 4 são similares às evidenciadas por Rodrigues, Santos e Pereira66 Rodrigues V, Santos CRI, Pereira MU. A experiência de planejar e operacionalizar o PMAQ-AB no estado do Acre. Saude Debate. 2014; 38 Spe:173-181., Fausto e Fonseca1919 Fausto MCR, Fonseca HMS. Rotas da Atenção Básica no Brasil: experiências do trabalho de campo PMAQ-AB. Rio de Janeiro: Saberes; 2013.. Em todos os ciclos, a operacionalização da avaliação externa ocorreu com articulação da visita aos municípios, pelo contato prévio com os gestores locais e a negociação do cronograma de trabalho; constituição e organização da equipe de pesquisa; e monitoramento da coleta de dados.

Na coleta de dados, utilizaram-se recursos tecnológicos como o aplicativo móvel do instrumento avaliativo, o Sistema de Gestão da Avaliação Externa e o tablet. Este último demandou “um processo para aquisição em larga escala” (Participante IEP-1). Ainda, agregou expertise para gerar inovações, a exemplo da “equipe do Laboratório de Tecnologia da Informação em Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com a função de desenvolver essas ferramentas tecnológicas”, conforme o Participante IEP-2. No último ciclo, foi criado um painel para acompanhamento em tempo real da avaliação externa2020 Uchôa SAC, Martiniano CS, Queiroz AAR, Bay Júnior G, Nascimento WG, Diniz IV, et al. Inovação e utilidade: avaliação externa do programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade da atenção básica. Saude Debate. 2018; 2 Spe1:100-113.. Esses recursos tecnológicos, que buscaram conferir maior agilidade e capacidade de execução ao trabalho e exigiram um trabalho específico para garantir o funcionamento adequado2020 Uchôa SAC, Martiniano CS, Queiroz AAR, Bay Júnior G, Nascimento WG, Diniz IV, et al. Inovação e utilidade: avaliação externa do programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade da atenção básica. Saude Debate. 2018; 2 Spe1:100-113.,2121 Cavalcanti PCS, Oliveira Neto AV, Sousa MF. Uma narrativa sobre o programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade na atenção básica. In: Gomes LB, Barbosa MG, Ferla AA, organizadores. Atenção Básica: olhares a partir do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 17-47., também resultam dessa cooperação do MS com a academia para suprir necessidades operacionais do PMAQ-AB.

A cada ciclo, outras atividades foram progressivamente desenvolvidas pelas IEPs (Quadro 2) devido às lacunas e dificuldades encontradas no processo avaliativo, sobretudo após o primeiro ciclo. Segundo os acadêmicos, a aproximação com os gestores locais de saúde foi uma necessidade evidenciada no processo de governança e, portanto, sua “viabilização foi debatida na Coordenação Nacional de Avaliação Externa, grupo condutor da cooperação” (Participante IEP-2). A Participante IEP-4 declarou:

Nós [IEP] pontuamos desde o primeiro ciclo a importância de estreitar a relação com os gestores estaduais e municipais antes de entrarmos em campo […] de ter espaços de discussão e aproximação com o Cosems, com as Secretarias de Estado [...] para ter todos os atores participando da preparação para a Avaliação Externa […] Os municípios em vários momentos de avaliação colocaram a necessidade de maior aproximação na condução do processo e poderem se preparar mais.

(Participante IEP-4)

As relações institucionais com os gestores locais ocorreram de forma heterogênea. Em alguns casos, foram mais frequentes, com participação da IEP em “infindáveis negociações com gestores do SUS e Conselhos de Saúde” (Participante IEP-1), e realizou-se uma diversidade de atividades junto com gestores e profissionais de saúde (Quadro 3). Em outros casos, “as agendas não se combinaram, mas para a operacionalização da avaliação externa […] houve todo o apoio das Secretarias de Saúde Estadual e Municipal” (Participante IEP-2). Nesse cenário, as atividades restringiram-se à avaliação externa para planejamento e negociação dos roteiros do trabalho de campo com os gestores locais.

As entrevistas indicam que os motivos para essa aproximação com gestores locais de saúde visaram principalmente uma melhor compreensão e execução da avaliação e redução de tensões originárias desse processo, relacionadas, sobretudo, às questões políticas que o influenciavam33 Cavalcanti P, Fernandez M. Programa de melhoria do acesso e da qualidade da atenção básica: uma análise das principais mudanças normativas. Physis. 2020; 30(3):e300323., especialmente devido à vinculação de recursos financeiros ao desempenho, gerando “preocupações” aos gestores e profissionais de saúde dos sistemas de saúde locais1818 Gomes LB, Barbosa MG, Ferla AA. Atenção básica: olhares a partir do programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade da atenção básica. Porto Alegre: Rede Unida; 2016.,1919 Fausto MCR, Fonseca HMS. Rotas da Atenção Básica no Brasil: experiências do trabalho de campo PMAQ-AB. Rio de Janeiro: Saberes; 2013..

O Participante IEP-1 destacou “a relevância do apoio das instituições acadêmicas nos processos decisórios do MS, em particular da AB”, atribuindo mais esse papel às IEPs dentro da cooperação institucional. Nesse sentido, o Participante MS-4 explicou:

Nosso debate com as universidades buscou estabelecer uma relação mais próxima para que ajudassem a pensar e analisar a política pública [...] buscou-se dialogar com os sujeitos que pesquisam e estudam essas políticas visando alcançar melhores desenhos na formulação da política [...] tomar decisões com base em evidência, em estudos, em experiência etc.

(Participante MS-4)

Os acadêmicos entrevistados enfatizaram o “ritmo intenso” que a agenda imprimiu político-institucionalmente a cada ciclo do PMAQ-AB. Segundo o Participante IEP-2, “[...] quando a gente olha para trás, vê como o trabalho foi grande, quantas pessoas foram envolvidas, a logística criada. A avaliação externa consome muito a universidade.” Logo, na ausência dessa cooperação institucional, essa etapa do programa teria muitas dificuldades operacionais e legais para ser implementada nacionalmente, em função das características organizacionais e dos obstáculos político-administrativos impostos às IEPs e ao MS isoladamente, como se evidencia.

Para o Participante IEP-1, os documentos formais do MS restringem as atividades realizadas no “Processo PMAQ-AB” ao planejamento e à execução da avaliação externa. Ele afirmou:

Inúmeras vezes, nas reuniões de planejamento e avaliação, referi que essa visão traduzia um gerencialismo incompatível com a natureza da parceria e com a potência que a atividade mobilizava. Ela traduz melhor as necessidades expressas pelo MS do que as dinâmicas necessárias às IEPs e pesquisa. Por vários momentos, a incerteza que acompanhou o processo deu visibilidade a uma visão de que as IEPs estavam sendo “contratadas” para o trabalho de campo, como se o recurso financeiro público pertencesse ao Ministério ou a ele não coubesse o desenvolvimento do trabalho e de tecnologias. Essa compreensão enviesa o processo desenvolvido como se fosse uma espécie de contratação de serviços, em que se projetam custos com base em atividades mais óbvias.

(Participante IEP-1)

As atividades pouco visíveis compõem duas vertentes do depoimento do Participante IEP-1. “[...] a primeira é o hercúleo processo de institucionalização da parceria nas universidades, já que não têm tradição de mobilizar recursos institucionais para execução de atividades fins das políticas públicas de saúde”. Sobretudo no período, a relação entre as universidades e fundações de apoio foi objeto de diversas mudanças na legislação federal, “com predomínio de uma lógica administrativista”. A segunda refere-se ao “trabalho” das IEPs, que não se restringiu à avaliação externa, visto que o “trabalho de campo” da pesquisa foi influenciado por “variáveis intangíveis” de diversas dimensões que impactaram no processo. Ademais, “o acúmulo de dados avaliativos não é a única finalidade do trabalho nas IEPs”, que precisam desenvolver “o ensino, a pesquisa e a extensão”.

A ampliação da capacidade institucional com o apoio das IEPs

O Participante MS-1 afirmou que as universidades trouxeram diversos elementos de qualificação à formulação e à implementação da política, de legitimação do processo avaliativo, e de ampliação da produção de conhecimento. Na sua concepção,

os dados coletados […] foram trabalhados visando constituir uma base de evidências para subsidiar as decisões [...] Sem as universidades talvez isso não fosse possível [...] Elas ajudaram a qualificar o instrumento de avaliação.

(Participante MS-1)

Na visão do Participante IEP-2, “as universidades deram sustentação técnica e política” ao PMAQ-AB, uma vez que o programa não foi construído apenas pelo MS, mas também contou com IEPs “sérias” e “competentes”, que trabalham pelo desenvolvimento do SUS e acumulam experiência em pesquisa avaliativa ao longo de anos. Assim, a adesão político-institucional das IEPs à cooperação sinaliza que estão “atestando” e aplicando um “selo de qualidade” que legitima a avaliação na perspectiva do rigor científico, bem como da expectativa de isenção para reduzir possíveis vieses na alocação de recursos públicos vinculados ao programa.

Nesse sentido, o Participante IEP-3 ressaltou que a participação de mais de 40 universidades “reconhecidas do ponto de vista da sua relevância” conferiu credibilidade à avaliação. Para o Participante IEP-1, as “instituições acadêmicas deram condição de sustentabilidade interna e credibilidade externa” ao programa. Além disso, na sua perspectiva, o apoio das IEPs ao PMAQ-AB significou também

[…] renovação dos processos decisórios pela tensão teoria/prática que “geraram uma inovação no ciclo da política, também muito ancorada na janela de oportunidades que foi o contexto político-institucional” [do governo federal]; e deslocamento do lugar da AB e dos processos de trabalho na AB no imaginário e no espaço da formação profissional e na educação permanente dos trabalhadores.

(Participante IEP-1)

No PMAQ-AB, as IEPs mobilizaram seu aparato institucional especialmente na execução do trabalho de campo da avaliação, para posterior uso dos dados pelo MS na certificação, sem prejuízo da utilização para estudos científicos associados aos interesses da academia77 Melo DC, Rocha AARM, Aleluia IRS. Avaliação externa do PMAQ-AB: elementos facilitadores e limitantes em capital do Nordeste brasileiro. Rev Eletronica Gest Saude. 2017; 8(1):3-17.. Entretanto, é importante ressaltar alguns problemas relacionados à complexidade desse processo, como o receio de gestores e profissionais das equipes em receber os entrevistadores77 Melo DC, Rocha AARM, Aleluia IRS. Avaliação externa do PMAQ-AB: elementos facilitadores e limitantes em capital do Nordeste brasileiro. Rev Eletronica Gest Saude. 2017; 8(1):3-17.,1919 Fausto MCR, Fonseca HMS. Rotas da Atenção Básica no Brasil: experiências do trabalho de campo PMAQ-AB. Rio de Janeiro: Saberes; 2013., por entenderem, inicialmente, que a avaliação seria realizada sem o devido conhecimento das realidades locais, colocando em risco os resultados1919 Fausto MCR, Fonseca HMS. Rotas da Atenção Básica no Brasil: experiências do trabalho de campo PMAQ-AB. Rio de Janeiro: Saberes; 2013..

A credibilidade dos entrevistadores sobre a qualificação e a capacidade de gerar dados confiáveis e representativos da realidade2020 Uchôa SAC, Martiniano CS, Queiroz AAR, Bay Júnior G, Nascimento WG, Diniz IV, et al. Inovação e utilidade: avaliação externa do programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade da atenção básica. Saude Debate. 2018; 2 Spe1:100-113. também preocupou. Críticas relacionadas às variações nas estratégias e à postura de entrevistadores88 Barbosa A. PMAQ-AB nas equipes de Saúde da Família, do distrito de saúde leste, em Campinas-SP [dissertação]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2015.,99 Muramoto FT. Repercussões da avaliação PMAQ-AB no processo de trabalho das equipes de Saúde da Família [dissertação]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2017. evidenciam a heterogeneidade de perfis como consequência de distintos processos de seleção, capacitação e contratação pelas IEPs66 Rodrigues V, Santos CRI, Pereira MU. A experiência de planejar e operacionalizar o PMAQ-AB no estado do Acre. Saude Debate. 2014; 38 Spe:173-181.,2020 Uchôa SAC, Martiniano CS, Queiroz AAR, Bay Júnior G, Nascimento WG, Diniz IV, et al. Inovação e utilidade: avaliação externa do programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade da atenção básica. Saude Debate. 2018; 2 Spe1:100-113., que podem ter contribuído para uma avaliação negativa dos atores locais sobre o processo. Por outro lado, há narrativas de manipulação e modificação da realidade por gestores e profissionais das equipes na avaliação e sobre a frágil participação e compreensão desses atores sobre o programa1010 Sampaio J, Moraes MN, Marcolino EC, Castro ID, Gomes LB, Clementino FS. PMAQ-AB: a experiência local para a qualificação do programa nacional. Rev Enferm UFPE. 2016; 10 Supl 5:4318-4328.,1818 Gomes LB, Barbosa MG, Ferla AA. Atenção básica: olhares a partir do programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade da atenção básica. Porto Alegre: Rede Unida; 2016.,1919 Fausto MCR, Fonseca HMS. Rotas da Atenção Básica no Brasil: experiências do trabalho de campo PMAQ-AB. Rio de Janeiro: Saberes; 2013..

Para mitigar questionamentos acerca dos conflitos de interesses associados à avaliação externa, foram adotadas medidas de não vinculação entre avaliadores e avaliados no processo de seleção2020 Uchôa SAC, Martiniano CS, Queiroz AAR, Bay Júnior G, Nascimento WG, Diniz IV, et al. Inovação e utilidade: avaliação externa do programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade da atenção básica. Saude Debate. 2018; 2 Spe1:100-113.. Buscou-se, também, garantir autonomia às IEPs para execução do trabalho de campo a fim de evitar apoio financeiro municipal e, consequentemente, interferência política dos municípios no processo. No primeiro ciclo do PMAQ-AB, a negociação nacional entre os entes federativos previu a oferta de apoio logístico de hospedagem e o deslocamento das equipes de entrevistadores dentro do município pela gestão local. Nos demais ciclos, o custo do trabalho de campo ficou sob responsabilidade do MS e das IEPs. Excepcionalmente, o município poderia contribuir com o deslocamento dos entrevistadores para as UBS locais.

O fato de o MS, responsável pela execução da política pública de saúde, não ter capacidade institucional para operacionalizar a avaliação externa do PMAQ-AB propiciou a cooperação com a academia, no intuito de mobilizar conhecimento, instituições e organizações capazes de implementar políticas federalizadas, como assinala Souza1414 Souza C. Modernização do Estado e construção de capacidade burocrática para a implementação de políticas federalizadas. Rev Adm Publica. 2017; 51(1):27-45.. Essa cooperação formal entre governo federal e IEPs foi fundamental para garantir a implementação do programa durante três ciclos.

O novo arranjo institucional criado ampliou a capacidade institucional para avaliação de iniciativas intergovernamentais no SUS, a partir da reunião de IEPs que vêm, ao longo dos anos, exercendo um papel relevante para a estruturação da AB e a consolidação de pesquisas avaliativas no país, especialmente com apoio da Rede APS44 Rede de Pesquisa em Atenção Primaria à Saúde da ABRASCO. Contribuição para uma agenda política estratégica para a Atenção Primária à Saúde no SUS. Saude Debate. 2018; 2 Spe 1:406-430.,2222 Andrade HS, Bragante I. A trajetória da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde da Abrasco. Saúde Debate. 2018; 42 Spe1:396-405..

Essa cooperação institucional aponta o fortalecimento do processo democrático na construção da política de saúde por meio de arranjos flexíveis entre instituições organizadas em redes de colaboração, a exemplo de outras iniciativas que se constituem como novas tendências e oportunidades de integração entre ciência e sociedade no âmbito das políticas públicas de saúde na América Latina, descritas por Pellegrini Filho22 Pellegrini Filho A. Pesquisa em saúde, política de saúde e equidade na América Latina. Cienc Saude Colet. 2004; 9(2):339-350..

As IEPs possuem uma função social que reflete em interesses, valores, cultura, dentre outras características particulares22 Pellegrini Filho A. Pesquisa em saúde, política de saúde e equidade na América Latina. Cienc Saude Colet. 2004; 9(2):339-350. que não permitem confundi-las com um prestador de serviço. Isso explica por que sua participação no programa foi relacionada a um maior grau de isenção, legitimidade e credibilidade para um processo dessa natureza.

Nesse sentido, a análise dessa aproximação formal possui implicações relevantes para a interpretação da institucionalização de uma avaliação nacional dessa magnitude no SUS, ainda mais com a transferência de recursos federais aos municípios condicionada ao desempenho das equipes de saúde no processo avaliativo ao longo de anos.

Durante a cooperação, as IEPs auxiliaram na fundamentação teórica, apontando elementos de apoio à tomada de decisão e estimulando reflexões que oportunizam o aprendizado coletivo e a produção de conhecimento; e na inovação, com a operacionalização do processo avaliativo nacionalmente2020 Uchôa SAC, Martiniano CS, Queiroz AAR, Bay Júnior G, Nascimento WG, Diniz IV, et al. Inovação e utilidade: avaliação externa do programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade da atenção básica. Saude Debate. 2018; 2 Spe1:100-113.. Portanto, mesmo que essa avaliação não represente uma pesquisa científica, certamente foi beneficiada pelos conhecimentos acadêmicos ajustados às singularidades e diversidades que caracterizam a AB brasileira. Diante da complexidade do projeto, a multiplicidade de ações desenvolvidas e de situações reveladas nesta pesquisa evidencia a contribuição da academia para a solução de problemas e o aprimoramento da política22 Pellegrini Filho A. Pesquisa em saúde, política de saúde e equidade na América Latina. Cienc Saude Colet. 2004; 9(2):339-350.,55 Trostle J, Bronfman M, Langer A. How do researchers influence decision makers? Case studies of Mexican policies. Health Policy Plan. 1999; 14(2):103-114..

No PMAQ-AB, as dinâmicas do processo de pesquisa e de política caminharam juntas, com possíveis benefícios bilaterais, como defendem Elias e Patroclo2323 Elias FTS, Patroclo MAA. Utilização de pesquisas: como construir modelos teóricos para avaliação? Cienc Saude Colet. 2005; 10(1):215-227.. Os gestores, com o objetivo de implementar a política, aproximaram-se da academia e a oportunidade permitiu maior integração da ciência ao processo político no SUS22 Pellegrini Filho A. Pesquisa em saúde, política de saúde e equidade na América Latina. Cienc Saude Colet. 2004; 9(2):339-350., em uma perspectiva distinta da que se observava na administração pública tradicional. Em contrapartida, aos acadêmicos, possibilitou uma avaliação da AB sob diferentes ângulos, favorecendo a geração de novos conhecimentos e maior aproximação com gestores e profissionais de saúde1818 Gomes LB, Barbosa MG, Ferla AA. Atenção básica: olhares a partir do programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade da atenção básica. Porto Alegre: Rede Unida; 2016.,1919 Fausto MCR, Fonseca HMS. Rotas da Atenção Básica no Brasil: experiências do trabalho de campo PMAQ-AB. Rio de Janeiro: Saberes; 2013.. Além disso, inseriu os pesquisadores na arena política de tomada de decisões do SUS.

Embora haja uma aproximação de interesses entre os cooperados, o processo de avaliação externa enfrentou desafios técnico-políticos que exigiram ajustes nas estratégias e configurações de novos arranjos institucionais1111 Hall PA, Rosemary TRC. As três versões do neoinstitucionalismo. Lua Nova. 2003; (58):194-224. para criar consensos e solucionar conflitos de governança, considerando obstáculos que permeiam as relações entre o campo da política pública e da academia, como afirmam Pelegrini Filho22 Pellegrini Filho A. Pesquisa em saúde, política de saúde e equidade na América Latina. Cienc Saude Colet. 2004; 9(2):339-350. e Trostle, Bronfman e Langer55 Trostle J, Bronfman M, Langer A. How do researchers influence decision makers? Case studies of Mexican policies. Health Policy Plan. 1999; 14(2):103-114..

As instituições acadêmicas tornaram-se atuantes no cenário de disputa política dos atores institucionais no contexto de formulação e implementação do programa, submetido ao complexo processo decisório nos fóruns deliberativos do SUS. Tal processo envolve a observância às normativas vigentes e a articulação entre os atores intervenientes, especialmente na esfera da governança tripartite, em que ocorrem as negociações nacionais em torno das políticas de saúde2424 Cavalcanti P, Fernandez M. A tomada de decisão em políticas públicas de saúde: uma revisão sistêmica a partir de estudos realizados no Brasil. In: Gurgel Junior GD, Pacheco HF, Oliveira SRA, Santos FAS, organizadores. Inovações da gestão pública no SUS: uma abordagem das iniciativas no processo de reforma institucional. Recife: UFPE; 2021. p. 41-72..

Assim como em outros processos de reforma do setor saúde ocorridos no país, pode-se observar que a dinâmica envolveu uma pluralidade de atores, convergências, divergências, incertezas, dificuldades e limitações, mas também oportunidades, possibilidades e adequações das estratégias, que refletem um exercício fundamental perante os desafios políticos e técnicos para a implementação desse programa1313 Ouverney AM, Fleury S. Polarização federativa do SUS nos anos 1990: uma interpretação histórico-institucionalista. Rev Adm Publica. 2017; 51(6):1085-1103.,2525 Silva SF. Municipalização da saúde e poder local: sujeitos, atores e políticas. São Paulo: Hucitec; 2001.. O PMAQ-AB destaca-se, então, como um processo de mudança institucional influenciado pela segunda geração de reformas do setor público que atinge o SUS.

Portanto, essa avaliação esteve sujeita a múltiplos determinantes, muitas vezes contraditórios, cujas mudanças estão relacionadas às necessidades identificadas no processo e decisões circunstanciais, segundo negociações com os outros entes federativos e IEPs. Entretanto, fatores externos e internos ao governo e às IEPs evidenciaram a necessidade de reorientar objetivos e flexibilizar estratégias de implementação em uma configuração diferente da expectativa ou do plano inicial.

O período de implementação do programa coincidiu com a ocorrência de fatos históricos, como a emergência de uma crise política e econômica no Brasil2626 Machado CV, Lima LD, Baptista TWF. Políticas de saúde no Brasil em tempos contraditórios: caminhos e tropeços na construção de um sistema universal. Cad Saude Publica. 2017; 33 Suppl 2:143-161., associada às acirradas disputas eleitorais e pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Tais eventos causaram rupturas institucionais e reconfiguraram os cargos no governo federal33 Cavalcanti P, Fernandez M. Programa de melhoria do acesso e da qualidade da atenção básica: uma análise das principais mudanças normativas. Physis. 2020; 30(3):e300323., trazendo à tona uma nova conjuntura política e econômica que impactou nos rumos e no formato das políticas sociais, especialmente no campo da saúde.

Esse contexto contribuiu para a formação de uma nova trajetória de dependência1111 Hall PA, Rosemary TRC. As três versões do neoinstitucionalismo. Lua Nova. 2003; (58):194-224.,1212 Pierson P, Skocpol T. Historical institutionalism in contemporary political science. In: Katznelson I, Miller H, editors. Political science: the state of the discipline. Nova York: W.W. Norton; 2002. p. 693-721., na qual o PMAQ-AB foi interrompido em 2019 e substituído por outra iniciativa de pagamento por desempenho na AP, instituída pelo Programa Previne Brasil (Portaria n. 2.979, de 12 de novembro de 2019). Isso significou a ruptura da cooperação institucional, com repercussões para a gestão das políticas e a agenda de pesquisa na área2727 Rede de Pesquisa em Atenção Primaria à Saúde da ABRASCO. Contribuição dos pesquisadores da Rede APS ao debate sobre as recentes mudanças na política de atenção primária [Internet]. Rio de Janeiro: ABRASCO; 2019 [citado 10 Set 2020]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/eventos/congresso-brasileiro-de-ciencias-sociais-e-humanas-em-saude/contribuicao-dos-pesquisadores-da-rede-aps-ao-debate-sobre-as-recentes-mudancas-na-politica-de-atencao-primaria/43125/
https://www.abrasco.org.br/site/eventos...
, considerando que essa aproximação entre governo e academia possibilitou obter informações importantes para subsidiar a tomada de decisão baseada em evidências, além da ampliação dos grupos de pesquisa e inúmeras publicações na área44 Rede de Pesquisa em Atenção Primaria à Saúde da ABRASCO. Contribuição para uma agenda política estratégica para a Atenção Primária à Saúde no SUS. Saude Debate. 2018; 2 Spe 1:406-430.,2727 Rede de Pesquisa em Atenção Primaria à Saúde da ABRASCO. Contribuição dos pesquisadores da Rede APS ao debate sobre as recentes mudanças na política de atenção primária [Internet]. Rio de Janeiro: ABRASCO; 2019 [citado 10 Set 2020]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/eventos/congresso-brasileiro-de-ciencias-sociais-e-humanas-em-saude/contribuicao-dos-pesquisadores-da-rede-aps-ao-debate-sobre-as-recentes-mudancas-na-politica-de-atencao-primaria/43125/
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Considerações finais

As instituições acadêmicas, mediante a cooperação formal com o MS, coordenaram uma parceria com dezenas de outras instituições afins em todo o país com o objetivo de implementar um programa governamental. O panorama apresentado permite afirmar que essa cooperação possibilitou a execução de uma inédita pesquisa avaliativa realizada e implementada no SUS. Sem dúvida, esse processo reafirma o Brasil como um polo de pesquisas na AB, dada a riqueza de experiências no âmbito da Atenção à Saúde, da gestão do sistema, do ensino e da pesquisa33 Cavalcanti P, Fernandez M. Programa de melhoria do acesso e da qualidade da atenção básica: uma análise das principais mudanças normativas. Physis. 2020; 30(3):e300323., com lições a oferecer.

Todavia, cabe ressaltar que críticas mais notórias sobre os problemas e as contradições relacionadas ao processo avaliativo, sobretudo em razão da associação ao pagamento por desempenho, não foram evidenciadas nesta pesquisa. Esse aspecto pode estar relacionado à escolha dos entrevistados, que não abrangeu atores locais afetados pelo processo avaliativo. Outra limitação é o número de entrevistados, que, embora seja considerado satisfatório por atingir o ponto de saturação teórica, não possibilita generalização dos achados. Além disso, a escassez de pesquisas sobre essa cooperação institucional limitou a comparação dos resultados com outros estudos. Sugere-se que investigações futuras possam explorar a dimensão da realidade local no contexto de implementação do PMAQ-AB e elementos relacionados a essa cooperação institucional no SUS.

À luz do Neoinstitucionalismo Histórico, este artigo mostra que o PMAQ-AB e sua avaliação resultam de um processo histórico cujas experiências avaliativas precedentes possibilitaram o acúmulo de conhecimento e conectaram atores com foco no desenvolvimento do SUS. Revela, também, que a implementação do programa se desenvolveu sob influência do contexto político da época e das intervenções balizadas pelas características das instituições. Nesse cenário, as IEPs constituíram-se como parte interessada na implementação descentralizada do programa por aproximadamente uma década.

Do ponto de vista dos desafios impostos às políticas públicas, este estudo contribui para melhor compreensão da complexidade das dinâmicas que permeiam a formulação e a implementação de processos avaliativos e o pagamento por desempenho em distintos contextos nacionais na gestão pública da saúde, considerando-as fruto de conformações institucionais, sobretudo relacionadas à trajetória histórica das instituições e dos atores envolvidos com a iniciativa.

  • Cavalcanti P, Fernandez M, Junior GDG. Cooperação entre academia e governo para avaliar a Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde. Interface (Botucatu). 2021; 25: e210103 https://doi.org/10.1590/interface.210103
  • Financiamento

    O artigo resulta de pesquisa realizada com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio da concessão de bolsa de doutorado e auxílio à pesquisa Processo Nº 400735/2019-9.

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Editado por

Editora
Denise Martin
Editora associada
Aylene Emilia Moraes Bousquat

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2021
  • Aceito
    30 Abr 2021
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