Acessibilidade / Reportar erro

Formação ética de profissionais de saúde: contribuições de uma vivência interprofissional

Ethical education of health professionals: the contributions of an interprofessional experience

Formación ética de profesionales de salud: contribuciones de una vivencia interprofesional

Resumos

Pesquisa qualitativa que objetivou compreender as influências de uma vivência acadêmica interprofissional e extracurricular na formação ética de estudantes da saúde. Realizaram-se entrevistas narrativas com participantes do Programa Vivências e Estágios na Realidade no Sistema Único de Saúde (VER-SUS). As narrativas das entrevistas foram submetidas à Análise de Conteúdo Temática e analisadas à luz de teorias de educação moral. Emergiram as seguintes categorias analíticas: “intencionalidade das atividades”, “relações interpessoais e características do processo educativo” e “reflexões éticas”. Os resultados evidenciaram que os valores que fundamentaram a intencionalidade e caracterizaram as atividades foram essenciais para a reflexividade que influencia a construção de identidades morais e éticas. Apontam ainda direcionamentos à universidade comprometida não apenas com a formação profissional, mas também com a educação integral do ser humano, propondo a manutenção do VER-SUS e o estímulo para a implantação/ampliação da educação interprofissional em saúde.

Palavras-chave
Ética; Moral; Formação profissional; Educação interprofissional; Universidade


We conducted a qualitative study aimed at understanding the influence of an extracurricular interprofessional academic experience on the ethical education of health students. Narrative interviews were conducted with participants of the Experiences and Internships in Reality Program in the Brazilian National Health System (VER-SUS). We performed a thematic content analysis of the interview narratives, drawing on moral education theories. The following analytical categories were identified: “intentionality of activities”; “interpersonal relations and features of the educational process”; and “ethical reflections”. The findings show that the values underpinning intentionality and characterizing the activities are essential for the reflexivity that influences the construction of moral and ethical identities. The findings also indicate directions for a university committed not only to professional education, but also to the integral education of the human being, proposing the maintenance of the VER-SUS and promotion of the implementation/expansion of interprofessional health education.

Keywords
Ethics; Moral; Professional education; Interprofessional education; University


Investigación cualitativa con el objetivo de entender las influencias de una vivencia académica interprofesional y extracurricular en la formación ética de estudiantes del área de la salud. Se realizaron entrevistas narrativas con participantes del Programa Vivencias y Pasantías en la Realidad en el Sistema Brasileño de Salud (VER-SUS). Las narrativas de las entrevistas se sometieron al Análisis de Contenido Temático y se analizaron a la luz de teorías de educación moral. Surgieron las siguientes categorías analíticas: “intencionalidad de las actividades”, “relaciones interpersonales y características del proceso educativo” y “reflexiones éticas”. Los resultados pusieron en evidencia que los valores que fundamentaron la intencionalidad y caracterizaron las actividades fueron esenciales para la reflexividad que influye en la construcción de identidades morales y éticas. También señalan direcciones para la universidad comprometida no solo con la formación profesional, sino con la educación integral del ser humano, proponiendo el mantenimiento del VER-SUS y el incentivo para la implantación/ampliación de la educación interprofesional en salud.

Palabras clave
Ética; Moral; Formación profesional; Educación interprofesional; Universidad


Introdução

A interprofissionalidade nas políticas públicas de saúde vem recebendo destaque devido a sua capacidade de qualificar a assistência em saúde, pelo trabalho colaborativo em equipe. O prefixo “inter” faz referência àquilo que está no interior de duas ou mais profissões, indicando o que há de comum entre os saberes-fazeres: um lugar de indiferenciação que convoca o aprender de cada um e de todos como uma exigência ética11 Ceccim RB. Conexões e fronteiras da interprofissionalidade: forma e formação. Interface (Botucatu). 2018; 22(2):1739-49. – uma ética(f (f) A “ética” é entendida aqui como exercício filosófico de reflexão sobre a moral. Enquanto a moral abarca nossos valores e crenças, a partir dos quais determinamos cotidianamente nossos deveres, a ética trata de justificar tais decisões. ) não deontológica, mas crítico-reflexiva e que busca com a análise de fatos, valores(g (g) Valores são as qualidades que aplicamos ao mundo, resultantes do processo de estimação a partir do qual distinguimos ou valoramos a realidade. São produtos complexos da mente humana, que participam de nossa moral2. ) e deveres nos ajudar a tomar decisões responsáveis33 Finkler M, Negreiros DP. Formação x educação, deontologia x ética: repensando conceitos, reposicionando docentes. Rev ABENO. 2018; 18(2):37-44..

Este trabalho colaborativo, capaz de aumentar a segurança dos pacientes44 Reeves S, Zwarenstein M, Goldman J, Barr H, Freeth D, Hammick M, et al. Interprofessional education: effects on professional practice and health care outcomes. Cochrane Database Syst Rev. 2008; (1):CD002213. e de fomentar a integralidade da atenção, a humanização das práticas e a promoção do bem-estar dos trabalhadores, depende, por sua vez, do fomento da Educação Interprofissional na saúde (EIP). Não por outra razão, este também tem sido um tema de interesse crescente entre formuladores de políticas, educadores e pesquisadores, que postulam recomendações contundentes, sustentadas em estudos e em comissões especiais, com base em evidências do saber prático e teórico11 Ceccim RB. Conexões e fronteiras da interprofissionalidade: forma e formação. Interface (Botucatu). 2018; 22(2):1739-49..

No Brasil, a EIP consiste em um tema que precisa ser mais bem explorado55 Barr H. Inter-professional education: the genesis of a global movement. Fareham, UK: CAIPE; 2015., inclusive para fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse sentido, o Plano de Ação EIP Brasil 2017-201866 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Relatório final da oficina de alinhamento conceitual sobre educação e trabalho interprofissional em saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2017. foi composto por cinco estratégias: fortalecimento da EIP como dispositivo para a reorientação da graduação em Saúde; levantamento das iniciativas de EIP no país e desenvolvimento docente para a EIP; fortalecimento dos espaços de divulgação e produção de conhecimento em EIP; e EIP nos espaços de Educação Permanente. Como parte dessas estratégias institucionais, destacam-se os programas reorientadores da formação profissional, como o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (Pró-PET-Saúde), o VER-SUS e as residências multiprofissionais em Saúde66 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Relatório final da oficina de alinhamento conceitual sobre educação e trabalho interprofissional em saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2017.

7 Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, Cohen J, Crisp N, Evans T, et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. A Global Independent Commission. Lancet. 2010; 376(9756):1923-58.
-88 Costa M, Freire Filho J, Brandão CA. Educação e o trabalho interprofissional alinhados ao compromisso histórico de fortalecimento e consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS). Interface (Botacatu). 2018; 22(2):1507-10..

A EIP busca estimular que estudantes de diferentes profissões interajam para aprender a desenvolver uma prática colaborativa centrada no paciente, a partir de um objetivo comum. Apresenta melhores resultados do que programas de educação multiprofissionais nos quais estudantes compartilham experiências, mas não interagem na prática assistencial, ou programas uniprofissionais nos quais aprendem isoladamente44 Reeves S, Zwarenstein M, Goldman J, Barr H, Freeth D, Hammick M, et al. Interprofessional education: effects on professional practice and health care outcomes. Cochrane Database Syst Rev. 2008; (1):CD002213.. A EIP visa ao desenvolvimento de competências colaborativas, que se somam às competências comuns e às complementares, próprias de cada profissão99 Barr H. Competent to collaborate: towards a competency-based model for interprofessional education. J Interprof Care. 1998; 12(2):181-7.. São quatro as chamadas competências colaborativas, cada uma delas composta por um grupo de subcompetências1010 Schmitt M, Blue A, Aschenbrener CA, Viggiano TR. Core competencies for interprofessional collaborative practice. Acad Med. 2011; 86(11):1351.,1111 Interprofessional Education Collaborative. Core competencies for interprofessional collaborative practice: 2016 update. Washington, DC: Interprofessional Education Collaborative; 2016.: Valores/Ética para a Prática Interprofissional; Papéis e Responsabilidades para a Prática Colaborativa; Práticas de Comunicação Interprofissional; e Trabalho em Equipe Interprofissional e Práticas Baseadas em Equipe.

Uma análise minuciosa das 39 subcompetências colaborativas relacionadas às quatro competências, permite apreender os valores – morais, sociais, políticos, culturais e profissionais – que as embasam, tais como o respeito (à diversidade, à cultura, aos valores e aos diferentes papéis profissionais); a priorização dos interesses/valores dos pacientes/comunidades; a valorização das singularidades e da complementariedade de saberes e práticas; a compreensão e a confiança; a dignidade; a honestidade e a integridade; a privacidade e confidencialidade; a escuta ativa, a comunicação/diálogo, o uso de linguagem respeitosa; a sensibilidade; a convivência; o reconhecimento de limitações; a cooperação e corresponsabilização; a reflexividade; a deliberação e a resolução de problemas éticos; a solução compartilhada de problemas; a diligência e a excelência; a ciência, o saber profissional e o profissionalismo; a educação continuada; a liderança; e a eficácia.

Dessa forma, todas as competências colaborativas possuem um caráter cultural e humanístico, e por isso dependem, fundamentalmente, do desenvolvimento da dimensão ética da educação na qual o estudante dá continuidade à formação de seu caráter1212 Finkler M, Ramos FRS. La dimensión ética de la educación superior en Odontologia: un estudio em Brasil. Bordón. 2017; 69(4):35-49. (formação ética), construindo sua personalidade moral1313 Puig J. A construção da personalidade moral. São Paulo: Ática; 1998. ou sua identidade moral1414 Gracia D. En busca de la identidad perdida. Madrid: Deliberar; 2020./ética1515 Esteban FB. Ética del profesorado. Barcelona: Herder; 2018. – aquela resultante das vivências que moldam uma maneira de ser, que perpassa as distintas identidades universitárias construídas na vida acadêmica e que acaba compondo a identidade biográfica dos indivíduos1616 Hoffmann J. Dimensão ética da educação superior nos cursos de graduação da área da saúde: construindo uma teoria fundamentada nos dados [tese]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2021.. Ao mesmo tempo, as atividades de EIP são adequadas para a promoção dessa dimensão educativa e pessoal, uma vez que buscam desenvolver as competências colaborativas por meio da vivência dos valores mencionados.

Essa formação mais pessoal e que permite construir uma identidade digna de ser valorizada é parte inerente à educação superior de qualidade, pois a instituição universitária é uma das protagonistas na melhora da realidade social, e as competências pessoais de seus egressos são necessárias para tal otimização1515 Esteban FB. Ética del profesorado. Barcelona: Herder; 2018.,1717 Esteban FB, Román B. Quo vadis, universidad? Barcelona: Huygens; 2016.. A construção da identidade moral e ética é um processo complexo que realizamos com a ajuda uns dos outros para elaborar nosso caráter e moral(h (h) Conjunto de valores, crenças, princípios e convicções que uma pessoa ou grupo defendem como ideal de vida e que empregam na tomada de decisões cotidiana e na elaboração de juízos sobre ações ou comportamentos2. ), a qual nos permite conviver em sociedade. Trata-se de um processo de elaboração das maneiras de ser em que os elementos socioculturais intervêm (dimensão coletiva), mas, que ao mesmo tempo, ocorrem com alguma autonomia e criatividade (dimensão individual). Essa dupla dimensão da identidade – pessoal e comunitária – guarda uma relação com as finalidades emblemáticas da educação universitária que são a adaptação à realidade social e a orientação ética1515 Esteban FB. Ética del profesorado. Barcelona: Herder; 2018.. Sob essa perspectiva, o meio e os problemas sociomorais – situações que desencadeiam dúvidas, angústias, conflitos ou crises e que exigem uma compreensão mais elaborada para retomar a coerência e a estabilidade perdidas – são importantes elementos, pois é nos contextos de convivência em que o sujeito é interpelado ou reconhece um problema moral que o processo ético de construção e reconstrução de si se dá1313 Puig J. A construção da personalidade moral. São Paulo: Ática; 1998..

O programa VER-SUS consiste em um conjunto de atividades desenvolvidas por e para estudantes, considerando o sistema de saúde um importante espaço de aprendizagem para os futuros profissionais. Faz parte de uma política de educação permanente idealizada para promover o conhecimento sobre as políticas de saúde e a integração de estudantes à realidade da organização dos serviços, objetivando assim qualificar o ensino em saúde1818 Amaral VF, Cavalcante ASP, Farias QLT, Ribeiro MA, David Gomes AJ, Gomes DF. Mobilizando estudantes em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS): experiências interprofissionais do VER-SUS - Sobral, CE, Brasil. Interface (Botucatu). 2018; 22(2):1787-97., afastá-lo do modelo uniprofissional e assumir a saúde como um direito social, e não como mercadoria1919 Ferla AA, Ramos AS, Leal MB, Carvalho MS. Caderno de textos do VER-SUS/ Brasil. Porto Alegre: Rede Unida; 2013..

No cenário nacional, o VER-SUS vem se destacando como uma atividade de educação interprofissional adequada ao fortalecimento da educação na saúde e da colaboração interprofissional88 Costa M, Freire Filho J, Brandão CA. Educação e o trabalho interprofissional alinhados ao compromisso histórico de fortalecimento e consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS). Interface (Botacatu). 2018; 22(2):1507-10.,1919 Ferla AA, Ramos AS, Leal MB, Carvalho MS. Caderno de textos do VER-SUS/ Brasil. Porto Alegre: Rede Unida; 2013.. Por esta razão, foi tomado nesta pesquisa como contexto para estudar as influências da EIP na construção da identidade moral e ética dos futuros profissionais.

Mais especificamente, o contexto do objeto deste estudo foi a quinta e última edição do programa VER-SUS Florianópolis, concebido e desenvolvido exclusivamente por estudantes2020 Paim MB. Avaliação participativa: projeto de vivencias e estagios na realidade do Sistema Único De Saúde (VER-SUS) Florianópolis [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2016.. Participaram 84 estudantes, sendo 64 viventes e vinte organizadores, provenientes de diversos cursos de graduação como Medicina, Enfermagem, Farmácia, Odontologia, Nutrição, Fonoaudiologia, Psicologia, Naturologia, Direito, Serviço Social e Engenharia Civil. As atividades ocorreram em caráter de imersão e intensa convivência em um espaço isolado, incluindo momentos de formação e de preparação para vivências com usuários, trabalhadores e gestores. As atividades foram desenvolvidas em comunidades e aldeias com equipes de Saúde da Família na Atenção Primária à Saúde, bem como em serviços da atenção secundária (Caps) e em outros serviços sociais (Centro de Referência da Assistência Social, Centro de Referência Especializado de Assistência Social, Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua, Delegacia da Mulher e organização não governamental de apoio a populações vulneráveis).

Método

O presente estudo foi projetado no ano seguinte à última edição do programa VER-SUS em Florianópolis. Configurou-se como pesquisa qualitativa e implicada, que não dissocia objeto investigado e sujeito que investiga – uma pesquisa-intervenção, uma vez que o pesquisador principal foi organizador do VER-SUS Florianópolis.

Utilizou-se a técnica de coleta de dados da entrevista narrativa porque usamos narrativas para construir e manter nossa noção identitária2121 Hanson C. Changing how we think about the goals of higher education. New Dir High Educ. 2014; (166):7-13.. Foram entrevistados quatro viventes de cada temática do evento (saúde da mulher, indígena e psicossocial), além de quatro organizadores do projeto, totalizando 16 entrevistas. Os entrevistados foram escolhidos de forma a diversificar os participantes, em termos de curso e período de graduação, idade, etnia e gênero, tomando-se como único critério de exclusão a indisponibilidade ou não interesse da pessoa em participar. Foram contatados via telefone ou redes sociais, quando eram esclarecidos sobre o tema da pesquisa e forma de participação.

As entrevistas foram realizadas nos locais de preferência dos entrevistados e com condições de privacidade. Eram iniciadas com a seguinte demanda: “Conte-me como foi a sua passagem pelo programa VER-SUS, desde quando você ficou sabendo do projeto, passando pelos dias de formações gerais, vivências de campo e fechamento, independentemente de uma ordem cronológica”.

As entrevistas duraram em média trinta minutos e foram identificadas por “S”, de “sujeito”, e um número sequencial, a fim de garantir o sigilo das identidades. Gravadas em áudios, possibilitaram um complemento da narrativa por escrito, por parte do pesquisador, ao término das narrativas verbais dos entrevistados. Essas “narrativas das narrativas” abarcavam o conteúdo verbalizado pelo participante e as impressões subjetivas do entrevistador. No fim das 16 entrevistas previamente definidas, observou-se a saturação teórica dos dados coletados, dispensando a continuidade da coleta.

A análise das narrativas se deu com o auxílio do software Atlas ti®, usando-se a Análise de Conteúdo Temática2222 Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Cienc Saude Colet. 2012; 17(3):621-6.. Após a leitura das narrativas, foram destacados os conteúdos relacionados ao objeto da pesquisa, configurando-se 51 pré-categorias. Buscando-se responder à pergunta de pesquisa, emergiram as seguintes categorias temáticas: intencionalidade do programa VER-SUS; relações interpessoais e características da vivência; reflexões sobre a experiência formativa e a construção de si. Essas categorias foram analisadas à luz do marco conceitual do estudo, abarcando conceitos provenientes das teorias de educação moral1313 Puig J. A construção da personalidade moral. São Paulo: Ática; 1998., de aprendizagem ética na Universidade1515 Esteban FB. Ética del profesorado. Barcelona: Herder; 2018.,2323 Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987. e de missão universitária2424 Martínez M, Buxarrais MR, Esteban F. La universidad como espacio de aprendizaje ético”. Rev Iberoam Educ. 2002; (29):17-42..

Esta pesquisa foi realizada em consonância com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde n. 510/2016, após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC (n. 2.376.958).

Resultados e discussão

Do precedente: a intencionalidade como condição para a aprendizagem ética na universidade – categoria “intencionalidade das atividades”

O projeto VER-SUS Florianópolis inicialmente era voltado às realidades do trabalho no SUS, mas nas últimas edições houve uma mudança de perspectiva, criando vivências temáticas com a intenção de conhecer realidades distantes da educação superior. Isso significa dizer que houve um redirecionamento do foco de atenção dos serviços para a população usuária, com os aspectos afetivos e existenciais dos participantes ganhando maior atenção11 Ceccim RB. Conexões e fronteiras da interprofissionalidade: forma e formação. Interface (Botucatu). 2018; 22(2):1739-49.,2525 Gracia D. La cuestión del valor. Madrid: Real Academia de Ciencias Morales y Políticas; 2011.. Em outros termos, deslocou-se a atenção sobre o SUS para a comunidade, para os próprios viventes, para seus anseios e para suas problematizações enquanto estudantes e futuros profissionais.

Eu acho que foi o passo que a gente deu mais a fundo [...] é a questão do afeto [...] está totalmente relacionado com o aprendizado [...] ter empatia com as pessoas que pensam diferente. (S5)

Tal processo aproximou o VER-SUS Florianópolis de uma perspectiva pedagógica empática, que foca uma educação libertadora, na qual os sujeitos se encontram para a transformação do mundo em colaboração2626 Portes VM, Werpe MC, Almeida SS, Silva JPB, Silva CVV, Silva FF. VER-SUS: experenciando práticas de saúde no cotidiano da Saúde Pública. In: Ferla AA, Maranhão T, Rocha CMF, Peixoto GP, Silva IF, Barrios SG, et al, organizadores. Múltiplos cenários do VER-SUS: vivências e estágios de norte a sul do Brasil. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 11-3.. Partindo-se desses pressupostos, desenvolveram-se formas de trabalhar que promovessem a ajuda mútua, por meio da ação dialógica. Nota-se assim a intencionalidade educacional do programa que, valendo-se de vivências de campo e da análise crítica sobre a realidade-problema, buscava o desvelamento do mundo e, a partir disso, a formação humanística dos estudantes e sua educação integral.

Antes de eu entrar na universidade eu era muito preocupada com a minha vida [...] e a universidade amplia tudo isso. Mas isso não está na sala de aula... Então essa conscientização... de que tu influencias no mundo, que tu podes mudar coisas e não simplesmente aceitá-las, vem de espaços tipo o VER-SUS. (S13)

A intencionalidade da formação universitária é um dos elementos centrais para a aprendizagem ética na universidade. Implica na criação de condições para que a construção da personalidade moral ou da identidade ética dos estudantes possa ocorrer adequadamente2525 Gracia D. La cuestión del valor. Madrid: Real Academia de Ciencias Morales y Políticas; 2011.. Estas, por sua vez, dependem de pensarmos juntos o fim último da formação universitária, de a planejarmos coletivamente – universidade e comunidade – e de atuarmos para dar à instituição universitária o sentido de processo e integralidade para que represente uma real experiência de vida2727 Esteban FB, Buxarrais MR. El aprendizaje ético y la formación universitária: más allá de la causalidade. Teor Educ. 2004; 16:91-108..

Nesse sentido, o manejo psicopedagógico do conjunto de interações vivenciadas no meio acadêmico deve proporcionar atenção e apoio para que os estudantes possam ir se transformando, como pessoas e como profissionais, o que foi possível segundo o relato dos entrevistados. Dessa maneira, embora o VER-SUS seja uma atividade extracurricular, a habitual ausência de intencionalidade ética em grande parte de atividades acadêmicas curriculares1212 Finkler M, Ramos FRS. La dimensión ética de la educación superior en Odontologia: un estudio em Brasil. Bordón. 2017; 69(4):35-49. parece ter sido parcialmente compensada pela participação nesta vivência interprofissional.

Do processo: os componentes fomentadores da identidade ética – categoria “relações interpessoais e características do processo educativo”

O VER-SUS Florianópolis 2016 foi pensado para ser uma vivência acadêmica interprofissional que instigasse seus participantes a realizar descobertas e reflexões a respeito de si e de outras culturas e formas de viver. Além disso, também foi pensado para estimular a percepção das estruturas políticas e ideológicas que nos formam enquanto estudantes, profissionais e cidadãos; bem como para sintetizar ambos os processos, facilitando o encontro para os participantes de sua própria forma de ação política, profissional e comunitária em bases coletivistas e contra-hegemônicas.

A presença e o convívio em meios de experiência moral são imprescindíveis para a construção da personalidade moral. Um dos elementos que compõe tais meios de experiência moral é sua própria finalidade1313 Puig J. A construção da personalidade moral. São Paulo: Ática; 1998.. O vivente do VER-SUS, ciente dos objetivos das atividades e do programa em si, passava a elaborar uma posição pessoal a respeito, como do seu papel como futuro profissional e o dos demais. Tais reflexões podem gerar conflitos diante dos diferentes modos de viver e de valorar a realidade, podendo influenciar sua construção moral, que neste caso também seria uma elaboração ética, uma vez que intencional e refletida.

Entre as características da vivência e do meio de experiência, interação e execução do programa, há que se destacar a moralidade subjacente ao projeto, ou seja, os valores morais que fundamentaram as atividades; a coletividade emergente de um contexto de imersão e de ausência de professores ou outras figuras de autoridade; os valores vivenciados e compartilhados; a ação dialógica na problematização da realidade; e a convivência com as comunidades e com os trabalhadores da Saúde.

Os parâmetros de convivência e de trabalho foram orientados pelos valores presentes no programa, compreendendo a liberdade sobre a forma de ser e o respeito aos diferentes modos de linguagem, origem cultural e de classe, corpo e expressão corporal. Esses valores, muitos deles coincidentes com os que embasam as competências colaborativas – em particular, a competência “Valores/Ética para a Prática Interprofissional” –, não se apresentaram somente como uma não repreensão de expressões corporais e afetivas, mas eram de fato valores vivenciados: cidadania, justiça social, solidariedade, respeito, confiança, cuidado, reciprocidade, amizade, afetividade, liberdade, valorização do indivíduo – um verdadeiro aprendizado ético derivado também do incentivo à manifestação, ao envolvimento e à liberdade de ser quem se é e quem se gostaria de ser, valorizando a espontaneidade, a alegria, as diferenças e a coletividade.

Importante também era o respeito ao espaço individual e à condição emocional do estudante, considerando as indisponibilidades, retrações e desinteresses. Algumas atividades expressavam esses valores, como a dança circular, a biodança e as vivências nos campos temáticos, mas também a forma de proceder dos facilitadores com os viventes, ou mesmo a cooperação nas atividades, na disposição do espaço físico, na escolha dos horários de reunião para troca de experiências e em outros detalhes do cotidiano que foram pactuados a partir de valores compartilhados:

E espaço criativo também [...] as pessoas se sentirem livres de serem quem são, independentes da linguagem corporal que têm, das coisas que gostam, das roupas, da simbologia das coisas... isso me marcou muito porque eu me sinto rígida assim, no Hospital Universitário eu sinto o meu corpo duro, e lá eu senti meu corpo mole, eu me sentia livre pra me mexer como eu quisesse, e não ter vergonha de pensar num jeito de falar as coisas, ou de fazer uma música, ou de dançar e tal. (S4)

Puig1313 Puig J. A construção da personalidade moral. São Paulo: Ática; 1998. denomina de “guias de valor” os recursos culturais que enquanto unidade simbólica pautam formas de vida. A relação horizontal dos facilitadores com os viventes e a disponibilidade afetiva se assemelham à compreensão dos modelos de conduta como guias de valor: “os modelos apresentam condutas, atitudes ou formas de vida que, além de propor valores, manifestam a maneira de pô-los em prática” (p. 202). A escolha da autogestão dos horários e modos de funcionamento dos debates, levando a uma corresponsabilização coletiva, foram guias de valor construídos por acordos. De tal forma, os dados analisados permitiram perceber que os valores morais imbricados no projeto VER-SUS serviram como guias de valor no processo de formação ética.

Destacou-se também a ausência de professores que possibilitava aos estudantes conduzir sua própria experiência de aprendizagem. Essa ausência da hierarquia comum aos ambientes acadêmicos foi uma estratégia propositalmente adotada para impulsionar a autonomia dos estudantes e a responsabilização de cada estudante por sua própria construção. Isso foi possível porque o papel dos organizadores em ação dialógica – organizar sem agir autoritariamente2626 Portes VM, Werpe MC, Almeida SS, Silva JPB, Silva CVV, Silva FF. VER-SUS: experenciando práticas de saúde no cotidiano da Saúde Pública. In: Ferla AA, Maranhão T, Rocha CMF, Peixoto GP, Silva IF, Barrios SG, et al, organizadores. Múltiplos cenários do VER-SUS: vivências e estágios de norte a sul do Brasil. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 11-3. – foi amplamente discutido: facilitar a comunicação, acolher com disponibilidade afetiva, instigar os estudantes a refletir criticamente e trazer aporte teórico para os debates, mas sem direcioná-los2020 Paim MB. Avaliação participativa: projeto de vivencias e estagios na realidade do Sistema Único De Saúde (VER-SUS) Florianópolis [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2016..

[...] não ter uma pessoa superior foi bem interessante porque, eu fui criada numa casa com uma hierarquia bem estabelecida [...] e dentro de sala de aula, eu sempre respeitei muito essa hierarquia [...] e foi um choque para mim [...] eu pensei que não, em algum momento vai aparecer alguém [...] mas não apareceu [...] A gente foi montando junto [...] foi muito mais orgânico, eu me senti muito mais integrada, eu não estava ali como espectador, eu estava ali como ator, fazendo e criando aquilo. E isso foi bem importante, porque... é difícil a gente ter essa oportunidade durante a nossa graduação. (S10)

A ausência da autoridade tradicional possibilitou algo inesperado, pois os estudantes não só adotaram uma postura mais ativa em seu processo de aprendizagem, como também o fizeram de maneira colaborativa. Por meio de processos de identificação, troca de experiências e apoio mútuo, emergiu um sentimento de pertencimento que se fortaleceu diante dos desafios de serem estudantes e aspirantes a mundos profissionais ainda um tanto desconhecidos, e que então, reconheceram-se como agentes capazes de pensar, planejar e realizar. Todo um espaço de experimentação coletiva entre aprendizes que lhes permitiu um melhor domínio do conjunto das habilidades morais1313 Puig J. A construção da personalidade moral. São Paulo: Ática; 1998..

Da análise dos dados também se compreendeu que as relações interpessoais possibilitaram a vivência de importantes valores. Respeito e confiança embasaram diálogos significativos sobre a sociedade, as pessoas e si mesmos; solidariedade e cuidado mútuo foram importantes para a proteção da saúde mental, possibilitando a entrada em assuntos carregados de afetividade. Os vínculos estabelecidos e a amizade orientaram reflexões no sentido de que a felicidade e o bem-estar podem ser objetivos dos indivíduos, das comunidades e das políticas de Estado; enquanto a liberdade e a valorização dos indivíduos foram base para a ressignificação de percepções de si que atrapalhavam a construção das histórias de vida.

O diálogo, enquanto um valor em si mesmo e enquanto um valor instrumental, foi outro elemento central nas narrativas, assim como para o treinamento da competência colaborativa “Práticas Comunicativas Interpessoais”. A horizontalidade das relações levou a condições de aprofundamento da comunicação e das relações, em que cada um se sentia comprometido com quem falava, disposto a escutar e reconhecer os pontos de vista dos demais; a renunciar aos próprios interesses e convicções em benefício do interesse comum quando necessário; a comprometer-se com a busca da verdade e da integridade; e a colaborar para se chegar a acordos justos e responsáveis. Essa atitude parece ter sido uma das características mais importantes da vivência interprofissional: configurar-se como um espaço de convivência em que questões singulares eram consideradas coletivamente, desenvolvendo-se diferentes habilidades sociais fundamentais às competências do trabalho colaborativo, como a prevenção e a resolução de conflitos2828 Beunza JJ. Conflict resolution techniques applied to interprofessional collaborative practice. J Interprof Care. 2013; 27(2):110-2..

Já a experimentação de atividades relacionadas às subcompetências colaborativas “Papéis/Responsabilidades para a Prática Colaborativa” foi possibilitada não apenas pelo convívio com os participantes oriundos de diferentes cursos de graduação, mas também pelo contato direto com o trabalho dos agentes comunitários de saúde. Ao compreenderem suas tarefas, percepções sobre a qualidade da assistência à saúde e seus desafios, os estudantes aproximaram-se da realidade e puderam problematizá-la desde um ponto de vista histórico-social, implicando-se moralmente em projetos coletivos. Também foi possível, pela afetividade que se criou ao conhecer a realidade concreta da população trabalhadora e das comunidades, um reconhecimento das suas justificativas e demandas enquanto grupos sociais que possuem reivindicações, como as demarcações de terras dos povos indígenas ou o reconhecimento e o respeito às pessoas em situação de rua.

Me lembro que no começo eu fiquei meio com medo, sabe, porque eu realmente tinha um preconceito com “pessoas de rua”. Mas não, eles foram lá e conversaram normal, e aí eu vi que, cara, não tem por que ficar assim com essa preocupação, vamos lá ver o que eles estão falando, vamos ver o que eles têm a nos dizer também. Essa foi uma experiência muito valiosa para mim, como pessoa. (S7)

O desenvolvimento comunicacional, assim como o cultivo do respeito à diferença e da autonomia pessoal – entendida como capacidade de refletir moralmente por si – são fundamentais para uma aprendizagem ética2929 Martínez M. Educar en valores es crear condiciones pedagógicas y sociales. In: Hoyos G, Martínez M, organizadores. Qué significa educar en valores hoy? Barcelona: Octaedro; 2004. p. 17-45.. De tal maneira, a ação dialógica na vivência do VER-SUS consistiu em uma escolha metodológica ético-pedagógica, por favorecer a reflexão sobre os valores morais, possibilitar o exame e a compreensão dos conflitos éticos entre os diferentes grupos sociais e oportunizar uma autocrítica em relação aos valores que defendem e à pessoa/profissional que pretendem tornar-se.

Dos produtos: reflexões para mudanças de atitudes na construção de si – categoria “reflexões éticas”

Das reflexões produzidas durante a vivência interprofissional ou durante a coleta de dados, evidenciaram-se o processo de aprendizagem a partir da experiência e dos afetos; a relação de convivência e estudo colaborativo com características de respeito, cuidado mútuo, confiança, liberdade de ser e valorização de cada membro; a desconstrução de preconceitos; e algumas críticas à experiência vivida.

A aprendizagem a partir do vivido e dos afetos implicados – traduzíveis em aspectos de empatia e compreensão sobre as comunidades trabalhadas – permitiu a experiência não apenas da solidariedade, mas também do respeito a partir do reconhecimento das diversidades implicadas e de suas reinvindicações. Como Puig1313 Puig J. A construção da personalidade moral. São Paulo: Ática; 1998. destaca, “a sensibilidade e as emoções permitem detectar os conflitos morais, sentir-se afetar por eles, captar valorativamente a realidade e, enfim, impulsionar e motivar com grande eficácia a conduta dos sujeitos” (p. 183). O aprendizado a partir dos conhecimentos prévios dos viventes e de suas experiências levou a uma condição de valorização dos estudantes, favorecendo a apropriação de sua própria história e saberes e promovendo autonomia3030 Freire P. Pedagogia da autonomia. 51a. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015.:

Eu sempre me negava o que eu sabia, por mais que eu estudasse, eu fingia que não tinha o conhecimento daquilo, e com o VER-SUS eu via que não tinha por que eu ficar assim... então foi como se eu me libertasse... é uma palavra grande, liberdade, mas foi como se eu acordasse para esse mundo e visse o que eu posso ir atrás, o que eu posso fazer e que tivesse mais autonomia mesmo. (S7)

As narrativas revelaram a potência do aprendizado em um contexto de envolvimento afetivo com o próprio desejo, bem como com as pessoas com as quais se compartilham interesses, em um aprendizado que auxilia o estudante a arremeter-se a um futuro profissional competente com relevância política e socialmente engajado. Isso é feito com a coragem de transpor as suas próprias limitações e barreiras, bem como os obstáculos postos pelo sistema de educação tecnicista e individualista que deve ser objeto de transformação da EIP.

Outro conteúdo muito presente nas reflexões foi a característica de coletivo que se formou. “O coletivo é uma formação não de um certo número de pessoas com ideais comuns, mas de um bloco de interesses, afetos, diálogos, experiências, aos quais certo número de pessoas adere, reafirmando e transformando esse mesmo bloco”3131 Migliorin C. O que e um coletivo. In: Brasil A, organizador. Teia: 2002-2012. São Paulo: IMS; 2012. p. 307-13. (p. 308), que pode ser particularmente relevante para o treinamento das subcompetências “Equipe e Trabalho de Equipe”. O resultado dessa coletividade foi um aumento da capacidade de comunicação e de interatividade entre os participantes, ultrapassando as relações pessoais e chegando ao nível de preparação profissional, quando os sujeitos, apropriados de confiança e segurança de si, projetam melhor seus futuros e sua capacidade de atuação colaborativa.

Foi muito legal isso, esse cuidado, que acontecia direto no programa, essa autorregulação no grupo, foi fantástico, eu me senti bem poderosa, na verdade. Falei: “nossa, a gente pode fazer isso, a gente consegue fazer isso, sem ninguém mandando a gente!”. (S10)

O crescimento pessoal pela via da experiência com o mundo e do contato afetivo, com o desenvolvimento de habilidades e atitudes, diferencia-se das condições habituais da universidade, ainda focada na produção de conhecimentos. Mas ensinar a viver não é informar, nem aprender conhecimentos; não é transmitir saberes, mas sim realizar um “saber fazer”, pois requer um conjunto de habilidades, capacidades ou virtudes, sendo que nada disso se aprende com discursos ou memória, mas por meio de observação, prática, exercício e reforço3232 Garcia X, Puig J. As sete competências básicas para educar em valores. São Paulo: Summus; 2010..

Como resultado do ambiente de colaboração e empatia, foram frequentes os relatos referentes à revisão e ao abandono de atitudes discriminatórias, seja em relação à percepção de preconceitos e outras violências antes não percebidas ou ao reposicionamento em relação a julgamentos. Com o diálogo qualificado e o estabelecimento de relações afetivas, atitudes e pensamentos que discriminam ou produzem injustiças são mais facilmente reconhecidos, podendo ser reformulados.

Entre as análises críticas quanto ao próprio programa, incluiu-se a insuficiente quantidade de conteúdo informativo e de métodos para lidar com as problemáticas encontradas na vivência; a ausência de professore(a)s para aportar informações históricas, culturais e técnicas – uma perda não ignorada, mas deliberada pelos organizadores do projeto –; e a ausência da questão racial nas temáticas discutidas, o que dificultou à(ao)s estudantes negra(o)s se identificarem e se somarem ao grupo de viventes.

Em relação às atitudes dos organizadores, relataram-se mudanças derivadas do incremento de responsabilidade pela experiência de elaboração e condução de um projeto envolvendo muitas pessoas e recursos públicos, mas especialmente pela ausência de relações hierarquizadas. “A colaboração, como característica da ação dialógica, que não pode dar-se a não ser entre sujeitos, ainda que tenham níveis distintos de função, portanto, de responsabilidade, somente pode realizar-se na comunicação”2626 Portes VM, Werpe MC, Almeida SS, Silva JPB, Silva CVV, Silva FF. VER-SUS: experenciando práticas de saúde no cotidiano da Saúde Pública. In: Ferla AA, Maranhão T, Rocha CMF, Peixoto GP, Silva IF, Barrios SG, et al, organizadores. Múltiplos cenários do VER-SUS: vivências e estágios de norte a sul do Brasil. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 11-3. (p.104), o que é compreendido como razão principal para o êxito desta experiência interprofissional. No fim, avaliaram sua participação como um processo de autoqualificação em termos éticos, políticos e pedagógicos, uma vez que o VER-SUS, sempre e antes de tudo, foi entendido como uma intervenção-transformação na compreensão da universidade e da prática de seus atores.

Considerações finais

A partir das narrativas dos participantes da pesquisa, revelando suas relações, emoções, descobertas, mudanças e reflexões ocorridas em decorrência da vivência experimentada, foi possível identificar e compreender os elementos que, na última edição do VER-SUS Florianópolis, participaram da construção de sua identidade moral e ética: a intencionalidade de atividades acadêmicas que buscam criar oportunidades e meios para a educação moral dos estudantes; e características próprias das atividades de educação interprofissional e de integração ensino-serviço. Entre as últimas, há que se destacar a inserção de estudantes nos contextos concretos de vida e trabalho em saúde, desvelando a realidade e problematizando seus desafios; o sentimento de pertencimento a uma coletividade a partir do compartilhamento de afetos e de valores; a valorização do outro e da ação dialógica como método para a percepção, reflexão e resolução de conflitos, assim como para o trabalho colaborativo; e o protagonismo do estudante com a consequente corresponsabilização por sua trajetória acadêmica. Essas conclusões – que não podem ser extrapoladas a outras edições do programa, tendo em vista a limitação metodológica deste estudo – sugerem, no entanto, que o VER-SUS pode ser um instrumento de educação interprofissional extracurricular potente para a formação ética de estudantes universitários, a depender de como seja fundamentado e desenvolvido.

A análise da vivência acadêmica extracurricular aqui apresentada referenda a importância dos elementos destacados fundamentarem atividades curriculares dos cursos de graduação em Saúde, mas são especialmente relevantes para a EIP que busca o desenvolvimento das competências profissionais que permitam reinventar o trabalho em saúde. Nesse sentido, cabe elencar as principais subcompetências colaborativas que a vivência analisada desenvolveu, a partir dos achados deste estudo e com base na perspectiva de seus participantes: abraçar a diversidade cultural e as diferenças individuais que caracterizam pacientes, populações e equipe de saúde; respeitar culturas, valores, papéis/responsabilidades exclusivos e conhecimentos de outras profissões da saúde; trabalhar em cooperação; desenvolver um relacionamento de confiança; envolver diversos profissionais que complementam sua própria experiência profissional; expressar seu conhecimento e opiniões com confiança, clareza e respeito; ouvir ativamente e incentivar ideias e opiniões de outros; usar linguagem respeitosa apropriada para uma situação difícil ou conflito; reconhecer como a singularidade contribui para uma comunicação eficaz, resolução de conflitos e relações de trabalho interprofissionais positiva; aplicar práticas de liderança que apóiem a prática colaborativa; gerenciar construtivamente as discordâncias sobre valores; e refletir sobre o desempenho individual e da equipe.

Esses achados contribuem com a literatura sobre EIP, que ainda é escassa em termos de conhecimentos sobre como promover a competência “Valores/Ética para a Prática Interprofissional” e, por outro lado, apresentam como maior limitação a impossibilidade de sua generalização. Aliás, as dificuldades metodológicas para se estudar um objeto de pesquisa tão subjetivo quanto este relacionado à moralidade humana e seu exercício cotidiano de análise e decisão – a ética – é justamente um dos maiores desafios com que a EIP se depara e para o qual precisa se preparar.

  • (f)
    A “ética” é entendida aqui como exercício filosófico de reflexão sobre a moral. Enquanto a moral abarca nossos valores e crenças, a partir dos quais determinamos cotidianamente nossos deveres, a ética trata de justificar tais decisões.
  • (g)
    Valores são as qualidades que aplicamos ao mundo, resultantes do processo de estimação a partir do qual distinguimos ou valoramos a realidade. São produtos complexos da mente humana, que participam de nossa moral22 Gracia D. Ética y ciudadanía: construyendo la ética. Madrid: PPC; 2016..
  • (h)
    Conjunto de valores, crenças, princípios e convicções que uma pessoa ou grupo defendem como ideal de vida e que empregam na tomada de decisões cotidiana e na elaboração de juízos sobre ações ou comportamentos22 Gracia D. Ética y ciudadanía: construyendo la ética. Madrid: PPC; 2016..
  • Financiamento

    O presente trabalho foi resultado de dissertação de mestrado e de pesquisa de pós-doutorado realizadas com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – Brasil – Código de Financiamento 001.
  • Finkler M, Moratelli LB, Vásquez MF, Verdi M, Bara FE. Formação ética de profissionais de saúde: contribuições deuma vivência interprofissional. Interface (Botucatu). 2021; 25: e210096 https://doi.org/10.1590/interface.210096

Referências

  • 1
    Ceccim RB. Conexões e fronteiras da interprofissionalidade: forma e formação. Interface (Botucatu). 2018; 22(2):1739-49.
  • 2
    Gracia D. Ética y ciudadanía: construyendo la ética. Madrid: PPC; 2016.
  • 3
    Finkler M, Negreiros DP. Formação x educação, deontologia x ética: repensando conceitos, reposicionando docentes. Rev ABENO. 2018; 18(2):37-44.
  • 4
    Reeves S, Zwarenstein M, Goldman J, Barr H, Freeth D, Hammick M, et al. Interprofessional education: effects on professional practice and health care outcomes. Cochrane Database Syst Rev. 2008; (1):CD002213.
  • 5
    Barr H. Inter-professional education: the genesis of a global movement. Fareham, UK: CAIPE; 2015.
  • 6
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Relatório final da oficina de alinhamento conceitual sobre educação e trabalho interprofissional em saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2017.
  • 7
    Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, Cohen J, Crisp N, Evans T, et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. A Global Independent Commission. Lancet. 2010; 376(9756):1923-58.
  • 8
    Costa M, Freire Filho J, Brandão CA. Educação e o trabalho interprofissional alinhados ao compromisso histórico de fortalecimento e consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS). Interface (Botacatu). 2018; 22(2):1507-10.
  • 9
    Barr H. Competent to collaborate: towards a competency-based model for interprofessional education. J Interprof Care. 1998; 12(2):181-7.
  • 10
    Schmitt M, Blue A, Aschenbrener CA, Viggiano TR. Core competencies for interprofessional collaborative practice. Acad Med. 2011; 86(11):1351.
  • 11
    Interprofessional Education Collaborative. Core competencies for interprofessional collaborative practice: 2016 update. Washington, DC: Interprofessional Education Collaborative; 2016.
  • 12
    Finkler M, Ramos FRS. La dimensión ética de la educación superior en Odontologia: un estudio em Brasil. Bordón. 2017; 69(4):35-49.
  • 13
    Puig J. A construção da personalidade moral. São Paulo: Ática; 1998.
  • 14
    Gracia D. En busca de la identidad perdida. Madrid: Deliberar; 2020.
  • 15
    Esteban FB. Ética del profesorado. Barcelona: Herder; 2018.
  • 16
    Hoffmann J. Dimensão ética da educação superior nos cursos de graduação da área da saúde: construindo uma teoria fundamentada nos dados [tese]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2021.
  • 17
    Esteban FB, Román B. Quo vadis, universidad? Barcelona: Huygens; 2016.
  • 18
    Amaral VF, Cavalcante ASP, Farias QLT, Ribeiro MA, David Gomes AJ, Gomes DF. Mobilizando estudantes em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS): experiências interprofissionais do VER-SUS - Sobral, CE, Brasil. Interface (Botucatu). 2018; 22(2):1787-97.
  • 19
    Ferla AA, Ramos AS, Leal MB, Carvalho MS. Caderno de textos do VER-SUS/ Brasil. Porto Alegre: Rede Unida; 2013.
  • 20
    Paim MB. Avaliação participativa: projeto de vivencias e estagios na realidade do Sistema Único De Saúde (VER-SUS) Florianópolis [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2016.
  • 21
    Hanson C. Changing how we think about the goals of higher education. New Dir High Educ. 2014; (166):7-13.
  • 22
    Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Cienc Saude Colet. 2012; 17(3):621-6.
  • 23
    Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987.
  • 24
    Martínez M, Buxarrais MR, Esteban F. La universidad como espacio de aprendizaje ético”. Rev Iberoam Educ. 2002; (29):17-42.
  • 25
    Gracia D. La cuestión del valor. Madrid: Real Academia de Ciencias Morales y Políticas; 2011.
  • 26
    Portes VM, Werpe MC, Almeida SS, Silva JPB, Silva CVV, Silva FF. VER-SUS: experenciando práticas de saúde no cotidiano da Saúde Pública. In: Ferla AA, Maranhão T, Rocha CMF, Peixoto GP, Silva IF, Barrios SG, et al, organizadores. Múltiplos cenários do VER-SUS: vivências e estágios de norte a sul do Brasil. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 11-3.
  • 27
    Esteban FB, Buxarrais MR. El aprendizaje ético y la formación universitária: más allá de la causalidade. Teor Educ. 2004; 16:91-108.
  • 28
    Beunza JJ. Conflict resolution techniques applied to interprofessional collaborative practice. J Interprof Care. 2013; 27(2):110-2.
  • 29
    Martínez M. Educar en valores es crear condiciones pedagógicas y sociales. In: Hoyos G, Martínez M, organizadores. Qué significa educar en valores hoy? Barcelona: Octaedro; 2004. p. 17-45.
  • 30
    Freire P. Pedagogia da autonomia. 51a. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015.
  • 31
    Migliorin C. O que e um coletivo. In: Brasil A, organizador. Teia: 2002-2012. São Paulo: IMS; 2012. p. 307-13.
  • 32
    Garcia X, Puig J. As sete competências básicas para educar em valores. São Paulo: Summus; 2010.

Editado por

Editor
Antonio Pithon Cyrino
Editor associado
Tiago Rocha Pinto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2021
  • Aceito
    31 Maio 2021
UNESP Distrito de Rubião Jr, s/nº, 18618-000 Campus da UNESP- Botucatu - SP - Brasil, Caixa Postal 592, Tel.: (55 14) 3880-1927 - Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br