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Circulação cotidiana e uma práxis terapêutico-ocupacional social

Circulación cotidiana y una praxis terapéutico-ocupacional social

Resumos

Há uma ampla análise marxista sobre a vida cotidiana como núcleo da práxis humana. Um aspecto substancial do cotidiano é a circulação, movimento que promove o trânsito pelos territórios sociopolíticos, constituindo o que denominamos como “circulação cotidiana”. Essa dimensão da vida acontece na dialética social e pode ser compulsória (reduzida aos mecanismos de manutenção da opressão e do status quo) ou emancipatória (ligada ao desejo, à autonomia, ao alargamento das alternativas e à democratização da sociedade e de seus bens sociais). Defende-se que o terapeuta ocupacional social faça uso teórico-metodológico desses conceitos, desenvolvendo estratégias para a promoção da circulação cotidiana emancipatória junto a sujeitos, individuais e coletivos, cujas vidas são perpassadas por barreiras materiais e imateriais, favorecendo a experiência e o acesso dos mesmos aos territórios de vida, contemplando criação, prazer e consciência – ampliando a cidadania e a participação social.

Palavras-chave
Cotidiano; Circulação; Terapia ocupacional; Participação social


Hay un amplio análisis marxista sobre la vida cotidiana como núcleo de la praxis humana. Un aspecto substancial del cotidiano es la circulación, movimiento que promueve el tránsito por los territorios sociopolíticos, constituyendo lo que denominamos de “circulación cotidiana”. Esa dimensión de la vida sucede en la dialéctica social y puede ser obligatoria (reducida a los mecanismos de mantenimiento de la opresión y del statu quo) o emancipadora (vinculada al deseo, a la autonomía, al ensanchamiento de las alternativas y a la democratización de la sociedad y de sus bienes sociales). Se defiende que el terapeuta ocupacional social haga un uso teórico-metodológico de esos conceptos, desarrollando estrategias para la promoción de la circulación cotidiana emancipadora con sujetos, individuales y colectivos, cuyas vidas están atravesadas por barreras materiales e inmateriales que favorecen la experiencia y el acceso de ellos a los territorios de la vida, incluyendo creación, placer y conciencia, ampliando la ciudadanía y la participación social.

Palabras clave
Cotidiano; Circulación; Terapia ocupacional; Participación social


Marx provides a wide-ranging analysis of everyday life as the core of human praxis. An important aspect of everyday life is circulation, movement that promotes transit through sociopolitical territories, constituting what we call “everyday circulation”. This aspect of life is played out within the social dialectic and can be compulsory (reduced to mechanisms that maintain oppression and the status quo) or emancipatory (linked to desire, autonomy, broadening alternatives and the democratization of society and social goods). We defend that social occupational therapists make theoretical and methodological use of these concepts, developing strategies to promote emancipatory everyday circulation with subjects, individuals and groups whose lives are pervaded by material and immaterial barriers, facilitating the experience of and access to territories of life, encompassing creation, pleasure and awareness – thus strengthening citizenship and public participation.

Keywords
Everyday life; Circulation; Occupational therapy; Public participation


Introdução

Este ensaio, de modo geral, dialoga com todos os que se interessam pela demanda humana de liberdade para ir e vir, fundamental para a vida, a cultura, a saúde, para a formação humana. Paulon11 Paulon SM. Quando a cidade “escuta vozes”: o que a democracia tem a aprender com a loucura. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):775-86. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0845.
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sinaliza que os territórios são feitos de muitas vozes, sendo condição para uma sociedade democrática a ampliação das malhas de circulação para poder ecoar “novas formas de cidadania e produção de um mundo mais plural”11 Paulon SM. Quando a cidade “escuta vozes”: o que a democracia tem a aprender com a loucura. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):775-86. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0845.
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(p. 775).

Ademais, as elaborações aqui trazidas, que envolvem as tramas da circulação e do cotidiano, dialogam com aquilo que a World Federation of Occupational Therapists (WFOT) estabeleceu como “Prioridades Internacionais de Investigação em Terapia Ocupacional”, pontuando a necessidade de produção de conhecimento na área quanto ao tema participação na vida cotidiana, como também do fomento de pesquisas cujo foco, seja do ponto de vista teórico ou metodológico, esteja em compreender aspectos de participação cotidiana de populações marginalizadas22 World Federation of Occupational Therapists. Prioridades internacionales de investigación em terapia ocupacional [Internet]. London: WFOT; 2016 [citado 1 Out 2020]. Disponível em: www.wfot.org
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.

Para Salles e Matsukura33 Salles MM, Matsukura TS. Estudo de revisão sistemática sobre o uso do conceito de cotidiano no campo da terapia ocupacional no Brasil. Cad Ter Ocup UFSCar. 2013; 21(2):265-73.,44 Salles MM, Matsukura TS. Estudo de revisão sistemática sobre o uso do conceito de cotidiano no campo da Terapia Ocupacional na literatura de língua inglesa. Cad Ter Ocup. 2015; 23(1):197-210., cotidiano, como um conceito, vem sendo usado de forma crescente pela terapia ocupacional brasileira para subsidiar uma prática que contemple de forma mais sólida as relações sociopolíticas e culturais que perpassam sujeitos singulares e coletivos, propondo um deslocamento de concepções biomédicas e positivistas. Galheigo55 Galheigo SM. O cotidiano na terapia ocupacional: cultura, subjetividade e contexto histórico-social. Rev Ter Ocup USP. 2003; 14(3):104-9.

6 Galheigo SM. Perspectiva crítica y compleja de terapia ocupacional: actividad, cotidiano, diversidad, justicia social y compromiso ético-político. TOG (A Coruña). 2012; 9(5):176-87.
-77 Galheigo SM. Terapia ocupacional, cotidiano e a tessitura da vida: aportes teórico-conceituais para a construção de perspectivas críticas e emancipatórias. Cad Bras Ter Ocup. 2020; 28(1):5-25., que tem trazido esse debate e suas reflexões há mais tempo, afirma que os “estudos sobre o cotidiano incorporam a subjetividade, a cultura, a história e o poder social como elementos que influem na compreensão do fenômeno, eles definitivamente rompem com qualquer leitura de caráter mais positivista”55 Galheigo SM. O cotidiano na terapia ocupacional: cultura, subjetividade e contexto histórico-social. Rev Ter Ocup USP. 2003; 14(3):104-9. (p. 107).

Considerando esse conjunto de interesses, preocupações e estudos, este ensaio objetiva sistematizar alguns aportes, tendo com interlocutores autores de base marxista, a saber: Agnes Heller88 Heller A. O cotidiano e a história. 11a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016., Henri Lefebvre99 Lefebvre H. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Editora Ática; 1991. e Karel Kosik1010 Kosik K. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e terra; 2002., sendo este último ainda pouco presente nas discussões sobre a temática na terapia ocupacional. Além disso, pretende-se avançar em relação ao conceito de circulação, tomando como referência o geógrafo francês Jean Gottmann (1915 – 1994), interpretado como um aspecto associado ao cotidiano, lançando mão do que denominamos como “circulação cotidiana”.

Por fim, trata-se de compor um diálogo que visa subsídios teórico-metodológicos que informem a práxis terapêutico-ocupacional junto a grupos populacionais que enfrentam processos de ruptura de redes sociais de suporte, como também déficits de integração pelo trabalho e que vivenciam situações de desfiliação e vulnerabilidade social, conforme proposto por Castel1111 Castel R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes; 1998., o que inclui barreiras para uma circulação cotidiana emancipatória, colocando aos profissionais um desafio ético-político no que tange ao desenvolvimento de alternativas para o equacionamento dessa problemática.

Cotidiano e circulação

Tramas da vida cotidiana: entre a alienação e a emancipação

Para Kosik1010 Kosik K. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e terra; 2002., “todo modo de existência humana ou de existir no mundo possui sua própria cotidianidade” (p. 79), de acordo com cada época. Na sociedade feudal ela tinha suas próprias marcas, que se modificaram com a ascensão da sociedade capitalista e industrial, que trouxe novos instrumentos de produção, novas composições de classes sociais e instituições políticas. Heller88 Heller A. O cotidiano e a história. 11a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016. vai ao encontro dessa perspectiva, discorrendo que a vida cotidiana é a vida de todo ser humano, independentemente de seu posto na divisão social do trabalho, é lugar em que os sujeitos são atuantes, ativos, fruidores e receptivos, está no centro do acontecer histórico, é a essência da substância social.

É no cotidiano que as pessoas vivem, morrem, vivem mal ou bem, “ganham ou deixam de ganhar a vida, num duplo sentido: não sobreviver ou sobreviver, apenas sobreviver ou viver plenamente. É no cotidiano que se tem prazer ou se sofre”99 Lefebvre H. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Editora Ática; 1991. (p. 27)(c (c) Lefebvre9 sinaliza que o reino da cotidianidade é uma marca que surge a partir do século XIX, relacionado com o capitalismo de concorrência e a efervescência do mundo das mercadorias. O que o distingue das concepções de Heller8 e Kosik10, que compreendem a vida cotidiana em todas as épocas. ), é o núcleo racional da práxis - lugar de produção (no sentido amplo) da existência humana.

Kosik1010 Kosik K. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e terra; 2002., ao problematizar o cotidiano, o coloca como um espaço onde os seres humanos têm uma pretensa intimidade, confiança e familiaridade, em que se movem com base em uma suposta e falsa forma “natural” de estar. Os conteúdos dos fenômenos que dão forma ao cotidiano são caracterizados por regularidade, imediatismo e evidência, penetram a consciência dos sujeitos, constituindo o terreno da pseudoconcreticidade, baseado na divisão do trabalho, na divisão da sociedade em classes e na hierarquia de posições sociais. O mundo da pseudoconcreticidade é o lugar dos fenômenos externos, que estão na superfície dos processos essenciais, não capta a relação do fenômeno com sua essência concreta e orgânica (núcleo interno da realidade); é o mundo do trágico, da manipulação, da práxis fetichizada e utilitária; o mundo dos objetos fixos, que dá a impressão que são consequência de causas naturais, não reconhecidas como fruto de ação e relações sociais.

Nessa dimensão é que se anuncia a consciência pseudoconcretizada, em que a práxis não é obra que se cria, mas o sujeito apenas ocupa-se sem pensar, em ações mecanizadas, apartado da gênese do mundo humano, da cultura, da humanização da natureza. Exprime-se pela práxis das operações diárias, em que o próprio ser humano é o objeto de manipulação, como “tratamento e manipulação dos aparelhos do mundo, mas não a ‘criação’ do mundo humano”1010 Kosik K. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e terra; 2002. (p. 74, destaque do autor).

Para Heller88 Heller A. O cotidiano e a história. 11a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016., a vida cotidiana é a esfera que mais se presta à alienação, que decorre da existência “muda” da particularidade na generalidade. Isso limita a ação e percepção em relação à vida cotidiana, a dimensão individual particular acaba se colocando acima da dimensão do humano genérico, tal como o define essa autora88 Heller A. O cotidiano e a história. 11a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016.. “Na cotidianidade, parece ‘natural’ a desagregação, a separação de ser e essência”88 Heller A. O cotidiano e a história. 11a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016. (p. 63). A esse ponto, se assemelhando ao que Kosik1010 Kosik K. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e terra; 2002. denominou como pseuconcreticidade, Heller88 Heller A. O cotidiano e a história. 11a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016. ainda acrescenta que nesse âmbito o ser humano é subsumido pelo cumprimento de seus “papéis”, assimilando de forma espontânea as normas consuetudinárias dominantes.

A vida cotidiana tem estruturas que devem dar margem a possibilidades de movimentos da ação explícita, fruidora e criativa, porém, se o sujeito se configura no que está posto, ocorreria a alienação “em face das possibilidades concretas de desenvolvimento genérico da humanidade”88 Heller A. O cotidiano e a história. 11a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016. (p. 62-3). Cria-se um abismo entre produção humano-genérico e participação do indivíduo no movimento cotidiano de produção/ação/relação, abismo que se torna abissal no capitalismo moderno.

Lefebvre99 Lefebvre H. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Editora Ática; 1991. discute a alienação cotidiana trazendo as marcas das transformações históricas da sociedade, principalmente desde a década de 1960(d (d) Lefebvre9 coloca que esse período é circunscrito pelo fracasso da União Soviética e a ascensão do capitalismo, havendo a diluição das formas de consciência da classe trabalhadora e o desvio da sua capacidade criadora e revolucionária. ). Esse período é caracterizado pelo avanço do capitalismo, pela sociedade do mercado, da técnica, da abundância, da racionalidade produtivista (no sentido restrito do termo), do consumo massificado (a atividade criadora se transforma em ideologia do consumo), do lazer (como o consumo de espetáculos generalizados: televisão, cinema, turismo), das modificações em relação ao trabalho e da ascensão do poder do Estado pós-Segunda Guerra. Assentado nisso, o cotidiano é conformado ao capitalismo moderno, terreno a ser programado e organizado, em que há uma administração, subdivisão (trabalho, vida privada, lazer) e um controle do emprego do tempo, tornando-o funcional aos interesses e à manutenção da sociedade de consumo dirigido.

Em consequência, há a construção do cotidiano alienado, impondo a vivência da “miséria do cotidiano” da classe trabalhadora, relacionado ao reino dos números e das coisas, da mercadoria, do imediato, do trabalho subalternizado, da escassez e da fetichização dos desejos99 Lefebvre H. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Editora Ática; 1991.. Isto passa a ser o núcleo da problemática da questão social1111 Castel R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes; 1998. produzida pelo capitalismo moderno, que acaba metamorfoseando o cotidiano em miserável, alienado e pseudoconcretizado.

A alienação dissimula o lugar de criação e produção de vida, afasta o cotidiano de sua riqueza, transforma a consciência criadora em passiva e infeliz99 Lefebvre H. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Editora Ática; 1991.. Todavia, o cotidiano, apesar de ser propicio à alienação, não é necessariamente alienado88 Heller A. O cotidiano e a história. 11a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016..

O cotidiano carrega a possibilidade de ser lugar da atividade criadora e da produção de obra. A obra é a atividade do sujeito que toma em suas mãos o seu papel de agente no destino social, associado a uma revolução que desestabiliza as estruturas contraditórias da propriedade e do direito, sendo essencial o questionamento da cotidianidade. “Para que reencontre a qualidade e as propriedades do ser humano, é preciso que supere o cotidiano, dentro do cotidiano, a partir da cotidianidade!”99 Lefebvre H. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Editora Ática; 1991. (p. 204). Logo, é necessário que a vida de todos os dias seja espaço de questionamento, problematização e protagonismo, principalmente para os sujeitos das classes que suportam a vida cotidiana negada (realidade sem verdade), tendo “a possibilidade de criar uma obra a partir do cotidiano, dos seus altos e baixos”99 Lefebvre H. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Editora Ática; 1991. (p. 43). Esses são requisitos para experienciar a grandeza do cotidiano, na apropriação do corpo, do desejo, do espaço, do tempo e da moradia, não reduzida a números, é a criação do mundo prático-sensível nos gestos e no viver.

A possibilidade de superação da alienação ocorre apoiada na elevação ou suspensão do cotidiano, em que “o homem torna-se consciente do humano-genérico de sua individualidade”88 Heller A. O cotidiano e a história. 11a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016. (p. 47). A arte, a ciência, uma grande paixão e o trabalho livre são processos potentes para essa suspensão, promovem a “catarse”, uma tensão para o sujeito se compreender dentro da humanidade mais ampla e menos imediata, negando a imposições dos papeis sociais que o condicionam. Disto pode decorrer um momento para construção de uma relação consciente do indivíduo com a generalidade da sociedade e com as contradições que movem as vidas, o sujeito encontraria seu potencial e retomaria seu cotidiano de maneira diferente.

Para que possa se configurar uma práxis com essa suspensão, é essencial que o sujeito descubra a verdadeira brutalidade da cotidianidade alienada e se volte sobre ela também com violência1010 Kosik K. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e terra; 2002.. Uma violência que, segundo Kosik1010 Kosik K. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e terra; 2002., advém das atividades que desestabilizam a suposta naturalidade do cotidiano; ainda, tal como Heller88 Heller A. O cotidiano e a história. 11a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016., coloca-se as artes (literatura, teatro, cinema, artes plásticas) como atividades potentes para essa desestabilização, desconstruindo a aparente independência da vida imediata cotidiana. A “destruição da pseudoconcreticidade – que o pensamento dialético tem de efetuar – não nega a existência ou a objetividade daqueles fenômenos, mas destrói a sua pretensa independência”1010 Kosik K. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e terra; 2002. (p. 20-1), mostrando seu caráter derivado da realidade, desmistificando a práxis utilitária.

Assim, a desconstrução de elementos naturalizados na vida cotidiana requer a crítica revolucionária da práxis, o pensamento dialético da coisa em si e, por fim, o engajamento dos sujeitos enquanto partícipes da construção social-histórica e cultural da sociedade.

A vida cotidiana enquanto espaço de vida criadora, revolucionária e autêntica está sempre resistindo, guardando a possibilidade de ser lugar passível de vida consciente e de enfrentamento das contradições. Isso não quer dizer que o cotidiano imediato, repetitivo, mecanizado seja uma dimensão da cotidianidade a ser extinta, até por que esses aspectos são fundamentais para reprodução da vida88 Heller A. O cotidiano e a história. 11a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016.. Mas, o que se coloca como emergente é a necessidade dos sujeitos se compreenderem no mundo de forma consciente e como agentes, em que o mecânico e utilitário não forjem alienações, e que indivíduos, grupos e classes se entendam como atores da vida coletiva, capazes de agenciar transformações e vida criativa. É necessário, tendo como fundamento a suspensão88 Heller A. O cotidiano e a história. 11a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016., a violência1010 Kosik K. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e terra; 2002. e a criação99 Lefebvre H. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Editora Ática; 1991., rescindir com a manipulação e a ingenuidade, para examinar criticamente os processos de vida.

Freire1212 Freire P. À sombra desta mangueira. 11a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2013.(e (e) Paulo Freire12 nessa compreensão tem como referência Karel Kosik, a quem caracterizou como notável filósofo. ), ao trazer reflexões sobre o cotidiano, coloca que seres humanos nessa dimensão correm o risco de não se perguntarem “o porquê das coisas”, porém, a curiosidade ao nível da existência sempre estará presente. Apesar dos condicionamentos, a curiosidade crítica existe e não deixaria de existir, no cotidiano, “não apenas temos ‘vida’, mas ‘vida humana’, quer dizer, ‘existência’”1212 Freire P. À sombra desta mangueira. 11a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2013. (p.134, destaques do autor), assim, sempre haverá vida criadora possível de resistir às alienações que empobrecem os sentidos do viver.

A circulação como substância da vida cotidiana

Figura 1
Obra do artista norte-americano Mike Elliott, intitulada Ways.

Pontua-se neste ensaio que uma dimensão substancial da vida cotidiana é a circulação, conformando o que denominamos como “circulação cotidiana”, enquanto um campo de elementos associado à vida de todo dia, forjada na e pelas contradições.

Esse campo de elementos é captado na obra acima Ways (figura 1), que remete a processos de circulação da vida essencialmente naturais, são os movimentos, fluxos, o ir e vir em que se realiza a produção da existência dos seres, porém, essa produção no nível da natureza está submetida ao que é determinado pelo fluxo biológico/químico-físico. Adverte-se que apesar da vida humana carregar os elementos dos fluxos naturais, sua circulação nos territórios e espaços é forjada nos processos históricos, sociais, políticos, subjetivos e culturais que se estabelecem pela realidade social, nas contradições, nos dilemas, nos acidentes, na alienação, nas relações de poder, na desigualdade, na resistência, nas escolhas, na possibilidade de liberdade, de conservação, de transformação, nas intencionalidades, ou seja, na práxis que compõe a cotidianidade.

Nos processos da natureza, não há sujeitos – exceto [...] os deuses, mas esta é uma questão de religião e não de ciência. A sociedade tem sujeitos sociais, coletivos, grupos, classes. Na natureza, onde não existe liberdade, mas acaso, predominam causalidades e necessidades. Na sociedade, há leis causais, necessidades, mas há também alternativas: se a sociedade não tem um fim predeterminado, os homens [seres humanos], que atuam sempre coletivamente, têm projetos, finalidades e objetivos1313 Paulo Netto J. Entrevista: José Paulo Netto. Trab Educ Saude. 2011; 9(2):333-40.. (p. 338)

Portanto, no fluxo sócio-histórico do humano se localiza a dialética social, não a dialética da natureza1313 Paulo Netto J. Entrevista: José Paulo Netto. Trab Educ Saude. 2011; 9(2):333-40., ponto essencial para compreender que a circulação de pessoas se impõe nas práticas sociais.

A noção de circulação, no campo da geografia, historicamente é utilizada de forma acrítica e epistemologicamente empobrecida, marginalizando os temas em torno do deslocamento das pessoas, ideias, informações e mercadorias na produção dos espaços, conforme Silva Junior1414 Silva Junior RF. Circulação, epistemologia e a constituição de um ramo da ciência geográfica. Bol Campineiro Geogr. 2012; 2(3):389-417.. Para esse autor, são necessários resgates em torno do termo, fazendo-se a defesa de uma Geografia da Circulação.

Silva Junior1414 Silva Junior RF. Circulação, epistemologia e a constituição de um ramo da ciência geográfica. Bol Campineiro Geogr. 2012; 2(3):389-417. traz que “a inspiração da ideia de circulação parte da analogia com os fluxos da natureza, especialmente a circulação sanguínea”1414 Silva Junior RF. Circulação, epistemologia e a constituição de um ramo da ciência geográfica. Bol Campineiro Geogr. 2012; 2(3):389-417. (p. 413). Essa noção ascende e se atrela a uma intenção conservadora de ciências, inclusive sociais, tomada por um ponto de vista da fisiologia, da mecanização, positivista e organicista, fincada na racionalidade técnica, na eficiência do corpo/máquina-coisa, de um projeto civilizatório de sociedade. Assim, a circulação se estabelece inicialmente com intuito da ordem da ciência moderna, difundida por René Descartes e outros contemporâneos, respondendo à “‘necessidade’ de uma nova interpretação, que fosse mais eficiente e que ‘contribuísse’ para a construção de uma ‘verdadeira ciência’, análoga à observação da natureza e de seus mecanismos, para o estabelecimento de sua dominação pelo reino do homem”1414 Silva Junior RF. Circulação, epistemologia e a constituição de um ramo da ciência geográfica. Bol Campineiro Geogr. 2012; 2(3):389-417. (p. 391). Essa perspectiva vai se modificando, até desenvolver propostas de distanciamento de análise fisiológicas.

Um dos autores que realiza um deslocamento para compreender o fenômeno da circulação no sentido não-fisiológico é Jean Gottmann. Gottmann1515 Gottmann J. La politique des États et leur Géographie. Paris: Armand Colin; 1952. analisa a circulação na dimensão geopolítica, definindo-a como movimento que “’é, naturalmente, criador da mudança’ na ordem estabelecida no espaço: consiste em mover-se”1515 Gottmann J. La politique des États et leur Géographie. Paris: Armand Colin; 1952. (p. 214, destaques do autor)(f (f) “est tout naturellement créatrice de changement dans l’ordre établi dans l’espace: elle consiste à déplacer” 15 (p. 214, grifos do autor). ). Circular promove movimentos na ordem política, econômica e cultural, forjada no deslocamento de pessoas, ideias, mercadorias, capital e técnicas, na sociedade que está cada vez mais fluida e ramificada. Aparece como processo social promotor da mudança nos espaços e territórios, permite a organização e diferenciação do espaço, “a circulação dos homens [seres humanos] e de seus produtos é a grande dinâmica humana”1515 Gottmann J. La politique des États et leur Géographie. Paris: Armand Colin; 1952. (p. 215)(g (g) “La circulation des hommes et de leurs produits, c’est la grande dynamique humaine”15 (p. 215). ), é organizadora de redes, itinerários.

A circulação de pessoas propicia as mudanças nos territórios, mas estas não acontecem sem resistência, pois, ao mesmo tempo em que existe o princípio da circulação existe o princípio das iconografias na geopolíticas dos territórios. “A circulação, princípio do movimento, e a iconografia, princípio de estabilidade”1515 Gottmann J. La politique des États et leur Géographie. Paris: Armand Colin; 1952. (p. 221)(h (h) “La circulation, principe de mouvement, et l’iconographie, principe de stabilité”15 (p.221). ). Decorre do princípio da iconografia um conjunto de diferentes sistemas simbólicos (abstratos e concretos) que se constrói no Estado-nação moderno, trazendo o regionalismo e a coesão territorial interna para a consolidação desse modo de sociedade, funcionando como princípio unificador da vida em comum, em que o outro sempre é estrangeiro.

Com esses “mapas” e suas representações são formatados interesses nacionais, hábitos e crenças comuns, em que o Estado-nação configura um sistema de resistência ao movimento, é o cimento que confere coesão e personalidade a uma comunidade, fator de estabilidade política, é um obstáculo à circulação1616 Gottmann J. La politique et le concret. Polit Etrang. 1963; 4-5(28):273-302..

Para fixar os homens [seres humanos] no espaço que ocupam, para dar a sensação dos elos que unem a nação e o território, é essencial trazer a geografia regional para a iconografia. É assim que a iconografia se torna na geografia uma espécie de resistência ao movimento, um fator de estabilização política1515 Gottmann J. La politique des États et leur Géographie. Paris: Armand Colin; 1952.. (p. 221)(i (i) “Pour fixer les hommes à l’espace qu’ils occupent, pour leur donner le sentiment des liens qui unissent la nation et le territoire, il est indispensable de faire entrer la géographie régionale dans l’iconographie. C’est ainsi que l’iconographie devient en géographie un môle de résistance au mouvement, un facteur de stabilisation politique”15 (p. 221). )

Os mecanismos de iconografia visam fixar os sujeitos nos territórios demarcados, apesar disso, a iconografia e a circulação não estão em oposição constante, sendo passíveis de coordenação, já que a iconografia acarreta processos importantes para a unificação e possibilidade de organização da sociedade. Todavia, cabe atentar-se que a iconografia favorecendo certos usos do território, “facilita também a manutenção de certas estruturas sociais”1515 Gottmann J. La politique des États et leur Géographie. Paris: Armand Colin; 1952. (p. 221)(j (j) “L’iconographie facilite aussi le maintien de certaines structures sociales”15 (p. 221). ).

Essa resistência à circulação, necessária, até certo ponto, para constituição e organização do Estado-nação, é estratégica para a manutenção de status quo. Isto pode reafirmar lógicas de opressão, quando legitima o não reconhecimento ou barra os direitos à circulação dos diferentes grupos subalternizados, sobretudo os pobres, para preservar o lugar privilegiado de classes dominantes na hierarquia social e econômica, preservando a ideia que existem grupos melhores que outros, para a manutenção dos lugares de poder e hegemonia material e simbólica. Compreende-se que a circulação é fator importante para aproximar os símbolos, promover os movimentos e intercâmbios, possibilitando a democratização do uso dos territórios(k (k) Compreende-se que quaisquer territórios dados foram “delimitados pela ação humana e são usados por um certo número de pessoas por razões específicas, sendo tais usos e intenções determinados por e pertencentes a um processo político”17 (p. 523). ) no processo social, político e cultural, podendo desestabilizar hegemonias sociais opressoras.

Por isso, é necessário observar que a circulação de pessoas, dentro de uma sociedade desigual, “para os agentes hegemônicos, [...] significa ‘alargar os contextos’, seja para controle, domínio ou realização de trocas [...]. Para os agentes hegemonizados, circular significa sobreviver, seja para sua reprodução social (mobilidade do trabalho) ou para se refugiar”1414 Silva Junior RF. Circulação, epistemologia e a constituição de um ramo da ciência geográfica. Bol Campineiro Geogr. 2012; 2(3):389-417. (p. 408). Assim, estratégias e fatores que condicionam a circulação cotidiana ao sobreviver estão atrelados à manutenção das relações de opressão e de alienação, não possibilitando o alargamento dos contextos de forma emancipada e autônoma.

A miséria da circulação cotidiana, de forma compulsória (atrelada à alienação cotidiana, às normas consuetudinárias dominantes, às imposições dos papéis sociais, funcional aos interesses da sociedade de consumo dirigido e à manutenção do status quo), está vincula às classes subalternizadas, tendo em vista formas institucionais e não-institucionais que condicionam o movimento, o ir e vir, já que a circulação não acontece por si só, depende de fatores técnicos, organizacionais, sociais, culturais, econômicos e políticos que configuram as redes, ou seja, as condições para a mobilidade1414 Silva Junior RF. Circulação, epistemologia e a constituição de um ramo da ciência geográfica. Bol Campineiro Geogr. 2012; 2(3):389-417..

Práxis da terapia ocupacional social: circulação cotidiana para a participação social

Para pensar a ação terapêutico-ocupacional social tendo como noção a circulação cotidiana dos sujeitos para os quais se volta, deve-se compreender como a desigualdade, a exploração e a opressão marcam a sociedade brasileira. Em um país constituído no colonialismo, na escravidão e na fragilidade democrática1212 Freire P. À sombra desta mangueira. 11a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2013., a circulação cotidiana para as pessoas das classes subalternizadas é perpassada por diversas barreiras materiais e imateriais, que impõem a manutenção dos antigos regimes, uma circulação cotidiana intensamente gestada pela necessidade condicionada, imediata e compulsória, marginalizando o desejo, a emancipação e a busca de participação social significativa.

Se “as condições materiais para uma determinada revolução social existiam, esta se tornava um imperativo-ético, um dever, uma livre opção (possibilidade) para as mentes e os corações que consideravam a felicidade dos homens, de todos os homens, a finalidade última dos Estados”1818 Nosella P. Ética e pesquisa. Educ Soc. 2008; 29(102):255-73. (p. 262). Assim, a resolução das problemáticas em torno da circulação cotidiana é um dever ético na sociedade, “tomando os obstáculos como desafios, a tarefa é buscar respostas a eles adequados”1212 Freire P. À sombra desta mangueira. 11a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2013. (p. 73).

Tendo em vista a existência de um escopo de tecnologias e conhecimentos capazes de promover e/ou facilitar a circulação cotidiana das pessoas nos territórios, abre-se a possibilidade de ser colocada de forma democrática essa alternativa. Sendo assim, seria viável romper com a condição da circulação cotidiana compulsória, associada à vivência do cotidiano alienado e pseudoconcretizado, tornando possível articulações necessárias para a liberdade, de forma consciente e autônoma1212 Freire P. À sombra desta mangueira. 11a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2013.,1919 Gramsci A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1999. v. 1., promovendo uma circulação cotidiana emancipatória, a partir da conscientização, “catarse” e criação para vivenciar e usufruir dos movimentos, do ir e viver e, inclusive, permanecer, pelos/nos diferentes espaços da existência.

Compreendendo a terapia ocupacional social como um campo de saberes e práticas com compromisso ético e político de diminuir os limites e ativar os potenciais do viver o cotidiano e ampliação da participação social2020 Galheigo S, Simó S. Maestras de la terapia ocupacional. Sandra Galheigo: la poderosa emergencia de la terapia ocupacional social. TOG (A Coruña). 2012; 9(15):1-41., seria o seu pensar/fazer profissional capaz de promover uma circulação cotidiana emancipatória junto às populações que encontram barreiras para vivenciar essa dimensão da existência?

Entende-se a noção de circulação cotidiana como interessante para instrumentalizar o exercício profissional, direcionado ao enfrentamento dos desafios junto a populações vulneráveis que possuem dificuldades para terem garantidos seus direitos e suas oportunidades concretas de participação na vida social. À exemplo, as juventudes pobres urbanas e rurais, a população travesti e transexual, a população em situação de rua, a população imigrante, refugiada, entre outras, grupos e sujeitos, que vivenciam condições de limitações em seus processos de circulação cotidiana emancipatória, tendo dificuldades, por contradições sociais e culturais, de usar os territórios e bens sociais (dispositivos em nível institucional e não-institucional que compõem os espaços sociais).

Para instaurar esse movimento, a terapia ocupacional social pode fazer uso de tecnologias sociais, que são estratégias teórico-metodológicas fundamentais para a práxis2121 Lopes RE, Borda PLO, Trajber NKA, Silva CR, Cuel BT. Oficinas de atividades com jovens da escola pública: tecnologias sociais entre educação e terapia ocupacional. Interface (Botucatu). 2011; 15(36):277-88.,2222 Lopes RE, Malfitano APS, Silva CR, Borba PLO. Recursos e tecnologias em Terapia Ocupacional Social: ações com jovens pobres na cidade. Cad Ter Ocup UFSCar. 2014; 22(3):591-602., colocando como um pressuposto a possibilidade/necessidade da circulação cotidiana dos sujeitos. As ações terapêutico-ocupacionais nesse sentido realizam-se dentro de um panorama perpassado por aspectos micro e macrossociais2323 Malfitano APS. Contexto social e atuação social: generalizações e especificidades na terapia ocupacional. In: Lopes RE, Malfitano APS, organizadores. Terapia ocupacional social: desenhos teóricos e contornos práticos. São Carlos: EdUFSCar; 2016. p. 117-33., para articular alternativas que lidem com os contextos histórico-políticos, culturais e afetivos dos indivíduos e grupos, para ampliação da circulação cotidiana emancipatória. Para tanto, lança-se mão do uso das atividades e dos acompanhamentos singulares, da articulação dos recursos comunitários (afetivos, políticos, econômicos, culturais), das estratégias de dinamização para integração de políticas públicas, para fortalecimento das redes sociais de suporte e das teias que se tecem na circulação.

Ademais, entende-se que a promoção da circulação cotidiana emancipatória supõe propostas para a suspensão da vida cotidiana – destruição da pseuconcreticidade da vida cotidiana, de forma crítica e dialética88 Heller A. O cotidiano e a história. 11a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016.

9 Lefebvre H. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Editora Ática; 1991.
-1010 Kosik K. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e terra; 2002., para conscientização dos sujeitos como protagonistas dos seus movimentos. Fomentando espaços de convivência e encontros para realizar esse exercício de suspensão, esta suspensão da vida cotidiana não é fuga:

é um circuito, porque se sai dela e se retorna a ela de forma modificada. À medida que essas suspensões se tornam frequentes, a reapropriação do ser genérico é mais profunda e a percepção do cotidiano fica mais enriquecida2424 Carvalho MCB. O conhecimento da vida cotidiana: base necessária à prática social. In: Carvalho MCB, Paulo Netto J, organizadores. Cotidiano: conhecimento e crítica. 7a ed. São Paulo: Cortez; 2007. p. 13-61.. (p. 28)

Diante dos aportes que pretendemos trazer/construir neste texto, são práxis que contribuiriam para o desenvolvimento das possibilidades da circulação, da criatividade, para a efusão e o fomento do enriquecimento de um cotidiano restrito/alienado/condicionado, que precisam estar associadas a estratégias que tornem essa uma alternativa concreta na sociedade em que se vive, tensionando as vias por onde se vai, lidando com as limitações, mas, literalmente, abrindo caminhos.

O terapeuta ocupacional tem capacidade para fomentar uma elaboração crítica do cotidiano junto aos sujeitos55 Galheigo SM. O cotidiano na terapia ocupacional: cultura, subjetividade e contexto histórico-social. Rev Ter Ocup USP. 2003; 14(3):104-9., para que estes possam optar por uma recusa que se enseja como resistência e por transformá-lo de forma ativa.

A “circulação cotidiana emancipatória” – riqueza do movimento da vida, em antagonismo à “circulação cotidiana compulsória” – reduzida a responder de forma subalternizada às opressões sociais, sabe que todo movimento se vincula aos desejos, à curiosidade crítica, ao descobrir e usufruir dos territórios e de seus bens sociais, enquanto fator importante para a produção de vida criativa, para o existir e viver os territórios, para uma vida diretamente democrática e cidadã.

Trata-se de uma circulação emancipatória como “característica dos autênticos regimes democráticos e [que procura] corresponder a formas de vida altamente permeáveis, interrogadoras, inquietas e dialogais, em oposição às formas de vida ‘mudas’, quietas e discursivas, das fases rígidas e militarmente autoritárias”, a vida cotidiana criadora e desalienada é o “reencontro com a democracia”2525 Freire P. Educação como prática da liberdade. São Paulo: Paz & Terra; 1967. (p. 60).

Conclui-se que na vida cotidiana “a libertação é ‘possibilidade’; não sina, nem destino, nem fado”1212 Freire P. À sombra desta mangueira. 11a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2013. (p. 50, destaque do autor), demandando dos sujeitos, individuais e coletivos, oprimidos o engajamento na luta por tal libertação, no alargamento das possibilidades de circular e de ampliar a participação social. Em uma concepção de ação educativa da terapia ocupacional social, com base em Manacorda2626 Manacorda MA. Aos educadores brasileiros [entrevista a Paolo Nosella]. Campinas: HISTEDBR – FE/ UNICAMP; 2007., busca-se contribuir com estratégias conjuntas com os sujeitos não somente para eles serem si mesmos, “mas também para entrar na sociedade, senão com a capacidade de ser um produtor de cultura em todos os campos, pelo menos para gozar de todas as contribuições da civilização humana, das artes, das técnicas, da literatura”, para que grupos com barreiras em seu processo de inserção social possam “participar de todos os prazeres humanos”2626 Manacorda MA. Aos educadores brasileiros [entrevista a Paolo Nosella]. Campinas: HISTEDBR – FE/ UNICAMP; 2007. (p. 15), em sua plena e autônoma circulação cotidiana.

  • Financiamento

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.
  • (c)
    Lefebvre99 Lefebvre H. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Editora Ática; 1991. sinaliza que o reino da cotidianidade é uma marca que surge a partir do século XIX, relacionado com o capitalismo de concorrência e a efervescência do mundo das mercadorias. O que o distingue das concepções de Heller88 Heller A. O cotidiano e a história. 11a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016. e Kosik1010 Kosik K. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e terra; 2002., que compreendem a vida cotidiana em todas as épocas.
  • (d)
    Lefebvre99 Lefebvre H. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Editora Ática; 1991. coloca que esse período é circunscrito pelo fracasso da União Soviética e a ascensão do capitalismo, havendo a diluição das formas de consciência da classe trabalhadora e o desvio da sua capacidade criadora e revolucionária.
  • (e)
    Paulo Freire1212 Freire P. À sombra desta mangueira. 11a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2013. nessa compreensão tem como referência Karel Kosik, a quem caracterizou como notável filósofo.
  • (f)
    est tout naturellement créatrice de changement dans l’ordre établi dans l’espace: elle consiste à déplacer” 1515 Gottmann J. La politique des États et leur Géographie. Paris: Armand Colin; 1952. (p. 214, grifos do autor).
  • (g)
    “La circulation des hommes et de leurs produits, c’est la grande dynamique humaine”1515 Gottmann J. La politique des États et leur Géographie. Paris: Armand Colin; 1952. (p. 215).
  • (h)
    “La circulation, principe de mouvement, et l’iconographie, principe de stabilité”1515 Gottmann J. La politique des États et leur Géographie. Paris: Armand Colin; 1952. (p.221).
  • (i)
    “Pour fixer les hommes à l’espace qu’ils occupent, pour leur donner le sentiment des liens qui unissent la nation et le territoire, il est indispensable de faire entrer la géographie régionale dans l’iconographie. C’est ainsi que l’iconographie devient en géographie un môle de résistance au mouvement, un facteur de stabilisation politique”1515 Gottmann J. La politique des États et leur Géographie. Paris: Armand Colin; 1952. (p. 221).
  • (j)
    “L’iconographie facilite aussi le maintien de certaines structures sociales”1515 Gottmann J. La politique des États et leur Géographie. Paris: Armand Colin; 1952. (p. 221).
  • (k)
    Compreende-se que quaisquer territórios dados foram “delimitados pela ação humana e são usados por um certo número de pessoas por razões específicas, sendo tais usos e intenções determinados por e pertencentes a um processo político”1717 Gottmann J. A evolução do conceito de território. Bol Campineiro Geogr. 2012; 2(3):523-45. (p. 523).
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    Manacorda MA. Aos educadores brasileiros [entrevista a Paolo Nosella]. Campinas: HISTEDBR – FE/ UNICAMP; 2007.

Editado por

Editora
Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima
Editora associada
Fatima Corrêa Oliver

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2020
  • Aceito
    18 Ago 2021
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