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Audiência de Custódia e seus paradoxos frente à pessoa com transtorno mental em conflito com a lei

Custody hearings and their paradoxes for people with mental disorders in conflict with the law

Audiencia de custodia y sus paradojas frente a la persona con trastorno mental en conflicto con la ley

Resumos

Este artigo teve como objetivo analisar os efeitos da psiquiatrização da loucura nos discursos de autoridades judiciais nas decisões frente aos flagrantes de pessoas com transtorno mental em conflito com a lei, nas Audiências de Custódias (ACs) de um estado brasileiro. Por meio de uma abordagem qualitativa, foram realizadas cinco entrevistas em profundidade com juízes, analisadas sob as perspectivas da análise do discurso de Michel Foucault. Os resultados/discussão foram descritos a partir de dois eixos: o primeiro versa sobre psiquiatrização da AC: o louco em privação de liberdade; e o segundo problematiza o risco como dispositivo de captura e privação da liberdade. Conclui-se que, ainda que as ACs tenham sido produzidas como dispositivo para garantia da liberdade, afere-se que em seus discursos os participantes da pesquisa apresentam ideias da loucura como risco, que justificam o aprisionamento.

Palavras-chave
Loucura; Audiência de custódia; Saúde mental; Saúde Coletiva; Psiquiatrização


This article analyzes the effects of the psychiatrization of madness in the discourse of judicial authorities in decisions in response to flagrant offences committed by people with mental disorders during custody hearings (CHs) in a Brazilian state. We conducted a qualitative study involving five in-depth interviews with judges analyzed from the perspective of Foucauldian discourse analysis. The results are described in two core areas: the psychiatrization of the custody hearing - mad people deprived of their liberty; and problematizing risk as a device of capture and deprivation of liberty. We concluded that, although custody hearings were supposedly created as a device for guaranteeing liberty, the participants’ discourses present ideas of madness as risk, justifying imprisonment.

Keywords
Madness; Custody hearing; Mental health; Public health; Psychiatrization


El objetivo de este artículo fue analizar los efectos de la psiquiatrización de la locura en los discursos de autoridades judiciales en las decisiones ante los flagrantes de personas con trastorno mental en conflicto con la ley, en las Audiencias de Custodia (ACs) de un estado brasileño. Por medio de un abordaje cualitativo, se realizaron cinco entrevistas en profundidad con jueces, analizadas bajo las perspectivas del análisis del discurso de Michel Foucault. Los resultados/discusión se describieron a partir de dos ejes: el primero sobre psiquiatrización de la audiencia de custodia: el loco en privación de libertad y el segundo problematizando sobre el riesgo como dispositivo de captura y privación de la libertad. Se concluye que aunque las ACs se produjeron como dispositivo para garantía de la libertad, se verifica que en sus discursos los participantes en el estudio presentan ideas de locura como riesgo que justifica el aprisionamiento.

Palabras clave
Locura; Audiencia de custodia; Salud mental; Salud colectiva; Psiquiatrización


Introdução

As Audiências de Custódias (ACs) consistem em um projeto de afirmação do direito de uma pessoa de ser apresentada a uma autoridade judicial em um prazo de até 24 horas, para que se avalie a legalidade e necessidade de manutenção ou não da prisão dessa pessoa11 Brasil. Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Resolução nº 213, de 15 de Dezembro de 2015. Dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas [Internet]. Brasília: CNJ; 2015 [citado 29 Out 2020]. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/resolucao-audiencias-custodia-cnj.pdf
https://www.conjur.com.br/dl/resolucao-a...
. Nas ACs, cabe à autoridade judicial entrevistar a pessoa presa em flagrante, objetivando:

“Averiguar, por perguntas e visualmente, hipóteses de gravidez, existência de filhos ou dependentes sob cuidados da pessoa presa em flagrante delito, histórico de doença grave, incluídos os transtornos mentais e a dependência química, para analisar o cabimento de encaminhamento assistencial e da concessão da liberdade provisória, sem ou com a imposição de medida cautelar”11 Brasil. Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Resolução nº 213, de 15 de Dezembro de 2015. Dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas [Internet]. Brasília: CNJ; 2015 [citado 29 Out 2020]. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/resolucao-audiencias-custodia-cnj.pdf
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Cabe também à autoridade judicial a análise de possíveis ocorrências de tortura, maus-tratos e/ou outras penalidades praticadas por agentes da Segurança Pública, objetivando evitar prisões arbitrárias. Como resultado da audiência, o juiz decidirá se a pessoa presa pode sair mediante fiança, se a prisão deve ser mantida, ou até mesmo se deve continuar em liberdade, por não ter a prisão justificada. Ademais, o juiz poderá ainda fazer encaminhamentos para a rede de saúde11 Brasil. Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Resolução nº 213, de 15 de Dezembro de 2015. Dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas [Internet]. Brasília: CNJ; 2015 [citado 29 Out 2020]. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/resolucao-audiencias-custodia-cnj.pdf
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Contudo, apesar de as ACs se constituírem em um importante dispositivo para garantia da liberdade, verificamos nesta pesquisa que, quando a loucura se torna objeto de averiguação e entrevista, emerge um importante paradoxo: a psiquiatrização da loucura e o risco como dispositivo de captura das anormalidades. Isso mostra que tal temática intersecciona a Saúde Coletiva com a Justiça Criminal, na medida em que o tratamento da loucura, ao se dar hegemonicamente pela via da psiquiatrização, não se restringe ao território da Saúde Pública.

Sobre o campo da Saúde Coletiva, cabe salientar que ele produz e reúne conhecimentos sobre saúde, entendendo-a como um processo social, relacionada à estrutura e organização da sociedade. A partir disso, elabora ações de atenção à saúde como práticas não apenas técnicas, mas também sociais. Para Nunes22 Nunes ED. Saúde Coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2012. p. 295-315, podemos entender o campo da Saúde Coletiva a partir da imagem de um mosaico – conjunto formado por partes separadas, mas agregadas –, cujas partes se aproximam quando a compreensão dos problemas ou a proposta de práticas são situadas além dos limites de cada “campo disciplinar”. Isso exige arranjos interdisciplinares para além das disciplinas, com uma nova perspectiva de superação das fronteiras e dos limites.

De acordo com o Conselho Federal de Psicologia33 Brasil. Conselho Federal de Psicologia - CFP. Referências técnicas para a atuação dos psicólogos no sistema prisional [Internet]. Brasília: CFP; 2012 [citato 29 Out 2020]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/11/AF_Sistema_Prisional-11.pdf
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, em relação aos “loucos infratores”, ou pessoas com transtorno mental em conflito com a lei, na grande maioria dos presídios brasileiros têm restado apenas o silêncio, o isolamento, o massacre subjetivo cotidiano e o sequestro institucional dos direitos fundamentais.

Diante do exposto, neste artigo analisamos os efeitos da psiquiatrização da loucura nas decisões de autoridades judiciais em ACs frente aos flagrantes de pessoas com transtorno mental em conflito com a lei.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa com produção de dados mediante entrevistas em profundidade gravadas em áudio digital e transcritas na íntegra com cinco juíze(a)s que trabalham ou trabalharam com as ACs no estado do Espírito Santo, Brasil. Desses, quatro possuem mais de 15 anos na magistratura e um atua há cinco anos aproximadamente. Tais fatores foram relevantes nos resultados por revelar o ponto de vista de tais juízes a partir do tempo de formação e atuação.

Segundo Da Silva44 Silva AL. Ensaios em saúde coletiva: entrevista em profundidade como técnica de pesquisa qualitativa em saúde coletiva. Saude Colet. 2005; 2(7):71., a entrevista em profundidade se constitui em uma “forma de apreender os sentidos/significados nos discursos dos sujeitos. Esta técnica busca expressividade no grupo a ser estudado” (p. 71). Nessa pesquisa, a entrevista teve a seguinte pergunta norteadora: como é a sua atuação diante das pessoas com transtorno mental em conflito com a lei? Dessa forma, buscou-se evidenciar como os atores do sistema de justiça prisional atuam frente ao aprisionamento das pessoas com transtorno mental. As entrevistas foram realizadas entre os meses de agosto e dezembro de 2018 pelo mesmo entrevistador, com duração média de trinta minutos e em local escolhido conforme disponibilidade dos entrevistados.

Os participantes foram selecionados mediante metodologia bola de neve. Segundo Vinuto55 Vinuto JA. Amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas. 2014; 22(44):201-18.,

[...] o tipo de amostragem nomeado como bola de neve é uma forma de amostra não probabilística, que utiliza cadeias de referência. Ou seja, a partir desse tipo específico de amostragem não é possível determinar a probabilidade de seleção de cada participante na pesquisa [...].

(p. 203)

O participante denominado Juiz 1 foi considerado nossa semente, e as demais participações foram compondo a pesquisa a partir das indicações. As cinco entrevistas produziram saturação teórica, de forma que a partir da terceira já foram verificadas repetições substanciais nas falas em relação ao objeto investigado – psiquiatrização da loucura nas decisões em Acs, sendo que tal saturação foi confirmada com a quinta entrevista.

Todas as entrevistas foram gravadas em áudio digital, transcritas e posteriormente analisadas a partir de leituras minuciosas de seu conteúdo, considerando as falas, as pausas e as emoções ali expressas, de forma a buscar o que se ressaltava e tendo sempre como direcionamento os objetivos da pesquisa. Para análise, tomamos como perspetiva os estudos genealógicos de Michel Foucault66 Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 19a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999.

7 Foucault M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 23a ed. São Paulo: Graal; 2013.

8 Foucault M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). 15a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999.

9 Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes; 2009.

10 Foucault M. Microfísica do poder. 28a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2014. Sobre a história da sexualidade; p. 363-406.

11 Foucault M. Ética, sexualidade e política. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2006. A evolução da noção de indivíduo perigoso na psiquiatria legal do século XIX; p. 1-25. (Ditos e escritos V).

12 Foucault M. A verdade e as formas jurídicas. Machado RCM, Morais EJ, tradutores. Rio de Janeiro: NAU Editora; 2002.
-1313 Foucault M. A história da loucura na idade clássica (1961). 5a ed. São Paulo: Perspectiva; 1997., vislumbrando problematizar os discursos em jogos de poder, saber e produção de verdade que conectam a loucura, a periculosidade e o racismo contra o anormal às decisões sobre liberdade ou prisão nas ACs com pessoas com transtorno mental em conflito com a lei.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob parecer n. 3.504.492 e CAAE n. 09693419.0.0000.5060. Todas as participações foram mediadas pelo preenchimento de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Informações que possam categorizar a amostra, bem como nomes, não serão apresentadas, como forma de garantia ao anonimato.

Resultados e discussão

Psiquiatrização da audiência de custódia: o louco em privação de liberdade

A discussão de psiquiatrização aqui toma por referência a leitura foucaultiana sobre governamentalidade, loucura e poder/saber médico. Em sua genealogia do poder, Foucault66 Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 19a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999. nos fala de uma governamentalidade moderna pela qual emerge uma sociedade de normalização. A norma – e seus limites que estabelecem tudo aquilo que escapar como não norma, como anormal – se configura em um paradigma que determina a classificação de vidas como objetos de um “fazer viver” ou “deixar/fazer morrer”66 Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 19a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999..

Na leitura de Foucault66 Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 19a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999., “fazer viver” e “deixar/fazer morrer” são possíveis a um Estado que opera nos limites de um biopoder, que, segundo o autor, toma o corpo-espécie, com várias cabeças, e a população como objetos de operações biopolíticas, que inserem os processos da vida – nascimento, adoecimento, sofrimento e morte – nos cálculos e controles estatísticos. Esse poder, que acessa o corpo em nome de sua proteção77 Foucault M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 23a ed. São Paulo: Graal; 2013., deixa e faz morrer pelo exercício de um racismo de Estado66 Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 19a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999., exercido pela própria sociedade em relação a si mesma, de forma a alcançar sua normalização.

Tal exercício de poder, em função da produção de uma sociedade de normalização via encontro entre disciplinas e o biopoder66 Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 19a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999., produz figuras malogras e infames entre sua própria população – prostitutas, delinquentes, homossexuais, loucos, etc. –, marcadas pela anormalidade e inseridas em economias de penalidades assombrosamente empenhadas em seu controle, medicalização e eliminação.

Aqui, o poder se aplica singularmente aos corpos por técnicas de vigilância, por meio do isolamento institucional (prisões, manicômios, conventos, etc.) e por meio das punições normalizadoras. “O poder disciplinar sobre os corpos encontra-se em um dos polos, no outro há o poder sobre o corpo-espécie, [...] transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos”66 Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 19a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999. (p. 131).

Não se compreende a marcação da anormalidade como mera oposição delinquente versus justo, prostituta versus “moça de família”, louco versus são, etc., mas sim, como coloca Foucault88 Foucault M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). 15a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999., como uma “gradação do normal ao anormal, que se desenrola efetivamente o exame médico-legal” (p. 52). Nessa direção, são eleitos soberanos, em termos foucaultianos66 Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 19a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999.

7 Foucault M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 23a ed. São Paulo: Graal; 2013.

8 Foucault M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). 15a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999.
-99 Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes; 2009., como médicos, que serão responsáveis pela avaliação e produção das gradações de normalidade e anormalidade. A título de exemplo, temos o Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM), que, além de registrar as gradações para o que tem sido concebido como desordens, perturbações e distúrbios mentais, forja no seio de saberes que emergem de uma psiquiatria constituída como campo de saber/poder. Caponi1414 Caponi S. O DSM-V como dispositivo de segurança. Physis. 2014; 24(3):741-63. (p. 756), ao analisar a produção e atualização do DSM, afirma que há, portanto, a articulação entre o que se concebe enquanto verdade e estratégias de poder – centradas no “dispositivo de segurança”1414 Caponi S. O DSM-V como dispositivo de segurança. Physis. 2014; 24(3):741-63..

Para Foucault1010 Foucault M. Microfísica do poder. 28a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2014. Sobre a história da sexualidade; p. 363-406., esse dispositivo “engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são elementos do dispositivo” (p. 364). Para o autor77 Foucault M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 23a ed. São Paulo: Graal; 2013.,1010 Foucault M. Microfísica do poder. 28a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2014. Sobre a história da sexualidade; p. 363-406., os dispositivos são importantes operadores das redes de saber e poder, que, como jogo, têm neles a possibilidade de articular forças; mobilizar resistências; e produzir fissuras e capturas. O dispositivo da segurança é exercido sob o signo do risco, da prevenção, do combate e da mitigação de tudo o que possa ser apresentado como risco à preservação da vida das populações e a um “fazer viver”66 Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 19a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999.,1414 Caponi S. O DSM-V como dispositivo de segurança. Physis. 2014; 24(3):741-63.. Nesses termos, para Caponi1414 Caponi S. O DSM-V como dispositivo de segurança. Physis. 2014; 24(3):741-63., esse “tipo de gestão biopolítica das populações se baseia na confiança absoluta, na difusão de informações que se apresentam como neutras e objetivas, e que sutilmente somos levados a aceitar e a integrar a nossas vidas” (p. 754).

Caponi1515 Caponi S. Biopolítica e medicalização dos anormais. Physis. 2009; 19(2):529-49. analisa que uma das características do biopoder é a importância crescente da norma sobre a lei: a ideia de que é preciso definir o normal em contraposição àquilo que lhe é oposto: a figura dos “anormais”, considerados “exceção à norma”. A vida, o corpo, a saúde e a segurança transformaram-se em questões políticas por excelência. Foucault88 Foucault M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). 15a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999. analisa como a ideia de uma degeneração como risco à espécie possibilitou elementos para que a psiquiatria emergisse como campo de poder/saber que extrapola os limites da Saúde Pública. Para Caponi1616 Caponi S. Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012., o conceito de degeneração reafirma a apreensão de vivências do cotidiano como relacionadas a padrões patológicos, de forma claramente reducionista, já que vincula “o campo dos sofrimentos psíquicos a causas orgânicas, restringindo a compreensão dos relatos dos pacientes e da escuta terapêutica” (p. 182-3).

Nas falas de participantes apresentadas a seguir, encontramos marcas da psiquiatrização da loucura nos discursos em relação a decisões sobre aprisionamento ou liberdade nas ACs. Discursos que justificam ações de aprisionamento, isolamento e exclusão de pessoas pelos saberes/poderes médicos a partir da produção da loucura como risco.

Em suas falas, os participantes demonstram uma importante produção pelas buscas por elementos, chamados por eles de “evidências”, que possam justificar a presença de algum sofrimento psíquico que justifique a presença de periculosidade, risco para si ou outros nas ACs, conforme os seguintes relatos:

Porque eu fiz as perguntas, ela entendeu as perguntas e ela respondeu as perguntas, tá.

(Juíz 1)

[...] nós temos que diferenciar o que é um transtorno mental para a psicologia e qual é o transtorno mental para o direito penal, porque o transtorno mental para psicologia é uma coisa e para o direito penal é outra. Para o direito penal ele tem um transtorno mental que o impede de entender a ilicitude, o caráter daquela conduta que ele praticou de autodeterminação. Esse é o transtorno mental que até o absorve sumariamente, ok? O louco né. [...] O transtorno mental para justificar alguma medida nossa, ele tem que ser aparente, ele tem que ser notado, ele tem que dar sinais evidentes de que ele não possui uma rigidez mental. Na custódia não tive nenhuma experiência de transtorno mental, numa experiência de que eu suspeitaria que aquela pessoa poderia sofrer de um distúrbio da saúde mental dela.

(Juíz 1)

[...] A gente tenta identificar o problema, pergunta se é viciado em droga, quanto tempo usa, qual a rotina de uso... para saber se realmente tem uma questão, se tem alguma doença grave, se toma medicamento, se faz algum tratamento psicológico, psiquiátrico.

(Juíz 3)

[...] lá “o acusado permaneceu em silêncio”. E aí tem só as informações da polícia e faz apreensão, e aí quando vou fazer a entrevista, na audiência de custódia, o cara não responde absolutamente nada, mas não é porque ele manifesta o desejo de permanecer em silêncio, mas porque ele não tem a menor ideia do que está acontecendo. Então, assim, é um caso de transtorno que eu só pude perceber porque eu enxerguei o autuado.

(Juiz 2)

Que eu lembre, lá na custódia, eu tive um caso de um rapaz que agrediu, ele quebrou o carro da esposa, agrediu a esposa, mas era do interior também, agrediu a esposa, estava lá louco. E na hora que ele sentou, aquele homem gigante na minha frente, não tinha ainda a proteção, eu falei, já tava tudo combinado com o defensor dele que era… Falei: “Olha, o senhor não tem possibilidade de sair não, vai demorar um bom tempo pro senhor sair, porque o senhor tá dizendo que não quer tratamento, o senhor disse pro seu advogado que não vai fazer tratamento”. E ali era o caso de tratamento. Ele falou assim: “Eu não preciso de tratamento, na hora que eu quiser parar de beber, eu paro”. “Então tá. Então leva ele, ele vai ter que ficar”. Ele levantou, me olhou, com aquele olhar tão terrível e eu nem sequer percebi o olhar dele, depois que o agente veio falar: “Doutora, ele queria voar no seu pescoço”. Eu falei: “Mas paciência né, que é que eu vou fazer?”. Aí voltou mais manso, eu falei: “Olha, sua esposa...”. Aí na hora que eu falei “esposa”...

(Juíz 5)

O participante Juiz 1, eu sua fala, justifica aferir uma ausência de questões correlatas à saúde mental e à presença de algum transtorno, tendo em vista a capacidade de sua interlocutora em responder às questões formuladas e realizadas por ele. Essa procura por uma evidência visível e/ou orgânica da presença de um transtorno toma o lugar de uma escuta, ou olhar mais atento para a questão do sofrimento psíquico.

O Juiz 1 ainda trabalha com a ideia de uma diferenciação entre transtorno para Psicologia e para o poder judiciário, trazendo à tona uma vertente da formação jurídica que se embasa nos pressupostos de uma psiquiatrização da esfera jurídica. Caponi1717 Caponi S. Dispositivos de segurança, psiquiatria e prevenção da criminalidade: o TOD e a noção de criança perigosa. Saude Soc. 2018; 27(2):298-310., em diálogo com Foucault99 Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes; 2009., analisa que:

[...] em inícios do século XX, ocorre o abandono da noção jurídica de responsabilidade, vinculada ao problema do livre-arbítrio, e sua substituição pelo grau de perigo que os indivíduos representam para a sociedade1717 Caponi S. Dispositivos de segurança, psiquiatria e prevenção da criminalidade: o TOD e a noção de criança perigosa. Saude Soc. 2018; 27(2):298-310..

(p. 301)

De acordo com Caponi1717 Caponi S. Dispositivos de segurança, psiquiatria e prevenção da criminalidade: o TOD e a noção de criança perigosa. Saude Soc. 2018; 27(2):298-310., a psiquiatrização na esfera jurídica remonta à Escola Positiva de Antropologia Criminal, que “propõe substituir um sistema jurídico centrado na oposição responsabilidade-irresponsabilidade por uma legislação baseada na periculosidade”1717 Caponi S. Dispositivos de segurança, psiquiatria e prevenção da criminalidade: o TOD e a noção de criança perigosa. Saude Soc. 2018; 27(2):298-310. (p. 301). Em tal legislação, o que parece importar é o risco social que um indivíduo, adulto ou criança, pode representar para a segurança social, de modo que a noção de risco como capacidade de antecipação de um perigo possível reaparece como noção articulada tanto no campo médico quanto no jurídico1414 Caponi S. O DSM-V como dispositivo de segurança. Physis. 2014; 24(3):741-63..

Em “A evolução da noção de ‘indivíduo perigoso’ na Psiquiatria Legal do século XIX”, Foucault1111 Foucault M. Ética, sexualidade e política. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2006. A evolução da noção de indivíduo perigoso na psiquiatria legal do século XIX; p. 1-25. (Ditos e escritos V). faz algumas reflexões por meio do resgate de alguns casos que associavam crime e loucura, no intuito de demonstrar como, nessas situações, havia a oportunidade para que os saberes médicos e jurídicos, quando aliados, pudessem se articular e serem exercidos conjuntamente enquanto práticas interligadas em função do controle dos comportamentos e subjetividades1111 Foucault M. Ética, sexualidade e política. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2006. A evolução da noção de indivíduo perigoso na psiquiatria legal do século XIX; p. 1-25. (Ditos e escritos V).. A participante 1, ao atribuir valor em seu discurso a uma possível incapacidade da pessoa com transtorno mental de se autodeterminar e de compreender a licitude de seus atos, parece tentar evidenciar esse “mal radical”, demarcando assim esse indivíduo-risco para si e para os outros. Todavia, a presença de qualquer indicativo de consciência ou racionalidade, em sua visão, eliminaria tais indícios quase que automaticamente.

Tomando como métrica a compreensão sobre a licitude, que, no âmbito jurídico, corresponde ao que é legal ou que está em conformidade com a lei, Caponi1616 Caponi S. Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. destaca que o conceito de “normalidade”, tal como é utilizado pela Medicina moderna, é inseparável daquilo que em determinado momento se reconhece como sendo a média ou frequência estatística de uma população. Para a autora1616 Caponi S. Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012., sob a égide da norma, da classificação dos desvios, das anomalias e do comportamento, nasce e é implementada uma nova forma de intervenção sobre os indivíduos.

A questão da busca por uma evidência, mediante inquérito, perguntas e busca por confissões também se faz presente na fala do Juiz 3, em seu relato pela necessidade de identificar presença de transtorno, medicações, doenças, etc. Outro ponto importante se dá na preocupação com o uso de drogas, como elemento que parece ser importante a ela nesse processo de encontro com a pessoa na AC e, assim, na produção de uma decisão pela liberdade ou manutenção da prisão.

Para o Juiz 2, o silêncio parece qualificar a pessoa como sujeito que vivencia algum transtorno. Nesse sentido, ele analisa tal silêncio como uma incompreensão do que está acontecendo, como ausência de localização do sujeito no tempo, no espaço e no acontecimento, o que a ele pode justificar a presença de um transtorno mental, na medida em que, como ele coloca, pôde perceber ao observar o autuado. As falas ainda nos remetem às discussões realizadas por Foucault1212 Foucault M. A verdade e as formas jurídicas. Machado RCM, Morais EJ, tradutores. Rio de Janeiro: NAU Editora; 2002., que discute o que denomina “inquérito”, sendo este um procedimento para se alcançar a verdade, uma forma de saber, mas também uma forma de se exercer poder dentro do âmbito judiciário. Para Foucault1212 Foucault M. A verdade e as formas jurídicas. Machado RCM, Morais EJ, tradutores. Rio de Janeiro: NAU Editora; 2002., as transformações ocorridas na sociedade medieval demonstram que o fazer dessa prática judiciária está relacionado às modificações ocorridas na estrutura sociopolítica e nas relações de poder, levando à conclusão de que o inquérito decorre de alterações políticas, e não de um possível desenvolvimento de uma dada racionalidade, reafirmando, assim, a relação entre a produção de saber e o exercício de poder1212 Foucault M. A verdade e as formas jurídicas. Machado RCM, Morais EJ, tradutores. Rio de Janeiro: NAU Editora; 2002.. Vemos que tal exercício inquiridor emerge nas falas dos participantes, na medida em que em uma relação de soberania: juiz e julgado. Nessa relação, o primeiro se dedica às perguntas em busca de uma “evidência” que seja decisiva para liberdade ou encarceramento, enquanto ao segundo cabe o compromisso de confessar suas verdades interiores sobre suas práticas e o fato que o levou até aquela audiência.

De acordo com Foucault1313 Foucault M. A história da loucura na idade clássica (1961). 5a ed. São Paulo: Perspectiva; 1997., a “produção da loucura” implica tanto um conjunto de práticas de dominação e controle quanto a elaboração de um saber. Nesse sentido, o autor afirma que a loucura é uma produção do século XVIII, que se dá por meio dos seus saberes, das suas práticas, das suas instituições, etc., contexto no qual o “louco” é o efeito da convergência de, principalmente, duas séries: a série asilar e a série médica. Isso significa dizer que a “loucura” foi fabricada, sendo que a grande fábrica foi o hospital e que o grande artesão foi o psiquiatra1313 Foucault M. A história da loucura na idade clássica (1961). 5a ed. São Paulo: Perspectiva; 1997..

Importava à Psiquiatria, nessa época, apresentar o louco como um indivíduo perigoso e o psiquiatra como aquele que poderia resguardar a sociedade da ameaça que ele representava1313 Foucault M. A história da loucura na idade clássica (1961). 5a ed. São Paulo: Perspectiva; 1997.. O diagnóstico psiquiátrico, como discorre Foucault1313 Foucault M. A história da loucura na idade clássica (1961). 5a ed. São Paulo: Perspectiva; 1997., não era diferencial, mas absoluto, sendo o passo seguinte ao da denúncia da loucura não propriamente a cura, mas o controle disciplinar do indivíduo. Dessa forma, “o louco” não era curado, mas domado1313 Foucault M. A história da loucura na idade clássica (1961). 5a ed. São Paulo: Perspectiva; 1997.. A fala do Juiz 5 sobre a prévia “combinação” com a defensoria, tendo em vista o delito praticado e sua “agressividade no olhar”, como narra o participante, apresenta-nos em sua fala elementos da prática de dominação e controle que nos aponta Foucault1313 Foucault M. A história da loucura na idade clássica (1961). 5a ed. São Paulo: Perspectiva; 1997.. Além do mais, verificam-se discursos que associam “tratamento” a não liberdade e, assim, a possibilidade de conter um possível risco provocado pelo autuado, compreendendo o “tratamento” sob a lógica de um modelo asilar e, assim, do iminente aprisionamento.

Outras falas direcionam demais apontamentos e entendimentos nas decisões judiciais:

Na verdade a gente é um pouco leiga no assunto, eu precisaria talvez de uma perícia médica para constatar realmente qual o transtorno seria, mas a gente percebe muitas vezes que a pessoa não pode ser normal.

(Juiz 3)

As pessoas que têm transtorno têm, parece, pelo pouco que eu sei, uma menor... [pausa] controle, não têm? Das suas pulsões sexuais. Inclusive quando eu fui uma vez visitar uma instituição que tem ali em Cariacica, loucos de pedra!

(Juiz 1)

[...] mas eu só pude perceber o caso do transtorno mental deste autuado porque eu olhei para ele. Porque eu fiz perguntas para ele, porque ele demonstrou, começou a cantar e aí, ainda que eu seja completamente inexperiente no transtorno mental, mas assim, ele não me parecia falar absolutamente nada com nada.

(Juiz 2)

Diante dessas falas, chama a atenção a alegação sobre saber pouco a respeito do assunto, considerando-se até mesmo leigos e inexperientes para tratar do tema envolvendo saúde mental, afirmando a necessidade de uma perícia médica para “comprovar” ou atestar a presença da loucura e, assim, fundamentar uma decisão. Foucault88 Foucault M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). 15a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999. postula que da convergência das áreas médica e jurídica nasce o exame médico-legal. Segundo o autor88 Foucault M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). 15a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999., a partir dele advém um terceiro termo para compor o funcionamento de um poder que não é nem o poder judiciário, nem o poder médico, mas um poder de outro tipo, o qual ele denomina de poder de normalização88 Foucault M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). 15a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999.. Nesse ponto, Foucault88 Foucault M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). 15a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999. evidencia que a articulação e confluência do campo médico-jurídico se constitui como instância de controle, não do crime, não da doença, mas do anormal. Por isso, ele é, ao mesmo tempo, um problema teórico e político tão importante. Essa instância, com sua preocupação de controle da anormalidade, aparece presente nas falas dos participantes na medida em que as decisões são produzidas no encontro de saberes jurídicos e médicos, fazendo emergir a necessidade do controle da loucura como uma intersecção dos dois campos, forjando o que Foucault88 Foucault M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). 15a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 1999. chama de “instância de controle do anormal”.

No discurso da Juiza 1, parece emergir ideias de uma loucura institucionalizada, sob risco do descontrole de impulsos e dos desejos, presente nas perspectivas medicalizadoras de uma psiquiatrização da loucura. Também aparece em sua fala o relato de uma visita que realizou em certa ocasião a um hospital psiquiátrico, nomeando o que encontrou lá de “loucos de pedra!”.

Os juizes 2 e 3 colocam a necessidade de evidências aparentes e que essas, mesmo diante de sua inexperiência, como narram, podem justificar sua constatação pela presença ou não de um transtorno, de uma anormalidade. Todavia, o participante 3 ainda reforça a necessidade de uma perícia médica que ateste tal fato e que comprove uma “loucura instalada”.

A fala do juiz 2 ainda indica um estranhamento diante do autuado que se expressava livremente cantando e dizendo “nada com nada”, remarcando esse “livre-arbítrio” como um atestado da loucura e de uma suposta periculosidade. O conjunto de falas traz os comportamentos dos autuados como elementos a serem aferidos como indicativos de possíveis evidências de uma loucura aparente. Caponi1616 Caponi S. Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. pontua que quando a saúde se reduz exclusivamente à aplicação de instrumentos de observação, medição e cálculo, caímos no velho sonho positivista de tentar antecipar ou corrigir perturbações ou desvios, de acordo com parâmetros cientificamente estabelecidos sobre como é correto (normal) pensar, sentir e atuar1616 Caponi S. Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012..

Aferimos uma série de elementos que resgatam pressupostos da psiquiatrização da loucura nas decisões em relação às ACs. Nessa direção, verificamos que tal questão está diretamente associada à noção do indivíduo louco como perigoso e, assim, um risco para a população. A problemática do risco parece ser elemento determinante para operação do dispositivo da segurança em um exercício de controle sobre a anormalidade na intersecção judiciário-psiquiatrização, justificando o aprisionamento de pessoas com transtornos mentais.

O risco como dispositivo de captura da loucura e privação da liberdade

Foucault99 Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes; 2009. pontua que o risco é uma forma de intervenção do sistema disciplinar que tenta anular pura e simplesmente a doença em todos os sujeitos em que ela se apresenta, ou ainda impedir que os sujeitos que estejam doentes tenham contato com os que não estão. Para os participantes desta pesquisa, a ideia de reincidência parece estar atrelada à ideia de risco e, ao emergir nos discursos dos autuados, promove quase que inevitavelmente uma tendência à privação de liberdade.

A reincidência, independentemente do crime que você praticar, ela justifica a prisão preventiva.

(Juiz 1)

[...] naquela situação em que só o ponto dele é divergente, que todos os outros caminham convergindo para uma situação de flagrância, de cometimento de crime, somado a antecedentes, somado a uma conduta que não tem uma ocupação lícita, aí sim a preventiva, no meu modo de ver, é o melhor caminho. [...] às vezes eu tenho vontade de manter o cara preso porque, na minha opinião – e talvez a minha opinião seja errada –, mas colocá-lo em liberdade é muito prejudicial a ele, então nos casos dependentes químicos, usuários de crack

(Juiz 2)

[...] na audiência de custódia eu posso, imediatamente olhando, igual aquele rapaz, eu não o soltaria, se a esposa não tivesse lá pra receber e ele não se comprometesse, eu preferiria que ele ficasse preso, eu decidiria pela prisão dele. Porque ele estava oferecendo sério risco pra ela. [...] “O senhor não gostaria de se tratar?”. “Ah, eu gostaria, mas eu não sou tão dependente assim”. Então não adianta. Esse aí não adianta encaminhar, tá perdido. Vai pra rua, se for um crime leve e vai cometer outros delitos, deslizes. Então dali, para aferir a insanidade, é muito difícil e é muito raro.

(Juíz 5)

A fala do juiz 1 traz que a reincidência como causa de preocupação independe do crime cometido pelo autuado, indicando que reincidir na produção de uma conduta pensada como criminosa pode ser uma métrica quase inquestionável para presença de risco e, assim, há necessidade de contenção. A narrativa do juiz 2 faz duas afirmações que merecem atenção: a de que os “antecedentes” são “comprometedores” e que a de que, aliada à “ausência de uma ocupação lícita”, esses antecedentes também indicam que o autuado oferece “risco” de voltar à prática de crimes. Por fim, o juiz 3 relata uma situação na qual apostou na possibilidade de uma análise do “risco”, por meio de um olhar imediato sobre o autuado. Sua postura indica que o “risco” legitimaria o aprisionamento, pois aparece direcionado à vítima.

Questões que envolvem cálculos e probabilidades atravessam a análise presente nos discursos dos participantes como modo de aferir e antecipar-se ao risco que o sujeito pode representar aos outros, prevenindo-o mediante, por exemplo, uma prisão preventiva, como pontua o juiz 1; bem como realizar as mesmas análises em função de uma ideia do criminoso e do louco como um risco para si, como vê-se na fala do juiz 2, apontando a manutenção de uma prisão como estratégia de prevenção ao uso de drogas.

Tais falas remetem às discussões de Caponi1414 Caponi S. O DSM-V como dispositivo de segurança. Physis. 2014; 24(3):741-63. e Foucault99 Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes; 2009., nas quais é apontado que as sociedades liberais e neoliberais estão interessadas em antecipar e prevenir todas as formas possíveis de perigo. Assim, será em torno da ideia de risco, entendida como quantificação probabilística de tudo aquilo que pode vir a representar um perigo ou ameaça para a vida das populações, que se articula esse curso. Porém, precisamente em torno ao eixo segurança-prevenção-risco. Caponi1414 Caponi S. O DSM-V como dispositivo de segurança. Physis. 2014; 24(3):741-63. reitera que o objetivo último da biopolítica será instalar para cada risco ou perigo mecanismos de segurança que têm certas semelhanças e certas diferenças com os mecanismos disciplinares.

O juiz 5 discorre sobre uma necessidade de o autuado afirmar que ele oferece risco. Ao pedir que ele se assuma como usuário de drogas ou como alguém que necessita de tratamento, ela parece colocar o “tratamento” como uma moeda de troca, sendo que, no caso de uma negativa por parte do sujeito, estaria este responsável pelo seu próprio aprisionamento, como prevenção aos riscos que pode oferecer a si e aos outros. Segundo Foucault99 Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes; 2009., esse cálculo dos riscos mostra logo que eles não são os mesmos para todos os indivíduos, em todas as idades, em todas as condições, em todos os lugares e em todos os meios. Dessa forma, o autor aponta que há riscos diferenciais, hierarquizando probabilidades de risco a fim de identificar o que pode ser perigoso.

Considerações finais

Neste artigo, problematizamos os efeitos da psiquiatrização da loucura presente nos discursos de autoridades judiciais diante das pessoas com transtorno mental em conflito com a lei, autuadas e detidas em flagrante delito e apresentadas às ACs. Também refletimos sobre como a loucura tem sido percebida nesse novo dispositivo jurídico que tem como premissa o desencarceramento.

Por meio do eixo “psiquiatrização da AC: o louco em privação de liberdade”, discutimos sobre a psiquiatrização da loucura dentro das ACs mediante um discurso permanente sobre a necessidade de uma perícia médica que ateste o transtorno. Nessa direção, a ideia da prisão como “tratamento” se mostrou imperiosa na fala dos entrevistados. Perante esse duplo estigma, ora assujeitado pelo saber jurídico, ora regulado pelo saber médico, a loucura parece não ser pensada como possibilidade de desencarceramento dentro das ACs.

Já no eixo “risco como dispositivo de captura e privação da liberdade”, problematizamos como os participantes da pesquisa ainda apresentam ideias da loucura ligadas a um risco para si e para os outros. Analisamos também como o risco, como dispositivo, configura-se em estratégia para fundamentar decisões de manutenção do aprisionamento de pessoas com transtorno mental em conflito com a lei nas análises nas ACs.

Em nenhuma das falas dos entrevistados foram mencionados dispositivos extra-hospitalares ou ambulatoriais, conforme aponta a Lei nº 10.216/2001, que assegura os direitos civis e humanos das pessoas em sofrimento mental, bem como garante o cuidado comunitário1818 Brasil. Presidência da República. Lei nº 10.216, de 6 de Abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Brasília: Casa Civil; 2001.. Por esse motivo, essa lei é considerada um marco legal da Reforma Psiquiátrica Brasileira, compondo um conjunto de estratégias para acompanhar e oferecer assistência à saúde às pessoas em sofrimento mental.

Nessa direção, concluímos que a psiquiatrização da loucura, ao extrapolar as ciências da saúde em direção à ciência jurídica, produz nas ACs o que Foucault99 Foucault M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes; 2009. chamou de controle dos anormais. Nesses termos, ainda que a AC possa ser um interessante dispositivo criado para o desencarceramento, garantia do direito à liberdade e combate ao punitivismo, quando a loucura entra em cena e percorre o território, encontra-se com os soberanos (juiz e médico), o que dá a impressão de já haver um destino traçado, com a prisão embasada por pressupostos psiquiatrizadores e sob o signo do risco.

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Editado por

Editora
Rosana Teresa Onocko Campos
Editora associada
Simone Mainieri Paulon

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Mar 2021
  • Aceito
    04 Nov 2021
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