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Análise política da atuação do Conselho Nacional de Saúde na construção da política de saúde no Brasil no período de 2014-2017

Análisis político de actuación del Consejo Nacional de Salud en la construcción de la política de salud en Brasil en el período de 2014/2017

Resumos

Objetivou-se analisar a atuação do Conselho Nacional de Saúde no núcleo do processo decisório da política de saúde entre 2014-2017. A análise foi baseada nos projetos políticos em disputa na arena política da saúde e nos projetos dos governos de Dilma e de Temer. Com a mudança no projeto de governo, o Conselho passou a atuar pela via judicial, além de pelas vias social e parlamentar, passando do alinhamento (crítico) à franca oposição, até sua neutralização com o boicote da participação do Conselho nas discussões de pautas da política de saúde nos anos 2016-2017. Embora não tenha tido poder suficiente para mudar a correlação de forças em torno do desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS), o Conselho figurou-se em um bloco político de resistência e de enfrentamento em defesa do SUS constitucional.

Palavras-chave
Conselho Nacional de Saúde; Política de saúde; Participação social; Análise política em saúde


El objetivo fue el análisis de la actuación del Consejo Nacional de Salud en el núcleo del proceso de decisión de la política de salud entre 2014-2017. El análisis tuvo como base los proyectos políticos en disputa en la arena política de la salud y en los proyectos de los gobiernos Dilma y Temer. Con el cambio en el proyecto de gobierno, el Consejo pasó a actuar, además de en las vías social y parlamentaria, en la vía judicial, pasando del alineamiento (crítico) a la franca oposición, hasta su neutralización, con el boicot de la participación del Consejo en las discusiones de pautas de la política de salud en los años 2016-2017. Aunque no haya tenido poder suficiente para cambiar la correlación de fuerzas alrededor del desmontaje del Sistema Brasileño de Salud (SUS), el Consejo se configuró como un bloque político de resistencia y de enfrentamiento, en defensa del SUS constitucional.

Palabras clave
Consejo Nacional de Salud; Política de salud; Participación social; Análisis político en salud


This study aimed to analyze the role of the National Health Council in the core of the decision-making process of health policy in the period 2014-2017. The analysis was based on the political disputed projects in the health policy sphere and on the government projects of former Presidents Dilma Rousseff and Michel Temer. Due to the government’s project change, in addition to the social and parliamentary channels, the Council started to act through the judicial channel as well, moving from critical alignment to outright opposition until its neutralization, with the Council’s participation boycott in the health policy agenda discussions in the period 2016-2017. Although it did not have enough power to change the balance of forces surrounding the deconstruction of the Brazilian National Health System (SUS), the Council was part of a political bloc of resistance and confrontation in defense of the constitutional SUS.

Key-words
National Health Council; Health policy; Social participation; Political analysis in health


Introdução

O Conselho Nacional de Saúde (CNS) configura-se em um espaço privilegiado para a articulação de atores, ideias e propostas para a área da Saúde. Desde o final da década de 199011 Côrtes SMV. Uma síntese do debate sobre os mecanismos e as dinâmicas participativas no sistema único de saúde. In: Côrtes SMV, organizador. Participação e saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009. p. 199-205. e atualmente22 Paim JS. Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos. Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):1723-8.

3 Silva BT, Lima IMSO. Análise política da composição do Conselho Nacional de Saúde (2015/2018). Physis. 2019; 29(1):1-25.
-44 Silva BT, Lima IMSO. 15a Conferência Nacional de Saúde: um estudo de caso. Saude Soc. 2019; 28(3):97-114. esse colegiado tem demonstrado um ativismo significativo, mobilizando entidades, movimentos sociais e representações de abrangência nacional. Os estudos sobre o CNS, no entanto, são poucos55 Silva BT, Lima IMSO. Conselhos e conferências de saúde no Brasil: uma revisão integrativa. Cienc Saude Colet. 2021; 26(1):319-28. e se concentram no tema específico da vigilância sanitária66 Lucena RCB. Articulação entre o Conselho Consultivo da Anvisa e o Conselho Nacional de Saúde: uma análise no período de 2000 a 2010. Physis. 2015; 25(2):381-99., da sua composição e sua dinâmica interna77 Côrtes SMV. Sistema Único de Saúde: espaços decisórios e a arena política de saúde. Cad Saude Publica. 2009; 25(7):1626-33., da sua atuação diante das recomendações das organizações financeiras internacionais88 Correia MVC. O Conselho Nacional de Saúde e os rumos da política de saúde brasileira: mecanismos de controle social frente às condicionalidades dos organismos financeiros internacionais [tese]. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2005. e da luta por reconhecimento das diferenças étnico-raciais nessa arena política99 Morais DS. Diferenças étnico-raciais e políticas de reconhecimento: perspectivas a partir do Conselho Nacional de Saúde e do Conselho Nacional de Educação [tese]. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos; 2016.. Dessa forma, identificou-se a ausência de pesquisas sobre a atuação do Conselho Nacional de Saúde no espaço de disputa do processo decisório da política de saúde.

Diante dessa lacuna, este estudo buscou responder às seguintes perguntas: Como se deu a atuação política do CNS no núcleo do processo decisório da política de saúde no período entre 2014 e 2017? Que projetos de saúde foram assumidos pelos atores que disputam a política de saúde? Que estratégias foram adotadas pelo conselho para disputar o direcionamento do projeto de saúde adotado no país? Portanto, o objetivo deste artigo consiste em analisar a atuação política do Conselho Nacional no núcleo do processo decisório da política de saúde.

Referencial teórico

Frações dos projetos em disputa no setor saúde são assumidos e traduzidos pelo núcleo do poder decisório estatal, ou seja, os poderes executivo, legislativo e judiciário, mediante uma permanente tensão dos componentes governamentais (propósito e projeto de governo), socioestatais (por exemplo, o CNS) e de mercado, com diferentes capacidades de direcionar o vetor de forças para os projetos em disputa com base em sua práxis concreta. Dessa forma, a análise política1010 Testa M. Pensamento estratégico e lógica de programação. O caso da saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 1995. da atuação do CNS supõe considerar a coerência do conselho como uma organização testiana, com os projetos disputados no âmbito do setor saúde, bem como os tensionamentos provocados nos propósitos e no projeto de governo por onde passa necessariamente a construção da política de saúde. Essa análise se funda nos elementos do pensamento estratégico de Mário Testa, no qual o poder é a categoria central.

Os projetos de governo explicitados no Brasil entre os anos de 2014 e 2017 estão plasmados no programa de governo da presidente Dilma Rousseff, apreciado nas eleições de 2014, e no projeto de governo do presidente Michel Temer, apresentado aos dirigentes de partidos políticos alinhados com o então Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), ainda em 2015, quando ele era vice-presidente da República.

Os alicerces do programa de governo “Mais Mudanças, Mais Futuro” de 2014 pautavam o equilíbrio entre o crescimento econômico e social, e afirmavam o compromisso com o fortalecimento e o aprimoramento do SUS. Enquanto o programa de governo de 2015, denominado “Uma Ponte para o Futuro”, vigente até o final de 2018, apontava como diretriz prioritária a recuperação da economia mediante o ajuste fiscal das despesas públicas primárias, propondo a criação de um novo regime fiscal pautado na desvinculação constitucional dos gastos com a saúde e a educação.

Nessa análise política, o setor saúde é admitido não como um conjunto de instituições, mas como um espaço social de disputa de poder em permanente reconfiguração, gerado pela relação entre atores sociais integrantes tanto da sociedade política quanto da sociedade civil, no momento em que desenvolvem uma ação setorial1010 Testa M. Pensamento estratégico e lógica de programação. O caso da saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 1995..

No âmbito desse setor, Paim1111 Paim JS. Reforma Sanitária Brasileira: avanços, limites e perspectivas. In: Matta GC, Lima JCF. Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. p. 91-122. identifica três projetos em disputa: o mercantilista, que admite a saúde como mercadoria e o mercado como a melhor opção para suprir as demandas e necessidades de saúde dos indivíduos; o projeto da reforma sanitária, cujo objetivo precípuo é a melhoria das condições de vida da população brasileira, alcançada mediante uma reforma social pautada na democratização da saúde, do Estado e da sociedade e que defende o SUS constitucional, um de seus principais resultados concretos; e o projeto revisionista ou racionalizador defendido por aqueles que preferem flexibilizar os princípios e diretrizes do SUS, ajustando-os aos interesses econômicos, estatais e das classes hegemônicas.

Nessa perspectiva, o CNS assume a característica de uma organização testiana,1212 Testa M. Vida. Señas de Identidad (Miradas al Espejo). Salud Colect. 2005; 1(1):33-58. na qual um agrupamento de indivíduos plurais se reúne para alcançar algum objetivo em torno do qual geram ações baseadas na decisão da maioria, com pelo menos um propósito comum de interferir na política de saúde. Esta entendida como uma ação ou omissão do Estado, uma resposta social diante dos problemas de saúde e seus determinantes1313 Paim JS, Teixeira CF. Política, planejamento e gestão em saúde: balanço do estado da arte. Rev Saude Publica. 2006; 40 Esp:73-8..

A atuação política do CNS se projeta no espaço do processo decisório do Estado brasileiro, constituído pelos poderes da República, tensionando os componentes governamentais a assumir o projeto de saúde adotado pelo CNS. O sentido para o qual aponta o feixe de forças políticas, se para um projeto mercantilista, revisionista ou o da Reforma Sanitária Brasileira, é resultante da síntese de múltiplas lutas travadas pelos diferentes atores em cada momento historicamente determinado.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa qualitativa do tipo estudo de caso1414 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13a ed. São Paulo: Hucitec; 2013. desenvolvida no CNS. A atuação política do CNS foi analisada em um recorte temporal de quatro anos. A escolha do período de 2014 a 2017 foi estratégica, uma vez que corresponde a um ano que antecedeu a crise política deflagrada pelo processo de impeachment da presidente da República Dilma Rousseff e a um ano de governo do presidente Michel Temer que lhe sucedeu.

Foram entrevistados 27 conselheiros, sendo 22 pertencentes à gestão 2015/2018 e cinco que foram conselheiros no período 2012/2015. Os conselheiros foram identificados pelas seguintes categorias: representantes estatais (governamentais) e representantes societais (mercado e social). São considerados como atores estatais os representantes governamentais da gestão em saúde. Enquanto os atores societais de mercado são aqueles da categoria de prestadores de bens e serviços de saúde. Já os atores societais sociais foram denominados pelas seguintes categorias: entidades de trabalhadores e profissionais de saúde; trabalhadores de outras áreas; entidades de portadores de patologia e Pessoa com Deficiência (PcD); entidades de gênero e étnicas; associações comunitárias, movimentos sociais e Organizações Não Governamentais (ONG); e a categoria de representações religiosas1515 Côrtes SMV. Conselho Nacional de Saúde: histórico, papel institucional e atores estatais e societais. In: Côrtes SMV, organizador. Participação e saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009. p. 41-71..

Foram selecionados conselheiros de todas as categorias e que exerceram um papel destacado no colegiado, de acordo com o registro nas atas das reuniões do CNS. Dessa forma, os conselheiros entrevistados da gestão 2015/2018 foram os seguintes: um representante do mercado, dois governamentais, sete atores sociais da categoria de profissionais e trabalhadores da saúde, sendo um deles o presidente do conselho, três do segmento de trabalhadores de outras áreas, quatro dos portadores de patologia, quatro da categoria de associações comunitárias e um representante da categoria étnica e de gênero. Quanto aos entrevistados da gestão 2012/2015 foram selecionados: a presidente do conselho, dois representantes do Ministério da Saúde (MS), sendo um deles o próprio ministro, um integrante do Fórum das Entidades Nacionais de Trabalhadores da Área da Saúde (Fentas) e um do Fórum de Usuários.

As entrevistas semiestruturadas foram guiadas por dois roteiros, sendo um elaborado para os representantes governamentais e outro, para os demais conselheiros. As perguntas dirigidas aos atores estatais eram relacionadas ao projeto do MS pensado e realizado para o setor e ainda à análise desses atores sobre a atuação do conselho e sua relação com ele na conjuntura brasileira de 2014 a 2017. As questões colocadas para os representantes societais diziam respeito à compreensão desses atores sobre a atuação do CNS, considerando o período analisado.

A produção de dados também ocorreu com base nas notícias produzidas pelo conselho e publicadas no seu site, entre 2014 e 2017, e ainda nas 49 atas das reuniões ordinárias e extraordinárias do mesmo período. Os dados foram organizados em duas matrizes, sendo uma de notícias e a outra de informações provenientes das atas. A coleta de dados foi realizada entre setembro de 2017 a janeiro de 2018.

Após a leitura do conteúdo das entrevistas, das atas e das notícias, foram extraídos trechos que faziam alusão à atuação política do CNS e reunidos em matrizes no Excel, formando o corpus de análise pelo qual foram extraídas as unidades de registro, depois de repetidas leituras1616 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011.. A exploração desse material possibilitou reunir as frases que expressavam o núcleo de compreensão do texto em torno de categorias analíticas adotadas no referencial teórico deste trabalho (projetos em disputa no setor saúde - mercantilista, revisionista e do SUS constitucional; projetos de governo - programas dos governos Dilma e Temer; e relação com os poderes da República - núcleo decisório). Dessa forma, procedeu-se à análise política da atuação do Conselho Nacional na construção da política de saúde no Brasil.

O projeto foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa, sob o parecer de número 2.235.550 e cumpriu os aspectos éticos previstos na Resolução 466/2012 do CNS.

O ano de 2014 (final do governo Dilma I)

O último ano do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff e início da gestão de Arthur Chioro no MS foi marcado pelo relativo alinhamento de posições entre o CNS e o MS. Em diversos momentos, O CNS solicitou esclarecimentos e fez recomendações ao MS, à Secretaria de Planejamento e Orçamento (SPO) e à presidência da República sobre a execução orçamentária e financeira apresentada nos Relatórios Quadrimestrais de Prestação de Contas (RQPC). Apesar de o empenho e a liquidação do investimento público em saúde ter se mantido de forma irregular, inclusive para as ações e serviços públicos de saúde, e ter ocorrido contingenciamento de recursos orçamentários, os Relatórios Anuais de Gestão (RAG) 2013, 2014 e 2015 referentes à gestão do MS no período analisado do governo Dilma, mesmo diante de fortes tensões, foram aprovados pelo plenário do conselho com ressalvas (CNS, ata 258, junho 2014; ata 260 agosto, 2014; ata 263 novembro de 2014; ata 275 novembro de 2015; ata 283 de julho de 2016). A confiança de parte do colegiado na coalizão política à frente do governo contribuiu para que o conselho assumisse um posicionamento político tolerante diante da omissão do governo quanto ao contínuo subfinanciamento do SUS.

[...] Era outro momento político do Conselho Nacional, que se achava que a gente estava dentro do governo, que era nosso e a gente estava no controle social morno. A gente ainda estava deixando[...] Muitos retrocessos que agora se acirraram começaram tempos atrás em outros governos, tempos atrás se aprovava o RAG com ressalvas porque se achava que isso era o mais adequado, não vamos contrapor o governo porque é o nosso governo, olha o que deu?

(Entrevistado 6 - Social)

A atuação do CNS em torno da pauta do financiamento público da saúde extrapolou a relação com o MS, na medida em que entidades do colegiado protagonizaram, junto com outros movimentos sociais, o projeto “saúde + 10”, que previa 10% das Receitas Correntes Brutas (RCB) da União para a saúde. Dessa forma, acionava-se o mecanismo de mobilização popular e tensionava-se o legislativo com o Projeto de Lei de iniciativa Popular (PLP) 321/13. Essa proposta foi potente para unificar os interesses dos representantes governamentais com as entidades sociais do conselho. As falas a seguir ilustram essa dinâmica:

[...] Nesse período, a posição do CNS é muito voltada para o Projeto de Lei de Iniciativa Popular, que foi o ponto alto da atuação do Conselho, a coleta de assinaturas, a entrega das assinaturas para o presidente da Câmara e o acompanhamento desse processo [...] Então, a questão do financiamento pautou muito a atuação do CNS nesse momento.

(Entrevistado 10 - Social)

No âmbito da Câmara e do Senado Federal, o projeto de saúde para a sociedade brasileira com maior força política se tornou cada vez mais proeminente nas posições tomadas pelo legislativo federal. Em abril daquele ano, a Câmara dos Deputados, sob a presidência do pmdbista Henrique Eduardo Alves, retomou o debate sobre o financiamento público da saúde. No Congresso Nacional, o CNS e demais entidades nacionais e movimentos sociais envolvidos no movimento “Saúde +10” reivindicaram que o PLP n. 321/13 fosse desapensado, ou seja, separado de outros projetos e, independente, ganhasse caráter de urgência na tramitação.

Paradoxalmente, a partir de 2013, a coalizão política que compunha as casas legislativas encontrou viabilidade política para dar uma notável agilidade ao projeto do orçamento impositivo, proposto no ano 2000 e transformado na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 358/2013. Esse projeto previa o repasse de 1,2% das Receitas Correntes Líquidas (RCL) da União para as emendas parlamentares, e 50% delas deviam ser aplicadas na área da Saúde e deduzidas do orçamento federal para o MS. Esse projeto ganhou um adendo, até mesmo de maior impacto para o setor, pois estabelecia ainda que 15% das RCL da União fossem destinadas para a saúde de forma escalonada em quatro anos. Na prática, a aprovação da emenda do orçamento impositivo representava a redução do financiamento para o SUS já que colocava as obrigações da União em patamares inferiores ao estabelecido na Lei 141/2012, vigente no país.

As estratégias políticas adotadas pelo CNS em 2014, com vistas a interferir na política de saúde, foi a negociação com o poder executivo em torno do financiamento público da saúde, a participação em audiência do poder judiciário, defendendo o acesso universal e gratuito no SUS e o monitoramento dos projetos relacionados à saúde em tramitação no plenário e nas comissões do Congresso Nacional. Com base na análise concreta do cenário das casas legislativas, o CNS identificou que algumas decisões foram tomadas em espaços diferentes daqueles formalmente instituídos, como as comissões temáticas e os plenários da Câmara Federal. Os acordos entre parlamentares da bancada da saúde e os pactos entre líderes de partidos políticos passou a exigir dos conselheiros táticas mais aprimoradas, que vão desde aquelas de participar das audiências públicas, estabelecer o diálogo com as comissões, solicitar esclarecimentos, até participar das reuniões das comissões, fazer negociação, realizar manifestações para fortalecer a pressão popular e analisar os vetores de poder em cada momento determinado (CNS, ata 254 de fevereiro de 2014).

O projeto mercantilista da saúde certamente foi fortalecido com a captura dos poderes executivo e legislativo pelo poder econômico, mediante o financiamento empresarial da campanha eleitoral de 2014. Afinal foram quase 55 milhões de reais doados pelas empresas de planos de saúde para candidatos de diversos partidos e de todos os cargos pleiteados, inclusive à presidência da República. A presidente reeleita recebeu R$ 11 milhões da Amil e da Qualicorp; os candidatos ao mesmo cargo, Aécio Neves do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e Marina Silva do Partido Socialista Brasileiro (PSB), também receberam doações das empresas de planos de saúde. Outros políticos influentes, tais como Eduardo Cunha, que se tornaria presidente da Câmara dos Deputados, receberam R$ 250 mil do Bradesco Saúde; e partidos políticos que se destacaram na quantidade de projetos relacionados à saúde também foram beneficiados pelo mercado da saúde1717 Scheffer M, Bahia L. A saúde nos programas de go¬verno dos candidatos a Presidente da República do Brasil nas eleições de 2014: notas preliminares para o debate [Internet]. 2014 [citado 3 Maio 2016]. Disponível em: http://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2014/07/proposta-sa%C3%BAde-presidenciaves-2014.pdf
http://cebes.org.br/site/wp-content/uplo...
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O ano de 2015

Ainda durante o período eleitoral, o poder executivo apresentou à Câmara dos Deputados uma medida provisória n. 656/2014 que tratava de incentivos fiscais para as áreas de informática, construção civil e investimentos em energia eólica. Nessa medida foram acrescentados outros artigos pelo Congresso Nacional, inclusive um que autorizava a entrada do capital estrangeiro na saúde. Logo no início do ano seguinte, essa medida foi transformada na Lei de n. 13.097/2015, admitindo a participação de empresas e do capital estrangeiro nas ações e cuidados à saúde no Brasil, sem as restrições previstas na Lei Orgânica da Saúde (LOS) e extinguindo a obrigatoriedade das entidades internacionais estarem submetidas à autorização e ao controle do MS para exercerem suas atividades1818 Brasil. Presidência da República. Lei nº 13.097, de 19 de Janeiro de 2015. Dispõe sobre a entrada de capital estrangeiro no setor saúde. Diário Oficial da União. 20 Jan 2015..

No plenário do Conselho, essa pauta acirrou as disputas entre os segmentos. Enquanto os representantes do MS defenderam a medida argumentando que se tratava de regulamentar uma prática já existente no país e de regular e dar condição de concorrência às empresas brasileiras, os representantes do mercado, em consonância com a proposta, defenderam que isso poderia melhorar a assistência à saúde no Brasil, já que aumentaria o recurso para essa área. Os demais segmentos se posicionaram contra a proposta pois além de a medida ser inconstitucional, o capital estrangeiro fortaleceria o mercado da saúde e não a saúde como direito, sendo esse o posicionamento que prevaleceu no colegiado, explicitado na recomendação deliberada pelo plenário com críticas e alertas à proposta (CNS, ata 265 de janeiro de 2015; ata 267 de março de2015, disponíveis em: http://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2014/12dez18_Nota_medida_prpvisoria_656_2014_4cnstt.html). A fala a seguir aponta a disputa no plenário em torno dessa proposta:

[...] A minha postura de prestigiar, de valorizar, de respeitar o CNS não fez com que o conselho fosse mais bonzinho, pegasse mais leve comigo não, pelo contrário, o posicionamento foi muito duro, muitos questionamentos para mim ou para as decisões que a Dilma tomou, por exemplo, de não vetar aquele artigo do capital internacional. Eu tive que ir para o conselho e discutir, uma discussão dura, mas me posicionando em nome do governo.

(Entrevistado 4 - Governo)

Nessa perspectiva, apesar de o programa de governo “Mais Mudanças, Mais Futuro” indicar a direcionalidade da política de saúde para o fortalecimento do SUS, o executivo passou a ser constrangido pelas pressões oriundas do mercado, expressas também nas medidas adotadas pelo Congresso Nacional que beneficiaram o setor privado.

Em 2015, além da mobilização em torno da realização da 15ª Conferência Nacional de Saúde44 Silva BT, Lima IMSO. 15a Conferência Nacional de Saúde: um estudo de caso. Saude Soc. 2019; 28(3):97-114., uma das principais bandeiras do CNS continuou sendo a luta por mais financiamento para o SUS. No intuito de reunir forças políticas em torno dessa pauta, foi lançada, no CNS, a Frente em Defesa do SUS (abraSUS) que aglutinou entidades sociais, governamentais e parlamentares. O manifesto da abraSUS apontava um conjunto de alternativas para ampliar as receitas para a política de saúde. Contudo, suas propostas se distanciaram daquelas que efetivamente prosperaram nos poderes da República.

A PEC 87/2015, de autoria do governo federal, previa estender para o ano de 2023, a DRU, que estaria em vigor até o final de 2015. Entretanto, a essa proposta foram apensadas outras do Senado (PEC 143/2015) e da Câmara (PEC 4/2015), sendo ampliado de 20% para 30% o percentual dos tributos federais que seriam desvinculados do orçamento da seguridade social para uso arbitrário do governo, criando ainda esse dispositivo para os estados, os municípios e o Distrito Federal. Diante da estimativa da Cofin/CNS de retirada de 44,6 bilhões de reais do SUS, caso a referida PEC da Desvinculação das Receitas tivesse vigorado em 2016, o plenário do CNS aprovou uma moção de repúdio a essa proposta e entregou ao Senado. Em consonância com o programa de governo “Uma ponte para o Futuro” do presidente interino Michel Temer, que previa a desvinculação constitucional dos gastos para a saúde e educação, a medida foi aprovada (CNS, ata 281 de maio de 2016, disponível em: http://www.conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2016/04abr27_Conselho_alerta_Senado_PEC143.html).

Pós-impeachment da presidente Dilma Rousseff

Na percepção dos conselheiros, a troca de governo repercutiu no setor saúde, no sentido de dar celeridade a um processo que já estava em curso no país. De acordo com os entrevistados, além da menor permeabilidade da nova coalizão governativa à participação da sociedade, o histórico subfinanciamento do SUS foi agravado, revelando, com mais clareza, a face do projeto de saúde assumido pelo governo. No cenário de instabilidade democrática, o CNS realizou um ato público no MS, alertando para a imprescindibilidade da democracia para o SUS.

[...] para mim é como se fosse um contínuo, o mesmo retrocesso de sucateamento do SUS. Eu acho que o golpe acelerou. [...] Mas eu acho que de qualquer forma a gente tinha espaço de diálogo [...] o golpe não, não tem conversa, o que define lá, está definido [...] não há possibilidade de diálogo.

(Entrevistado 5 - Social)

Durante o governo interino, o executivo federal submeteu ao Congresso a PEC 241/2016 que estabelece um teto para o gasto público federal especificamente para as despesas primárias, o que inclui a seguridade social, durante um período de vinte anos. Propositadamente, a PEC 241/2016 não determina um limite de gasto com a dívida pública. Na prática, essa medida congela o financiamento público da União, inclusive para a saúde, até o ano de 2036, com base no piso aplicado em 2016, garantindo que haja mais recursos para amortizar a dívida.

A PEC 241/2016 tornou-se uma Emenda Constitucional (EC 95) ainda naquele ano. Vale relembrar que a proposta plasmada na EC 95/2016 estava prevista no programa de governo de Temer denominado de “Uma Ponte para o Futuro”. A base do argumento explicitado pelo Ministério da Fazenda no debate sobre o tema, na reunião ordinária do CNS, foi de que seria necessário controlar a despesa pública para conter a crise econômica (CNS, ata 287 de novembro de 2016). Essa investida do executivo brasileiro em torno do desfinanciamento do SUS, para além do seu histórico subfinanciamento, aponta uma mudança no projeto de saúde assumido e executado explicitamente pelo MS que passou a ser alinhado aos interesses do mercado.

Esse aspecto de priorizar o equilíbrio fiscal em detrimento do investimento na área social foi trazido na fala dos entrevistados. Os conselheiros indicaram ainda que se tratava da implementação do programa de governo da coalizão política à frente do Estado brasileiro, e avaliaram que essa nova legislação traz efeitos deletérios para o setor público de saúde.

[...] o Temer e o Meireles vêm aprovar a ainda mais radicalizada [...] política chamada de austeridade que não tem nada de austero, pelo contrário, são políticas bastante generosas quanto ao capital financeiro, quanto à remuneração dos juros dos empréstimos da dívida pública, mas que são extremamente danosas para as políticas sociais de modo geral, inclusive para as políticas de saúde. A emenda 95 do teto dos gastos públicos será a morte do SUS [...] se não mudarem essa política nós estamos assistindo o fim do SUS, enquanto projeto de sistema universal.

(Entrevistado 10 - Social)

[...] ele está realizando um programa de governo que não foi aprovado nas urnas [...] o golpe foi dado para mudar o plano de governo, foi para isso que existiu esse golpe parlamentar [...]

(Entrevistado 8 - Social)

A partir da aprovação da EC 95/2016, além das estratégias de luta adotadas nos anos anteriores, o CNS recorreu à judicialização da política de saúde. A aprovação dessa emenda representa uma perda de mais de 430 bilhões de reais para a saúde até 2036, de acordo com as estimativas da Cofin/CNS. Desse modo, além de mobilizar diversas entidades e de realizar marchas em defesa do SUS, com a presença de milhares de pessoas, de buscar alianças com os parlamentares que votaram contra a EC 95, de participar dos debates no Congresso Nacional, mostrando o impacto dessa medida para a saúde, e de pressionar a casa legislativa com ato público de vigília nos dias de votação dessa pauta, as entidades do CNS entraram como amici curiae de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI – 5.658) no STF para barrar a implementação dessa emenda.

O CNS e a Frente em Defesa do SUS adotaram, ainda, a estratégia de mobilizar a sociedade para apoiar um manifesto que pretende coletar milhões de assinaturas para fortalecer o posicionamento da sociedade contra a EC 95/2016, no julgamento da ADI que tramita no STF. A fala abaixo evidencia esse processo:

[...] tem os amigos e amigas da causa que é um documento que vai ser mandado para o STF. Então precisamos de 3 milhões de assinaturas para um documento que pode barrar a EC n. 95 que congela investimentos [...] até 2036, investimentos da saúde, da educação, da assistência social.

(Entrevistado 16 - Social)

Diante do protagonismo dos poderes da República (legislativo e executivo) em torno do desmonte do SUS, o conselho passou a exercer um maior ativismo político e adotar um posicionamento de resistência e de enfrentamento. De acordo com os entrevistados, esse processo está relacionado à mudança de governo, como indica a fala abaixo:

[...] o que aconteceu foi que politizou muito, até pela forma truculenta do nosso ministro da saúde, ele não é um cara simples de se tratar.

(Entrevistado 1 - Mercado)

Em 2016 aconteceu a conferência de comunicação em saúde e foram convocadas mais duas conferências temáticas, a de saúde da mulher e a de vigilância em saúde. Além do ativismo político do CNS pela via social, o colegiado confrontou decisões do parlamento, do executivo federal e do próprio MS na defesa do SUS constitucional. Entretanto, outros fatores marcaram profundamente a política de saúde como o golpe de Estado dado pelo parlamento brasileiro; a proposta do próprio MS de criar os planos de saúde individuais privados com pacote restrito de serviços, supostamente de baixo custo, o que beneficiaria diretamente as seguradoras de saúde; o retrocesso de políticas de saúde específicas, como a PNAB, que passou a induzir financeiramente a criação de equipes de saúde sem o profissional médico e prescindiu dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) na cobertura total da população não vulnerável1919 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. 22 Set 2017.; a decisão tomada na CIT de interromper o financiamento federal da modalidade da rede própria do Programa Farmácia Popular do Brasil; entre outros desafios colocados para o setor saúde. (disponível em: http://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2017/04abr18_Presidente_CNS_manifesta_Fim_rede_propria_farmacia_popular.html).

Diante desses aspectos, a relação entre os representantes governamentais e os conselheiros sociais no plenário do conselho tornou-se mais conflitante. Os primeiros passaram a criticar a estratégia do colegiado, denominando de combativa, arriscada e pouco resolutiva, e atribuindo a adoção dessa tática principalmente à troca de governo, já que houve retrocessos no governo anterior e a atitude do CNS permanecia a de negociação, de acordo com os entrevistados.

[...] algumas posições do próprio CNS eu questiono e falo isso com o presidente: cuidado com a estratégia que estão utilizando para não jogar a bacia de água fora com o menino dentro, porque isso pode levar ao fortalecimento da ideia dos “contra tudo”, isso somado, leva a uma destruição do SUS de maneira gradativa. Daqui a pouco a gente perde a capacidade de reação.

(Entrevistado 2 - Governo)

[...] radicalizou muito a discussão política com a ascensão desse novo pessoal que está no governo numa posição adversa a que é do Conselho [...] isto tem desgastado muito a nossa relação.

(Entrevistado 2 - Governo)

[...] é assim, eu sou contra tal coisa porque foi o ministro que mandou fazer [...] eu não vou discutir as questões básicas porque eu me coloco frontalmente contra tudo. Eu acho que este é um problema sério que não traz uma solução para os problemas básicos de saúde do país.

(Entrevistado 1 - Mercado)

[...] o pessoal acha que fazer uma nota de repúdio ou uma recomendação isso vai construir [...] E aí quando você vê a PEC do congelamento do orçamento nacional, isso é uma ameaça grave para a saúde. Então como é que nós vamos enfrentar isso? Você acha que a gente vai conseguir vencer isso só com a notinha de repúdio?

(Entrevistado 3 - Governo)

A tensão inerente da disputa de projetos divergentes entre o CNS e o MS no plenário do conselho naquele momento foi agravada pela debandada dos representantes de gestores estaduais e municipais. Compelidos pela dificuldade de financiamento, sobrecarregados de responsabilidades com a saúde da população de seus territórios e atraídos pela possibilidade de assumir uma postura mais complacente na implementação do SUS constitucional por meio da reformulação da PNAB 2017, esses atores recuaram circunstancialmente na defesa desse projeto.

Os representantes do ministério no conselho adotaram um discurso mais voltado para a flexibilização dos princípios do SUS diante da ofensiva do MS de minorar o sistema público de saúde e fortalecer o mercado. Desse modo, o projeto mercantilista do ministério adquire uma forma mais branda no conselho diante da intransigência dos atores sociais às pautas do governo para a saúde. As falas do representante governamental apontam a tentativa de ajuste das deliberações do CNS aos interesses estatais.

[...] Tem resoluções que o CNS aprovou aqui e que chegou lá e o ministro disse eu não vou aprovar. E eu disse: ministro no que nós podemos concordar? E eu trouxe de volta para eles, olha, a gente tem condições de ter a homologação do MS, se a gente modificar esse ponto, vocês acham que é possível? Essa é a negociação. Conseguimos fazer várias mudanças, têm outras que não conseguimos fazer mudança nem no conselho, nem lá no ministério, e está até hoje.

(Entrevistado 3 - Governo)

O CNS figurou-se em um espaço de articulação de entidades aliadas em torno da resistência ao desmonte do SUS no período analisado. Se por um lado a adoção de uma postura de enfrentamento serviu de empecilho para a concretização mais ampliada do projeto mercantilista na saúde, por outro tornou a atuação do CNS inócua no jogo político. A fala do entrevistado aponta o limite estreito para que a atuação política do conselho incida na política de saúde.

[...] o CNS tem um papel importante principalmente neste enfrentamento [...] se não é o CNS tudo estava mais fácil para quem pensa como anti-SUS. O CNS consegue colocar um pouco de limites nessas tentativas de modificar ao extremo o SUS e isso é mérito do conselho [...] se agisse com pouco mais de juízo político talvez tivesse mais força, mas chega a fazer de um jeito que chega a perder sozinho a batalha, chega a perder aliados.

(Entrevistado 2 - Governo)

[...] sem sombra de dúvidas o controle social foi e ainda é uma peça importante na construção do SUS [...] e principalmente agora neste momento extremamente adverso no processo de defesa do sistema. Eu diria hoje que é o maior ponto de resistência que nós temos na Esplanada, no país, diante de tudo que está acontecendo no Brasil.

(Entrevistado 18 - Social)

No cálculo político, a manutenção de certo grau de opacidade em torno da possibilidade de ganhar e de perder consiste em uma reserva necessária para a permanência de ambos os atores no jogo, pois, não sendo viável ganhar, se manter fora ou indiferente nas disputas é estratégico1010 Testa M. Pensamento estratégico e lógica de programação. O caso da saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 1995.. Nesse sentido, diante da ação deliberada dos atores sociais de assumir a direção do colegiado, ocupando espaços estratégicos nas atividades do conselho para que as deliberações do CNS coincidam com o posicionamento desses atores33 Silva BT, Lima IMSO. Análise política da composição do Conselho Nacional de Saúde (2015/2018). Physis. 2019; 29(1):1-25.; do CNS ter assumido um postura política intolerante na defesa do SUS constitucional; e do executivo federal da saúde ter assumido um modelo de gestão pouco afeito à participação da sociedade, a atuação do CNS na construção da política de saúde passou a ser prescindida pelo MS. A pesquisa de Cortes11 Côrtes SMV. Uma síntese do debate sobre os mecanismos e as dinâmicas participativas no sistema único de saúde. In: Côrtes SMV, organizador. Participação e saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009. p. 199-205. realizada no CNS, na conjuntura de 2005, evidenciou que a tomada do poder no conselho pelos atores sociais pode ter contribuído para a redução do poder do colegiado no processo decisório.

O boicote da participação do CNS, pelo MS, nas discussões de pautas impactantes na política de saúde nos anos de 2016 e 2017 não impediu que esse colegiado continuasse atuando na política de saúde pelas vias social, judicial e parlamentar. Obviamente que sem o apoio dos colegiados gestores que são os executores da política de saúde, capilarizados em todo o Brasil por meio dos secretários de saúde, e com o MS adotando e executando, com destacada eficiência, a mudança de projeto no setor saúde voltado para os interesses do mercado, tornou-se ainda mais distante a possibilidade de o CNS conseguir que, pelo menos, fragmentos do seu projeto de saúde fossem assumidos e traduzidos pelo Estado brasileiro.

Considerações finais

A análise da atuação política do CNS no âmbito dos poderes executivo (MS), legislativo (Congresso Nacional) e judiciário permite anunciar algumas afirmações. O Conselho Nacional acumulou forças políticas e desempenhou um papel contra-hegemônico no interior do núcleo do processo decisório, assumindo o projeto de saúde que defende o SUS constitucional. Dessa forma, pelo seu ativismo por diversas frentes de ação, o conselho se constituiu em um bloco político de resistência e enfrentamento constante dentro e fora do Estado, sendo uma barreira relevante e imprescindível, no cenário nacional, ao processo de desmonte do SUS. Embora não tenha tido poder suficiente para mudar a correlação de forças, cujo vetor apontava para o projeto mercantilista da saúde.

A principal estratégia de atuação política do conselho para influir na construção da política de saúde consistiu em mobilizar diversos recursos de poder, buscando ampliar o seu poder no núcleo do processo decisório da política de saúde. Pela via social, o conselho mobilizou a sociedade com abaixo-assinados e convocou os conselhos de saúde, entidades, movimentos sociais e representações nacionais para realizar atos públicos. Pela via parlamentar, o CNS identificou aliados e oponentes do SUS e construiu alianças dentro do Congresso Nacional no sentido de acumular força política.

A atuação do colegiado diante dos poderes judiciário e executivo se modificou nos períodos de governo analisados. Durante o governo Dilma (2014 e 2015), o CNS não judicializou a política de saúde. A negociação possível era feita diretamente com o executivo federal, apesar de o projeto de saúde materializado pelo MS divergir daquele defendido pelo conselho. Posteriormente, quando o governo federal e o MS assumiram explicitamente o projeto mercantilista da saúde para o setor, o conselho mudou seu posicionamento político. Assim, além de atuar nas frentes da mobilização e da construção de alianças, o conselho acionou o poder judiciário, passando do alinhamento (crítico) à franca oposição, até sua neutralização, diante do boicote da participação do CNS pelo MS, nas discussões de pautas da política de saúde nos anos 2016-2017.

Diante da posição estratégica ocupada pelo CNS na arena política da saúde no Brasil, torna-se imprescindível continuar desenvolvendo estudos de análise política capazes de evidenciar a sua atuação e a de atores sociais coletivos que disputam a direção da política de saúde no âmbito dos poderes da República, sobretudo na movimentada conjuntura recente, marcada pela rápida sucessão de fatos e embates políticos, que pode resultar em mudanças importantes no setor saúde.

  • Temoteo-da-Silva B, Lima IMSO. Análise política da atuação do Conselho Nacional de Saúde na construção da política de saúde no Brasil no período de 2014-2017. Interface (Botucatu). 2022; 26: e210582 https://doi.org/10.1590/interface.210582

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Editado por

Editor
Antonio Pithon Cyrino
Editora associada
Lina Rodrigues de Faria

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2021
  • Aceito
    01 Out 2021
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