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Preparo para alta de crianças com doenças crônicas: olhar freiriano em aspectos influenciadores do cuidado no domicílio

Preparing for the discharge of children with chronic diseases from hospital: looking at aspects influencing home care through a Freirean lens

Preparación para alta de niños con enfermedades crónicas: mirada freiriana en aspectos que influyen en el cuidado a domicilio

Resumos

Estudo qualitativo que analisou aspectos envolvidos no preparo para alta hospitalar de crianças com doenças crônicas que influenciam o cuidado no domicílio. Dados das entrevistas de 25 famílias foram interpretados segundo análise temática indutiva e referenciais freirianos. Identificaram-se aspectos do processo de hospitalização, como engajamento e postura dos profissionais no encontro com os familiares e atitude da família frente ao saber dos profissionais; da família, como tempo de diagnóstico da doença, conhecimento construído na hospitalização, literacia em saúde familiar, atitude para superar o medo inicial e envolvimento da criança no autocuidado; e da rede social familiar, que influenciaram a (re)moldagem do cuidado domiciliar. Compreende-se a necessidade de superar a visão bancária no preparo para alta hospitalar, para a família desenvolver seu potencial e transformar a realidade dos cuidados domiciliares dessas crianças.

Palavras-chave
Preparo para alta hospitalar; Cuidados domiciliares; Família; Criança; Doença crônica


This qualitative study analyzed aspects influencing home care involved in preparing for the discharge of children with chronic diseases from hospital. Data from interviews with 25 families were interpreted using inductive thematic analysis and a Freirean frame of reference. We identified aspects of the hospitalization process (staff engagement and posture with family members, family attitudes towards health professionals’ knowledge) and the family (length of time to diagnosis, knowledge gained during hospitalization, family health literacy, attitudes to overcoming initial fear, and child involvement in self-care and his/her social network, which influence (re)shaping of home care). The findings reveal the need to overcome the “banking” vision in preparing for hospital discharge so that families can develop their potential and transform the reality of home care for these children.

Keywords
Preparing for hospital discharge; Home care; Family; Child; Chronic disease


Estudio cualitativo que analizó aspectos envueltos en la preparación para el alta hospitalaria de niños con enfermedades crónicas que influyen en el cuidado en el domicilio. Se interpretaron datos de las entrevistas con 25 familias según análisis temático inductivo y referenciales freirianos. Se identificaron los aspectos del proceso de hospitalización: el compromiso y la postura de los profesionales en el encuentro con los familiares y la actitud de la familia ante el saber de los profesionales; de la familia: tiempo de diagnóstico de la enfermedad, conocimiento construido en la hospitalización, alfabetización en salud familiar, actitud para superar el miedo inicial y el envolvimiento del niño en el autocuidado; así como de su red social que influyeron en el (re)moldeado del cuidado familiar. Se comprende la necesidad de superar la visión bancaria en la preparación para el alta hospitalaria, para que la familia desarrolle su potencial y transforme la realidad de los cuidados en domicilio de esos niños.

Palabras clave
Preparación para alta hospitalaria; Cuidados domiciliares; Familia; Niños; Enfermedad crónica


Introdução

A criança com doença crônica necessitará de cuidados contínuos após a alta hospitalar. Assim, durante a hospitalização, os profissionais de saúde devem atentar para a repercussão dos encontros estabelecidos e das experiências vivenciadas pelas famílias que influenciarão o cuidado ofertado à criança no domicílio.

Sem adequado preparo para alta hospitalar, dificulta-se o manejo dos cuidados no domicílio, ocasionando readmissões frequentes dessas crianças. Essas readmissões decorrem de lacunas no processo de educação em saúde familiar, com desvalorização de suas singularidades, e da não articulação com os demais serviços da Rede de Atenção à Saúde (RAS) para garantir a continuidade dos cuidados após a alta hospitalar11 Toomey SL, Peltz A, Loren S, Tracy M, Williams K, Pengeroth L, et al. Potentially preventable 30-day Hospital Readmissions at a Children’s Hospital. Pediatrics. 2016; 138(2):e20154182.. Estudo alertou para a necessidade de buscar estratégias para minimizar essas readmissões, pois, a cada nova hospitalização, aumenta-se a complexidade do cuidado dessas crianças22 Bucholz EM, Toomey SL, Schuster MA. Trends in pediatric hospitalizations and readmissions: 2010-2016. Pediatrics. 2019; 143(2):e20181958..

Muitas vezes, o preparo para alta hospitalar não contribui para o protagonismo dos pais no gerenciamento dos cuidados da criança com doença crônica, por se limitar à prescrição de cuidados sem valorizar suas singularidades33 Smith J, Kendal S. Parents’ and health professionals’ views of collaboration in the management of childhood long-term conditions. J Pediatr Nurs. 2018; 43:36-44.. Essa prescrição verticalizada não é capaz de desencadear o processo de autonomia familiar, cujo empoderamento a capacita para a tomada de decisão em relação aos cuidados. Essas famílias almejam que os profissionais de saúde acolham suas expectativas e seu contexto de vida para além da doença44 Azevedo CS, Sá MC, Cunha M, Matta GC, Miranda L, Grabois V. Racionalização e construção de sentido na gestão do cuidado: uma experiência de mudança em um hospital do sus. Cienc Saude Colet. 2017; 22(6):1991-2002., ao realizarem o planejamento de alta hospitalar. Entretanto, na maioria das vezes, ocorre uma alta não dialógica com a família, após a estabilização do quadro agudo, com foco na clínica55 Góes FGB, Cabral IE. Discursos sobre cuidados na alta de crianças com necessidades especiais de saúde. Rev Bras Enferm. 2017; 70(1):154-161., sem agregar os distintos saberes dos profissionais da equipe66 Delmiro ARCA, Pimenta EAG, Nóbrega VM, Fernandes LTB, Barros GC. Equipe multiprofissional no preparo para a alta hospitalar de crianças com condições crônicas. Cienc Cuid Saude. 2020; 19:e50418.. Tampouco são desenvolvidas articulações com os demais setores envolvidos na atenção a essas crianças após a alta hospitalar, como a escola.

O preparo para alta hospitalar perpassa o processo de educação em saúde durante a hospitalização. Paulo Freire afirma que, para contribuir com a transformação do conhecimento e da realidade de vida, é necessário que os indivíduos conheçam o outro e a si criticamente77 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. 52a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015.,88 Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015.. Esse processo de conhecimento mútuo no preparo para alta hospitalar é fundamental para a continuidade do cuidado no domicílio. Diante da escassez de estudos nessa perspectiva de Freire, questionou-se: que aspectos relacionados, direta e/ou indiretamente, ao preparo para alta hospitalar podem influenciar o cuidado à criança com doença crônica no retorno ao domicílio?

Este estudo objetivou analisar os aspectos envolvidos no preparo para alta hospitalar de crianças com doenças crônicas influenciadores do cuidado no domicílio.

Metodologia

Estudo descritivo-exploratório, qualitativo, embasado nos referenciais de Paulo Freire, para analisar os aspectos relacionados, direta e/ou indiretamente, ao preparo para alta hospitalar, os quais podem influenciar os cuidados domiciliares da criança com doença crônica.

Os critérios de elegibilidade dos participantes foram: ser cuidador de criança com doença crônica e idade entre 0 e 12 anos incompletos; e a criança estar hospitalizada na unidade pediátrica durante o período de captação. Excluíram-se as famílias cujas crianças, durante o período de hospitalização, não confirmaram o diagnóstico de doença crônica, foram hospitalizadas para reverter ostomias (como colostomia, gastrostomia e traqueostomia), foram internadas há mais de um ano ou não possuíam contato telefônico para agendamento da entrevista. Cinco famílias convidadas não aceitaram participar do estudo por motivos pessoais.

Participaram das entrevistas 25 famílias de crianças com doenças crônicas que foram hospitalizadas em um hospital público federal do Nordeste brasileiro, entre janeiro de 2018 e janeiro de 2019. Uma única pesquisadora experiente na técnica de coleta realizou entrevistas semiestruturadas por chamada telefônica ou pessoalmente, dois meses após a alta hospitalar da criança. Esse intervalo de tempo possibilitou à família refletir sobre as vivências durante a hospitalização e ressignificar seu mundo a partir desse conhecimento construído, para transformar a realidade. Nessas entrevistas, buscou-se apreender a avaliação subjetiva da família quanto ao preparo para alta hospitalar, à repercussão do conhecimento construído e às experiências vivenciadas com os cuidados domiciliares à criança com doença crônica. As entrevistas, com duração média de 40 minutos, foram gravadas por meio do aplicativo Blackbox™ para Android. Para encerrar essa etapa, utilizou-se o critério de suficiência, quando, a partir da reincidência das informações, foi possível responder ao objetivo do estudo sem, no entanto, desprezar informações singulares99 Minayo MCS, Assis SG, Souza ER. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2014..

A análise temática indutiva1010 Braun V, Clarke V. Successful qualitative research: a practical guide for beginners. London: Sage; 2006., em suas seis etapas, subsidiou a interpretação dos dados, à luz da perspectiva freiriana com os pressupostos da pedagogia do oprimido e da pedagogia da autonomia77 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. 52a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015.,88 Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015.. Na primeira etapa, que consistiu na familiarização com o conjunto de dados, ocorreram a transcrição das entrevistas na íntegra e as leituras repetidas do material empírico, possibilitando adentrar na segunda etapa, que consistiu no processo inicial de codificação dos recortes dos extratos dos dados. Na terceira etapa, agruparam-se os códigos em pré-temas, de acordo com as similaridades e relações estabelecidas, de modo a trazer respostas para as questões centrais e para o objetivo do estudo. Esses pré-temas foram revisados na quarta etapa, juntamente com o conjunto de extratos incluídos em cada um para analisar a representatividade dos sentidos e significados dos achados para a realidade em estudo. Com isso, possibilitou-se definir os temas na quinta etapa e a construção do relatório final com o suporte na interpretação dos achados dos referenciais escolhidos para análise, representando a última etapa do processo analítico.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, parecer n. 4.711.314, respeitando as diretrizes para pesquisas com seres humanos. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento e garantiu-se o seu anonimato na apresentação dos resultados, por meio de uma codificação (letra F acompanhada de um número ordinal).

Resultados e discussão

No quadro 1, apresenta-se a caracterização das crianças com doenças crônicas e de seu cuidador principal.

Quadro 1
Caracterização dos participantes

A partir da análise dos dados, identificaram-se dois temas relacionados ao preparo que influenciam os cuidados domiciliares da família após alta hospitalar da criança com doença crônica, apresentados na figura 1:

Figura 1
Temas e códigos identificados pela análise temática indutiva.

Aspectos inerentes ao processo de hospitalização

Na hospitalização, o conhecimento é construído sob as experiências e reflexões das famílias de crianças com doenças crônicas decorrentes das relações estabelecidas com as pessoas durante esse período. Essas vivências podem favorecer o empoderamento da família para o protagonismo no cuidado domiciliar e constituem aspectos importantes a serem valorizados no preparo para a alta hospitalar.

Dentre os aspectos que podem influenciar esse preparo durante a hospitalização, destacaram-se a postura dos profissionais no encontro com as famílias; o engajamento dos profissionais nesse preparo e o tempo de convivência com a família durante a hospitalização; e a atitude da família frente ao saber dos profissionais.

Os encontros entre os profissionais da equipe hospitalar e as famílias, se legítimos, podem ser enriquecedores e promover mudanças significativas no processo de cuidar de ambos. Entretanto, nem todos estarão abertos para experienciar um encontro legítimo, ficando no comodismo do distanciamento e no tecnicismo, transformando o outro em objeto de sua prática88 Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015.:

Os médicos explicavam o que eu perguntava quando não entendia. [...] É porque eles passavam [visita nas enfermarias] com os estudantes, ficavam explicando para eles, e eu não entendia.

(F10)

Não compreendia o que eles falavam [...], porque tinha horas que parecia estar falando em código.

(F11)

[da Síndrome de Budd-Chiari] ele [médico] não deu muita explicação não. [...] Falou nada não de cuidados específicos para ter em casa por causa do problema dela [...]. Tem que ser [orientações para] o dia a dia dela.

(F22)

A tendência dos profissionais foi responder somente ao que era questionado; usar linguagem de difícil compreensão durante as visitas à criança na enfermaria; e/ou não escutar as necessidades e anseios da família. Os problemas na comunicação, bem como a desvalorização do conhecimento prévio familiar, constituem-se importantes barreiras na relação equipe-família1111 Greenway TL, Rosenthal MS, Murtha TD, Kandil SB, Talento DL, Couloures KG. Barriers to communication in a PICU: a qualitative investigation of family and provider perceptions. Pediatr Crit Care Med. 2019; 20(9):415-422., desencadeando essa ilegitimidade no encontro.

A falta de alteridade nos encontros gerou insatisfação pela ausência de compartilhamento e troca de saberes e de experiências para identificar qual conhecimento era realmente significativo para as famílias naquele momento. Ao invés de esclarecimentos e aprendizados, criaram-se lacunas no conhecimento para o cuidado domiciliar.

Os profissionais não deram orientações para cuidar dele [...]

(F19)

[...] não tive tanta orientação. As orientações que esperei ter, quando fosse para casa, não tive [...]. Faltou, no preparo para alta, mais orientação. Não sei quais [risos].

(F21)

Se encontros genuínos tivessem ocorrido, com escuta das necessidades e anseios das famílias, não haveria espaço para essa sensação de incompletude e incertezas. A abertura para o diálogo proporcionaria a cada indivíduo reconhecer a autonomia do outro nas decisões e o valor do compartilhamento de suas experiências para a reconstrução do cotidiano, colaborando com a corresponsabilização de ambos na busca de novos modos de agir para transformação da realidade88 Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015., como explicitado a seguir:

Aprendi as comidas que era para dar a ele [criança com anemia falciforme]. Eu tinha medo de dar as comidas a ele e fazer mal, então só dava mingau. [...] A enfermeira conversava e dizia, quando ele estivesse com as crises, as comidinhas que era para dar, dar bastante verdura, alface, [...] ele já está comendo tudo.

(F12)

Eles [da equipe de cirurgia torácica] vinham, [...] diziam a mim que precisava [...] tirar aquela pecinha [da traqueostomia] para estar limpando [...]. Eles explicaram como fazia a limpeza, como tira, como bota [...]. Pego o que ensinou sobre os cuidados com os materiais e está dando tudo certo [...]. Para mim [...] não faltou nada.

(F2)

Apreende-se a relevância do compartilhamento de conhecimentos durante a hospitalização para um cuidado seguro à criança no retorno ao domicílio cujo planejamento de alta se atente à transição do hospital para o domicílio. As famílias precisam estar preparadas e confiantes para realizar o cuidado, principalmente, as famílias das crianças com necessidades especiais de saúde. Nesse sentido, é necessário incluir estratégias para engajar a família e prepará-la durante a estadia no hospital, a fim de garantir a continuidade dos cuidados e prevenir readmissões1212 Fernandez HGC, Moreira MCN, Gomes R. Tomando decisões na atenção à saúde de crianças/adolescentes com condições crônicas complexas: uma revisão da literatura. Cienc Saude Colet. 2019; 24(6):2279-2292.. Esse trabalho exige um olhar dos profissionais de saúde capaz de reconhecer a necessidade de estabelecer parcerias horizontais com as famílias durante a hospitalização, uma vez que são fonte primária de cuidados à criança e precisam estar capacitadas para desenvolvê-los.

Por vezes, pode existir um acolhimento maior das necessidades, mas ainda assim identificaram-se fragilidades recorrentes na atuação dos profissionais em relação à escassez de informações fornecidas sobre os medicamentos utilizados pela criança.

Com as medicações, eles só falaram dos cuidados com a Bezentacil, que era para ele ficar tomando, mas não explicaram o porquê. (F12)

A médica conversou bastante sobre essa doença dela [...]. Eu entendo, mas, para explicar para os outros, às vezes eu não entendo [consigo] [risos] [...]. Não [explicou sobre os cuidados com a corticoterapia] porque, da outra vez que eu vim aqui [para consulta], mês retrasado, eu parei a medicação dela. [...] Ele disse umas cinco vezes: “Pelo amor de Deus, por que você parou? Você está ficando doida? Ela só não baixou no hospital por causa de Deus”. E eu não sabia, pedi desculpa [...]. Não me explicou por que não podia parar, mas acho que foi coisa grave, porque ela podia chegar ao hospital.

(F16)

Muitas crianças com doenças crônicas utilizam medicamentos de uso contínuo. Dois pontos interferiram na apropriação desse conhecimento pela família: a falta de informação na hospitalização e a postura do médico durante a consulta, que, além de não esclarecer as dúvidas, teve uma atitude que gerou constrangimento e, provavelmente, sentimento de culpa materna.

O conhecimento fragilizado sobre a terapia medicamentosa incorre em erros na sua administração, com prejuízos para a saúde da criança, desde a instabilidade clínica até situações mais graves, com risco de morte. Portanto, a família não pode esperar aprender com o erro e necessita ser preparada durante a hospitalização para conhecer adequadamente a terapia medicamentosa indicada para continuidade no domicílio, dominando informações como preparo e dose do medicamento; via e cuidados na administração; interações medicamentosas; e reações adversas.

O apoio informacional sobre a terapia medicamentosa e as mudanças na conduta terapêutica são fundamentais para fortalecer o conhecimento1313 Hoffmann LM, Wegner W, Biasibetti C, Peres MÁ, Gerhardt LM, Breigeiron MK. Patient safety incidents identified by the caregivers of hospitalized children. Rev Bras Enferm. 2019; 72(3):707-714. e garantir a segurança da criança. Por conseguinte, necessita-se disponibilizar às famílias e às crianças com doenças crônicas, de acordo com o seu nível de cognição e maturidade, informações em linguagem clara e de forma oportuna.

Quando esse apoio informacional acontece mediante diálogo no cotidiano assistencial, proporcionam-se oportunidades para as famílias exporem suas dúvidas e vivências; e refletirem sobre suas observações durante a hospitalização. Em um processo dialógico, suas observações podem ser fonte de aprimoramento e aprofundamento do conhecimento, sobressaindo o cuidado técnico e compreendendo os meios e os fins das ações executadas pela equipe multiprofissional1414 Franco LF, Bonelli MA, Wernet M, Barbieri MC, Dupas G. Segurança do paciente: percepção da família da criança hospitalizada. Rev Bras Enferm. 2020; 73(5):e20190525..

A obtenção de informações durante a hospitalização também foi influenciada pela postura da família (que pode ser passiva, observadora ou questionadora) frente ao saber profissional.

Tudo o que explicavam a gente entendia, porque ficava atento [...]. Se falassem alguma coisa que eu ficasse com alguma dúvida, [...] perguntava qual o motivo de estar fazendo, e eles explicavam [...]. Logo no começo, fazia a limpeza nela [traqueostomia] três, quatro vezes por dia e duas vezes à noite. Hoje não, só aspira de manhã e à noite, antes de dormir. Às vezes nem precisa, eu só lavo o aparelhinho que remove [cânula].

(F15)

Não entendo tudo o que é explicado, porque tem vezes que falam outra língua [...] que a gente não conhece [...]. Geralmente fico calada quando não entendo, escutando o resto da conversa para ver se entendo. Quando vejo que não entendo mesmo, procuro perguntar para não me desesperar [....]. Os profissionais eram sempre muito comunicativos [...]. As informações que recebi me deram suporte para saber o que fazer no momento da convulsão, os cuidados que deve ter. [...] O problema foi no dia da alta que os residentes deles chegaram e só entregaram o papel com o laudo, mandou eu ler, mas não informou muita coisa. Acho que deveriam ter conversado mais, ou a doutora [nome da neurologista] ter passado e explicado mais.

(F24)

[...] prestei atenção e escutei ela falando para os estudantes que era de 65-70% [saturação de O2]. Aí, de outra vez, eu já sei né? [...] Só fazia escutar o que eles [profissionais] diziam um para o outro.

(F25)

A postura completamente passiva da família desfavorece o processo de ensino-aprendizagem, visto que haverá tentativa de adaptar-se ao que lhe é posto, nem sempre contextualizado a sua realidade, sem a criticidade necessária. Esse tipo de pensar denomina-se “ingênuo”, pois a essência é acomodar-se às normas, ajustando-se a elas e negando as suas singularidades88 Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015..

Relativo à postura observadora, essa tem duas vertentes a depender do contexto em que ocorre. O conhecimento adquirido por meio da observação só será construtivo quando for possível enxergar o fenômeno em sua totalidade. Caso contrário, a família poderá utilizá-lo em um contexto inadequado, com prejuízos para a saúde da criança.

A postura ativa favorece que as pessoas reflitam profundamente sobre a realidade em seu entorno, em busca de transformá-la com “co-laboração” de outras pessoas88 Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015.. Portanto, famílias questionadoras terão um processo de ensino-aprendizagem mais promissor para conseguir transformar o mundo a sua volta.

O tempo de convívio com o diagnóstico também é um fator a ser considerado no planejamento do preparo para a alta. Na fase inicial, a família anseia pelo conhecimento basilar sobre a doença e o tratamento. Com o passar do tempo, anseiam por novos conhecimentos a partir das vivências com os cuidados no domicílio.

As informações sobre a doença poderiam ser consideradas padronizadas, mas, se não forem adequadas para o entendimento da família, não lograrão êxito. O tratamento inclui desde procedimentos até os medicamentos necessários para o controle da doença, e esses devem ser contextualizados à realidade familiar.

Contrariamente a isso, identificou-se predomínio da educação bancária no processo de preparo para alta hospitalar dos profissionais. As orientações são padronizadas, a depender da patologia de base, e as singularidades das famílias não são valorizadas.

No hospital eles falam muito genérico, muito que para todo mundo tem que ser assim. E na prática, [...] cada pessoa é do seu jeito [...]. A regra que vai servir para um menino, não é a mesma regra que vai servir para o meu filho, e tenho que filtrar isso [...].

(F17)

O médico explicou tudo direito [...]. Falaram algumas coisas sobre os cuidados, mas eu já esqueci [risos].

(F18)

Normas padronizadas tendem à domesticação alienante, cuja burocratização da mente impede a consciência do ser e o conformismo e a obediência ao que lhe é dito, apresentando a história como determinismo a ser vivido, e não como possibilidade. Desconsiderar a integralidade do ser e reduzi-lo a puro treino reflete o modo autoritário da relação verticalizada77 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. 52a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015., não atendendo a suas necessidades. Ao não atender às singularidades da família, a integração das orientações ao contexto familiar é mais difícil, pois configura-se como algo estranho e invasivo. Nesse contexto, identificaram-se três caminhos: a família passivamente adapta sua vida ao que lhe é posto; a família ativamente utiliza como base as informações fornecidas e reflete criticamente sozinha para encontrar soluções de suas demandas; ou a família ignora as orientações por não serem adequadas a sua realidade ou por não as compreender.

Aspectos inerentes à família e sua rede social

No retorno ao domicílio, o cuidado com a criança com doença crônica é (re)moldado a depender tanto do conhecimento construído pela família durante a hospitalização quanto do apoio da rede social, da literacia em saúde familiar, da atitude do cuidador para superar o medo inicial e do envolvimento da criança com doença crônica no seu autocuidado. O conhecimento construído na hospitalização influencia a atitude da família para confiar na sua capacidade e superar o medo inicial no retorno ao domicílio, próprio da fase de adaptação aos cuidados.

[...] tirando o medo, eu não tive dificuldades no início para realizar os procedimentos, [...] fui botando em prática o que eu aprendi [...] ficou tudo bem esclarecido [...]. Para mim, não faltou nada.

(F2)

Quando cheguei em casa, fiquei com medo. Mas, com o tempo e as orientações que fui seguindo, me tranquilizei e deu tudo certo [...] [nome do profissional] me ensinou a compreender mais o jeito dela, [...] me ensinou muita coisa, [...]. Fazia tudo olhando no papel de orientações. Hoje em dia, nem preciso mais dele.

(F7)

Na fase de adaptação, esse suporte informativo para consulta familiar colabora para que se consiga trilhar terrenos ainda desconhecidos sem tanta dificuldade1515 McDonald J, McKinlay E, Keeling S, Levack W. The ‘wayfinding’ experience of family carers who learn to manage technical health procedures at home: a grounded theory study. Scand J Caring Sci. 2017; 31(4):850-858.. Disponibilizar orientações escritas constituiu-se em estratégia importante para a família de crianças com inserção recente de dispositivo tecnológico. Esse material de fácil acesso contribui para minimizar a insegurança da fase adaptativa ao trazer o passo a passo da técnica. Isso, agregado ao conhecimento trabalhado na hospitalização, pode reduzir as incertezas e favorecer a aquisição paulatina da confiança no manejo dos cuidados no domicílio, mesmo sem o suporte presencial de um profissional de saúde.

No retorno ao domicílio, há famílias que buscam ampliar o leque de conhecimentos, e outras limitam-se ficando na dependência dos profissionais de saúde para a tomada de decisão frente aos cuidados.

Tudo que me ensinaram no hospital eu faço em casa, me senti muito segura [...]. Sempre estou aprendendo coisas diferentes para cuidar dele. Busco informações na televisão e na internet também.

(F3)

Procuro o médico porque é por meio dos exames que são identificadas as alterações [...]. O último exame [proteinúria] [...] foi melhor. O outro do mês passado já deu mais alto. Eu fiz novamente e não sei, acho que o exame foi bom ao comparar com o outro. [...] Esse daqui deu 54, acho que baixou, né?!

(F16)

Para que as famílias superem essa dependência, “é preciso que cortem o cordão umbilical, de caráter mágico e mítico, por meio do qual se encontram ligadas ao mundo da opressão”88 Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. (p. 239). Somente ao se reconhecerem capazes é que poderão se reinventar e melhorar suas habilidades para transformar a realidade, pois a família é quem melhor conhece o seu contexto de vida. O que os profissionais podem fazer é “ensinar-lhe certo conteúdo, desafiá-lo a que se vá percebendo na e pela própria prática, sujeito capaz de saber. [...] ajudá-lo a reconhecer-se como arquiteto de sua própria prática cognoscitiva”77 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. 52a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. (p. 121).

No que concerne ao apoio social da rede, os tipos de vínculos constituídos influenciam a (re)modelação do cuidado domiciliar, podendo favorecer a implementação das estratégias apreendidas no preparo para alta hospitalar.

Tem hora que eu fico preocupada, me agonio, fico nervosa imaginando os cuidados com ele, porque eu cuido dele sozinha. [...] O pai dele não se preocupa com ele, só sou eu.

(F1)

Minha família, meus amigos sempre estão dando apoio, todo mundo ajuda. Eu estou me sentindo mais preparada, estou conseguindo lidar com isso melhor [...], todo mundo chega e compra umas coisas diferentes, diet, sempre chegam com uma novidade.

(F17)

Para cuidar no domicílio, a família necessita de suporte da rede social e, por vezes, de acesso a benefícios sociais para custear os gastos com o tratamento da criança. Assim, ainda durante a hospitalização, é fundamental pensar o cuidado domiciliar na perspectiva de apoio da rede social para transição segura dos cuidados1616 Moreira MCN, Albernaz LV, Sá MRC, Correia RF, Tanabe RF. Recomendações para uma linha de cuidados para crianças e adolescentes com condições crônicas complexas de saúde. Cad Saude Publica. 2017; 33(11):e00189516..

A equipe de saúde do hospital, ao se articular com os demais serviços da RAS na alta, possibilita ampliar os vínculos da família. Esses contatos poderão contribuir para a resolutividade das demandas de saúde no retorno ao domicílio, garantindo a continuidade dos cuidados com qualidade1717 Malta DC, Merhy EE. O percurso da linha do cuidado sob a perspectiva das doenças crônicas não transmissíveis. Interface (Botucatu). 2010; 14(34):593-606. Doi: https://doi.org/10.1590/S1414-32832010005000010.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283201000...
e segurança.

A aplicação prática do conhecimento construído ganhará novas influências ao adentrar o domicílio. Daí a importância de se conhecer a rede social de apoio, pois “é no compartilhamento de significados com seu grupo que os indivíduos irão tomar decisões sobre sua saúde”1212 Fernandez HGC, Moreira MCN, Gomes R. Tomando decisões na atenção à saúde de crianças/adolescentes com condições crônicas complexas: uma revisão da literatura. Cienc Saude Colet. 2019; 24(6):2279-2292. (p. 2288).

Aos aspectos abordados anteriormente, agrega-se a importância da literacia em saúde do cuidador principal. Essa refere-se à capacidade de processar e compreender as informações para tomar decisões relacionadas à saúde em tempo oportuno1818 Centers for Disease Control and Prevention. What is health literacy? [Internet]. Atlanta: CDC; 2019 [citado 9 Abr 2021]. Disponível em: https://www.cdc.gov/healthliteracy/learn/
https://www.cdc.gov/healthliteracy/learn...
. Quando a família não recebe um preparo para alta que potencialize o processo cognitivo de modo a fortalecer seu conhecimento, a literacia em saúde é comprometida, obstaculizando a autonomia na tomada de decisão.

A literacia em saúde familiar ocorreu com o apoio de suporte informativo, das observações e acompanhamento dos cuidados desenvolvidos no hospital para realizá-los no domicílio, das orientações recebidas durante a hospitalização ou dos lapsos desencadeados por uma interpretação anterior equivocada.

Já estou sabendo muita coisa depois que peguei e li aqueles papéis.

(F4)

Estou mudando muita coisa para ele lá em casa [...] fiquei mais ligada após as orientações [...], por isso que eu estava mantendo-o sem a febre.

(F5)

No hospital me ensinaram e eu aprendi [...]. Eu fazia a técnica de sondagem toda diferente [...]. Quando fui para uma consulta com o médico [após a alta hospitalar], [...] ele observou a sondagem e me parabenizou.

(F13)

[...] Do jeito que eles faziam lá, nós estamos fazendo em casa [...]. Observar se está tendo uma piora, se sente alguma coisa diferente do que já sentia [...] sempre estar prestando atenção nela, na saturação dela.

(F14)

Falavam muita língua esquisita [...], mas eu não perguntava nada e ia pesquisar na internet. Eu mesmo pesquiso e vejo [...]. Ela não tomava água e, quando colocava o soro, já ficava cheinha [...]. Quando foi essa penúltima vez que foi hospitalizada, comecei a meter água nela escondido. Quando foi ontem, falei com doutora [nome], que disse que era para eu dar água a ela por causa dos rins, e estou dando.

(F8)

As lacunas no conhecimento influenciam a compreensão e a capacidade familiar de gerir os cuidados domiciliares da criança com doença crônica. F8, na época da hospitalização, estava amamentando a filha de um mês com fibrose cística e foi orientada a não dar água à criança. Entretanto, a mãe associou a restrição hídrica à doença, e não ao fato de que o leite materno é completo em sua composição, suprindo as necessidades da criança. Esse lapso na compreensão fez a mãe continuar a não ofertar água à criança mesmo após a introdução de fórmula alimentar infantil, o que estava ocasionando re-hospitalizações por desidratação. Ela remodelou o cuidado, administrando água após as observações realizadas e busca individual de novas informações, por meio da internet, mas sem o suporte profissional nessa orientação.

Por não ter uma compreensão crítica do conhecimento, a cuidadora captou parte de um todo na hospitalização e não conseguiu apropriar-se do conhecimento. Para que ocorra essa apropriação, é indispensável conhecer o todo, ou seja, todo o contexto, para, então, compreender as partes e voltar ao todo com novos elementos e maior clareza88 Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015..

Dialogar com linguagem clara e acessível é fundamental no processo de apropriação do conhecimento, pois possibilita aproximar-se da história de vida da família, criar vínculos e desenvolver a segurança na relação profissional-família-criança para esclarecer as dúvidas; compartilhar informações e conhecimento; e possibilitar o feedback da compreensão familiar1414 Franco LF, Bonelli MA, Wernet M, Barbieri MC, Dupas G. Segurança do paciente: percepção da família da criança hospitalizada. Rev Bras Enferm. 2020; 73(5):e20190525.. Adicionalmente, reconhece-se a relevância da articulação dialógica entre os profissionais da equipe de saúde para que as orientações e informações fornecidas sejam completas, compreensíveis e sem divergências para garantir a continuidade dos cuidados com segurança, após a alta hospitalar1919 Aarthun A, Øymar KA, Akerjordet K. Parental involvement in decision-making about their child’s health care at the hospital. Nurs Open. 2019; 6(1):50-58..

Identificou-se também o alcance da literacia em saúde, quando a família conseguiu avaliar criticamente as ações implementadas pelos profissionais de saúde no cuidado ao filho. A remodelagem do cuidado domiciliar à criança foi possível a partir do momento em que suas singularidades foram atendidas no preparo para a alta hospitalar.

Para tudo que eu vou dar a ele, olho a composição no rótulo. [...] O outro plano alimentar [que recebeu em hospitalização anterior] nem olhei, porque aquilo não é comida para dar para uma criança [...]. O que vocês passaram, a gente conseguiu. [Sobre a medicação] inclusive uma médica que tem lá [no hospital] disse que era para ele estar tomando o cálcio. Ele começou a tomar agora vitamina D. Mas a outra médica [nefrologista] não tinha passado ainda. Não tinha se preocupado nessa questão dos exames para saber se o corticoide está fazendo alguma coisa [efeito adverso].

(F6)

A família é a fonte primária de cuidado e o centro das decisões acerca da saúde da criança. Na hospitalização é necessário haver equilíbrio entre o saber-poder profissional e a valorização da autonomia familiar para estabelecer um diálogo horizontal e favorável ao compartilhamento de conhecimentos e experiências, para buscar estratégias de cuidado mais adequadas às singularidades, agregando o conhecimento empírico das famílias ao científico do profissional de saúde2020 Farias DHR, Gomes GC, Almeida MFF, Lunardi VL, Xavier DM, Queiroz MVO. Barreiras presentes no processo de construção do cuidado familiar cultural à criança no hospital: abordagem transcultural. Aquichan. 2019; 19(1):e1912.. É nessa fusão de horizontes que a ética da alteridade pode ser construída. Consumir ideias não possibilita a superação dos desafios cotidianos, mas os transforma na ação e comunicação88 Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015.. Apropriar-se do conhecimento favorece a avaliação crítica da situação da criança, não se deixando influenciar por opiniões contrárias.

Eu sempre digo uma coisa, e ele [pai] discorda. [...] Como convivo mais com [criança], fico observando. Ele sai de manhã e só chega à noite [...]. Uma semana atrás, eu estava dizendo que a cirurgia [cistostomia] estava fechada. Ele dizendo que não. [...] Estava mijando mais pelo pênis do que pela cirurgia, e ele dizendo que graças a Deus. Eu “graças a Deus não, porque isso não é normal”.

(F9)

Essa avaliação possibilita uma postura crítica dos indivíduos frente às situações cotidianas88 Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015.. Quanto mais se apropriarem do conhecimento sobre as necessidades de saúde de seus filhos, mais aptos e seguros estarão para tomar as decisões.

O engajamento da família nos cuidados na hospitalização colabora com o empoderamento para desenvolvê-los no domicílio com autonomia. Assim, contribui-se com a promoção da saúde e a prevenção de agravamento do quadro clínico da criança1212 Fernandez HGC, Moreira MCN, Gomes R. Tomando decisões na atenção à saúde de crianças/adolescentes com condições crônicas complexas: uma revisão da literatura. Cienc Saude Colet. 2019; 24(6):2279-2292.. Entretanto, a dificuldade dos profissionais em se articularem como equipe para planejar conjuntamente a alta hospitalar tem ocasionado altas precipitadas, nas quais as famílias não se apropriam do conhecimento básico para os cuidados domiciliares, diminuindo altas seguras2121 Klein K, Issi HB, Souza NS, Ribeiro AC, Santos EEP, Senhem GD. Dehospitalization of technology-dependent children: the perspective of the multiprofessional health team. Rev Gaucha Enferm. 2021; 42:e20200305.. Essas incertezas poderão afetar o modo como a família cuida da criança no domicílio.

Outro aspecto que influencia o cuidado domiciliar é o envolvimento da criança com doença crônica no seu próprio autocuidado.

A cardiologista falou que, se ele for para a escola [...], não pode fazer a mesma coisa dos outros meninos. É muito difícil para uma criança ficar quieta em um canto. Ele ficou muito bravo, não aceita [...]. Ele gosta muito de jogar bola.

(F20)

Ela vive em casa direto [com medo de hemorragias]. No início também, ela fez bem, aguentou tudo direitinho. Só se soltou mais depois que a médica disse que ela já podia ter uma vida normal, brincar, jogar bola.

(F23)

A doença e/ou tratamento, por vezes, impõe restrições ao cotidiano das crianças, com influência em seu comportamento, assim como na rotina familiar. Identificam-se duas posturas diferentes das crianças para as mesmas orientações. Segundo Freire88 Freire P. Pedagogia do oprimido. 59a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015., “muitos erros e equívocos comete a liderança, ao não levar em conta [...] a visão do mundo que o povo tenha ou esteja tendo [...], que vão encontrar explícitos ou implícitos os seus anseios, as suas dúvidas, a sua esperança” (p. 250). Portanto, se o profissional de saúde não conhecer a visão de mundo dessas crianças, não conseguirá prepará-las satisfatoriamente, o que pode repercutir, de modo negativo, no seu comportamento, com reflexos na autogestão e na estabilidade clínica da doença.

Uma escuta qualificada e crítica da visão de mundo do outro abre espaço para o diálogo cuidativo, o que é impossível de ser alcançado por meio do falar impositivo. Esse é um caminho que pode transformar discursos e ações para que efetivamente seja estabelecido um diálogo horizontal com quem demanda o cuidado77 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. 52a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015..

Diante do exposto, entende-se que o conhecimento construído durante a hospitalização sofre transformações ao adentrar no domicílio, que podem ser radicais dependendo da valorização da visão de mundo e das singularidades da família e da criança com doença crônica ao realizar o preparo para alta hospitalar. Assim, atentar para o impacto dessas orientações no contexto familiar, é fundamental para minimizar a insegurança e garantir um manejo seguro dos cuidados no retorno ao domicílio.

Reconhece-se que, em decorrência da complexidade do fenômeno estudado e do número de participantes incluídos, a totalidade dos aspectos que influenciam esse preparo para os cuidados domiciliares podem não ter sido evidenciada, o que se constitui como a limitação do estudo.

Conclusões

Apreende-se a dinamicidade do preparo de alta hospitalar, desde aspectos diretamente relacionados ao período de hospitalização (como engajamento dos profissionais no preparo para alta; postura dos profissionais e a da família nos encontros; e tempo de convivência familiar com a doença) até aqueles indiretamente relacionados a esse preparo, como os inerentes à família (suporte informativo recebido no hospital, literacia em saúde, postura para a tomada de decisão, envolvimento da criança no autocuidado) e sua rede social de apoio na (re)modelagem dos cuidados da criança com doença crônica no retorno ao domicílio. Perante esse preparo, observa-se a necessidade de que o profissional de saúde instigue uma visão crítica na família para se concretizar um encontro legítimo, cujo diálogo horizontal, com compartilhamento de saberes e vivências para a (re)construção do conhecimento e da rede social, seja o fio condutor, colaborando com a autonomia para a tomada de decisão nos cuidados domiciliares. Essa realidade traz novo ânimo, com adoção de uma postura mais ativa da família frente ao processo decisório, proporcionando mudanças significativas no processo de cuidar e promovendo melhor qualidade de vida à criança com doença crônica e à sua família.

Este estudo contribui para o avanço do conhecimento ao evidenciar esses aspectos que podem favorecer a construção do conhecimento para os cuidados domiciliares, trazendo, na análise, referenciais freirianos que fortaleceram a discussão dos achados. Assim, fornecem-se subsídios para os profissionais de saúde refletirem sobre sua prática, a fim de sanar lacunas que desfavorecem esse preparo, aprimorando-o, de modo a contribuir com o manejo familiar dos cuidados no domicílio. Sugere-se a realização de estudos experimentais com vistas a testar estratégias de preparo para alta hospitalar mais promissoras, a fim de superar as lacunas identificadas.

Agradecimentos

À Capes, pelo apoio financeiro.

  • Financiamento

    Nóbrega VM e Fernandes LTB foram bolsistas de doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – Brasil, Código de Financiamento 001.
  • Nóbrega VM, Viera CS, Fernandes LTB, Collet N. Preparo para alta de crianças com doenças crônicas: olhar freiriano em aspectos influenciadores do cuidado no domicílio. Interface (Botucatu). 2022; 26: e210666 https://doi.org/10.1590/interface.210666

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Editado por

Editora
Rosamaria Giatti Carneiro
Editor associado
Lucas Pereira de Melo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Out 2021
  • Aceito
    08 Abr 2022
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