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Saúde mental e interseccionalidade entre estudantes em uma universidade pública brasileira

Salud mental e interseccionalidad entre estudiantes en una universidad pública brasileña

Resumos

O sofrimento/transtorno mental tem potencial para afetar qualquer pessoa, visto que viver em coletividade produz iniquidades que podem atuar sobre o bem-estar. Sendo que a universidade integra a rotina de pessoas nessa condição, torna-se necessário analisar fenômenos que podem determinar sua organização, como a saúde e as desigualdades sociais. Nesse contexto, este estudo realiza uma análise entre saúde mental e a intersecção de eixos de opressão. Trata-se de estudo quantitativo e qualitativo com técnicas de entrevista e análise documental. Do total de 217 estudantes, foram excluídos 43 por documentação incompleta ou inacessível. Para as entrevistas, consideraram-se estudantes que declaram viver sob desigualdades. De 12 convidados, sete participaram das entrevistas. Os resultados apontam a interseccionalidade como ferramenta adequada para qualificar a análise da realidade de estudantes que vivenciam sofrimento/transtorno mental. Destacaram-se questões de gênero, orientação afetivo-sexual, pobreza, cor e estigmas sobre saúde mental.

Palavras-chave
Saúde mental; Universidade; Estudantes; Interseccionalidade


El sufrimiento/trastorno mental tiene potencial para afectar a cualquier persona, puesto que vivir en colectividad produce inequidades que pueden actuar sobre el bienestar. Siendo que la universidad integra la rutina de personas en esta condición, resulta necesario analizar fenómenos que pueden determinar su organización, como la salud y las desigualdades sociales. En este contexto, este estudio realiza un análisis entre la salud mental y la intersección de ejes de opresión. Se trata de un estudio cuantitativo y cualitativo con técnicas de entrevista y análisis documental. Del total de 217 estudiantes, se excluyeron 43 por documentación incompleta o inaccesible. Para las entrevistas se consideraron estudiantes que declaran vivir bajo desigualdades. De 12 invitadas/os, siete participaron en las entrevistas. Los resultados señalan la interseccionalidad como herramienta adecuada para calificar el análisis de la realidad de estudiantes que viven sufrimiento/trastorno mental. Se destacaron cuestiones de género, orientación afectivo-sexual, pobreza, color y estigmas sobre salud mental.

Palabras clave
Salud mental; Universidad; Estudiantes; Interseccionalidad


The mental suffering/disorder has the potential to affect any person because living in collectivity results in iniquities that can act over the well-being. Being the university a space that composes the routine of people in this condition, it is necessary to analyze phenomena that can determine its organization such as health and social inequality. In this context, this study analyzes mental health and the intersection of axes of oppression. It is a quantitative and qualitative study using interview techniques and document analysis. From 217 students, 43 were excluded by incomplete/inaccessible documentation. To the interview it was considered students that declared to live under inequalities and of 12 invited, seven participated. The results indicate the intersectionality as an adequate tool to qualify the analysis of students’ reality living mental suffering/disorder. Emphasis was placed on gender bias, affective-sexual orientation, poverty, color and stigma about mental health.

Keywords
Mental health; University; Students; Intersectionality


Introdução

O presente artigo se debruça sobre a análise de relatos de experiência de sofrimento/transtorno mental de estudantes de uma universidade pública brasileira sob a perspectiva da interseccionalidade. Ao longo desta exposição, queremos demonstrar como esta é uma ferramenta conceitual que pode qualificar a observação da dinâmica social e sua relação com a saúde, aportando conhecimento relevante que pode auxiliar na construção de estratégias de enfrentamento pessoais e/ou institucionais.

O fenômeno da saúde, por seu caráter transversal, pode ser observado influenciando diversas áreas da vida e isso não é diferente quando se trata da vivência universitária. Essa observação torna-se peculiar quando esse público possui características que fazem com que o aspecto multideterminado da saúde seja evidente, como é o caso dos estudantes atendidos pela Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil (PROAE). Este é o órgão responsável na Universidade Federal da Bahia (UFBA) por administrar ações do Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), que, entre as dez áreas de atuação previstas, indica no item 4 a atenção à saúde. É muito frequente a procura de estudantes pela PROAE para relatar questões referentes ao cotidiano de saúde e é por meio desses atendimentos, tendo como base o princípio do acolhimento da Política Nacional de Humanização (PNH)11 Brasil. Ministério da Saúde. Dicas em saúde: acolhimento. Brasília: Biblioteca Virtual em Saúde; 2008., que o estudante é orientado sobre a oferta de ações e serviços disponíveis na Rede de Atenção à Saúde do município e da universidade que possam fazer frente à sua necessidade. O acolhimento permite, por meio da escuta, identificar as necessidades de saúde, prezando as questões singulares de cada um, inclusive a forma como essas são percebidas e ecoam sobre o cotidiano, até mesmo na vida acadêmica.

O Núcleo de Atenção à Saúde Integral do Estudante (Nasie), é o setor na PROAE responsável por esse trabalho de acolhimento das demandas de saúde. Os registros desses atendimentos (entre 2014 e 2017, sendo este o recorte temporal da nossa pesquisa) evidenciaram um número expressivo de relatos de experiências de sofrimento e/ou transtorno mental que geram inúmeros desafios para a permanência dos estudantes na universidade. No ano de 2016, 48% dos estudantes atendidos pela primeira vez apresentaram essa queixa e, em 2017, esse número ascendeu para 52%. Esses dados também destacaram a manifestação de sobreposição de desigualdades sociais e outras opressões nas histórias de vida desses estudantes, o que tornou mais instigante compreender como esses fatores se relacionam a partir da narrativa de quem vivencia a questão.

A Saúde Mental, contemplada enquanto um vasto campo de saber, é um fenômeno multifacetado, multideterminado e complexo. Autoras como Jucá22 Jucá VJS. Os sentidos da cura em saúde mental [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2003. e Nunes33 Nunes MO. Interseções antropológicas na saúde mental: dos regimes de verdade naturalistas à espessura biopsicossociocultural do adoecimento mental. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):903-915. Doi: https://doi.org/10.1590/S1414-32832012005000045.
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destacam sua relação com a singularidade e subjetividade das pessoas e ao seu modo de estar no mundo, influenciados por aspectos culturais (valores e expressões simbólicas), relações sociais, contextos políticos, situações econômicas, entre outros. Nesse caso, não pertence a uma única esfera de saber, sendo objeto de apreciação de diversas disciplinas e, além de ser teórico-científico, também engloba o saber não científico, garantindo o que Amarante44 Amarante P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007. destaca como polissemia. No curso da história e da interação do ser humano com o meio natural, ele é socialmente (re)construído, ganhando nuances e formas de compreensão que abarcam as especificidades e enredos da vida na sua historicidade. Por fim, longe de pretender estabelecer o conceito ideal para analisar a saúde mental das pessoas, por reconhecer que isso é uma tarefa consideravelmente complexa, essas reflexões enfatizam que esta deve ser uma atividade em permanente discussão devido ao seu nível de importância em uma sociedade na qual, segundo a Organização Mundial de Saúde, “condições de saúde mental afetam milhões de pessoas no mundo”55 World Health Organization. Mental health and development: targeting people with mental health conditions as a vulnerable group. Geneva: WHO; 2010. (p. 2, tradução nossa).

Interseccionalidade: quando eixos de opressão mudam o contexto

Falar de interseccionalidade no campo da Saúde permite aguçar o olhar sobre como as tramas sociais se relacionam à construção do ser saudável e, mais especificamente, para a saúde mental, um campo fertilizado pela subjetividade. Este conceito atua como uma ferramenta que auxilia na aproximação da compreensão do que saúde mental vem a ser e como se desdobra na vida de cada um. Ele instrumentaliza as reflexões sobre quem realmente é um indivíduo, marcado pelas relações simbólicas que se constroem, ratificam-se e se reificam ao longo do tempo, à medida que este ocupa (ou desocupa) espaços e papéis sociais. Os eixos interseccionais expõem a subordinação que lhe é imposta, capazes de influenciar como este se vê e é visto. Se considerarmos que a subjetividade torna única a forma como um indivíduo ou um grupo percebe e expressa valores, sentimentos e preferências, torna-se essencial a busca por ferramentas que auxiliem a identificação das linhas finas que tecem as tramas da vida. A escolha do verbete “finas” não pretende classificá-las como pouco importantes ou frágeis, mas tem a intenção de trazer à tona o fato de que, algumas vezes, a condição de desigualdade e opressão não é percebida nem mesmo pelo próprio indivíduo, além do que são sutis a ponto de transpassar diversas estruturas, preenchendo lacunas pessoais e sociais, arraigando-se à própria constituição humana a ponto de tornar-se aceitável, apesar de perversa, e de ser reconhecida e validada como natural e indissociável de sua identidade, como se por certo pertencesse a ele.

O debate em torno desse conceito ganhou destaque a partir do movimento feminista negro, no final dos anos de 1970, destacando que o cruzamento de eixos de subordinação potencializa os efeitos de um mesmo indivíduo ocupar diferentes espaços sociais de desigualdade. Lopes afirma que “a interseccionalidade revela o que não se vê quando categorias como gênero e raça são conceituadas de maneira separada”66 López LC. A mobilização política das mulheres negras no Uruguai: considerações sobre interseccionalidade de raça, gênero e sexualidade. Sex Salud Soc (Rio J). 2013; (14):40-65. (p. 45), mostrando como sua aplicação amplia a compreensão da complexidade dessa trama que envolve e domina os sujeitos. A professora Kimberlé Crenshaw, ativista negra norte-americana, apresenta interseccionalidade como “uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação”77 Crenshaw K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estud Fem. 2002; 10(1):171-188. (p. 177). Ela faz a associação desse termo com o cruzamento de avenidas.

Utilizando uma metáfora de intersecção, faremos inicialmente uma analogia em que os vários eixos de poder, isto é, raça, etnia, gênero e classe constituem as avenidas que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos. É através delas que as dinâmicas do desempoderamento se movem. Essas vias são por vezes definidas como eixos de poder distintos e mutuamente excludentes; o racismo, por exemplo, é distinto do patriarcalismo, que por sua vez é diferente da opressão de classe. Na verdade, tais sistemas, frequentemente, se sobrepõem e se cruzam, criando intersecções complexas nas quais dois, três ou quatro eixos se entrecruzam77 Crenshaw K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estud Fem. 2002; 10(1):171-188.. (p. 177)

Eixos de dominação social não são apenas paralelos, pois, em algum momento, assim como as avenidas, eles se cruzam, podendo produzir novos contextos, e as expressões da desigualdade não são fenômenos estáticos e, quanto mais isso ocorre com a mesma pessoa, mais ela pode se tornar desempoderada do controle de sua vida. Salienta-se que, mesmo sendo interseccionais, esses eixos não são necessariamente interdependentes e a existência de um não implica na obrigatoriedade da presença de outro. Com efeito, pode ocorrer a não percepção da presença de uma ou outra desigualdade, ou o indivíduo molestado apresentar maior capacidade de enfrentamento e resistência.

Outra ponderação importante é que, conforme afirma Lorde, “não há hierarquia de opressão”88 Lord A. There is no hierarchy of oppressions. In: Byrd RP, Cole JB, Guy-Sheftall B. I am your sister: collected and unpublished writings of Audre Lorde. New York: Oxford University; 2009. p. 219-220. (p. 6), logo, não existe uma opressão que deva ganhar destaque sobre outras, considerando-a mais importante e merecedora de maior concentração de lutas. Akotirene, baseada nos estudos de Patrícia Hill Collins, valida a recriminação contra ”argumentos de competição entre os mais excluídos, as hierarquias entre eixos de opressão e violações consideradas menos importantes”99 Akotirene C. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento; 2018. (p. 33-4). Além das clássicas relações de opressão por classe ou gênero, das relações contemporâneas, emergiram novas formas de opressão como a gordofobia, transfobia e o idadismo, que também precisam ser consideradas como elementos adoecedores das relações sociais para que a análise sócio-histórica do indivíduo seja respeitosa a toda forma de sofrimento.

Em termos de articulação, as diferenças e desigualdades não se sobrepõem dividindo o indivíduo em diversos estados que somados mostrariam sua real condição. Ao tentar identificar quem é uma determinada pessoa na estrutura social, em vez de fazer uma leitura a partir de somatórios – por exemplo: mulher e pobre e transexual e deficiente –, pode-se qualificar a leitura com o seguinte diferencial: mulher, pobre, transexual, deficiente, pois as condições e sofrimentos resultantes disso ocorrem de forma simultânea e daí emerge uma identidade específica. Brah afirma que estas expressões de opressão “não podem ser tratadas como ‘variáveis independentes’, porque a opressão de cada uma está inscrita dentro da outra – é constituída pela outra e é constitutiva dela”1010 Brah A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cad Pagu. 2006; 26:329-376. (p. 351).

Estudos que não consideram essa dinâmica da vida social podem incorrer em análise superficial, não representando de fato a realidade. Crenshaw defende que intervenções planejadas a partir da compreensão parcial e desfocada da real condição feminina (considerando que seus escritos são relacionados à condição da mulher negra na sociedade) “são, muito provavelmente, ineficientes e talvez até contraproducentes”77 Crenshaw K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estud Fem. 2002; 10(1):171-188. (p. 177), sendo então imprescindível a análise detalhada das dinâmicas em que estão envolvidas para produzir intervenções eficazes.

Quando a interseccionalidade se manifesta no campo da Saúde Mental

As mudanças tecnológicas, industriais, científicas e outras da modernidade produziram facilidades e confortos ao cotidiano, a exemplo do acesso à informação em tempo real, que resultaram na globalização do conhecimento e exploração de culturas diferentes. Não obstante, como parte das consequências desse progresso, emergiram desafios que podem afetar as pessoas na sua condição de ser saudável diante das novas formas de lidar com a vida. Para Wilkinson1111 Wilkinson I. Anxiety in a risk society. London: Taylor & Francis e-Library; 2002., um desses resultados é a individualização que pode ocorrer quando há ruptura com referências sociais tradicionais e, na busca por novas formas de organização, o indivíduo termina por perceber-se isolado enquanto enfrenta o ônus da acentuada fragmentação da vida, precisando assumir diversas responsabilidades ao mesmo tempo.

Avaliando que a experiência de sofrimento psíquico pode ser produzida a partir das relações sociais, conforme afirmam Zanello et al.1212 Zanello V, Fiuza G, Costa HS. Saúde mental e gênero: facetas gendradas do sofrimento psíquico. Fractal Rev Psicol. 2015; 27(3):238-246., esses desafios da vida moderna por si só podem ser desencadeadores de angústias. Ponderando uma sociedade na qual as desigualdades podem marcar essas responsabilidades, é imprescindível observar as nuances específicas do contexto no qual cada indivíduo desempenha seus afazeres para que a análise de fato identifique sua real condição para com os outros e ele mesmo. Nesse contexto, a perspectiva da interseccionalidade pode contribuir mais positivamente para captar e expor a realidade dos fatos do que uma análise que considera separadamente as múltiplas variáveis produtoras e/ou amplificadoras de sofrimento oriundas do viver social. Assim, observar como as várias características que compõem a identidade do sujeito – algumas autodeclaradas e outras impostas – interagem entre si (ser negro, pobre, gordo, gay, etc.) produz um olhar mais acurado para a delicada esfera da saúde mental. Reconhecer as nuances do atravessamento de elementos interseccionados sobre a condição emocional e seus desdobramentos sobre o adoecimento psíquico não é tarefa fácil, mas é um exercício que se faz necessário, dada a relevância de qualificar o estudo e a intervenção sobre a saúde mental.

Parece ser razoável refletir que a ligação entre interseccionalidade e saúde mental não possui padrões universais aplicáveis a qualquer indivíduo. Essa condição pode variar conforme o contexto social, econômico, cultural, político e ambiental a que se está exposto, além de poderem ser feitas leituras diferenciadas para o mesmo indivíduo em períodos diferentes da vida. Nem toda interseccionalidade é percebida pelo indivíduo, ou por quem o observa, enquanto fator contribuinte para a redução ou aumento do sofrimento emocional, pois devem ser avaliadas também sua capacidade de pôr em prática conhecimentos e comportamentos protetores necessários para a preservação e promoção da saúde mental. A percepção dessa relação de influência entre esses dois fenômenos pelo próprio indivíduo é construída a partir da reflexão crítica de sua condição social, fato esse que pode ser prejudicado por seu estado de saúde, mas também pode ser estimulada pela interação com os diversos atores sociais que agem direta ou indiretamente sobre sua saúde. A escuta feita por quem esteja preparado para identificar e articular os diversos campos que compõem a vida desses indivíduos, incluindo as questões subjetivas que abarcam interesses, características biológicas e culturais, é uma ferramenta que permite superar análises superficiais e generalistas.

Por ser multideterminada, a saúde mental é campo fértil para o uso de conceitos que auxiliem na decodificação de sua estrutura. Estudos como os de Ramos e Gonzalez1313 Ramos CN, Gonzalez ZK. Interseccionalidade e saúde mental: um olhar para a raça e gênero [no Caps] pelos caminhos do pensamento descolonial. In: Anais do 11o Seminário Internacional Fazendo Gênero & 13th Women’s Worlds Congress; 2017; Florianópolis. Florianópolis: UFSC; 2017. p. 1-9. e Smolen1414 Smolen NJR. Raça/cor da pele, gênero e Transtornos Mentais Comuns na perspectiva da interseccionalidade [dissertação]. Feira de Santana (BA): Universidade Estadual de Feira de Santana; 2016. apresentam essa relação indissociável entre interseccionalidade e saúde mental, tratando de elementos estruturantes da identidade do indivíduo como gênero, raça/cor, condição econômica e social. Em termos de pesquisa, tem sido cada vez mais estudada a interface desses conceitos, mas, quando se trata de focalizar um grupo tão específico como o de estudantes de graduação, a interlocução entre esses temas não tem sido explorada.

No ambiente acadêmico, seria possível afirmar que uma estudante negra, bissexual, residente em região metropolitana distante dos campi da UFBA, pobre e gorda sofre mais ou menos que uma estudante branca, transexual, oriunda do sudeste brasileiro, pobre e sem vínculos familiares saudáveis? Sem considerar as diversas expressões de iniquidade imbricadas no fato de serem estudantes e suas reações respectivas a esses desafios, poder-se-ia ceder à tendência de estabelecer uma simples e básica categoria, pois ambas são estudantes de graduação. Mas, ao entender que, dentro de seu universo particular, cada uma é afetada em diferentes intensidades e frequências, faz-se eclodir o pensamento de que, além de estabelecer subcategorias à condição de estudante, devem-se buscar respostas diferenciadas que adaptem a regra geral à situação concreta, aumentando a possibilidade de produzir uma análise e uma universidade mais equânimes.

De acordo com as declarações de Berth, uma coletividade (neste caso, uma universidade) empoderada é produto de indivíduos “com alto grau de recuperação da consciência de seu eu social, de suas implicações e agravantes”1515 Berth J. O que é empoderamento? Belo Horizonte: Letramento; 2018. (p. 41), ao passo que poderá conduzir mais pessoas a esse estado, pois “o empoderamento individual e coletivo são duas faces indissociáveis do mesmo processo”1515 Berth J. O que é empoderamento? Belo Horizonte: Letramento; 2018. (p. 42).

Pode-se propor então que há uma dinâmica complexa de mútua influência entre saúde mental e interseccionalidade, que requer observação cautelosa por envolver uma cadeia de temas multideterminados.

Método

O estudo original, uma dissertação para obtenção do título de Mestre, foi de abordagem qualitativa e quantitativa e, para este artigo, foram selecionados os objetivos referentes ao fenômeno da interseccionalidade, o que inclui a análise de casos paradigmáticos e a identificação de suas dinâmicas interseccionais, destacando o enfoque qualitativo. Após excluir estudantes que se graduaram; aguardavam colação de grau; integralizaram o curso; não possuíam matrícula ativa no segundo semestre de 2018 e primeiro semestre de 2019; evadiram-se; ou não concluíram o cadastro geral da PROAE (corresponde à entrega de documentação e conclusão de análise socioeconômica), a pesquisa iniciou com uma população de 217 estudantes que relataram experiência de sofrimento/transtorno mental. Esta supressão se deu sobretudo pela dificuldade de contato com estudantes que não estão ativos na universidade. O recorte temporal compreende o período de outubro de 2014 (início das atividades do núcleo) a dezembro de 2017. Desses 217, 27 não concluíram o cadastro geral da PROAE, e 16 envelopes de documentos não foram localizados nos arquivos nos períodos que foram solicitados. Assim, a população final foi composta por 174 estudantes.

A coleta de dados foi feita em documentos entregues para análise de vulnerabilidade socioeconômica, formulários contendo informações de saúde e outras narrativas apresentadas nos atendimentos, relatórios de atividades e nas planilhas de dados. Valendo-se de princípios da Estatística Descritiva para estruturar, sintetizar e apresentar dados, estes foram organizados em planilha a partir de variáveis qualitativas e quantitativas. O agrupamento e a contagem dos dados se deu pelo recurso do filtro para posterior cálculo de frequência simples e porcentagem de cada variável, organizando-se, posteriormente em tabelas. A análise e interpretação constituiu etapa qualitativa, apoiada em estudo de material publicado equivalente às características do público-alvo, gerando informações acerca do perfil sociodemográfico e exibindo fenômenos atinentes à população estudada.

Para as entrevistas, foram selecionados estudantes que declararam viver em condição de desigualdade e opressão a partir da compreensão da interseccionalidade.

A amostra para as entrevistas foi de 12 estudantes. Esse recorte intencional considerou aqueles que estavam com contato atualizado, formulário adequadamente preenchido e que compareciam à sede da PROAE periodicamente para acompanhamento, por ter maior volume de informações registradas, facilitando assim a identificação de elementos potencialmente geradores de discriminação. Atentou-se para que a amostra contemplasse pessoas com diferentes combinações de desigualdade interseccionadas, salientando a diversidade que pode advir quando esse recurso é ponderado. Todos foram convidados a participar da pesquisa por e-mail, convite que foi reforçado por telefonema ou contato presencial. Sete responderam positivamente e as entrevistas individuais com roteiro semiestruturado foram gravadas e transcritas entre os meses de dezembro de 2018 e janeiro de 2019.

Os participantes receberam identificação fictícia extraídas dos nomes dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de Salvador, BA para fins de preservação do anonimato. O método de manejo analítico do material das entrevistas foi a análise de conteúdo de Bardin1616 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. e organizou-se em três fases: pré-análise, exploração e tratamento/inferência/interpretação. A pré-análise se configurou pela organização do material objetivando sua operacionalização. A escolha dos documentos se deu pela pertinência e heterogeneidade destacada pela multiplicidade de combinações interseccionais de características, produzindo maior diversidade e potencializando a observação de seus efeitos na experiência do sofrimento. A exploração do material configurou fase extensa, culminando na confecção de tabela organizada a partir de três categorias centrais: vulnerabilidade individual, social e programática (posto que a pesquisa original incluía o fenômeno da vulnerabilidade em saúde, além da interseccionalidade e saúde mental). Trechos essenciais das entrevistas foram coletados e organizados na tabela. O tratamento, a inferência e interpretação desses dados constituiu-se na fase final desse processo e baseou-se em análise crítica e reflexiva, de forma a corresponder aos objetivos geral e específicos do estudo.

A pesquisa foi apresentada para apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa e teve aprovado parecer de número 3.027.956.

Percepção interseccional do sofrimento psíquico por estudantes universitários

Não obstante este artigo tratar centralmente dos resultados qualitativos da pesquisa original, entende-se como válido expor brevemente resultados quantitativos como forma de enriquecer a percepção situacional do público atendido pelo Nasie.

O estudo sociodemográfico evidenciou um público composto 70% por jovens pretos e pardos (19-29 anos), sendo 89% procedentes de zonas urbanas, com trajetórias de aprendizado prévio construído em escolas públicas (78,7%). Aproximadamente 57% dos lares têm exclusivamente uma mulher como principal mantenedora em estado de pobreza. Enquanto cuida da carreira acadêmica e da saúde, esse público precisa gerenciar sozinho a manutenção de seus novos lares sem renda extra, acessando apenas benefícios da assistência estudantil. Essa conjuntura e seus desafios inerentes apontam para a necessidade de intervenção institucional no sentido de dar suporte para qualificar a permanência e conclusão do curso.

Para as entrevistas, o grupo foi composto por quatro mulheres e três homens, sendo três oriundos do interior do estado e quatro da capital. Todos os participantes entrevistados reconheceram estruturas de opressão que marcam suas vidas, gerando especificidades em suas identidades sociais. Descreveram também que as complicações referentes à saúde foram identificadas em período anterior ao ingresso na universidade, sendo três na infância, dois na adolescência e dois na vida adulta. No entanto, seus relatos mostram que, mesmo tendo iniciado em estágio prévio, as ocorrências de sofrimento psíquico foram acentuadas nas relações estabelecidas no contexto acadêmico. Todos encontravam-se em situação de vulnerabilidade econômica, com renda per capita inferior a um salário-mínimo e meio e dependiam economicamente da assistência estudantil para a permanência na universidade. Segue uma breve caracterização dos entrevistados para melhor compreensão de suas histórias de vida.

Nise declara-se lésbica, negra e de família unipessoal; vive em condição de extrema pobreza; e tem ideação suicida e diagnósticos de ansiedade e pânico. Nzinga é negra, enfrenta a depressão, e tem relações familiares fragilizadas e grande dificuldade de convivência em espaços nos quais a discriminação por aspectos de raça e gênero são mais intensos. Rosa vive com o companheiro em região controlada pelo tráfico de drogas; declara-se bissexual, negra, gorda, bulímica; tem ideação suicida frequente, algumas tentativas de suicídio e diagnósticos de Transtorno de Personalidade Borderline, Transtorno de Ansiedade Generalizada e depressão. Maria é oriunda de quilombo; negra; vítima de violência sexual na infância e adolescência; tem intensa baixa autoestima; e foi criada pelos avós por fragilidade na relação parental. Eduardo é gay e usuário de substância psicoativa; e tem Transtorno Afetivo Bipolar, distúrbio alimentar e ideação suicida. Aristides é pardo, de comunidade popular e heterossexual; possui diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH); e frequentemente pratica automutilação. Franco declara-se branco, gordo, gay, usuário de substâncias psicoativas, com Transtorno Afetivo Bipolar, com TDAH e com Transtorno de Personalidade com instabilidade emocional.

Todos relataram que as condições de desigualdade e opressão em que viviam interferiam negativamente em seu estado de saúde, seis percebiam que seu desempenho acadêmico era prejudicado quando seu estado de saúde não estava favorável e um dizia que nem sempre sentia-se prejudicado em sua rotina acadêmica por consequência da instabilidade em seu quadro de saúde. Esse dado revela a relação entre iniquidades sociais e saúde mental e como essa relação se reverbera na trajetória acadêmica.

Observar o atravessamento da interseccionalidade na saúde mental requer estimular o indivíduo a falar por si, pois pode até mesmo ser infrutífero tentar identificar as consequências da pressão das estruturas de controle social que repousam sobre a condição mental dos sujeitos sem considerar a forma como este aprendeu a divisar e administrar essa realidade. Frente a uma estrutura que produz invisibilidade ao naturalizar a opressão, autenticar um lugar de fala traz à tona uma complexidade de fatores como a subjetividade, que fazem com que cada um experimente desafios similares de formas diversas. Nesse grupo em específico, algumas características os tornam pares: são estudantes da mesma universidade, comprovadamente em estado de privação financeira e entestam desafios como transtornos e/ou sofrimento emocional. Nesses termos, explorar superficialmente o contexto poderia incidir em resultados irreais; por isso, destaca-se o valor da escuta legitimada por meio da entrevista.

Eu descobri que eu não só sofro por ser quem eu sou, por ser Nzinga: eu sofro por ser Nzinga, por ser mulher, por ser preta, por ser retinta, por ter o cabelo crespo, por várias questões. [...]. Aqui eu descobri que eu era diferente. Eu me olhei no espelho e vi: ei, esse cabelo aí? Essa boca, esse rosto, esses traços? Quem é que tá falando na sala? Quem tava falando na sala não era uma pessoa que refletia minha imagem e semelhança. [...] Eu não sou igual a uma pessoa branca, heteronormativa, do cabelo liso, que tem estrutura, que mora na Barra, que tem pai e mãe em casa, que tem carro… eu não sou igual a essa pessoa. […]. Tem uma gama de coisas que eu não tenho. Como é que meu desenvolvimento acadêmico, as minhas notas vão ser iguais a dessa pessoa? Porque ela tem toda uma estrutura que possibilita que essa pessoa seja tal qual ela é. E eu não. Eu tenho que lutar, eu tenho que fazer a minha estrutura pra tentar chegar em algum lugar que eu não sei qual é.

(Nzinga)

O trecho revela que as motivações para o sofrimento nem sempre são silenciosas e, mesmo que não compreendidas em toda sua magnitude e potencial, quando identificadas, permitem seu cruzamento com outras áreas da vida: racismo, pobreza, comprometimento do desenvolvimento acadêmico, permanência qualificada, etc., como bem exemplificado por Crenshaw ao tratar de eixos de subordinação como um cruzamento de avenidas. Interessante notar que a própria estudante, ocupando a posição de oprimida, consegue captar a relação entre as diferentes formas de dominação que ela carrega em sua identidade e como isso reverbera no estado emocional. Elucida que o ambiente universitário também é palco da reprodução histórica de contradições da elite dominante, que se eleva à condição de superior quando comparada a grupos que nem sempre são minoritários, mas que são vistos como inferiores. A abordagem interseccional auxilia na evidência da crueldade desse sistema que classifica pessoas a partir de sua aparência física, suporte econômico, orientação sexual e outros fenômenos mesquinhos.

Assim como Nzinga, Maria e Franco também revelam como esse cruzamento acentua o sofrimento emocional, gerando temores, inseguranças e dificuldades ao relacionar-se com as pessoas.

Dependendo dos lugares que você frequenta, você é muito estereotipado e... às vezes... […] eu não me privo de lugar nenhum, mas eu tenho que, de acordo com o ambiente […], de certa forma, eu me moldo para cada ambiente... para que eu não sofra nenhum constrangimento. [...]. Sei lá, eu me sinto bem pequena assim, diante de alguns lugares, e eu fico com receio.

(Maria)

Tem gente que olha pra mim assim e fala mesmo que eu tô gordo, que não ficaria comigo, porque eu sou gordo. Eu sinto isso como um pouco de discriminação. Mas também tem [...] em relação a minha sexualidade, mas não muito, mas, geralmente, geralmente eu sou mais afeminado, aí as pessoas percebem. Tem gente que olha torto, eu já ouvi piadas, já apanhei por isso, entendeu? [...] E eu também já acabei falando demais que eu tenho Transtorno Bipolar pras pessoas, então agora tem gente que é um pouco preconceituosa, ou reticente comigo, porque elas já ficam com o pé atrás, achando que eu vou ser agressivo, ou que eu vou fazer alguma coisa, tem medo ou acha que eu devia tá internado num manicômio também. E também já sofri preconceito por ser pobre. Assim, tipo, quando eu era muito afeminado, eu apanhava, aí eu tive que disfarçar, porque senão eu ia ficar apanhando o tempo todo, entendeu?

(Franco)

Logo, é propício perguntar: onde está o empoderamento nisso? Ao se sentirem oprimidas, algumas pessoas procuram novos arranjos para continuar pertencendo a certos espaços. Berth1515 Berth J. O que é empoderamento? Belo Horizonte: Letramento; 2018. afirma que, por estar frequentemente mergulhado em circunstância opressora, o oprimido não reconhece essa condição. Percebe-se também que o comportamento frente aos desafios pode validar a opressão e ratificar seu lugar de excluído, e é nesse cenário que adota e reproduz o discurso opressor como forma de vida, mesmo sem perceber. Freire1717 Freire P. Pedagogia do oprimido. 17a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987. aduz que é impossível ao oprimido, que hospeda o opressor, ou que o mantém como sombra, participar de forma reflexiva da conquista de sua liberdade, assumindo o controle do seu destino histórico. Esse é um processo crítico que se inicia quando o oprimido percebe que o opressor, em algum ponto, também é vulnerável, e é nessa fase que o que ele descreve como desvalia (introjeção da mensagem negativa do opressor até que o oprimido passa a acreditar que ele realmente é inferior e que o seu opressor é detentor da superioridade) começa a ser questionada. O autor afirma que esse despertar é mais provável de ocorrer quando o oprimido pertence a grupos engajados na luta por libertação que estimulam o diálogo e a reflexão. Essa transformação para ser perene exige que, ao expulsar de si a dominação do opressor, o espaço deixado vazio seja preenchido imediatamente com discurso da sua autonomia. Pode-se refletir então que a manutenção da condição de oprimido opera o acirramento do sofrimento e dificulta a autonomia para aplicação de boas práticas de saúde.

Para os entrevistados, o sofrimento/transtorno mental já era percebido em fase anterior ao ingresso na universidade e, a partir dessa nova fase, todos esperavam ter condições de concluir o curso iniciado, seja recebendo apoio da entidade de educação, de família ou de amigos; ou por meio de recursos próprios. Nessa construção, ao deparar-se com as discrepâncias sociais afirmadas na estrutura desse novo ambiente, ao passo que lida com sua condição de saúde, muitas são as possibilidades de desfecho, variando conforme a subjetividade e recursos de cada um.

Falando sobre o domínio que se pode projetar sobre o outro, Nzinga revela que:

Intensifica o sofrimento [...] por várias questões, ainda mais porque eu tô inserida dentro do contexto da academia. Dentro do contexto da academia em uma universidade pública, eu a princípio achei que seria abraçada por ter conseguido, […] no entanto, quando eu me vi nesse espaço que eu não me identifiquei com ninguém, meus professores não eram como eu projetava na minha mente, eu vi assim: Onde eu tô? O que é que eu tô fazendo aqui? Por que que eu tô sofrendo tanto e eu não tô identificando os motivos pelo qual eu tô sofrendo?

(Nzinga)

Ao mesmo tempo que as opressões influenciam o estado emocional e tendem a descredenciar o valor das conquistas alcançadas, o reflexo dessa interação desemboca na trajetória acadêmica.

Como a gente vive em função da universidade, isso acaba sofrendo vários impactos, porque a concentração falta, o desejo de continuar estudando falta, o de você abrir um caderno falta.

(Eduardo)

Se eu não tô bem psicologicamente, eu não consigo desenvolver minhas atividades, eu não consigo pesquisar, eu não consigo nem sair de casa. Porque meu psicológico me influencia de tal forma que eu não consigo exercer ações para com o mundo se eu não estiver com ele no lugar, se eu não estiver com ele bem. Minha mãe costuma dizer que sem cabeça, o corpo não é nada. A cabeça é que direciona pra onde o corpo vai, então, se meu psicológico não estiver bem, minha vida acadêmica, ela vai afundar.

(Nzinga)

Há também aqueles que, ao serem confrontados por situações adversas, revelam competências que destacam o enfoque positivo e os fazem reagir de forma diferenciada. A resiliência, segundo Silva et al., “aporta uma perspectiva promissora em termos da saúde e do desenvolvimento humano, principalmente, junto às populações que vivem em condições psicossociais desfavoráveis”1818 Silva MRS, Elsen I, Lacharite C. Resiliência: concepções, fatores associados e problemas relativos à construção do conhecimento na área. Paidéia (Ribeirão Preto). 2003; 13(26):147-156. (p. 151).

A gente, por ser negro, por ser pobre, ter uma sexualidade diferente – no caso, lésbica –, então tudo isso conta pra que as pessoas te vejam diferente, de uma maneira negativa. E você ter um transtorno mental, eu acho que isso influencia muito. […]. Vamos dizer assim, que é muita informação para uma pessoa só, né? A sociedade não saber lidar com isso, sabe? Não ter essa, essa convivência com o novo, com o diferente, né? [...]. Na verdade, mesmo com toda essa discriminação, eu sempre penso positivo, sabe? Eu sempre penso que é mais uma pedra no meio do caminho, como diz aquele poeta Carlos Drummond de Andrade: “há uma pedra no meio do caminho”, mas eu posso tirar ela do meio do caminho e dar continuidade a minha vida, sabe?

(Nise)

É nítida a percepção que tenho por vir de comunidade tal. Acho que os colegas percebem suas gírias um pouco carregada… sua forma de falar. E eu sofri muito isso quando cheguei aqui, tipo, era bem clara a segregação dos grupos na minha turma. [...] Então, quando as pessoas percebem isso, automaticamente sabem que você veio de escola pública, então você não tem aquela coisa de oferecer a eles algo em troca, então eu era segregado mesmo, discriminado, sei lá. Não participava dos grupos, conversas e tal. [...] Você começa a se autocobrar, a se autopunir. Às vezes minha autopunição era física, você mesmo sabe, tipo de automutilação. [...] Hoje em dia eu vou pra frente, vou persistir até conseguir resolver. Mas acho que isso chegou a agravar assim, foi o que me ajudou a chegar, sei lá, no fundo do poço, ajudou a piorar mesmo minha saúde.

(Aristides)

Como já apresentado antes, esses estudantes vivem situações similares, mas o enfrentamento ocorre de maneira diversa. Não se pretende com isso empreender uma busca pela melhor forma de atravessar essas barreiras enquanto se vive a identidade de estudante, mas, sim, ressaltar a relevância do respeito pela condição subjetiva ao ofertar estratégias para suplantar tais desafios.

As entrevistas expõem a exclusão por consequência de suas condições sociais no ambiente no qual os participantes da pesquisa esperavam ser aceitos e que esse fenômeno acentua o sofrimento emocional quando não conseguem mecanismos de pertencer a esses espaços. Isso não significa que o empoderamento dos participantes seja baixo, mas apenas um ajustamento do comportamento frente a essas adversidades.

Considerações finais

A exposição feita neste estudo destacou o predicado da multidimensão atribuído ao fenômeno da saúde mental. Suas dimensões o tornam complexo, fazendo com que sua manifestação na vida das pessoas seja carregada de singularidade, sendo então válido o emprego de recursos que permitam desnudar suas nuances e desdobramentos. Desse modo, a análise se incumbiu da tarefa de abarcar o nexo entre saúde mental e interseccionalidade.

Em meio à subjetividade que integra o estado peculiar de cada um, o conceito da interseccionalidade contribui como suporte para melhor clareza na percepção/revelação das características que compõem sua identidade, sendo relevante notar que algumas dessas características são definidas e impostas pelo contexto exterior – a partir das relações sócio-históricas – para o interior, ressoando sobre a forma como um determinado indivíduo se reconhece, relaciona-se com outros e experimenta seu bem-estar. O nível dessa influência varia para cada um, podendo ocorrer também que, devido a atributos e experiências individuais, esse confronto não produza prejuízos concretos à saúde. Nesta pesquisa, as narrativas apontaram consequências das opressões interseccionalizadas, com destaque para preconceitos de gênero, orientação afetivo-sexual, pobreza, raça/cor e estigmas acerca de suas condições de saúde mental, tornando-os mais suscetíveis ao sofrimento. Essas repercussões são heterogêneas, ora ratificando a exclusão a partir do comportamento passivo que exibe o desempoderamento frente à força da discrepância das relações sociais conduzidas pelo poder da classe dominante, ora demonstrando superação ao recorrer a atributos pessoais como a resiliência, ou a recursos coletivos, como grupos sociais de apoio ou de militância/ativismo. Essa percepção do entrelace de aspectos sócio-históricos de multidiscriminação, que matizam e rotulam o indivíduo, com a experiência subjetiva do sofrimento/transtorno emocional é melhor expressada por meio do discurso; daí a importância da oferta de espaço adequado para a fala e uma escuta acolhedora e qualificada.

É necessário também considerar elementos potencialmente geradores de estresse e realçadores do sofrimento mental, como as características específicas da vida universitária, das quais pode-se citar a competição em busca dos melhores espaços acadêmicos, a expectativa de formação profissional que possibilite mudanças no padrão econômico dos estudantes e a superação das deficiências do ensino-aprendizagem no Ensino Médio.

Sendo a educação um fator que atua sobre a saúde de forma determinante/condicionante, é de fundamental importância que a universidade avance nas discussões acerca de sua responsabilidade nessa construção do ser saudável, na atenção para as especificidades do público que recebe periodicamente e no reconhecimento de que muitos aspectos da desigualdade enraizada na sociedade contemporânea também são percebidos e validados em seus espaços, devendo, então, envidar esforços no sentido de fomentar estratégias de compreensão dessas dinâmicas sociais e de seu enfrentamento.

  • Vieira VMSA, Torrenté MON. Saúde mental e interseccionalidade entre estudantes em uma universidade pública brasileira. Interface (Botucatu). 2022; 26: e210674 https://doi.org/10.1590/interface.210674

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Editado por

Editora
Rosana Teresa Onocko-Campos
Editor associado
Alberto Rodolfo Velzi Diaz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2021
  • Aceito
    13 Jun 2022
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