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Caminhos da população ribeirinha no acesso à urgência e à emergência: desafios e potencialidades

Caminos de la población ribereña en el acceso a la urgencia y emergencia: desafíos y potencialidades

Resumos

O estudo objetivou analisar a produção do acesso da população ribeirinha aos serviços de urgência e emergência em Maués, Amazonas, Brasil, tendo como metodologia a abordagem participativa, uso de mapas falantes e análises das narrativas. Destacou-se a importância do agente comunitário de saúde (ACS) e dos mecanismos de atuação em território ribeirinho, como Unidade Básica de Saúde Fluvial e “ambulanchas”. Mas expõe ainda desafios com relação ao transporte sanitário em situações de urgência e emergência e a falta de um profissional de nível superior em território para o atendimento inicial. Além disso, a articulação e a comunicação entre os setores e o processo de referenciamento ainda são deficientes. Assim, é essencial que sejam elaboradas estratégias que integrem os diferentes pontos da Rede, viabilizando essa comunicação e a articulação. E, por meio de encontros com diálogo reflexivo entre a gestão e trabalhadores, sejam pensadas novas estratégias que viabilizem esse acesso.

Palavras-chave
Acesso aos serviços de saúde; Urgência e emergência; Território e saúde; Amazônia


El objetivo del estudio fue analizar la producción del acceso de la población ribereña a los servicios de emergencia en Maués, Amazonas, Brasil. Teniendo como metodología el abordaje participativo, el uso de mapas orales y el análisis de las narrativas. Se subrayó la importancia del Agente Comunitario de Salud y de los mecanismos de actuación en territorio ribereño, como UBS Fluvial y “ambulanchas”. Pero también expone desafíos con relación al transporte sanitario en situaciones de urgencia y emergencia y la falta de un profesional de nivel superior en el territorio para la atención inicial. Además, la articulación y comunicación entre los sectores y el proceso de referencia todavía es deficiente. Por lo tanto, es esencial la elaboración de estrategias que integren los diferentes puntos de la red, viabilizando esa comunicación y articulación. Y que por medio de encuentros con diálogo reflexivo entre la gestión y los trabajadores se piensen nuevas estrategias que viabilicen ese acceso.

Palabras clave
Acceso a los servicios de salud; Infecciones de transmisión sexual; Urgencia y emergencia; Territorio y salud. Amazonia


The study aimed to analyze the riverside population’s access to urgent and emergency services in Maués, Amazonas, Brazil, through the methodology of participatory approach and the analysis of talking maps and narratives. The relevance of the Community Health Agent came was highlighted, as well as the importance of mechanisms to deliver care in the riverside territory, such as the Fluvial Primary Care Unit and launches known as ambulanchas. However, challenges also came to light, like transportation in urgent and emergency situations and lack of a professional with a higher education degree to provide initial care in the territory. In addition, articulation and communication between sectors and the referral process are still deficient. Thus, strategies are needed to integrate the different points of the Healthcare Network, enabling communication and articulation. Moreover, new strategies to promote healthcare access must be developed in meetings between management and workers, grounded on reflective dialogue.

Keywords
Access to health services; Urgency and emergency; Territory and health; Amazon


Introdução

O acesso universal à saúde como um direito de todo cidadão, garantido pela Constituição Federal brasileira de 198811 Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal; 1988., pode ser abordado e analisado de diferentes maneiras. A ampliação do acesso deu-se pela implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) e continuou sua consolidação mediante a implantação das Redes de Atenção à Saúde (RAS), bem como as demais estratégias que vêm sendo implementadas nas últimas décadas.

No Brasil, as RAS foram implantadas a partir de 2010 com suas redes temáticas prioritárias. E a Rede de Urgência e Emergência (RUE), como uma dessas redes prioritárias, foi instituída pela Portaria n. 1.600, de 7 de julho de 201122 Assis MMA, Jesus WL. A. Acesso aos serviços de saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo de análise. Cienc Saude Colet. 2012; 17(11):2865-2875., como uma reformulação da Política Nacional de Atenção às Urgências. No estado do Amazonas, o planejamento da RAS e da própria RUE deu-se logo após a implantação desse novo modelo de Atenção à Saúde33 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.600, de 7 de Julho de 2011. Reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui a Rede de Atenção às Urgências no Sistema Único de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2011.; contudo, a rede em si não funciona como deveria. Ainda é necessária uma organização e mais investimentos para implementação da RUE e de outras redes de atenção nos diversos municípios do Amazonas. Contudo, devem ser consideradas as peculiaridades de cada município, seus desafios, potencialidades e inovações já existentes, seja no âmbito da Atenção Básica (AB) seja no da Urgência e Emergência.

A articulação entre AB e os Serviços de Urgência e Emergência ainda é incipiente no país, assim como no município do estudo. Apesar da implantação das RAS e da própria RUE, ainda há necessidade de uma articulação entre os serviços que busque alcançar a integralidade e a continuidade do cuidado44 Jorge AO, Coutinho AAP, Cavalcante APS, Fagundes MAS, Pequeno CC, Carmo M, et al. Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica. Divulg Saude Debate. 2014; (52):125-45., pois a AB é um componente da RUE, cujas ações devem estar integradas, havendo, assim, uma comunicação e uma articulação efetivas que proporcionem a longitudinalidade do cuidado, considerando as especificidades regionais.

A Amazônia, com sua diversidade social, cultural e geográfica, apresenta diversas outras “Amazônias”. Toda essa pluralidade necessita de um olhar diferenciado para a elaboração de políticas públicas voltadas às populações específicas, como ocorreu na reformulação da Política Nacional da Atenção Básica (PNAB) com a implantação das equipes ribeirinhas e fluviais, bem como da UBS fluvial para o contexto da Amazônia e da região pantaneira55 El Kadri MR, Santos BS, Lima RTS, Schweickardt JC, Martins FM. Unidade Básica de Saúde Fluvial: um novo modelo da Atenção Básica para a Amazônia, Brasil. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180613. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.180613.
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O termo ribeirinho aqui utilizado considera a complexidade e a abrangência da definição do rural, uma vez que as especificidades da população ribeirinha não podem ser mensuradas por uma característica estritamente geográfica ou de uma simples classificação66 Pessoa VM, Almeida MA, Carneiro FF. Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saude Debate. 2018; 42(1):302-14.. Existem diferentes ruralidades em diversos contextos, seja na região amazônica, seja na pantaneira ou em outras regiões55 El Kadri MR, Santos BS, Lima RTS, Schweickardt JC, Martins FM. Unidade Básica de Saúde Fluvial: um novo modelo da Atenção Básica para a Amazônia, Brasil. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180613. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.180613.
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. Assim, para se enquadrar nessa conceituação de rural, utilizamos o termo rural/ribeirinho para abordar as equipes de saúde da família do município e para tratar especificamente da população ribeirinha.

O rural/ribeirinho, aqui apresentado, busca contemplar as falas e os sentidos que os profissionais e a população entendem como sendo o rural e o ribeirinho. Para eles, parece não haver uma distinção exata, sendo muitas vezes utilizados como sinônimos. Até mesmo para a gestão, as equipes não são definidas como ribeirinhas, apesar de seu perfil de demanda populacional ser na maioria de ribeirinhos, sendo denominadas como equipes rurais. Para tanto, utilizamos o termo rural/ribeirinho para designar as equipes de saúde.

A população ribeirinha, neste estudo, é considerada uma categoria social, não se limitando a uma questão geográfica de povos que vivem às margens de lagos e igarapés. São pessoas que vivem em comunidades rurais/ribeirinhas, tendo sua vida intrinsecamente ligada ao território líquido, com uma relação dinâmica com o ambiente que é influenciada pelo ciclo das águas77 Pereira FR, Schweickardt JC, Lima RTS, Schweickardt KHSC. O banzeiro no território líquido da Amazônia: a micropolítica do trabalho de uma equipe de saúde ribeirinha. In: Schweickardt JC, El Kadri MR, Lima RTS, organizadores. Atenção Básica na Região Amazônica: saberes e práticas para o fortalecimento do SUS. Porto Alegre: Rede Unida; 2019. p. 92-107.,88 Schweickardt JC, Sousa RTL, Simões AL, Freitas CM, Alves VP. Território na Atenção Básica: abordagem da Amazônia equidistante. In: Ceccim RB, Kreutz JA, Campos JDP, Culau FS, Wottrich LAF, Kessler LL, organizadores. In-formes da Atenção Básica: aprendizados de intensidade por círculos em rede. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 101-32.. O termo território líquido tem sido abordado em estudos locais e regionais, mas com um impacto e uma abrangência maior. Neste trabalho, esse termo não se detém a características e condições geográficas, mas se refere a um lugar de vivências característico das populações ribeirinhas, dos movimentos de ir e vir, das conexões existenciais e relações comunitárias do cotidiano ribeirinho88 Schweickardt JC, Sousa RTL, Simões AL, Freitas CM, Alves VP. Território na Atenção Básica: abordagem da Amazônia equidistante. In: Ceccim RB, Kreutz JA, Campos JDP, Culau FS, Wottrich LAF, Kessler LL, organizadores. In-formes da Atenção Básica: aprendizados de intensidade por círculos em rede. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 101-32..

Nesse território líquido é onde são produzidas as relações de cuidado e de organização social e política, mas também é um lugar onde a solidariedade e o compromisso dos comunitários vizinhos estão sempre presentes. Mesmo diante das dificuldades, potencializam o cuidado por meio das redes vivas. Esse território não se restringe a um aspecto geográfico, mas é percebido como um território existencial e do cuidado, expresso pelo movimento dos rios e da influência que exerce sobre a vida dos ribeirinhos99 Heufemann NEC, Schweickardt JC, Lima RTS, Farias LN, Moraes TLM. A produção do cuidado no “longe muito longe”: a Rede Cegonha no contexto ribeirinho da Amazônia. In: Feuerwerker LCM, Bertussi DC, Merhy EE, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis; 2016. p. 102-13..

Diante dos fixos e fluxos existentes no cotidiano nos caminhos percorridos, seja nos resgates, seja nas visitas domiciliares diárias aos comunitários, os agentes comunitários de saúde (ACS) promovem o cuidado em saúde no território ribeirinho. Esse território não é fixo, mas possui os fixos apresentados nos mapas e presentes na memória dos ribeirinhos, como as escolas, igrejas, unidades de saúde e os igarapés1010 Medeiros JS. Caminhos da população ribeirinha: produção de redes vivas no acesso aos serviços de urgência e emergência em um município do Estado do Amazonas [dissertação]. Manaus: Fundação Oswaldo Cruz; 2020., além dos fluxos que representam o andar dos ribeirinhos no território líquido, as conexões e relações estabelecidas entre usuários, comunidade e a própria rede de saúde. São os movimentos de ir e vir no cotidiano de suas vidas e dos serviços de saúde; assim, entende-se que os fixos estão fortemente ligados aos fluxos1111 Santos M. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Hucitec; 1988..

A escolha do município de Maués para este estudo se deu devido a sua predominância em população rural/ribeirinha. E devido a sua vasta extensão territorial, apresenta uma baixa densidade demográfica, possibilitando uma diversidade de experiências nesse território característico da Amazônia. O estudo teve por objetivo principal analisar a produção do acesso da população ribeirinha aos serviços de urgência e emergência no município de Maués, descrevendo os fluxos de acesso da população ribeirinha aos serviços de urgência e emergência.

Abordagem metodológica

Este estudo é oriundo de uma pesquisa mais abrangente sobre “Acesso da população ribeirinha à RUE no estado do Amazonas”. É um recorte dos resultados de uma dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Condições de Vida e Situações de Saúde na Amazônia, tendo como abordagem metodológica a pesquisa participativa, por meio de um estudo de caso descritivo e exploratório no município de Maués, Amazonas, Brasil.

Este estudo está fundamentado na abordagem participativa, utilizando a técnica de “Mapas falantes” descrita por Toledo e Pelicioni1212 Toledo RF, Pelicioni MCF. A educação ambiental e a construção de mapas falantes em processo de pesquisa-ação em comunidade indígena na Amazônia. Interacções. 2009; 5(11):193-213. Doi: https://doi.org/10.25755/int.382.
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como uma técnica que auxilia na discussão de problemáticas identificadas por um determinado grupo, possibilitando uma melhor compreensão acerca dos desafios de seu cotidiano mediante a descrição gráfica e os relatos apresentados. Além disso, foi utilizada a observação participante e o diário de campo para anotações das impressões identificadas durante as oficinas de elaboração e apresentação dos mapas. Também lançamos mão da realização de entrevistas semiestruturadas com gestores e profissionais das equipes rurais/ribeirinhas e do hospital, totalizando 14 entrevistas.

Foram organizadas duas oficinas: a oficina de “Mapas falantes”, para elaboração e apresentação dos mapas com a descrição dos fluxos de acesso da população ribeirinha, e a oficina de “Casos complexos” para discussão de casos de urgência e emergência na área ribeirinha. As oficinas foram realizadas em dois dias, e no primeiro dia participaram da oficina de “Mapas falantes” dois enfermeiros responsáveis pelas equipes rurais/ribeirinhas, a coordenadora da AB e 63 ACS. No segundo dia houve a participação dos dois enfermeiros e de 64 ACS.

Os relatos dos ACS foram transcritos e organizados de acordo com as categorias analíticas identificadas nas oficinas. As que mais se destacaram foram transporte sanitário e território do cuidado. A construção e a discussão dos resultados foram obtidas pela análise de narrativas das experiências de vida desses profissionais. Também adotamos o modelo de análise de Assis e Jesus1313 Santos-Melo GZ, Andrade SR, Souza CRS, Erdmann AL, Meirelles BHS. Organização da rede de atenção à saúde no estado do Amazonas - Brasil: uma pesquisa documental. Cienc Cuid Saude. 2018; 17(3):1-8., considerando os aspectos organizacionais e políticos como dimensões desse acesso.

Por se tratar de um recorte de uma pesquisa mais abrangente sobre “Acesso da população ribeirinha à RUE no estado do Amazonas”, o projeto guarda-chuva foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Amazonas sob o CAAE 99460918.3.0000.5020 e aprovado, atendendo aos requisitos éticos e legais de pesquisa com seres humanos, conforme a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS)1414 Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de Dezembro de 2012. Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília: Ministério da Saúde; 2012..

Resultados e discussão

Caminhos percorridos em busca do acesso à saúde em território ribeirinho

O município de Maués possui uma vasta extensão territorial e hidrográfica, com cerca de 270 comunidades e núcleos rurais/ribeirinhos, divididos em 12 polos de referência1515 Almeida VF, Schweickardt JC, Firmo FO, Oliveira JJQ, Barros HCR, Ribeiro FL, et al. Os fluxos da população ribeirinha na terra do guaraná: o caso do município de Maués, Amazonas. In: Soares EPB, Schweickardt JC, Guedes TRON, Reis AES, Freitas JMB, organizadores. A arte do cuidado em saúde no território líquido: conhecimentos compartilhados no Baixo Rio Amazonas, AM. Porto Alegre: Rede Unida; 2021. p. 193-209., e apresenta uma das menores densidades demográficas da região, com uma predominância de população residente em área rural. Em busca da integralidade da Atenção à Saúde, o município de Maués busca atender a população ribeirinha por meio das unidades de saúde, seja de urgência e emergência (Hospital Municipal) seja na AB, pelas equipes de saúde rural/ribeirinhas, especialmente por meio dos ACS espalhados pelas comunidades ao longo dos rios e igarapés.

No início do estudo, havia apenas quatro unidades de saúde em área ribeirinha cadastradas no CNES e que foram desativadas em 2018. Contudo, até o final do estudo foram construídas novas unidades em área rural/ribeirinha e outras foram reformadas para atender melhor a população.

O município do estudo possui sete equipes de saúde definidas como rurais/ribeirinhas, pois não são equipes fixas no território, havendo apenas um técnico de enfermagem e os ACS que atendem diretamente a população no cotidiano1515 Almeida VF, Schweickardt JC, Firmo FO, Oliveira JJQ, Barros HCR, Ribeiro FL, et al. Os fluxos da população ribeirinha na terra do guaraná: o caso do município de Maués, Amazonas. In: Soares EPB, Schweickardt JC, Guedes TRON, Reis AES, Freitas JMB, organizadores. A arte do cuidado em saúde no território líquido: conhecimentos compartilhados no Baixo Rio Amazonas, AM. Porto Alegre: Rede Unida; 2021. p. 193-209.. Os demais profissionais, como enfermeiros e médicos, são responsáveis pelas equipes, mas não residem em área ribeirinha. Eles geralmente vão junto com a equipe fluvial nas viagens da UBS Fluvial para os atendimentos às comunidades pelas quais são responsáveis. Quando necessário, especialmente em casos de urgência e emergência, os ribeirinhos vão até a sede municipal em busca de atendimento no hospital, sendo conduzidos por um familiar ou pelo ACS de sua área. Em alguns casos, vão até a comunidade de referência, quando possível, para realizar os primeiros socorros com o técnico de enfermagem e seguem para o hospital.

A comunidade de referência é definida como polo para as demais comunidades situadas em áreas próximas, nas calhas dos rios e igarapés que circundam o município de Maués. Alguns polos de referência possuem uma área de abrangência mais extensa e com número reduzido de comunidades e/ou núcleos pertencentes ao polo, pois necessitam de uma atenção diferenciada devido ao tempo de deslocamento e à quantidade de famílias assistidas.

A principal via de transporte e deslocamento dos ribeirinhos na Amazônia é a fluvial77 Pereira FR, Schweickardt JC, Lima RTS, Schweickardt KHSC. O banzeiro no território líquido da Amazônia: a micropolítica do trabalho de uma equipe de saúde ribeirinha. In: Schweickardt JC, El Kadri MR, Lima RTS, organizadores. Atenção Básica na Região Amazônica: saberes e práticas para o fortalecimento do SUS. Porto Alegre: Rede Unida; 2019. p. 92-107.. Em algumas exceções, no período da seca, formam-se estradas e caminhos onde antes eram lagos e igarapés, e o percurso é feito geralmente a pé. Para acessar os serviços de saúde na cidade, os ribeirinhos geralmente utilizam as embarcações de pequeno porte com motor rabeta1616 Guimarães AF, Barbosa VLM, Silva MP, Portugal JKA, Reis MHS, Gama ASM. Acesso aos serviços de saúde por ribeirinhos de um município no interior do estado do Amazonas, Brasil. Rev Pan-Amaz Saude. 2020; 11:e202000178. Doi: http://dx.doi.org/10.5123/s2176-6223202000178.
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O tempo médio de viagem entre a comunidade mais próxima e a sede municipal é de 30 minutos; já entre a comunidade mais distante é cerca de 18 horas de barco ou rabeta. As comunidades mais distantes da sede são Santa Maria do Caiaué e Osório da Fonseca, ambas no rio Paracuni1717 Almeida VF. Fluxos da população ribeirinha no acesso aos serviços de urgência e emergência: um estudo de caso no município de Maués, AM [dissertação]. Manaus: Fundação Oswaldo Cruz; 2021.. O tempo médio de deslocamento da população ribeirinha em busca de acesso aos serviços de saúde é de cerca de 4,2 horas1616 Guimarães AF, Barbosa VLM, Silva MP, Portugal JKA, Reis MHS, Gama ASM. Acesso aos serviços de saúde por ribeirinhos de um município no interior do estado do Amazonas, Brasil. Rev Pan-Amaz Saude. 2020; 11:e202000178. Doi: http://dx.doi.org/10.5123/s2176-6223202000178.
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A distância percorrida entre as comunidades mais distantes e a sede municipal é semelhante ao tempo de viagem de barco da sede até a capital, Manaus, que dura em média de 18 a vinte horas de viagem. Esse tempo percorrido depende das condições climáticas e das embarcações, bem como do período e da estação do ano55 El Kadri MR, Santos BS, Lima RTS, Schweickardt JC, Martins FM. Unidade Básica de Saúde Fluvial: um novo modelo da Atenção Básica para a Amazônia, Brasil. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180613. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.180613.
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,88 Schweickardt JC, Sousa RTL, Simões AL, Freitas CM, Alves VP. Território na Atenção Básica: abordagem da Amazônia equidistante. In: Ceccim RB, Kreutz JA, Campos JDP, Culau FS, Wottrich LAF, Kessler LL, organizadores. In-formes da Atenção Básica: aprendizados de intensidade por círculos em rede. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 101-32.. Isso traz uma reflexão acerca dos desafios enfrentados pela população ribeirinha para acessar os serviços de saúde, pois, além da distância entre as comunidades, muitos não dispõem de transporte próprio, como motor rabeta, para se deslocar até a sede.

De acordo com os ACS que conhecem o território ribeirinho e os caminhos percorridos pelas águas, o tempo de deslocamento vai depender principalmente do tipo de embarcação e da potência do motor utilizado. Assim, é difícil estimar o tempo de viagem pelos rios, lagos e igarapés, porque o percurso pode ser facilitado ou dificultado por diversos fatores que podem influenciar nesse tempo.

As principais vias de acesso das comunidades até a sede municipal ocorrem pelos rios Maués-Açu, Maués-Miri, Parauari, Urupadi, Apocuitaua e pelo Paraná do Urariá. Esses rios extensos são cortados por lagos e igarapés que dão acesso às comunidades ribeirinhas mais distantes.

A população ribeirinha geralmente acessa os serviços de saúde na sede municipal navegando por esses rios, principalmente em casos de urgência ou emergência1616 Guimarães AF, Barbosa VLM, Silva MP, Portugal JKA, Reis MHS, Gama ASM. Acesso aos serviços de saúde por ribeirinhos de um município no interior do estado do Amazonas, Brasil. Rev Pan-Amaz Saude. 2020; 11:e202000178. Doi: http://dx.doi.org/10.5123/s2176-6223202000178.
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, já que nas comunidades não existe uma unidade ou atendimento específico voltado para urgências e emergências.

A ampliação da AB, com a implantação de Unidades Básicas de Saúde no território ribeirinho e das UBS Fluvial para realizar os atendimentos ambulatoriais, possibilita uma melhoria nos atendimentos. A presença do serviço de saúde no território aumenta as possibilidades de acesso dessa população aos cuidados em saúde e, por conseguinte, proporciona uma melhoria na qualidade de vida e de saúde da população. Uma Unidade de Saúde em território ribeirinho facilita o acesso, pois o tempo de deslocamento até a unidade de referência é bem menor do que até a sede municipal, mesmo utilizando um motor rabeta.

O mapa da comunidade Novo Alvorecer, no rio Limão Grande (Figura 1), apresenta características bem singulares do contexto ribeirinho, no qual a população residente enfrenta um extenso percurso. A ACS apresenta o mapa falante da comunidade à qual acompanha, destacando os desafios para os usuários com relação ao transporte, pois nem todos têm um meio de transporte próprio e muitas vezes não dispõem de recursos financeiros para pagar passagem, dependendo, assim, da ajuda de comunitários e dos próprios ACS para conduzi-los até a sede municipal em casos de urgência e emergência.

Figura 1
Mapa falante da área de abrangência de uma ACS do Polo 01, Rio Limão Grande, Comunidade Novo Alvorecer.

Conforme descrito no mapa, a comunidade Novo Alvorecer possui cerca de 46 famílias acompanhadas pela equipe de saúde rural/ribeirinha, e dentre esses usuários há diabéticos e hipertensos que têm dificuldade de acessar os serviços de saúde na cidade. Daí a importância da implantação da UBSFluvial que faz o percurso de atendimentos nas comunidades ribeirinhas levando cuidado em saúde para essa população55 El Kadri MR, Santos BS, Lima RTS, Schweickardt JC, Martins FM. Unidade Básica de Saúde Fluvial: um novo modelo da Atenção Básica para a Amazônia, Brasil. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180613. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.180613.
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. Esse modelo de atenção possibilita a realização de exames e consultas ambulatoriais, que dificilmente seria possível se não houvesse esse modelo assistencial que foi implantado no município em fevereiro de 2019.

Outro grande avanço para a saúde local ocorreu no ano seguinte, em maio de 2020, com a introdução de lanchas, denominadas “ambulanchas”, para atender às comunidades ribeirinhas mais distantes. Essas “ambulanchas” ficam estacionadas na comunidade polo de referência para as demais comunidades. Quando há necessidade de deslocamento, a comunicação é feita por rádio e, geralmente, o agente comunitário ou o técnico de enfermagem estabiliza o paciente e, na medida do possível, o conduz até o hospital do município.

Como é possível observar no desenho gráfico apresentado, algumas residências são distantes umas das outras e o deslocamento a pé em alguns casos é impossibilitado, sendo necessário percorrer o caminho com rabeta. O ACS faz as visitas diariamente, buscando atender às demandas da população ribeirinha local. Ao final do mês, o ACS vai até a sede do município para entregar a produção e participar de reuniões com a coordenação da AB e a gestão local. Nesse momento, apresenta as demandas da população e os problemas identificados naquele período, bem como as conquistas alcançadas.

Essas representações gráficas apresentadas expressam um pouco da experiência de vida e do trabalho dos ACS em área ribeirinha. Cada caminho expressa a lembrança de um desafio ou de uma conquista durante suas vivências na comunidade, seja nas visitas, seja mesmo nos resgates de uma gestante em trabalho de parto, como nos relatos a seguir:

[...] Era umas 6 horas da manhã eu ia passando na frente da casa dessa cidadã, e lá chamaram, aí encostei lá, quando me deparei que a mulher tinha parido. Foi uma situação que me deixou meio desesperado, porque a gente não sabe relatar o fato que aconteceu, só que a criança tava lá e o cordão umbilical tinha arrebentado bem reszinho, e tava sangrando demais e não tinha como a gente fazer nada, não tinha como pegar [...]

(ACS 1 – Oficina de casos complexos)

[...] Nesse período tava seco, muito seco mesmo... a nossa rabeta estava fora da comunidade. Veio o marido da gestante e disse que ela tava com acesso de parto... Ai eu peguei a mulher lá onde ela estava e botei numa canoa emprestada e um motor rabeta 5 hp, e nós viemos. Quando cheguei mais fora eu liguei pro enfermeiro responsável pra pedir uma ambulância.... mas quando chegou no meio do lago do Limão a criança nasceu... aí eu parei a rabeta pra fazer o atendimento com a paciente e tornei a ligar pro enfermeiro que era pra mandar a ambulância aguardar no porto que nós tava chegando, e conseguiram socorrer [...]

(ACS 2 – Oficina de casos complexos)

A maioria dos ACS, seja na apresentação dos mapas, seja na oficina de casos complexos, relatou algum desafio relacionado ao trabalho de parto, tendo de conduzir a parturiente até a sede do município por conta de possíveis complicações nesse período. Alguns deles apresentaram o transporte como um desafio enfrentado no cotidiano do seu trabalho, especialmente quando há problemas na embarcação, por exemplo, se o motor para de funcionar em situações de urgência e emergência, como em trabalhos de parto. Nesses casos, é necessário remar durante um longo período até a comunidade mais próxima para conseguir apoio.

O mapa apresentado na Figura 2 mostra algumas residências distantes da sede da comunidade e, mesmo que muitas famílias vivam concentradas no núcleo da comunidade, ainda existem famílias que vivem mais isoladas e que se sentem bem por viver ali, pois geralmente é o lugar onde estão suas lembranças da infância, do aprendizado com seus pais e avós. Enfim, o conhecimento dos mais velhos está presente na sua vida cotidiana, seja pelas técnicas de manejo da pesca ou da roça, seja nos modos de levar a vida na tranquilidade e no convívio com a natureza. O mapa também apresenta uma escola, igrejas e a Unidade de Saúde, sendo reformada na época, que representam os fixos presentes no cotidiano da comunidade e que permeiam os fluxos que são os movimentos, os caminhos e seu modo de andar na vida como ribeirinhos. Os mapas apresentam os caminhos percorridos no período da seca ou da cheia e estão presentes na memória dos ribeirinhos.

Figura 2
Mapa falante da área de abrangência de uma ACS do Polo XI, Rio Urupadi, Comunidade Santa Clara.

As comunidades ribeirinhas situadas ao longo de lagos e igarapés são os locais onde são produzidos encontros das famílias ribeirinhas com os ACS e, nas visitas da UBS Fluvial, com os outros profissionais de saúde. É nesse ambiente que são estabelecidas relações de fraternidade e solidariedade, que vão além de questões econômicas, mas que envolvem ajuda mútua e companheirismo, especialmente em situações de urgência ou emergência. Quando um comunitário necessita de apoio e o ACS não dispõe de um transporte mais veloz, aparece um companheiro para dar suporte. Assim vivem as comunidades ribeirinhas que, apesar dos desafios e até mesmo da precariedade econômica, com ajuda dos ACS e dos comunitários conseguem muitas vezes salvar vidas.

Mesmo com as distâncias demonstradas por horas de viagem percorridas, para os ribeirinhos esse tempo é relativo; nem sempre esse longe ou distante é assim percebido por eles, pois convivem com as distâncias diariamente, mas por sua experiência e sua relação com a natureza reconhecem a dinâmica dos rios e por meio deles percorrem seus caminhos em uma longa ou curta viagem.

Desafios para a articulação entre AB e serviços de urgência e emergência

De acordo com a Portaria n. 1600/201133 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.600, de 7 de Julho de 2011. Reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui a Rede de Atenção às Urgências no Sistema Único de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2011., que institui a RUE, os atendimentos aos usuários do SUS devem ser feitos em todas as portas de entrada, seja na AB seja nos serviços de urgência e emergência, visando atender os usuários de forma integral e resolutiva33 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.600, de 7 de Julho de 2011. Reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui a Rede de Atenção às Urgências no Sistema Único de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2011.. Entretanto, esses modelos ideais previstos nas portarias e resoluções do Ministério da Saúde nem sempre são ideais para o contexto ribeirinho, cabendo, assim, outras formas de dinamizar o cuidado em saúde por meio do território líquido, que é fluido e dinâmico, que permeia a vida da população ribeirinha, com o trabalho vivo dos ACS e das equipes rurais/ribeirinhas.

A RUE traz em sua essência a organização dos serviços e atendimentos relacionados à urgência e à emergência. Por meio de seus pontos de atenção, percebe-se a articulação entre os serviços ou setores de urgência e emergência e a AB preconizados na Portaria. Essa articulação visa promover uma continuidade do cuidado de modo eficiente e integrado com as ações e os serviços de modo compartilhado em todos os níveis de atenção.

A articulação entre esses diferentes setores possibilita a mitigação da fragmentação do cuidado dentro dos serviços e da própria Rede de Atenção. Contudo, essa articulação nem sempre acontece de fato; em alguns casos, como nos municípios do Amazonas, essa Rede de Atenção às Urgências e Emergências não funciona como nos moldes da política. Mas a atuação dos serviços de urgência e emergência e das equipes de AB está presente e os atendimentos que acontecem na área ribeirinha, entretanto, são muito mais difíceis e desafiadores.

A articulação entre os serviços e mesmo entre as equipes de saúde, nos diferentes setores, ainda é um desafio para a gestão, especialmente quando se trata de uma população específica, como a ribeirinha. Considera-se que, para a população ribeirinha nesse contexto da articulação, o cuidado ainda é fragmentado quando os serviços de urgência e emergência só estão disponíveis na sede do município ou na capital. Muitos ribeirinhos acabam não retornando para o acompanhamento em outro nível de atenção, após alta da unidade hospitalar.

A gestão municipal tem dificuldade em organizar os protocolos de atendimento devido a questões organizacionais, políticas, de infraestrutura e de recursos para contratação de profissionais que atuem em área ribeirinha. De acordo com a gestão, é um desafio fazer urgência e emergência em áreas tão distantes da sede e que não dispõe de muitos recursos. Ou, ainda, de realizar investimentos para organizar as equipes dos serviços de urgência e emergência quando há um subfinanciamento do serviço. Esse subfinanciamento enfatiza a fragmentação dos serviços e da Atenção em Saúde, pois inviabiliza a continuidade do cuidado, a integralidade e a equidade em saúde1818 Mello GA, Pereira APCM, Uchimura LYT, Iozzi FL, Demarzo MMP, Viana ALA. O processo de regionalização do SUS: revisão sistemática. Cienc Saude Colet. 2017; 22(4):1291-310..

Outro desafio é quanto à fixação dos profissionais para atuarem nas comunidades ribeirinhas. Isso se deve a questões de inadequado saneamento básico e de infraestrutura das unidades, tais como falta de energia elétrica para manter os equipamentos e insumos utilizados para atender a população ribeirinha1919 Dolzane RS, Schweickardt JC. Provimento e fixação de profissionais de saúde na atenção básica em contextos de difícil acesso: perfil dos profissionais de saúde em municípios do Amazonas. Trab Educ Saude. 2020; 18(3):1-18., e o acesso à internet para comunicação com as equipes da secretaria ou dos diferentes serviços da rede, pois o único meio utilizado para comunicação ainda é via rádio nas comunidades polo que dispõem desse recurso. As questões estruturais, de fluxos do funcionamento do sistema, subfinanciamento e problemas com o processo de referenciamento podem acarretar prejuízos para o acesso da população aos serviços de saúde2020 Viegas APB, Carmo RF, Luz ZMP. Fatores que influenciam o acesso aos serviços de saúde na visão de profissionais e usuários de uma unidade de referência. Saude Soc. 2015; 24(1):100-12..

Apesar dos desafios, os ribeirinhos buscam acesso aos serviços de saúde na sede do município. Contudo, ainda não há uma priorização que considere as especificidades dessa população, não existem fluxos ou protocolos padronizados para atendimento dos ribeirinhos, sendo importante a elaboração e a implementação de fluxos de referência e contrarreferência, de modo que haja um acompanhamento contínuo do usuário dentro da Rede de Saúde, atenuando a fragmentação do cuidado2121 Alves MLF, Guedes HM, Martins JCA, Chianca TCM. Rede de referência e contrarreferência para o atendimento de urgências em um município do interior de Minas Gerais – Brasil. Rev Med Minas Gerais. 2015; 25(4):469-75.,2222 Frango BCTM, Batista REA, Campanharo CRV, Okuno MFP, Lopes MCBT. Associação do perfil de usuários frequentes com as características de utilização de um serviço de emergência. REME Rev Min Enferm. 2018; 22:e1071..

No caso da população ribeirinha, esse cuidado continuado é um desafio ainda maior, pois não dispõe de condições financeiras para fazer um acompanhamento frequente na cidade. Assim, os usuários, principalmente ribeirinhos, necessitam de um cuidado diferenciado, considerando o contexto em que vivem e os desafios para obter acesso aos serviços de urgência e emergência.

O processo de referenciamento é um desafio para a gestão, pois as comunidades são distantes da sede e os usuários não costumam retornar para um acompanhamento contínuo. Além disso, não há uma equipe de saúde ribeirinha completa para realizar os atendimentos a essa população, o que dificulta ainda mais esses encaminhamentos e o retorno. Outro desafio é quanto à comunicação entre as equipes de AB e dos serviços de urgência e emergência, pois apenas quando há casos de notificação compulsória ou que demandam muitos outros serviços de maior complexidade é que há uma comunicação entre os setores.

Uma problemática identificada e muito comum em outras regiões do país, e que na região amazônica não é diferente, diz respeito à procura por atendimentos ambulatoriais em unidades hospitalares e prontos-socorros. Grande parte da população ainda tem uma visão muito hospitalocêntrica, com um entendimento de que o hospital ainda é o serviço com maior resolutividade e rapidez2323 Antunes BCS, Crozeta K, Assis F, Paganini MC. Rede de atenção às Urgências e Emergências: perfil, demanda e itinerário de atendimento de idosos. Cogitare Enferm. 2018; 23(2):e53766..

Há situações em que os ribeirinhos buscam o atendimento no hospital porque parece ser mais rápido do que na Unidade Básica de Saúde, pois não é preciso agendar consulta ou até mesmo permanecer muito tempo na cidade. Há usuários ribeirinhos que não têm residência na cidade nem algum familiar que possa acolhê-los durante esse período. Muitos usuários vão aos hospitais ou prontos-socorros em busca de um atendimento mais rápido, mas que poderia ser resolutivo naAB2121 Alves MLF, Guedes HM, Martins JCA, Chianca TCM. Rede de referência e contrarreferência para o atendimento de urgências em um município do interior de Minas Gerais – Brasil. Rev Med Minas Gerais. 2015; 25(4):469-75..

No hospital do município, grande parte dos atendimentos hospitalares é por demanda ambulatorial, que poderia ser resolvido na AB. Conforme relato de uma enfermeira do hospital:

[..] a maioria dos atendimentos aqui a maioria não é urgência e emergência, a maioria é ambulatorial que como aqui já vai falar com médico né, não precisa agendar no posto, eles já vem aqui e é atendido [...]1717 Almeida VF. Fluxos da população ribeirinha no acesso aos serviços de urgência e emergência: um estudo de caso no município de Maués, AM [dissertação]. Manaus: Fundação Oswaldo Cruz; 2021..

(Enfermeira)

A população ribeirinha geralmente busca o atendimento nos hospitais quando não consegue ser atendida na UBS de imediato, pelo fato de não poder ficar na cidade por muito tempo. Os usuários procuram um atendimento que seja mais rápido com a realização de exames no mesmo dia, quando possível, sem precisar retornar no outro dia para agendar uma consulta ou exame. Mesmo que demore horas no hospital, eles o preferem pela possiblidade de serem assistidos no mesmo dia. Entretanto, essa procura por atendimentos ambulatoriais que poderiam ser resolvidos na AB acaba ocasionando uma superlotação do serviço hospitalar2323 Antunes BCS, Crozeta K, Assis F, Paganini MC. Rede de atenção às Urgências e Emergências: perfil, demanda e itinerário de atendimento de idosos. Cogitare Enferm. 2018; 23(2):e53766.,2424 Sampaio J, Ferreira TPS, Oliveira IL, Soares RS, Gomes LB, Coelho TM, et al. Acesso e barreira: na peregrinação entre os pontos da rede de urgência e emergência o cuidado se fragmenta. In: Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES, Slomp Júnior H, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis; 2016. p. 127-37.. Assim, uma boa articulação e a comunicação entre as equipes dos diferentes setores possibilitariam uma melhor adequação e resolução dessa problemática.

De acordo com os profissionais das equipes ribeirinhas, gerentes das UBS, não há uma boa comunicação entre os serviços de urgência e emergência e as equipes da AB, ou seja, não há um bom processo de referenciamento. Além disso, a inexistência de fluxos de atendimento específicos ou o desconhecimento acerca do funcionamento desses fluxos dificulta essa comunicação e articulação, sendo que o diálogo entre as equipes possibilitaria um acompanhamento longitudinal e integral dos usuários de modo que eles não se perdessem na rede como consequência da fragmentação do cuidado em saúde2525 Maximino VS, Liberman F, Frutuoso MF, Mendes R. Profissionais como produtores de redes: tramas e conexões no cuidado em saúde. Saude Soc. 2017; 26(2):435-47..

São necessárias ações específicas que considerem o contexto ribeirinho, os desafios e potencialidades presentes na vida cotidiana das comunidades e das equipes que realizam o cuidado em saúde em um território singular, como o da região amazônica. Assim, as políticas públicas devem ser pensadas, considerando essas singularidades com um financiamento diferenciado para os municípios da região2626 Lima RTS, Simões AL, Heufemann NE, Alves VP. Saúde sobre as águas: o caso da Unidade Básica de Saúde Fluvial. In: Ceccim RB, Kreutz JA, Campos JDP, Culau FS, Wottrich LAF, Kessler LL, organizadores. Intensidades na Atenção Básica: prospecção de experiências “informes” e pesquisa-formação. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. p. 269-94..

Além disso, é essencial que haja uma escuta atenta sobre os problemas e desafios enfrentados pela população, que geralmente são identificados pelos ACS. Esses profissionais, considerados promotores do cuidado, são atores importantes no cotidiano das comunidades ribeirinhas que fazem a diferença como redes vivas no território do cuidado em saúde.

Considerações finais

O estudo possibilitou entender como se dá o acesso da população ribeirinha aos serviços de urgência e emergência, os desafios e potencialidades presentes no território específico. Contudo, a ampliação do acesso da população ribeirinha aos serviços de urgência e emergência necessita de um olhar diferenciado dos gestores, em que devem ser consideradas as especificidades locais e as inovações dinamizadas no cotidiano do serviço.

É importante considerar o aspecto da especificidade e as singularidades das comunidades ribeirinhas, elaborando fluxogramas de atendimentos que considerem os desafios e potencialidades do território para essa população. A RUE deve estar orientada em seus preceitos e objetivos, mas de modo que seja direcionada e adaptada a essas populações. Existem déficits nos atendimentos com relação à identificação de prioridade no cuidado aos ribeirinhos e quanto ao processo de referenciamento, em que muitas vezes não há uma continuidade do cuidado pela deficiência ou pela falha nesse processo ou na comunicação e na articulação entre os serviços.

É necessário que haja uma priorização do atendimento a essas comunidades, especialmente em casos de urgência e/ou emergência, por meio de investimentos em políticas públicas para as populações específicas, com financiamento adequado e suficiente. Nesse sentido, outras políticas públicas em saúde devem ser pensadas como, por exemplo, a ampliação da implantação de “ambulanchas” nas diferentes áreas ribeirinhas e de uma equipe qualificada para esses atendimentos, a fim de efetivar a RUE, além de estratégias que podem ser elaboradas pela própria gestão municipal e possam dinamizar e integrar as ações realizadas pelos diferentes serviços.

O planejamento de ações estratégicas de orientação e encontros, entre comunidade, gestão e os serviços de AB e de Urgência e Emergência, pode viabilizar a ampliação do acesso da população ribeirinha aos serviços de saúde. O conhecimento dos ACS acerca das problemáticas das comunidades ribeirinhas é imprescindível para o aprimoramento de estratégias e até mesmo de elaboração de fluxos de atendimentos voltados para essa população. Pelo olhar dos ACS, com sua vivência e experiência como trabalhadores e ao mesmo tempo comunitários e usuários ribeirinhos, é possível pensar e formular estratégias mais adequadas à realidade local. Assim, para uma articulação eficiente entre os diferentes serviços, é necessário o entendimento sobre o funcionamento das redes de cuidado.

O ACS aqui pode ser percebido como uma rede viva que, através da micropolítica do cuidado em saúde, vai ultrapassar as normas presentes nas redes formais; contudo, sem deixar de lado a resolutividade e a continuidade do cuidado, considerando a dinâmica de vida e das relações do usuário com a comunidade e a equipe de saúde. São inúmeros os desafios encontrados no dia a dia do trabalho como ACS, mas a gratidão das pessoas da comunidade supera essas dificuldades e proporciona um incentivo a esses trabalhadores no cotidiano do seu processo de trabalho e na sua vida comunitária. Esses profissionais muitas vezes salvam vidas quando o socorro é difícil de chegar, são vistos pela comunidade como socorristas e recebem o respeito e a admiração da comunidade em cada conquista alcançada.

Agradecimentos

Os autores agradecem à Secretaria Municipal de Maués pela disponibilidade e a parceria no desenvolvimento da pesquisa, e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) pelo financiamento da pesquisa.

  • Financiamento

    Essa pesquisa foi financiada com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas pelo edital n. 001/2017 – PPSUS. A primeira, a terceira e a última autora foram bolsistas da Fapeam no Programa de Pós-Graduação em Condições de Vida e Situações de Saúde na Amazônia (PPGVIDA).
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Editado por

Editor
Antonio Pithon Cyrino
Editor associado
Charles Dalcanale Tesser

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2021
  • Aceito
    29 Jul 2022
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