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“A luta é nossa”: vivência de cuidadoras de crianças com síndrome congênita do Zika

“La lucha es nuestra”: vivencia de cuidadoras de niños con síndrome congénito del zika

Resumos

Objetivou-se analisar a vivência de cuidadores de crianças com a síndrome congênita do Zika, no contexto familiar e social. Trata-se de um estudo qualitativo com dez cuidadoras de crianças com síndrome congênita do Zika vírus, em um serviço pernambucano de referência à criança com deficiência, realizado no período de novembro de 2018 a março de 2019. Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada e interpretados pela análise temática. As cuidadoras, principalmente mães, dedicam-se integralmente aos cuidados do filho com a síndrome; enfrentam lutas diárias em busca de melhores condições de vida; abdicam de sonhos, emprego e estudos; e enfrentam dificuldades financeiras e no cuidado a outros filhos. Assim, são necessárias ações de saúde focadas na singularidade das famílias para viabilizar a oferta e/ou fortalecimento de redes de apoio e ampliar as possibilidades para melhores condições de vida das mulheres e de seus filhos com a síndrome.

Palavras-chave
Saúde da criança; Zika Virus; Deficiências do desenvolvimento; Mulheres; Cuidadores


El objetivo fue analizar la vivencia de cuidadores de niños con síndrome congénito del Zika en el contexto familiar y social. Estudio cualitativo con diez cuidadores de niños con síndrome congénito del virus del Zika en un servicio del Estado de Pernambuco de referencia para los niños con deficiencia, desde noviembre de 2018 a marzo de 2019. Los datos fueron colectados por medio de entrevista semiestructurada e interpretados por análisis temático. Las cuidadoras, principalmente madres, se dedican integralmente a los cuidados del hijo con el síndrome, enfrentan luchas diarias buscando mejores condiciones de vida, abdican de sueños, empleo, estudios y enfrentan dificultades financieras y con el cuidado a otros hijos. Por lo tanto, son necesarias acciones de salud enfocadas en la singularidad de las familias para hacer viable la oferta y/o el fortalecimiento de redes de apoyo y ampliar las posibilidades para mejores condiciones de vida de las mujeres y de sus hijos con el síndrome.

Palabras clave
Salud del niño; Virus del zika; Deficiencias del desarrollo; Mujeres; Cuidadores


The study analyzed the experience of caregivers of children with congenital zika syndrome, both in family and social context. It is a qualitative study with ten caregivers of children with congenital zika virus syndrome, in a Pernambuco referral service for children with disabilities, from November 2018 to March 2019. Data were collected through semistructured interviews and interpreted by thematic analysis. Caregivers, especially mothers, dedicate themselves entirely to their syndromic children’s care, facing daily struggles in search of better living conditions, abandoning dreams, jobs, studies and facing financial difficulties as well as for the care of other children. Thus, health actions focused on the uniqueness of families are necessary to enable the offer and / or strengthening of support networks as well as to expand the possibilities for better living conditions for both women and their children with the syndrome.

Keywords
Child health; Zika Virus; Developmental disabilities; Women; Caregivers


Introdução

A epidemia de Zika, que acometeu principalmente o nordeste brasileiro, atingiu algumas grávidas e causou a síndrome congênita do Zika vírus (SCZ). As mais afetadas foram as jovens, solteiras, com baixa escolaridade e que vivem em áreas mais marginalizadas e desfavorecidas das cidades. Tal situação vem causando impacto na vida emocional, financeira e cotidiana dessas mulheres11 Freitas AFF, Sousa IF, Pargeon JPOM, Silva AMTC, Almeida RJ. Evaluation of family impact in parents of children diagnosed with microcephaly caused by Zika Virus. Rev Enferm Atual In Derme [Internet]. 2019 [citado 12 Jun 2019]; 87 Esp:1-11. Disponível em: http://www.revistaenfermagematual.com/index.php/revista/article/view/170/279
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,22 Menezes ASS, Alves MJS, Gomes TP, Pereira JA. Microcefalia relacionada ao vírus Zika e dinâmica familiar: perspectiva da mãe. Av Enferm. 2019; 37(1):38-46. doi: http://dx.doi.org/10.15446/av.enferm.v37n1.72008.. Dessa forma, “a epidemia não foi equânime, pois atingiu preferencialmente mulheres de estratos sociais desfavorecidos”, caracterizando-se como uma “doença determinada pelas desigualdades sociais de saúde presentes no país”33 Freitas PSS, Soares GB, Mocelin HJS, Lacerda LCX, Prado TN, Sales CMM, et al. Síndrome congênita do vírus Zika: perfil sociodemográfico das mães. Rev Panam Salud Publica. 2019; 43:44. doi: https://doi.org/10.26633/RPSP.2019.24.

4 Brasil. Ministério da Saúde. Monitoramento integrado de alterações no crescimento e desenvolvimento relacionadas à infecção pelo vírus Zika e outras etiologias infecciosas, até a Semana Epidemiológica 52 de 2018 [Internet]. Brasília; Ministério da Saúde; 2019 [citado 12 Jun 2019]. Disponível em: https://www.saude.gov.br/images/pdf/2019/marco/22/2019-001.pdf
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-55 Rice ME, Galang RR, Roth NM, Ellington SR, Moore CA, Valencia-Prado M, et al. Vital Signs: Zika-associated birth defects and neurodevelopmental abnormalities possibly associated with congenital Zika Virus infection - U.S. territories and freely associated states, 2018. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2018; 67(31):858-67. doi: https://doi.org/10.15585/mmwr.mm6731e1..

No período de outubro de 2015 a janeiro de 2019, foram confirmados 3.332 casos de alterações no crescimento e desenvolvimento de crianças, possivelmente relacionadas à infecção pelo vírus Zika e outras etiologias infecciosas. Destaca-se a região nordeste brasileira, que obteve o maior número de casos (2.122), identificados por meio de critério clínico-radiológico ou clínico-laboratorial44 Brasil. Ministério da Saúde. Monitoramento integrado de alterações no crescimento e desenvolvimento relacionadas à infecção pelo vírus Zika e outras etiologias infecciosas, até a Semana Epidemiológica 52 de 2018 [Internet]. Brasília; Ministério da Saúde; 2019 [citado 12 Jun 2019]. Disponível em: https://www.saude.gov.br/images/pdf/2019/marco/22/2019-001.pdf
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As alterações fisiopatológicas causadas pela SCZ em crianças, como deficiências cognitivas, sensoriais e motoras, são comuns a outras doenças congênitas, porém, a condição é acompanhada pelo agravante de sinais raros como a microcefalia, grave anormalidade no desenvolvimento neurológico; anomalias ocular e auditiva; contraturas múltiplas; alteração no tônus muscular; convulsões; problemas de deglutição; e anomalia cerebral (com calcificações intracranianas, atrofia cerebral e formação cortical anormal). No entanto, algumas crianças apresentam microcefalia somente no período pós-natal, não apresentando esta ao nascer. Embora seja evidenciada a gravidade da situação, com repercussões negativas no crescimento e desenvolvimento infantil, ainda não se sabe as consequências da SCZ no futuro dessas crianças55 Rice ME, Galang RR, Roth NM, Ellington SR, Moore CA, Valencia-Prado M, et al. Vital Signs: Zika-associated birth defects and neurodevelopmental abnormalities possibly associated with congenital Zika Virus infection - U.S. territories and freely associated states, 2018. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2018; 67(31):858-67. doi: https://doi.org/10.15585/mmwr.mm6731e1.,66 Moore CA, Staples JE, Dobyns WB, Pessoa A, Ventura CV, Fonseca EB, et al. Characterizing the pattern of anomalies in congenital zika syndrome for pediatric clinicians. JAMA Pediatr. 2017; 171(3):288-95. doi: https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2016.3982..

As repercussões da SCZ perpassam para além de uma discussão de cunho fisiopatológico, levando a reflexões acerca do papel político, econômico e social do Estado em estudos da área de Antropologia, Direito e História. Os autores Silva et al.77 Silva ACR, Matos SS, Quadros MT. Economia política do Zika: realçando relações entre Estado e cidadão. Rev Anthropol [Internet]. 2017 [citado 15 Jul 2019]; 28(1):223-46. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaanthropologicas/article/viewFile/231440/25547
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ressaltam essa problemática na ótica de que investimentos altos estão direcionados a pesquisas e tecnologias voltadas para a extinção do mosquito Aedes aegypti, enquanto o cuidado e apoio às pessoas envolvidas estão fragilizados. Ademais, as famílias dessas crianças possuem direitos constitucionais, porém, não são orientadas a como utilizá-los77 Silva ACR, Matos SS, Quadros MT. Economia política do Zika: realçando relações entre Estado e cidadão. Rev Anthropol [Internet]. 2017 [citado 15 Jul 2019]; 28(1):223-46. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaanthropologicas/article/viewFile/231440/25547
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A incerteza por parte da ciência e a invisibilidade da questão, promovida pelo governo, causam ainda mais estresse emocional na família cuidadora da criança com necessidades especiais de saúde (Crianes), que busca em vários serviços de reabilitação a resposta para as demandas de assistência em saúde, indispensáveis ao bem-estar biopsicossocial dessas crianças88 Bulhões CSG, Silva JB, Moraes MN, Reichert APS, Dias MD, Almeida AM. Psychic repercussions in mothers of children with congenital Zika virus syndrome. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2020; 24(2):e20190230. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2019-0230..

O nascimento de uma criança com SCZ é um desafio no seio familiar. Diversos fatores – como a demanda maior de cuidados, a rotina intensa em serviços de saúde, o preconceito social, maior dispêndio financeiro para atender às necessidades de saúde da criança e a renúncia dos cuidadores aos demais papéis sociais para ficar exclusivamente à disposição das necessidades do menor11 Freitas AFF, Sousa IF, Pargeon JPOM, Silva AMTC, Almeida RJ. Evaluation of family impact in parents of children diagnosed with microcephaly caused by Zika Virus. Rev Enferm Atual In Derme [Internet]. 2019 [citado 12 Jun 2019]; 87 Esp:1-11. Disponível em: http://www.revistaenfermagematual.com/index.php/revista/article/view/170/279
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,99 Skråning S, Lindskog BV. The Zika outbreak in Brazil: an unequal burden. Tidsskr Nor Laegeforen. 2017; 137(22):1-6. doi: https://doi.org/10.4045/tidsskr.17.0655. – mudam completamente o cotidiano familiar.

Assim, é notório que esses núcleos parentais sofrem com sobrecargas físicas, financeiras e psicológicas. Evidências apontam que os cuidadores de crianças com SCZ com atraso no desenvolvimento vivenciam estresse emocional22 Menezes ASS, Alves MJS, Gomes TP, Pereira JA. Microcefalia relacionada ao vírus Zika e dinâmica familiar: perspectiva da mãe. Av Enferm. 2019; 37(1):38-46. doi: http://dx.doi.org/10.15446/av.enferm.v37n1.72008. e possuem escores mais altos de depressão, relatando que os maiores desafios são de cunho econômico e de assistência à criança1010 Kotzky K, Allen JE, Robinson LR, Satterfield-Nash A, Bertolli J, Smith C, et al. Depressive symptoms and care demands among primary caregivers of young children with evidence of congenital zika virus infection in Brazil. J Dev Behav Pediatr. 2019; 40(5):344-53. doi: https://doi.org/10.1097/DBP.0000000000000666.. Assim, o sofrimento advindo das dificuldades em diversos âmbitos socioeconômicos enfrentados pelos cuidadores das crianças prevalece, o que pode afetar a saúde mental e física da família1010 Kotzky K, Allen JE, Robinson LR, Satterfield-Nash A, Bertolli J, Smith C, et al. Depressive symptoms and care demands among primary caregivers of young children with evidence of congenital zika virus infection in Brazil. J Dev Behav Pediatr. 2019; 40(5):344-53. doi: https://doi.org/10.1097/DBP.0000000000000666.. Além disso, esses cuidadores são mais propensos ao surgimento de doenças físicas e comorbidades1111 Sá FE, Andrade MMG, Nogueira EMC, Lopes JSM, Silva APEP, Assis AMV. Parental needs in the care for children with Zika virus-induced microcephaly. Rev Bras Promoç Saude. 2017; 30(4):1-10. doi: https://doi.org/10.5020/18061230.2017.6629..

Ante o exposto, busca-se evidenciar como está sendo afetado o cotidiano familiar das cuidadoras de crianças acometidas pela SZV e os desafios que estas enfrentam. Portanto, questiona-se: qual a vivência das cuidadoras de crianças com SCZ no contexto familiar e social? Para responder a esse questionamento, o presente estudo tem como objetivo analisar a vivência de cuidadoras de crianças com SCZ no contexto familiar e social.

Método

Estudo descritivo-exploratório, qualitativo e oriundo de Trabalho de Conclusão do Mestrado Profissional em Saúde da Família, realizado em um serviço de reabilitação neuropsicomotora para crianças e adolescentes com necessidades especiais de saúde de um município da região metropolitana de Recife, PE, Brasil, onde crianças com SCZ são atendidas.

As participantes desta pesquisa foram selecionadas por conveniência, sendo as que se encontravam no serviço para atendimento. Compuseram a amostra dez cuidadoras de crianças com síndrome congênita pelo Zika vírus, que atenderam aos seguintes critérios de inclusão: ser a principal cuidadora da criança com a referida síndrome, ser maior de 18 anos, estar cadastrada em um serviço especializado de referência do município e residir na cidade em que foi realizada a pesquisa. Foram excluídas as cuidadoras que não compareceram ao serviço de referência para acompanhamento da criança por três agendamentos consecutivos.

Os dados empíricos foram coletados entre novembro de 2018 e março de 2019, no próprio serviço de reabilitação, por meio de entrevista semiestruturada em profundidade; gravada e transcrita na íntegra; e conduzida pela própria pesquisadora principal para posterior análise.

Utilizou-se um roteiro semiestruturado com a seguinte questão norteadora: “Qual a sua vivência, na sociedade e familiar, com a SCZ?”. O encerramento da coleta seguiu o critério de suficiência, quando foi possível compreender as múltiplas dimensões do objeto de estudo1212 Minayo MCS. Sampling and saturation in qualitative research: consensuses and controversies. Rev Pesq Qual [Internet]. 2017 [citado 14 Jun 2019]; 5(7):1-12. Disponível em: https://editora.sepq.org.br/index.php/rpq/article/view/82/59
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, a partir dos dados coletados houve diálogo entre as pesquisadoras para determinar a saturação.

O material empírico foi transcrito na íntegra e submetido à análise temática de conteúdo1313 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14a ed. São Paulo: Hucitec; 2014. com organização do material e primeira classificação; a sucessivas leituras para traçar o mapa horizontal e apreensão das estruturas de relevância; e à leitura transversal, reagrupando as falas em dois núcleos de sentido para alcançar o objetivo do estudo, sendo eles: “Protagonismo e luta da mulher para cuidar da criança com SCZ” e “Impactos da SCZ na vida das cuidadoras”.

As cuidadoras foram apresentadas pessoalmente à pesquisa e à pesquisadora responsável e as que concordaram participar assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme as diretrizes e normas regulamentadoras para pesquisa envolvendo seres humanos, estabelecidas na Resolução n. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. A pesquisa foi aprovada por Comitê de Ética com protocolo número 3.426.153 e CAAE: 00452618.8.0000.5188.

As participantes foram identificadas com a letra “E”, de “entrevista”, seguida pela numeração correspondente à ordem cronológica de realização das entrevistas (exemplo: “E1”), garantindo-lhes o anonimato e sigilo das informações.

A fim de assegurar o rigor no estudo, foram utilizados os Critérios Consolidados para Relatos de Pesquisa Qualitativa (Coreq) como ferramenta auxiliar.

Os dados empíricos foram analisados conforme a perspectiva da Ética da Alteridade, desenvolvida por Emmanuel Levinas, que tem por base a relação do Eu com o Outro em uma relação plural, começando pelo respeito ao outro e seguindo com uma consciência moral do Eu que se põe a serviço do Outro1414 Levinas E. De otro modo que ser o más allá de la esencia. Salamanca: Sígueme; 2011..

Ademais, a Ética da Alteridade1515 Levinas E. Da existência ao existente. Simon PA, Simon LMC, tradutores. Campinas: Papirus; 1999. defende a abertura do Eu para o Outro, em especial, o Outro diferente, que não deve ser por isso excluído, colocado à parte, discriminado, mas sim acolhido e aceito em suas diferenças e singularidades.

Outrem, enquanto outrem, não é somente um alter ego. Ele é o que eu não sou: ele é fraco enquanto eu sou forte; é o pobre; é a viúva e o órfão [...] ou então é o estrangeiro, o inimigo, o poderoso. [...] o espaço intersubjetivo é inicialmente assimétrico1515 Levinas E. Da existência ao existente. Simon PA, Simon LMC, tradutores. Campinas: Papirus; 1999..

(p. 113)

É na abertura para o Outro, vendo o seu lado diferente e que deve ser respeitado, que se concretiza a Alteridade.

Resultados

As participantes do estudo foram nove mães e uma avó. Uma cuidadora tinha menos de vinte anos; sete, mais de vinte anos e menos de trinta anos; e duas, mais de trinta anos. Sete mulheres se declararam pretas ou pardas e três, brancas. Seis cuidadoras tinham ensino fundamental incompleto; três, ensino médio completo; e uma tinha ensino superior completo. Com relação à quantidade de filhos, três mães possuíam apenas um filho com SCZ; seis tinham dois filhos; e a avó tinha dois filhos adultos e cuidava do neto. Quatro mulheres tinham renda familiar menor que o salário-mínimo vigente, cinco declararam renda entre um salário e dois salários-mínimos e apenas uma tinha uma renda maior que dois salários-mínimos. Quanto ao estado civil, oito mães viviam em união estável; e uma mãe e uma avó eram solteiras. As crianças (filhos/neto) tinham entre 19 e 36 meses e participavam de terapias motora, visual, auditiva, da linguagem e das habilidades cognitivas e comportamentais. Destas, seis frequentam mais de um serviço de reabilitação.

Protagonismo e luta da mulher para cuidar da criança com síndrome congênita do Zika vírus

As mulheres são as principais cuidadoras das crianças com a SCZ, principalmente as mães. Assumem o cuidado integral; e vivenciam estresse emocional por estarem inseridas em uma rotina de tratamento intenso com seus filhos e por dependerem do poder público para o deslocamento para as terapias da criança.

Assim, ao relatarem sua vivência com a criança, referem sua vida diária como uma “batalha” ou “luta”, permeada pelo cansaço relacionado aos cuidados diários a essas crianças; e às idas aos serviços de reabilitação e às consultas com especialistas:

É uma batalha com ela, tem dia que eu estou cansada porque a gente tem que acordar cedo para ir para o médico, mas isso é normal, já estou acostumada [...]. Quando eu vou para o médico eu chego muito cansada, tem dia que saio de 4:40 e chego às três da tarde em casa. Depende do carro da prefeitura, aonde ele vai me buscar [...].

(E6)

A gente sai para outros lugares, não vem só para cá, o serviço A mesmo, a gente vai e passa o dia todinho lá, a gente vai no carro da prefeitura, tem o trânsito, demora porque vai deixar todas as mães em casa, aí quando chego em casa, às vezes, é oito horas da noite, saio de dez da manhã e chego às oito da noite, a pessoa já chega morta, cansada [...]. É, a luta só é nossa [...]. A maior dificuldade [para o cuidado à criança] é a hora do banho, porque eles estão pesados, e ele ainda tem a GTT [sonda de gastrostomia], se deixar ele puxa.

(E1)

Ao assumir a função de mãe, protetora e responsável pela criança com SCZ, essas mulheres assumem tais atividades como seu principal papel na sociedade, encarando a situação como “normal”, pois este passa a ser o cotidiano de suas vidas. Dessa maneira, a família se reorganiza dentro de seu contexto e possibilidades para proporcionar uma melhor condição de vida e saúde para a criança.

Mesmo a criança tendo outras doenças associadas, o que causa idas frequentes a serviços de reabilitação e aumento de trabalho com o cuidado em casa, essas mulheres consideram essa situação como uma prática comum, embora seja constatada contradições em algumas falas:

[...] agora tem terapia, né? Porque antes, como ela é cardiopata, a médica não tinha liberado ela para fazer terapia porque ela cansava muito quando começou a fazer, aí não podia [...]. Para mim não mudou nada não, mudou assim os cuidados dela, mas para mim ela é uma menina normal igual à outra [outra filha].

(E3)

Tem sido normal, ele é como normal. [...] o negócio dele é que ele só quer ficar no braço, é ruim, viu, dar comida a ele, porque ele só quer comer deitado.

(E7)

Com ela tem sido bem normal. Cuido dela bem. Quando ela está acordada eu dou toda atenção a ela [...]. Quando eu estou em casa só dou atenção a ela, brinco com ela, sento com ela, dou banho e depois coloco para dormir, aí quando dorme eu vou arrumando a casa de pouquinho, o que não dá para arrumar deixo para fazer de noite. [...] Mudou bastante coisa, antes eu só tinha uma e hoje eu só vivo em médico, médico, médico, diferente, normal cuidar ela. (E6)

Aí a rotina dele, tem esse problema de levar para terapia, teve uma época mesmo que ele fazia todo dia [...]. É bem puxado.

(E10)

Houve um caso em que a criança foi abandonada pela mãe, então, a avó assumiu os cuidados desde o nascimento. Desde então, essa mulher tomou para si o compromisso de cuidadora integral, desempenhando tal papel, apesar das dificuldades, com amor e dedicação; e reconhecendo ainda tal função como designação divina, conforme relato a seguir:

Tem muitas mães que se separaram porque o filho tinha microcefalia, mas tem também caso que a mulher deixou o pai ficar com a criança. Ele mesmo [o neto] foi desprezado pela mãe, assim que nasceu, a mãe desprezou. Eu só não trouxe ele para o mundo, mas quem fez de tudo fui eu. Assim que ele nasceu, ela [mãe] virou as costas. A família dela, ninguém queria saber dele, tudo foi eu, eu fui mãe, pai, tudo. Desde o início eu acompanhei [...]. Quando a médica me deu a notícia que ele tinha microcefalia, eu disse: para mim isso é normal, isso não é nada, para mim ele é uma criança perfeita, normal [...], mas eu me comprometi, eu vou fazer tudo. Foi Deus que me deu, ele é meu [...].

(E1)

Impactos da síndrome congênita do Zika na vida das cuidadoras

A chegada de uma Crianes modifica toda dinâmica familiar. As cuidadoras passam a se adaptar aos desafios impostos pela nova situação, mesmo que seja necessário abdicar de projetos pessoais de vida, como trabalho e estudo.

Os relatos das cuidadoras mostram o impacto dessas mudanças, que ocorrem ao se tornarem a principal cuidadora de uma criança com SCZ:

Antes de ter ele eu poderia trabalhar e sair na hora que quisesse, depois dele, eu já tive que mudar meus plantões, que são todos à noite, que meu marido pode ficar com ele.

(E10)

É muita diferença, porque antes eu estudava, ele [pai da criança] também, a gente namorava, faz três anos que eu não estudo, com ele [filho] eu não tenho mais cabeça.

(E7)

Mudou tudo, tudo, tudo! Parei meu curso, que eu fazia o curso de Enfermagem, trabalho, que eu não estou mais trabalhando, mudou tudo, mudou total minha vida, rotina de sono, tudo.

(E8)

Eu tive que sair do trabalho, porque eu vivia com ele em médico e fazendo os exames, consultas, eu ficava colocando atestado. Eu já tinha sete anos nesse trabalho, aí quando foram demitir outras pessoas, me demitiram. O pai dele foi demitido um mês depois que eu saí.

(E9)

As necessidades da criança com SCZ (que são várias) perpassam por terapias em diferentes serviços de reabilitação, alimentação, medicamentos e instrumentos para estimulação, que resultam em maiores despesas para as famílias. O fato de muitas cuidadoras terem perdido o emprego e o de algumas crianças ainda não receberem o Benefício da Prestação Continuada da Assistência (BPC) reflete-se em dificuldades financeiras para muitas famílias. Já outras famílias, mesmo recebendo o BPC e tendo acesso aos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), não têm todas as necessidades das crianças supridas por tal recurso, conforme as falas das cuidadoras:

Eu não recebo a ajuda, tudo dela é comprado, remédio, tudo, não tem nada dado, os remédios dela são muito caros. Eu já corri tanto atrás da ajuda [benefício] e dos remédios, mas não consegui. É muito gasto [...].

(E4)

Mas é muito gasto, o leite dela só vem cinco, aí a nutricionista me pediu um papel para pedir 15, aí tem que comprar, compro fraldas, o que eu ganho é cesta básica do serviço F e da prefeitura também, tem os remédios também [...]. Mas imagine aí uma pessoa só trabalhando [o esposo]. Porque eu não posso mais trabalhar, antes eu trabalhava, agora, com ela, como eu posso? Vou deixar ela com quem?

(E6)

Se eu for depender desse dinheiro do governo visse, comprei a cadeira de alimentação para ele, ainda compro leite, porque o que o governo dá não é suficiente. Eu fui mês passado e ainda não chegou, se a pessoa for esperar pelo governo, é melhor comprar. Vai fazer dois meses que não chegou o leite dele, que ele precisa, né? Eu tenho que comprar.

(E7)

Também foi possível identificar que o cuidado à criança com SCZ é uma prioridade na vida das participantes do estudo. Essa dedicação exclusiva à criança resulta na abstenção de momentos de lazer e do próprio autocuidado por parte dessas mulheres:

Mudou tudo, em tudo tem que priorizar ele, tudo é mais ele. Tem que dar mais atenção a ele, até para ajeitar meu cabelo, me arrumar, ele fica chorando, não quer ficar com ninguém, é uma agonia.

(E9)

Depois que ela chegou mudou tudo. Antigamente era mais liberal para sair para fazer minhas coisas, hoje em dia não, hoje o tempo livre é para ela, você quer fazer alguma coisa, quer sair e não pode por causa dela.

(E4)

Quando ele tá doente é que eu não faço nada, não cuido da casa, não cuido de mim [...]. Hoje a gente não sai mais, e quando sai, vai e volta logo por causa dele [filho].

(E7)

Renunciar ao cuidado de outros filhos e delegá-lo a familiares e amigos é também uma consequência do impacto da síndrome na vida dessas cuidadoras:

[...] Eu tinha que deixar minha outra filha na mão de um e de outro, ora com minha prima, com minha mãe, com uma vizinha, e eu me preocupando com as duas. Agora mesmo para vir para cá [serviço B], deixei a outra com a avó [...].

(E3)

Eu tenho outro filho de sete anos, quando eu saio com ela, ele fica com minha mãe [...].

(E8)

Eu ainda tenho minha outra [filha] para cuidar. A outra fica mais na casa da minha vó, porque é o dia todinho com ele, o pai trabalha, eu fico o dia todinho com ele no braço.

(E7)

Discussão

A vivência das cuidadoras de crianças com SCZ é permeada por desafios enfrentados no contexto social em que estão inseridas, evidenciados pela necessidade de mudança no estilo de vida, com ausência de recursos essenciais e, principalmente, a necessidade de uma rede de apoio social mais ampla, tendo em vista que tudo se concentra no apoio familiar. A síndrome em questão impõe dificuldades substanciais e complexas em decorrência de uma maior dependência das crianças para o cuidado, causando modificações impactantes na rotina e vida da família, principalmente na das mulheres.

No que concerne ao cuidado da criança em tempo integral, os resultados deste estudo condizem com a literatura, a qual evidencia a prática das mulheres de desistir do emprego e de outras atividades pessoais para cuidar do filho com necessidades especiais. Essa conjuntura é imposta pela sociedade, de forma que a mãe assume essa função de maneira exclusiva e, para isso, renuncia à sua vida social, pessoal e profissional, tendo ainda que dividir-se no cuidado de outros filhos, marido e tarefas domésticas22 Menezes ASS, Alves MJS, Gomes TP, Pereira JA. Microcefalia relacionada ao vírus Zika e dinâmica familiar: perspectiva da mãe. Av Enferm. 2019; 37(1):38-46. doi: http://dx.doi.org/10.15446/av.enferm.v37n1.72008.,1616 Valim T. “ELAS”, de Stephane Ramos. Anu Antropol [Internet]. 2018 [citado 4 Jun 2019]; 43(1):463-8. Disponível em: https://journals.openedition.org/aa/3105
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,1717 Pinto RNM, Torquato IMB, Collet N, Reichert APDS, Souza Neto VLD, Saraiva AM. Infantile autism: impact of diagnosis and repercussions in family relationships. Rev Gauch Enferm. 2016; 37(3):e61572. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1983-1447.2016.03.61572..

Embora o cuidado à criança com SCZ seja realizado quase que exclusivamente pela mãe, um relato destaca que o pai divide a responsabilidade dos cuidados com a esta, o que a permite trabalhar.

A literatura evidencia que os pais também podem ter engajamento ativo e envolvimento nos cuidados à criança com necessidades especiais, e, quando o fazem, mostram-se habilidosos e dispostos a oferecer o melhor cuidado para criança. No entanto, essas ações por parte dos pais ainda são realizadas de maneira auxiliar, não havendo um protagonismo masculino1818 Dias MVS, Marques FRB, Oliveira RMB, Bezerra AM, Andrade SMO, Marcheti MA. Relações pai-filho e o cuidado da criança com deficiência: olhar da equipe de saúde. Res Soc Dev. 2021; 10(16):e389101623647.,1919 Cruz TAR, Santos EMS, Silva FC, Reis MCS, Silva ACD. Perfil sociodemográfico e participação paterna nos cuidados diários de crianças com microcefalia. Cad Bras Ter Ocup. 2019; 27(3):602-14..

A rotina extenuante das cuidadoras envolve constantes idas para consultas, exames e terapias; e impede que estas conciliem o trabalho e/ou estudos com os cuidados da criança com SCZ, fazendo com que essas mulheres deixem até mesmo a vida social em segundo plano99 Skråning S, Lindskog BV. The Zika outbreak in Brazil: an unequal burden. Tidsskr Nor Laegeforen. 2017; 137(22):1-6. doi: https://doi.org/10.4045/tidsskr.17.0655.. Esse fato é ainda agravado por se tratar de mulheres solteiras e pobres, na grande maioria das vezes, sendo que o desemprego restringe ainda mais as condições financeiras da família1616 Valim T. “ELAS”, de Stephane Ramos. Anu Antropol [Internet]. 2018 [citado 4 Jun 2019]; 43(1):463-8. Disponível em: https://journals.openedition.org/aa/3105
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, podendo gerar impacto negativo em sua qualidade de vida.

Na ética da Alteridade proposta por Levinas, há um esvaziamento do Eu em favor do Outro. Nessa conexão entre eles, o Eu se responsabiliza de tal maneira que, mesmo havendo custos negativos a ele, sua vida só faz sentido quando este ocupa-se na busca pelo bem-estar e justiça do Outro2020 Levinas E. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes; 2004.. Tais conceitos filosóficos dão embasamento para fundamentar a vivência das cuidadoras das crianças com a SCZ, que demonstram exatamente essa articulação e compromisso do Eu (cuidadoras) com o Outro (crianças com a SCZ).

A combinação de cuidado de um filho com a SCZ com as exigências advindas da sua condição clínica contribui para que a mãe/cuidadora se sinta restrita ou isolada dos contatos sociais antes estabelecidos, pois não existe mais tempo para interesses pessoais e atividades de lazer1010 Kotzky K, Allen JE, Robinson LR, Satterfield-Nash A, Bertolli J, Smith C, et al. Depressive symptoms and care demands among primary caregivers of young children with evidence of congenital zika virus infection in Brazil. J Dev Behav Pediatr. 2019; 40(5):344-53. doi: https://doi.org/10.1097/DBP.0000000000000666.,2121 Fraser B, Alves L. Living with the consequences of Zika virus disease. Lancet Child Adolesc Health. 2019; 3(4):215-6. doi: https://doi.org/10.1016/S2352-4642(19)30066-5.. Nessas situações, a mulher negligencia seu autocuidado e não se reconhece enquanto ser separado do filho, ocorrendo uma relação de dependência mútua entre o binômio mãe-filho2222 Pinheiro DAJP, Longhi MR. Maternidade como missão! A trajetória militante de uma mãe de bebê com microcefalia em PE. Cad Genero Divers. 2017; 3(2):113-32. doi: http://dx.doi.org/10.9771/cgd.v3i2.22216..

Essa entrega das mulheres ao cuidado da criança com SCZ deve ser vista pelos profissionais com atenção, uma vez que essas cuidadoras apresentam maior probabilidade de desenvolver depressão e ansiedade, devido à alta carga advinda das atividades diárias, somadas à projeção emocional vinculada à criança desde a sua gestação e fragilizada pela descoberta do diagnóstico2323 Freitag VL, Milbrath VM, Motta MGC. The mother-caregiver of child/teenager with cerebral palsy: taking care of herself. Enferm Glob. 2018; 17(2):325-60. doi: https://dx.doi.org/10.6018/eglobal.17.2.265821.. Assim, essa sobrecarga resulta em impactos negativos no bem-estar emocional e na qualidade de vida dessas mulheres, podendo levar à falta de cuidado aos outros membros da família. Entretanto, essa realidade pode ser modificada se houver apoio efetivo a essas famílias1010 Kotzky K, Allen JE, Robinson LR, Satterfield-Nash A, Bertolli J, Smith C, et al. Depressive symptoms and care demands among primary caregivers of young children with evidence of congenital zika virus infection in Brazil. J Dev Behav Pediatr. 2019; 40(5):344-53. doi: https://doi.org/10.1097/DBP.0000000000000666.,2424 Lara EB, Pinos CC. Families with a disabled member: impact and family education. Procedia Soc Behav Sci. 2017; 237:418-25. doi: https://doi.org/10.1016/j.sbspro.2017.02.084..

Nesse norte, cabe destacar que o que Levinas propunha não era um vínculo restrito do Eu com o Outro, mas sim uma relação também aberta e plural, a qual deve e pode abranger diversos atores, considerando que há existência de diversos seres humanos, propondo assim a ética da Alteridade2525 Levinas E. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70; 2008.. Assim, é possível denotar que, apesar de as cuidadoras terem esse protagonismo nos cuidados às crianças com SCZ, essa sobrecarga imposta que traz efeitos negativos para as mulheres poderia ser atenuada com a participação mais ativa e responsabilização de outros cuidadores.

Contrariamente ao que é instituído socialmente quanto à dedicação integral da mãe, no estudo em tela houve uma situação de abandono do filho por uma mãe, restando à avó a responsabilidade pelo cuidado da criança. A rejeição evidenciada também foi constatada em outro estudo, no qual os sentimentos de recusa da deficiência – tristeza; preconceito; e medo do diferente e da dificuldade – se entrelaçam nas famílias e na cuidadora, situação que, por vezes, culmina no abandono do filho2626 Givigi RCN, Souza TA, Silva RS, Dourado SSF, Alcântara JN, Lima MVA. Implications of a diagnosis: what the families of disabled subjects feel? Disturb Comun [Internet]. 2015 [citado 22 Abr 2019]; 27(3):445-53. Disponível em: http://ken.pucsp.br/dic/article/view/20892
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.

O cuidado à criança com SCZ demanda mudança radical de toda rotina famíliar1616 Valim T. “ELAS”, de Stephane Ramos. Anu Antropol [Internet]. 2018 [citado 4 Jun 2019]; 43(1):463-8. Disponível em: https://journals.openedition.org/aa/3105
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. Essa realidade também foi evidenciada na presente pesquisa, corroborando estudo que buscou compreender como os familiares de crianças com microcefalia pelo vírus Zika reagiram emocionalmente ao diagnóstico e o impacto desse evento na dinâmica familiar. Os achados mostram que as famílias tiveram que fazer muitas adaptações no cotidiano para o cuidado do novo membro familiar. As cuidadoras, nesse caso, as mães, assumiram as responsabilidades contínuas com o apoio dos companheiros22 Menezes ASS, Alves MJS, Gomes TP, Pereira JA. Microcefalia relacionada ao vírus Zika e dinâmica familiar: perspectiva da mãe. Av Enferm. 2019; 37(1):38-46. doi: http://dx.doi.org/10.15446/av.enferm.v37n1.72008..

Diante disso, é necessário ofertar a essas mulheres momentos de relaxamento e assistência à sua saúde, assim como proporcionar intervalos de descanso e suporte de outros familiares, amenizando, assim, a sobrecarga dos cuidadores2727 Pilapil M, Coletti DJ, Rabey C, DeLaet D. Caring for the caregiver: supporting families of youth with special health care needs. Curr Probl Pediatr Adolesc Health Care. 2017; 47(8):190-9. doi: https://doi.org/10.1016/j.cppeds.2017.07.003..

Para tanto, faz-se necessário que os profissionais conheçam a singularidade do cotidiano dessas famílias e suas necessidades, a fim de oferecer um cuidado qualificado e para ajudá-los no que for possível na organização familiar como um todo. Para isso, a relação desenvolvida entre profissional e família deverá ser pautada no diálogo e na escuta sensível2828 Silva MEA, Moura FM, Albuquerque TM, Reichert APS, Collet N. Network and social support in children with chronic diseases: understanding the child’s perception. Texto Contexto Enferm. 2017; 26(1):e6980015. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072017006980015..

Com relação ao futuro dessas crianças, as mulheres cuidadoras ressignificam suas vidas a partir da realidade em que estão inseridas, vivenciam a esperança de um futuro, mesmo que desconhecido, e esse sentimento faz com que elas lutem pelos seus filhos2929 Williamson KE. Care in the time of Zika: notes on the ‘afterlife’ of the epidemic in Salvador (Bahia), Brazil. Interface (Botucatu). 2018; 22(66):685-96. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622017.0856.. Estudo3030 Scott RP, Lira LC, Matos SS, Souza FM, Silva ACR, Quadros MT. Therapeutic paths, care and assistance in the construction of ideas about maternity and childhood in the context of the Zika virus. Interface (Botucatu). 2018; 22(66):673-84. doi: http://dx.doi.org/10.1590/180757622017.0425. evidencia que essa peregrinação infinda em busca de soluções, em uma tentativa de dar mais qualidade de vida ao filho acometido pela SCZ, marca a experiência da maternidade como sacrifício em nome do outro, tornando a figura da cuidadora valorizada pela sociedade e por ela mesma.

Acerca disso, a vida em função do cuidado de uma Crianes é, por vezes, referida como uma luta cotidiana na busca da garantia de terapias de reabilitação. Tendo em vista a visibilidade na mídia, as cuidadoras dessas crianças procuram se apoiar nos seus direitos, tentando compreender a problemática vivenciada. Aquelas parecem ser incansáveis perante o itinerário diário de cuidados, apesar do sofrimento provocado pela luta rotineira. Assim, as famílias buscam apoio e conhecimento para lutar pelos direitos da criança, de tal forma que tais forças transcendem o benefício financeiro e passam por aspectos judiciais, de educação e de assistência à saúde3131 Cerqueira MMF, Alves RO, Aguiar MGG. Experiences in the therapeutic itineraries of mothers of children with intellectual disabilities. Cienc Saude Colet. 2016; 21(10):3223-32. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152110.17242016.,3232 Figueiredo SV, Gomes ILV, Queiroz MVO, Mota DDS, Sousa ACC, Vasconcelos CMP. Families’ knowledge about children and adolescents with neural malformation about their rights in health. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2015; 19(4):671-8. doi: http://dx.doi.org/10.5935/1414-8145.20150090..

Cabe destacar que a situação financeira precária dessas famílias é ressaltada na vivência de tais cuidadoras, pois os custos com os tratamentos e cuidados da Crianes, mesmo sendo realizados tratamentos em serviços do SUS e sendo recebido o BPC, frequentemente são muito elevados, a ponto de extrapolar o próprio valor do benefício. Além disso, com a saída da mulher do trabalho, a situação financeira da família torna-se ainda mais difícil11 Freitas AFF, Sousa IF, Pargeon JPOM, Silva AMTC, Almeida RJ. Evaluation of family impact in parents of children diagnosed with microcephaly caused by Zika Virus. Rev Enferm Atual In Derme [Internet]. 2019 [citado 12 Jun 2019]; 87 Esp:1-11. Disponível em: http://www.revistaenfermagematual.com/index.php/revista/article/view/170/279
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,1010 Kotzky K, Allen JE, Robinson LR, Satterfield-Nash A, Bertolli J, Smith C, et al. Depressive symptoms and care demands among primary caregivers of young children with evidence of congenital zika virus infection in Brazil. J Dev Behav Pediatr. 2019; 40(5):344-53. doi: https://doi.org/10.1097/DBP.0000000000000666..

Assim, para ter acesso à alimentação especial, medicamentos, órteses e aparelhos de reabilitação, essas famílias travam uma batalha infinda com o Estado, pois muitas vezes não conseguem adquirir tais itens, ou sua quantidade é mínima para o período determinado, o que faz com que tais famílias precisem solicitar apoio financeiro de parentes e amigos para realizar o cuidado da criança. Reforçando esse aspecto, estudo3333 Scott RP, Quadros MT, Rodrigues AC, Lira LC, Matos SS, Meira F, et al. A epidemia de Zika e as articulações das mães num campo tensionado entre feminismo, deficiência e cuidados. Cad Genero Divers. 2017; 3(2):73-92. doi: http://dx.doi.org/10.9771/cgd.v3i2.220133. ressalta que, devido à burocratização da assistência e a necessidades específicas dessas crianças, as mães procuram ajuda de Organizações Não Governamentais (ONGs) para obter orientações acerca dos seus direitos. Essas instituições, além de darem apoio, também atuam como mediadora para o acesso aos serviços de saúde, previdência social e transporte.

Em nossa prática diária com as cuidadoras de crianças com SCZ, percebemos que muitas vezes elas se sentem desamparadas e negligenciadas por parte do Estado. No entanto, buscam forças para conquistar os direitos e vivenciar a rotina de cuidados dos seus filhos, traçando um perfil da mulher guerreira. Assim como mostrado por estudo3333 Scott RP, Quadros MT, Rodrigues AC, Lira LC, Matos SS, Meira F, et al. A epidemia de Zika e as articulações das mães num campo tensionado entre feminismo, deficiência e cuidados. Cad Genero Divers. 2017; 3(2):73-92. doi: http://dx.doi.org/10.9771/cgd.v3i2.220133., expressões como “luta” e “batalha” revelam oposição à ideia de luto, tristeza e abandono, demonstrando o poder de resiliência dessas mulheres.

Pesquisa realizada com pais de crianças com a SCZ mostrou impactos na saúde mental destes diante os desafios no cuidado a essas crianças. Em comparação aos pais, as mães experimentaram mais efeitos negativos; menor nível de satisfação com a vida; maior nível de fadiga e sofrimento psicológico; e, consequentemente, nível baixo de saúde mental3434 Souza LEC, Lima TJS, Ribeiro EM, Pessoa ALS, Figueiredo TC, Lima LBP. Mental health of parents of children with congenital Zika virus syndrome in Brazil. J Child Fam Stud. 2018; 27(4):1207-15. doi: https://doi.org/10.1007/s10826-017-0969-0.. Tal fato ocorre devido às mães serem mais envolvidas nos cuidados dos filhos.

Assim, o apoio emocional é fundamental para reduzir a sobrecarga das cuidadoras, fato evidenciado por outro estudo, realizado com 191 mães de crianças com deficiência, o qual revelou que a maior quantidade de apoio social estava relacionada a níveis mais altos de felicidade, assim como à redução do estresse, da ansiedade e do sentimento de culpa3535 Findler L, Jacoby AK, Gabis L. Subjective happiness among mothers of children with disabilities: the role of stress, attachment, guilt and social support. Res Dev Disabil. 2016; 55:44-54. doi: https://doi.org/10.1016/j.ridd.2016.03.006..

Portanto, essas cuidadoras frequentemente encontram-se como um indivíduo fragilizado que, apesar desta situação, permanece sendo uma alteridade. Assim, cuidar do outro concebendo-o como uma alteridade e uma pessoa singular é dar-se conta da responsabilidade infinita perante ele.

Diante disso, é necessário apoiar as famílias de crianças com síndrome do Zika vírus, a fim de empoderá-las para as demandas impostas pela condição da criança, auxiliando nas formas de enfrentamento das dificuldades, ainda que o amparo e suporte externo estejam fragilizados3030 Scott RP, Lira LC, Matos SS, Souza FM, Silva ACR, Quadros MT. Therapeutic paths, care and assistance in the construction of ideas about maternity and childhood in the context of the Zika virus. Interface (Botucatu). 2018; 22(66):673-84. doi: http://dx.doi.org/10.1590/180757622017.0425.,3636 Machado MS, Londero AD, Pereira CRR. Becoming the family of a child with Autistic Spectrum Disorder. Contextos Clin. 2018; 11(3):335-50. doi: https://doi.org/10.4013/ctc.2018.113.05.. Assim, percebe-se que o bem-estar da criança e da família caminham juntos e que a adaptação delas depende da rede de apoio e dos serviços disponibilizados3636 Machado MS, Londero AD, Pereira CRR. Becoming the family of a child with Autistic Spectrum Disorder. Contextos Clin. 2018; 11(3):335-50. doi: https://doi.org/10.4013/ctc.2018.113.05..

Conclusão

A compreensão da vivência das cuidadoras de crianças com a SCZ, no contexto familiar e social, possibilita refletir sobre a figura da mulher nesse âmbito, como sinônimo de luta e batalha constante pelos direitos e condições de vida melhor para seu filho/neto. O cotidiano familiar se modifica diante das necessidades das Crianes, que envolve terapias, medicamentos e insumos que são precisos para a reabilitação, necessidades que, associadas às obrigações negligenciadas pelo Estado, impactam a vida dessas mulheres de maneira negativa.

Apesar da existência de políticas públicas, da repercussão midiática e de serviços de referências criados para atender às demandas dessas crianças, as lacunas na assistência impõem desafios aos familiares que enfrentam a falta de apoio social, jurídico e na área da Saúde. Nesse contexto, a mulher/cuidadora principal se dedica de maneira exclusiva aos cuidados da criança com SCZ, abdicando de sua vida pessoal, profissional e familiar, sentindo-se sobrecarregada e solitária nesse processo.

Como limitações do estudo, considera-se o fato de as participantes serem apenas as cuidadoras principais das crianças com a SCZ, não permitindo uma representatividade maior de outros familiares. Nessa perspectiva, a realização de estudos torna-se importante para que contemplem o âmbito familiar da criança com SCZ, a fim de conhecer os desafios enfrentados por todos os membros da família e a influência do contexto familiar nos cuidados a essa criança.

Com isso, sugere-se capacitação e apoio dos profissionais da equipe Saúde da Família pelo Núcleo de Apoio à Saúde da Família, para que possam contribuir no cuidado à criança com a SCZ e sua família, de modo a oferecer um cuidado integral a esse grupo. Sugere-se, ainda, a criação de programas de acompanhamento familiar multidisciplinar; atividades grupais de convivência – a exemplo da terapia comunitária –; e práticas de lazer, relaxamento e cuidado direcionados às cuidadoras das crianças com SCZ.

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Editado por

Editora
Miriam Celí Pimentel Porto Foresti
Editor associado
Fernando José Guedes da Silva Júnior

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2021
  • Aceito
    16 Set 2022
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