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Concepções e práticas sobre a Saúde do Trabalhador para profissionais do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica

Concepciones y prácticas sobre la Salud del Trabajador para profesionales del Núcleo Ampliado de Salud de la Familia y Atención Básica

Resumo

O estudo objetivou compreender os significados atribuídos à saúde do trabalhador (ST) pelos profissionais de saúde do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB), bem como seus desdobramentos na produção de cuidados na Atenção Primária à Saúde. Entrevistas feitas com 13 profissionais de diferentes áreas, que foram exploradas com base na Análise do Discurso. Emergiram sentidos do trabalho como gerador de agravos e aqueles relacionados com os Determinantes Sociais de Saúde (DSS). Por intermédio das ações do Nasf-AB sobre o trabalho/trabalhador, foi possível visualizar o quanto essa equipe funciona como filtro das tensões produzidas por usuários, equipes de saúde da família e gestão. O discurso do trabalho como produtor de agravos ainda é predominante; contudo, a percepção do trabalho como DSS produz aberturas para que esses profissionais possam agir na clínica ampliada como técnicos de referência em ST.

Vigilância em saúde do trabalhador; Atenção Primária à Saúde; Profissional de saúde; Pesquisa qualitativa; Discurso

Resumen

El objetivo del estudio fue comprender los significados atribuidos a la Salud del Trabajador (ST) por parte de los profesionales de la salud del Núcleo Ampliado de Salud de la Familia y Atención Básica (Nasf-AB), así como sus desdoblamientos en la producción de cuidados en la Atención Primaria de la Salud. Se analizaron entrevistas realizadas con 13 profesionales de diferentes áreas, con base en el Análisis del Discurso. Surgieron sentidos del trabajo como generador de agravios y aquellos relacionados con los Determinantes Sociales de Salud (DSS). Por medio de las acciones del Nasf-AB sobre el trabajo/trabajador, fue posible ver hasta qué punto ese equipo funciona como filtro de las tensiones producidas por usuarios, equipos de salud de la familia y gestión. El discurso del trabajo como productor de agravio todavía es predominante; no obstante, la percepción del trabajo como DSS produce aperturas para que esos profesionales puedan actuar en la clínica ampliada como técnicos de referencia en ST.

Vigilancia en salud del trabajador; Atención Primaria de la Salud; Profesional de Salud; Encuesta cualitativa; Discurso

Abstract

The study aimed to understand the meanings attributed to Worker’s Health (WH) by health professionals of the Expanded Core for Family Health and Primary Care (Nasf-AB in the Portuguese acronym), as well as its consequences in the production of care in PHC. Interviews with 13 professionals from different areas were analyzed based on Discourse Analysis. Meanings of work as a generator of diseases and those related to the Social Determinants of Health (SDH) emerged. Through the actions of Nasf-AB on work/worker, it was possible to see how this team works as a filter of the tensions produced by users, family health teams and management. The discourse of work as a producer of diseases is still predominant; however, the perception of work as SDH produces openings for these professionals to act in the expanded clinic as reference technicians in WH.

Occupational health; Primary health care; Health personnel; Qualitative research; Discourse

Introdução

No Brasil, a Vigilância em Saúde do Trabalhador (Visat) é parte integrante do Sistema Único de Saúde (SUS) desde a sua criação, na década de 1990. A ela compete a garantia de ações de assistência, vigilância, informação, pesquisas e participação popular dos trabalhadores em todo o território nacional 11. Minayo-Gomez C , Vasconcellos LCF , Machado JMH . Saúde do trabalhador: aspectos históricos, avanços e desafios no Sistema Único de Saúde . Cienc Saude Colet. 2018 ; 23 ( 6 ): 1963 - 70 . . Desde então, o campo da saúde do trabalhador (ST) experimenta aprimoramentos e expansões, como a criação da Rede Nacional de Atenção Integral a Saúde do Trabalhador (RENAST), em 2002, e a publicação da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT), em 2012 22. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de Setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as políticas nacionais de saúde do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. 3 Out 2017. .

A PNSTT, particularmente, considera a transversalidade do campo da ST e o olhar para o trabalho enquanto Determinante Social da Saúde (DSS). Entre suas estratégias, a PNSTT aponta para a importância do cuidado aos usuários-trabalhadores na esfera da Atenção Primária à Saúde (APS), dada sua proximidade com os territórios onde os indivíduos vivem e trabalham, representando seu primeiro contato com os serviços de saúde e permitindo um acompanhamento longitudinal. Desse modo, organiza e coordena os fluxos ao longo da rede de saúde, algo que favorece a atenção e a gestão do cuidado à população trabalhadora no SUS 22. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de Setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as políticas nacionais de saúde do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. 3 Out 2017. .

Somado a isso, o Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB), instituído em 2008, visa ampliar a capacidade resolutiva da APS no país por meio do apoio técnico-pedagógico e clínico-assistencial ofertado por uma equipe de especialistas às equipes generalistas da APS 33. Brocardo D , Andrade CLT , Fausto MCR , Lima SML . Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf): panorama nacional a partir de dados do PMAQ . Saude Debate. 2018 ; 42 Spe 1: 130 - 44 . . Assim, as equipes de Saúde da Família (eSF), apoiadas pelo Nasf-AB, devem estar preparadas para reconhecer o trabalho enquanto DSS e incluir esse saber no desenvolvimento de ações de promoção, proteção, vigilância, assistência e reabilitação do usuário-trabalhador na área de abrangência das eSF 44. Amorim LA , Silva TL , Faria HP , Machado JMH , Dias EC . Vigilância em saúde do trabalhador na atenção básica: aprendizagens com as equipes de saúde da família de João Pessoa, Paraíba, Brasil . Cienc Saude Colet. 2017 ; 22 ( 10 ): 3403 - 13 . .

Todavia, apesar de estarem imersas em complexas relações trabalho-saúde-doença e ambiente nos territórios onde atuam, as equipes de APS apresentam dificuldades que limitam suas práticas voltadas para a ST. Destacam-se, aqui, a sobrecarga de trabalho das equipes; a rotatividade e a fragilidade e/ou precariedade dos vínculos nos contratos de trabalho; a preponderância de interesses políticos locais sobre as reais necessidades de saúde da população; a fragilidade da RENAST; a priorização de outros programas; a inexperiência profissional associada à falta de reconhecimento dos problemas decorrentes da relação trabalho-saúde-doença; e, sobretudo, a deficiência na formação e no suporte técnico em ST 44. Amorim LA , Silva TL , Faria HP , Machado JMH , Dias EC . Vigilância em saúde do trabalhador na atenção básica: aprendizagens com as equipes de saúde da família de João Pessoa, Paraíba, Brasil . Cienc Saude Colet. 2017 ; 22 ( 10 ): 3403 - 13 .

5. Silva A , Ferraz L , Rodrigues-Junior SA . Ações em Saúde do Trabalhador desenvolvidas na Atenção Primária no município de Chapecó, Santa Catarina . Rev Bras Saude Ocup . 2016 ; 41 :e16.
- 66. Mori EC, Naghettini AV. Formação de médicos e enfermeiros da estratégia Saúde da Família no aspecto da saúde do trabalhador. Rev Esc Enferm USP. 2016 ; 50 Esp:25-31. .

Incide sobre o Nasf-AB, enquanto apoiador estratégico das eSF, a responsabilidade de realizar a retaguarda clínica, sanitária e pedagógica em ST 44. Amorim LA , Silva TL , Faria HP , Machado JMH , Dias EC . Vigilância em saúde do trabalhador na atenção básica: aprendizagens com as equipes de saúde da família de João Pessoa, Paraíba, Brasil . Cienc Saude Colet. 2017 ; 22 ( 10 ): 3403 - 13 . . Porém, estudos evidenciam que o apoio do Nasf-AB às eSF ou não abrange a ST ou não ocorre com a periodicidade esperada, revelando uma incipiente atuação do Nasf-AB em questões relacionadas à ST 77. Magalhães CCB. Contribuição dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf) para o desenvolvimento de ações de saúde do trabalhador [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2014 . , 88. Coelho JG , Vasconcellos LCF , Dias EC . A formação de Agentes Comunitários de Saúde: construção a partir do encontro dos sujeitos . Trab Educ Saude . 2018 ; 16 ( 2 ): 583 - 604 . .

Se, por um lado, a diversidade de áreas de conhecimento das categorias profissionais que compõem o Nasf-AB favorece a elaboração interprofissional de ações voltadas para os trabalhadores nos territórios da APS 99. Alves ABR, Arruda AJCG, Cavalcanti CC, Silva DBL, Santos BMD, Lima DS, et al . Análise da articulação entre saúde do trabalhador e a atenção básica . Enferm Foco. 2020; 11 ( 5 ):166-71. , por outro, as diferentes concepções e significados que cada profissional atribui à ST podem ser entraves na articulação e no incremento dessas ações 1010. Cossi MS , Medeiros SM , Costa RRO . Concepções dos enfermeiros sobre a saúde do trabalhador . Rev APS . 2017 ; 20 ( 1 ):40-6. , 1111. Silva TL , Dias EC , Pessoa VM , Fernandes LMM , Gomes EM . Saúde do trabalhador na Atenção Primária: percepções e práticas de equipes de Saúde da Família . Interface (Botucatu). 2014 ; 18 ( 49 ): 273 - 88 . doi: 10.1590/1807-57622013.0227 .
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.02...
.

Tendo em vista que a ST nesse âmbito é recente enquanto política de saúde e, consequentemente, suas ações também podem ser desconhecidas pelos profissionais de saúde, questiona-se: quais sentidos e significados os discursos dos profissionais do Nasf-AB têm produzido sobre suas concepções e práticas em ST na APS? Conhecer esses elementos pode auxiliar no desenvolvimento de estratégias de planejamento e capacitação que permitam efetivar a integralidade do cuidado ao usuário-trabalhador nos territórios da APS. À vista disso, este estudo objetivou compreender os significados atribuídos à ST pelos profissionais de saúde do Nasf-AB, bem como seus desdobramentos na produção de cuidados na APS.

Métodos

Trata-se de uma pesquisa qualitativa exploratória 1212. Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes RC. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 34a ed. Petrópolis: Vozes; 2015 . , na qual adotou-se como perspectiva teórico-metodológica a Análise de Discurso de origem francesa, uma vez que se apoiou no dito do discurso para compreender como o sentido das palavras é construído historicamente e expressa posições ideológicas, trabalhando a relação língua-discurso-ideologia 1313. Orlandi EP . Análise de discurso: princípios e procedimentos . 13a ed. Campinas: Pontes; 2020 . .

O cenário da pesquisa foi constituído por três municípios da 9ª Região de Saúde do estado da Paraíba, nos quais 13 profissionais de saúde integravam as equipes Nasf-AB (EqNasf-AB) há mais de um ano e não exerciam cargos como gerência, chefia ou cargos de confiança. O tamanho da amostra foi definido pelo critério de saturação teórica 1414. Falqueto JMZ , Hoffmann VE , Farias JS . Saturação teórica em pesquisas qualitativas: relato de uma experiência de aplicação em estudo na área de administração . Rev Cien Adm . 2018 ; 20(52): 40 - 53 . .

A coleta de dados ocorreu entre novembro de 2018 e fevereiro de 2019 a partir da técnica de entrevista semiestruturada 1515. Minayo MCS, Costa AP. Fundamentos teóricos das técnicas de investigação qualitativa. Rev Lusofona Educ. 2018 ; 40(40):139-53. , com base em um roteiro pré-estruturado e em gravações de áudio, posteriormente transcritas para o meio digital. Os recortes transcritos das falas foram identificados pelas iniciais da categoria profissional: Assistente Social (As); Fisioterapeuta (Fi); Fonoaudiólogo (Fo); Nutricionista (Nu); e Psicólogo (Ps); e seguidos por números cardinais, conforme a ordem de entrevista.

Os dados foram analisados por meio da aplicação de três perguntas heurísticas propostas por Souza 1616. Souza SAF. Análise de discurso: procedimentos metodológicos. Manaus: Instituto Census; 2014 .: 1) Qual é o conceito-análise presente no texto? 2) Como o texto constrói o conceito-análise? 3) A que discurso pertence o conceito-análise construído da forma que o texto constrói? (p. 21)

Primeiramente, conduziu-se à leitura flutuante do material e, em seguida, à leitura analítica com aplicação da primeira pergunta heurística. Seguiu-se com a segunda pergunta, que gerou os sentidos constitutivos do conceito-análise e, por fim, com a terceira pergunta, que possibilitou entender os significados que esse conceito traz para as práticas locais.

Os sentidos que compunham esses construtos emergiram das marcas textuais: paráfrase (o que se mantém); polissemia (deslocamento); metáfora (transferência); relação do dizer e não dizer (silêncio); modalizações (suavização); e as condições de produção (o contexto de elaboração dos discursos) 1313. Orlandi EP . Análise de discurso: princípios e procedimentos . 13a ed. Campinas: Pontes; 2020 . .

A pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa conforme parecer consubstanciado n. 2.677.650. Elucidou-se aos participantes que medidas de proteção da identidade seriam adotadas, a fim de diminuir os riscos advindos do não anonimato (retaliações, perseguições) e que o material coletado seria utilizado exclusivamente para fins de pesquisa.

Resultados

Condições de produção

Os 13 profissionais de saúde representaram cinco EqNasf-AB da 9ª Região de Saúde do estado da Paraíba, cujas categorias refletiam a necessidade local de saúde 1717. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 21 Set 2017.: assistente social, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista e psicólogo. Sete eram do sexo feminino e seis, do sexo masculino, com idade mínima de 25 anos e máxima de 58 anos.

Concernente ao tempo decorrido desde a graduação, este variou entre dois e 31 anos, tendo nove participantes sido formados em instituições privadas. A respeito da pós-graduação, destaca-se que seis possuíam-na em área correlata à Saúde Coletiva; cinco, em áreas voltadas a especialidades clínicas; três, em áreas relacionadas à gestão pública; um, em áreas associadas ao Direito; quatro em Saúde Mental; e um, em docência.

Sobre o tempo de atuação no Nasf-AB, houve variação de um ano e oito meses a aproximadamente sete anos, no período de coleta de dados. Porém, em relação a experiências ocupacionais anteriores, foram citadas atuações nos ramos do comércio e serviços, como vendas, ensino; em setor público (assistência social, Saúde Mental e vigilância em saúde); e em indústrias.

No que tange às características locorregionais nas quais os discursos foram produzidos, os trabalhadores do Nasf-AB se reconhecem da seguinte forma: “[...] a gente trabalha no sertão paraibano” (Fi1). Esse recorte exprime outros discursos que denotam a identificação do trabalhador com esse cenário. Advoga-se, aqui, que o lugar a partir do qual falam os sujeitos é constitutivo do que eles dizem 1313. Orlandi EP . Análise de discurso: princípios e procedimentos . 13a ed. Campinas: Pontes; 2020 . . A área mencionada localiza-se em uma região do bioma Caatinga; com clima semiárido; poucas precipitações; e vegetação com poucas folhas e adaptadas aos períodos de seca. Essa imagem se associa à de um lugar pobre e seco, cujas atividades produtivas locais se caracterizam pelo uso da força braçal para a produção de mercadorias e serviços, bem como para a reprodução da vida 1818. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Biomas [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2019 [citado 1 Set 2018]. Disponível em: https://cnae.ibge.gov.br/en/component/content/94-7a12/7a12-vamos-conhecer-o-brasil/nosso-territorio/1465-ecossistemas.html?Itemid=101#caatinga
https://cnae.ibge.gov.br/en/component/co...
.

O cenário pode influenciar na maneira como os discursos são produzidos, uma vez que discurso não é apenas o que se diz, mas também a relação com o contexto de sua elaboração, produzindo sentidos. Assim, as condições de produção podem ter sentido estrito, relacionado aos aspectos de enunciação do discurso, ou sentido amplo, fundamentando-se em aspectos sócio-históricos e ideológicos 1313. Orlandi EP . Análise de discurso: princípios e procedimentos . 13a ed. Campinas: Pontes; 2020 . .

Dessa maneira, os discursos analisados geraram o conceito-análise “saúde do trabalhador”, o qual foi construído com base em dois sentidos: 1) a relação trabalho-saúde-doença e 2) os trabalhadores.

A relação trabalho-saúde-doença

O trabalho como gerador de doenças e acidentes

Em busca de compreender os sentidos atribuídos ao trabalho pelos profissionais do Nasf-AB, observou-se que as marcas textuais construíam o conceito-análise evidenciando o trabalho como um “gerador de adoecimentos”:

[...] [os trabalhadores] adotam... hábitos, posturas erradas, trabalham com cargas, pesos exacerbados, que desenvolvem uma série de complicações osteomusculares. (Fi1)

[...] a questão [de] sobrecarga de trabalho [...] isso acaba afetando, quer queira, quer não, a saúde, né? [...] nesse processo de adoecimento do trabalhador. (As2)

[...] no local de trabalho, a gente também percebe em relação a outras doenças [...] excesso de peso [...] distensão muscular. (Nu1)

As lesões cujo nexo causal está atrelado provavelmente ao movimento gestual, que, por ser mal executado, é expresso nas palavras “erradas”, “exacerbados”, “sobrecarga”, “demais” e “extensas”. Dessa maneira, os sentidos dos discursos estão pautados nos aspectos que colocam em relevo o trabalho em função das suas condições de execução e como causa de adoecimentos.

O discurso dos profissionais do Nasf-AB também despontou sentidos sobre a relação trabalho-saúde-doença na perspectiva normalizadora/fiscalizadora do ambiente de trabalho:

[...] em [determinada cidade] mesmo aconteceu um acidente por falta do equipamento, que tava trabalhando em construção e aí bateu num fio e o homem faleceu [...]. (Fo1)

[...] aqui é município pequeno, faz construção, não usa é... protetor, sempre acontece acidente de trabalho [...] Como aqui não tem nada é... fiscalização, não tem nada [...]. (Nu2)

Na nossa região temos muitas pessoas que dependem do trabalho, como agricultor, outros dos serviços de construção civil, que não tem realmente a devida regulamentação, nem o uso de EPIs, e nem tem realmente o devido acompanhamento. (Fi1)

O uso das palavras “materiais”, “equipamento”, “investimento”, “protetor” e “EPIs” diz respeito ao uso de equipamentos de proteção individual (EPIs), os quais são trazidos pelos sujeitos com entonações negativas, ou seja, destacando-se sua falta. Já as palavras “fiscalização”, “regulamentação”, “acompanhamento” e “suporte” fizeram referência a uma retaguarda especializada em saúde e segurança do trabalho para garantir a fiscalização adequada nesses ambientes. Tais medidas são necessárias para a prevenção dos acidentes relacionados ao ambiente de trabalho. Nota-se, então, que se trata de um discurso que vê o trabalho como “gerador de acidentes” e que precisa de intervenções pontuais sobre riscos à saúde mais evidentes.

A condição de onde falam é trazida nesses discursos reforçando que, por se tratar de municípios de pequeno porte com certa distância da capital, os acidentes de trabalho ocorrem por uma omissão à saúde desses trabalhadores, conforme denunciam os profissionais do Nasf-AB. Pelo “não dito”, é possível inferir que esses sujeitos revelam que, em outros locais, isso pode ser minimizado pela possibilidade de haver uma retaguarda efetiva e especializada fiscalizando os ambientes de trabalho.

O trabalho como Determinante Social da Saúde

Nos discursos, foram produzidos sentidos de reconhecimento do trabalho enquanto DSS:

[...] antes a gente, quando a gente falava de saúde, a gente tinha uma ideia que saúde era a ausência total de doença, né? E... através dos estudos, de informação, de acesso, há muito conhecimento, a gente ver que não é só isso! Não é só a ausência de doença que caracteriza esse quadro de saúde, né? E sim todo um contexto, né? [...] que favorece um bem-estar, nessa relação do profissional com o trabalho, e às vezes há um processo de vulnerabilidade que interfere nesse processo de saúde e doença [...]. (Ps3)

[...] a questão do trabalho, e... e que está diretamente ligado à forma, por exemplo, à forma que você trabalha, “ou não trabalho”, vai implicar [...] no seu estado de saúde, pode até implicar algumas, algumas doenças também [...]. (As1)

O sujeito Ps3 denota que a relação trabalho-saúde-doença é marcada pela memória discursiva biologista e pela noção de saúde, capitaneada pela Organização Mundial da Saúde. Tais concepções foram usadas aqui não apenas para conceituar a saúde, pois parafraseia-se que a saúde “não é só isso!”, pois também depende de um “contexto” e traz-se o trabalho para compor essa relação: em algumas situações, este age como gerador de um bem-estar (saúde) e, em outras, como fonte de vulnerabilidade (doença). Mais do que isso, quando o sujeito As1 diz a “forma que você trabalha, ou ‘não trabalho’”, mostra que não é apenas o fato de trabalhar que implica no processo saúde-doença, mas também o de não trabalhar, já que outros determinantes podem interferir nesse processo advindo do fato de não se ter emprego.

As condições de produção “formação” e “experiência profissional”, aqui, expõem sentidos, uma vez que os assistentes sociais e alguns psicólogos acabaram por produzir um discurso com esse olhar mais ampliado sobre o processo saúde-doença. As demais profissões ainda mantêm o discurso com ênfase na causa-efeito dentro da perspectiva da clínica, do mecanicismo e do adoecimento.

Que trabalhador?

Os trabalhadores no território: sobre ver e não poder enxergar

Os sujeitos assinalam o reconhecimento de trabalhadores no cuidado em saúde a partir de marcas textuais:

Nessa questão de saúde do trabalhador. [...] no comércio lá, com os professores e com os próprios funcionários da saúde, da Atenção Básica. (Fi4)

[...] esse que falou era pedreiro, aí ele dizia que tinha que subir, descer e [suspiro], por um lado, tava se sentindo cansado por causa do cigarro, e se parasse de fumar tava com medo de ficar gordo; e pra subir e descer escada? (Nu2)

[...] a gente tá atendendo trabalhadores diversos, de diversas empresas, que vem de fora, é... pessoas que são viajantes, que trabalham é... vendendo de porta em portas, então a nossa relação com essas pessoas ela é muito ampla. (Ps3)

As demandas que me chegam, que a maioria das pessoas, infelizmente, são aquelas que “não tem trabalho” né?! (As1)

Nos discursos, são citados trabalhadores de diversos segmentos: agricultor, pedreiro, professor, profissional de saúde, servidor público, comerciante, vendedor ambulante, autônomo, além do sujeito “sem trabalho”. Por esse ângulo, o trabalho é apontado como um produtor de demandas para o Nasf-AB, exemplificado em ocupações que representam os setores formal e informal da economia, bem como aqueles que não possuem emprego.

Entretanto, outras marcas mostram que o usuário-trabalhador ainda é invisível aos olhos dos profissionais do Nasf-AB, pois os sujeitos relatam não receberem demandas de ST, ao mesmo tempo que citam casos já atendidos:

[...] ela me relata que não gosta do trabalho, não tá satisfeita no trabalho, mas é lógico que não é o trabalho que é a condição pra ela ter ganhado peso [...] mas que seja o trabalho a condição pra desencadear na saúde, como ocorre talvez em um ambiente insalubre é com mofo, ou seja, condições físicas, químicas, microbiológicas, nunca atendi. (Nu2)

Não é que a gente não recebe, né?! É, assim, talvez até a gente receba, só que [...] o profissional que faz o encaminhamento, ele não consegue identificar que aquela... aquela doença está relacionada ao trabalho do paciente, né?! (Fi2)

Assim, há uma dicotomia discursiva, na qual os sujeitos atendem trabalhadores, mas não conseguem identificá-los como ST, pelo fato de essa demanda chegar para o Nasf-AB com outras especificações, tais como “estresse”, “depressão”, “AVC” e “excesso de peso” – e não “doença relacionada ao trabalho” ou “no ambiente de trabalho”.

Atenção ao trabalhador pelo Nasf-AB: um cuidado assistencial-especializado

Como o discurso dos profissionais do Nasf-AB mostra-se dicotômico, marcas textuais constroem como é ofertado esse cuidado aos trabalhadores quando identificada a demanda como ST:

[...] a gente identifica [...] qual a profissão que ele realmente tem, pra a gente ver se tem uma correlação com o quadro que apresenta, a partir de então [...] ele vai ser orientado de antemão ao afastamento, ou redução dessas atividades, ou correção de hábitos posturais, ou enfim, é... de forma que ele não precise abandonar esse posto, esse trabalho. (Fi1)

[...] quando chega demanda, que é muito raro vir diagnosticado, que geralmente é uma doença relacionada ao trabalho, a gente vai e faz orientações em domicílio mesmo. (Fi2)

Faço anamnese, avaliação e tratamento clínico e vejo se ele está sendo acompanhado por outros profissionais, se não, faço o encaminhamento também! (Fo1)

Evidencia-se que os profissionais do Nasf-AB, no cuidado ao trabalhador, realizam atividades assistenciais (ambulatoriais e domiciliares), educativas e os encaminhamentos intra/intersetoriais. No entanto, mesmo que algumas atividades sejam desenvolvidas de forma compartilhada entre os profissionais da EqNasf-AB, uma ênfase é dada ao trabalho individual executado pelos especialistas que compõem as equipes, despontando fragmentação no processo de trabalho.

Devido ao foco na especialidade dos profissionais de saúde do Nasf-AB, hegemonicamente, as atividades assistenciais, especialmente as de reabilitação, estão sobrepostas às de promoção e prevenção da saúde. Quando se identifica uma visão mais integral sobre o trabalho, esta tem a ver com uma produção de discurso que passa pelas finalidades da formação acadêmica e pela experiência profissional prévia com ênfase no social, como se observa no discurso do sujeito Ps3:

[...] a gente foi fazer o atendimento, ela tava com ideação suicida, né? Então foi uma preocupação muito grande, a gente foi feito todo um... um monitoramento, [...] além do CAPS [Centro de Atenção Psicossocial], a gente encaminhou ela pra uns cursos que o município também oferece, curso de corte e costura, e encaminhamos pra um curso também de pintura, e hoje [...] essa pessoa já tá com encomendas de produtos, né? (Ps3)

Assim, os sentidos produzidos no discurso acima são da oferta de um cuidado integral ao usuário-trabalhador que não tinha um emprego, cuja ocupação deu um novo sentido para si, impactando positivamente no seu estado de saúde-adoecimento.

Os silêncios no discurso do Nasf-AB também falam muito sobre esse cuidado ofertado. Em primeiro lugar, silenciou-se a integração Nasf-AB e eSF no desenvolvimento de ações de ST, nas quais se vê um muro posto entre equipes que, por meio de algumas frestas, permite um intercâmbio a respeito da ST, notadamente, quando se trata da demanda de saúde dos trabalhadores da própria eSF. Em segundo lugar, são silenciados aspectos concernentes à Visat, testificando possível ausência de conhecimento ou ação efetiva desta nesse território.

O trabalhador do Nasf-AB

Ao assumirem a posição de trabalhadores, os profissionais do Nasf-AB revelaram que também estão sujeitos a agravos de saúde, assim como outros:

No Nasf [...] passamos por situações de estresse no trabalho [...] e pode até desencadear algum tipo de... transtorno ou algum tipo de doença. (Ps1)

[...] como é que eu cuido da saúde alheia se eu não estou cuidando da minha? (As1)

[Se o Estado] desse condições, mais condições pra o trabalhador de saúde cuidar do trabalhador lá fora, mas também condições dos próprios cuidadores de saúde, serem cuidados. (As2)

O trabalhador do Nasf-AB reativa a questão da retaguarda técnica para os trabalhadores nessa região de saúde, com ênfase ao seu contexto de trabalho. No discurso do sujeito As2, há uma responsabilidade imposta ao Estado pelo suporte para que os profissionais do Nasf-AB desenvolvam ações em ST. Ao mesmo tempo, deve-se fornecer meios para que esse trabalhador de saúde também constitua alvo de ações de ST: “o cuidar do cuidador” (As2).

Discussão

Os discursos sobre a ST neste estudo revelaram a hegemonia da ideia de trabalho como gerador de doenças e acidentes, o que pode dificultar a adoção de outras ações em termos de ST. Contudo, de forma marginal, percebe-se também o despontar da noção de trabalho dentro do contexto dos DSS, ainda influenciado pela especificidade do núcleo de formação de alguns profissionais do Nasf-AB mais ligados às ciências humanas e sociais. Apontou-se, ainda, no discurso sobre o trabalhador, que o profissional do Nasf-AB, por um lado, reconhece-se como trabalhador do território e percebe a insuficiência da assistência para dar conta dos problemas de ST e, por outro, denuncia a pressão para prestar assistência e reclama da falta de retaguarda técnica e de fiscalização, que potencializariam as ações de promoção e vigilância em ST no território da APS.

A predominante influência do cuidado assistencial nos discursos dos profissionais do Nasf-AB aqui se explica, em parte, por três forças distintas que incidem e moldam suas práticas em termos de ST: 1) a força da demanda individual do usuário, prioritariamente, em busca de assistência clínica e reabilitadora; 2) a força da eSF, que não compartilha com o Nasf-AB a oferta de cuidados aos usuários-trabalhadores, mas requer desses profissionais abordagens clínicas e especializadas; e 3) a força da gestão, que não fornece meios para que a rede de atenção especializada se fortaleça e cumpra seu papel, permitindo o desenvolvimento de ações de ST na APS.

Nos sentidos produzidos sobre trabalho e trabalhador, os discursos pautam-se em dois modelos de atenção à saúde: o biopsicossocial e o biomédico. Enquanto o primeiro se ocupa em identificar fatores que levam as pessoas a adoecerem, enquanto determinantes nos quais se pode intervir com promoção e prevenção da saúde, o segundo ainda compartilha da visão mecanicista do ser humano, centrado na doença/agravo com intervenções pontuais 1919. Schenker M, Costa DH. Avanços e desafios da atenção à saúde da população idosa com doenças crônicas na Atenção Primária à Saúde. Cienc Saude Colet. 2019 ; 24(4):1369-80. .

Considerando o papel do Nasf-AB na transformação das práticas de saúde na APS de modo a provocar mudanças no modelo de atenção à saúde 2020. Arce VAR , Teixeira CF . Práticas de saúde e modelo de atenção no âmbito do Núcleo de Apoio à Saúde da Família em Salvador (BA) . Saude Debate. 2017 ; 41 Esp 3: 228 - 40 . , 2121. Nascimento CMB , Albuquerque PC , Sousa FOS , Albuquerque LC , Gurgel IGD . Configurações do processo de trabalho em núcleos de apoio à saúde da família e o cuidado integral . Trab Educ Saude . 2018 ; 16 ( 3 ): 1135 - 56 . , as concepções sobre trabalho-saúde-doença identificadas no discurso dos profissionais são apontadas como entraves para o desempenho de suas atividades 2222. Nascimento AG , Cordeiro JC . Núcleo ampliado de saúde da família e atenção básica: análise do processo de trabalho . Trab Educ Saude . 2019 ; 17 ( 2 ):e0019424. , 2323. Lazarino MSA , Silva TL , Dias EC . Apoio matricial como estratégia para o fortalecimento da saúde do trabalhador na atenção básica . Rev Bras Saude Ocup . 2019 ; 44 :e23. . Ainda assim, é mister que os profissionais do Nasf-AB se reconheçam enquanto agentes desse processo, ou seja, profissionais capazes de refletir sobre suas identidades profissionais para rever os limites e as possibilidades de suas práticas 2424. Arce VAR. Núcleos de Apoio a Saúde da Família: uma análise das práticas de saúde e do processo de construção da identidade profissional no contexto de Salvador, BA [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2016 . .

Na constituição da identidade profissional do trabalhador do Nasf-AB, é possível notar que as influências da própria formação e experiência profissional, bem como do contexto de trabalho, implicam no modo como os profissionais de saúde discursam sobre a ST na APS.

Sobre a formação e a experiência, o discurso dos participantes as trouxe como eixo orientador das concepções atribuídas ao trabalho dentro da tríade trabalho-saúde-doença que também impactam no desenvolvimento da prática do Nasf-AB – para alguns, esse desenvolvimento é voltado ao cuidado fragmentado (biomédico) e, para outros, ao cuidado integral (biopsicossocial) 66. Mori EC, Naghettini AV. Formação de médicos e enfermeiros da estratégia Saúde da Família no aspecto da saúde do trabalhador. Rev Esc Enferm USP. 2016 ; 50 Esp:25-31. .

A respeito do contexto de trabalho, observou-se no discurso dos sujeitos a noção de território, pois eles destacaram as peculiaridades do mundo do trabalho no cenário no qual exercem suas atividades laborais, apontando-o como gerador de adoecimentos e acidentes, o que exige do Nasf-AB intervenções pontuais especializadas, predominantemente clínico-assistenciais, sendo que a falta de retaguarda técnica-pedagógica não permite a ampliação dessas opções 44. Amorim LA , Silva TL , Faria HP , Machado JMH , Dias EC . Vigilância em saúde do trabalhador na atenção básica: aprendizagens com as equipes de saúde da família de João Pessoa, Paraíba, Brasil . Cienc Saude Colet. 2017 ; 22 ( 10 ): 3403 - 13 . , 1111. Silva TL , Dias EC , Pessoa VM , Fernandes LMM , Gomes EM . Saúde do trabalhador na Atenção Primária: percepções e práticas de equipes de Saúde da Família . Interface (Botucatu). 2014 ; 18 ( 49 ): 273 - 88 . doi: 10.1590/1807-57622013.0227 .
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.02...
. Com isso, os profissionais do Nasf-AB apresentam dificuldades de enxergar os trabalhadores como também usuários do serviço de saúde, sendo atendidos sob diversas outras perspectivas e invisíveis enquanto trabalhadores 55. Silva A , Ferraz L , Rodrigues-Junior SA . Ações em Saúde do Trabalhador desenvolvidas na Atenção Primária no município de Chapecó, Santa Catarina . Rev Bras Saude Ocup . 2016 ; 41 :e16. , 1010. Cossi MS , Medeiros SM , Costa RRO . Concepções dos enfermeiros sobre a saúde do trabalhador . Rev APS . 2017 ; 20 ( 1 ):40-6. . Assim, o trabalho realizado no Nasf-AB tende a valorizar mais a atuação multiprofissional heterogênea, centrada nos campos específicos das diferentes profissões, em detrimento da colaboração interprofissional, que valoriza a integração proativa entre saberes e práticas de cada núcleo para a tomada de decisão, de modo a superar um agir parcelado 2525. Barros NF , Spadacio C , Costa MV . Trabalho interprofissional e as Práticas Integrativas e Complementares no contexto da Atenção Primária à Saúde: potenciais e desafios . Saude Debate. 2018 ; 42 Esp 1: 163 - 73 . .

A resistência à proposta interprofissional na área da Saúde está fortemente vinculada a tradições positivistas e biocêntricas e à relação do saber-poder disciplinar que aprisiona o conhecimento em compartimentos voltados à formação de especialistas 2626. Alvarenga JPO, Meira AB, Fontes WD, Xavier MMFB, Trajano FMP, Chaves Neto G, et al. Multiprofissionalidade e interdisciplinaridade na formação em saúde: vivências de graduandos no estágio regional interprofissional. Rev Enferm UFPE On Line. 2013 ; 7(10):5944-51. . Mais do que isso, ao analisarem as configurações das equipes Nasf-AB e sua atuação, Nascimento et al . 2121. Nascimento CMB , Albuquerque PC , Sousa FOS , Albuquerque LC , Gurgel IGD . Configurações do processo de trabalho em núcleos de apoio à saúde da família e o cuidado integral . Trab Educ Saude . 2018 ; 16 ( 3 ): 1135 - 56 . reconheceram três tipos de EqNasf-AB com base no apoio matricial enquanto metodologia de trabalho preconizada pelo Ministério da Saúde: EqNasf assistencial-curativista – representa apenas um acesso aos núcleos profissionais especialistas; EqNasf semimatricial – prioriza atividades individuais sobre as conjuntas; e EqNasf matricial – aproxima-se da proposta de apoiar matricialmente as eSF.

Nessa perspectiva, as tensões estabelecidas sobre o Nasf-AB no cenário do estudo o aproximam da configuração EqNasf-AB semimatricial, pois, mesmo que se desenvolvam outras ações, o foco do trabalho recai sobre a prática individual assistencial-especializada 2121. Nascimento CMB , Albuquerque PC , Sousa FOS , Albuquerque LC , Gurgel IGD . Configurações do processo de trabalho em núcleos de apoio à saúde da família e o cuidado integral . Trab Educ Saude . 2018 ; 16 ( 3 ): 1135 - 56 . , incentivada e cobrada por uma gestão que não oferece mecanismos e retaguarda de fiscalização e vigilância necessários; eSF que encaminham e requerem do Nasf-AB as ações clínicas-especializadas; e, por fim, usuários que são estimulados a buscarem no Nasf-AB o especialista que olhe para sua doença/agravo. Assim, colocam o Nasf-AB no lugar da atenção especializada que está precarizada em muitos municípios brasileiros 2020. Arce VAR , Teixeira CF . Práticas de saúde e modelo de atenção no âmbito do Núcleo de Apoio à Saúde da Família em Salvador (BA) . Saude Debate. 2017 ; 41 Esp 3: 228 - 40 . , 2727. Souza TS , Medina MG . Nasf: fragmentação ou integração do trabalho em saúde na APS? Saude Debate. 2018 ; 42 Esp: 145 - 58 . .

Tais práticas incentivam a hegemonia curativista e de consumo de produtos, procedimentos e serviços; e resiste ao modelo de vigilância em saúde. Por isso, são silenciadas pelo Nasf-AB ações que redimensionem a relação com as eSF a respeito da ST e do papel da Visat. Afinal, o ser trabalhador do Nasf-AB de município pequeno no sertão paraibano significa, em última instância, ser um especialista apenas, pois parece inviável assumir ações voltadas para a promoção e a vigilância, visto que estas requerem uma retaguarda técnica-pedagógica não disponível e um modo de fazer que contraria os interesses dos micropoderes constituídos nos territórios.

Sobre a Visat, ainda é preciso destacar que a IV Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador, realizada em 2014, apontou para a regionalização das ações da ST 2828. Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 603, de 8 de Novembro de 2018. Diário Oficial da União. 19 Dez 2018. . Entretanto, não há Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) na 9ª Regional de Saúde do estado da Paraíba, sendo a região coberta pelo Cerest Macrorregional, localizado a mais de 150 km e responsável por cerca de 88 municípios. Dessa maneira, os profissionais do Nasf-AB silenciaram e, ao mesmo tempo, denunciaram a falta de retaguarda técnica do Cerest por não existir ou não conseguir dar o suporte necessário para os profissionais do Nasf-AB executarem as ações de ST em seus territórios, evidenciando as dificuldades de implementação da Renast nos municípios de pequeno porte.

Novos caminhos, porém, são apontados no presente estudo, uma vez que o discurso de identificação com o território coloca esses profissionais como potenciais trabalhadores de referência para o fortalecimento da Visat na APS, mostrando que o Nasf-AB pode contribuir na integralidade do cuidado prestado aos trabalhadores, desde que desfrute de condições adequadas e receba a capacitação para atuar 44. Amorim LA , Silva TL , Faria HP , Machado JMH , Dias EC . Vigilância em saúde do trabalhador na atenção básica: aprendizagens com as equipes de saúde da família de João Pessoa, Paraíba, Brasil . Cienc Saude Colet. 2017 ; 22 ( 10 ): 3403 - 13 . . Para isso, é preciso apostar na qualificação desses profissionais para retaguarda técnica em ST, no trabalho interprofissional e na Educação Permanente em Saúde.

Considerações finais

O discurso dos profissionais do Nasf-AB apontou para uma compreensão de ST que considera o trabalho como produtor de agravos e que demanda intervenções clínicas-assistenciais especializadas da EqNasf-AB, assinalando a supremacia do modelo biomédico nas concepções e práticas de cuidado nesses territórios da APS. Entretanto, ao se reconhecer como trabalhador, considerar os DSS e ansiar por mudanças, o trabalhador do Nasf-AB mostrou que, no cotidiano, vivencia a ST e pode se credenciar como profissional de referência nos lugares nos quais os Cerest têm dificuldade operacional de se fazer presente, desde que possua uma retaguarda técnica-pedagógica para auxiliá-lo na expansão de sua atuação.

Enxergar o usuário-trabalhador e sua demanda, mas não os abordar como tais, pode revelar o abismo existente entre a APS, a atenção especializada e a Visat. O vácuo deixado pelas duas últimas nos municípios da 9ª Região de Saúde do estado da Paraíba revela o esforço que deve ser feito na estruturação da RENAST para que de fato a prestação do cuidado em ST siga as diretrizes da PNSTT e, com isso, não tenhamos que esperar mais algumas décadas para ver se concretizar o cuidado ao trabalhador brasileiro.

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Editado por

Editor: Antonio Pithon Cyrino
Editora associada: Maria Dionísia do Amaral Dias

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2022
  • Aceito
    15 Mar 2023
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