Acessibilidade / Reportar erro

Violência sexual contra mulheres por parceiro íntimo e desigualdade de gênero na voz dos profissionais da Atenção Primária à Saúde

Violencia sexual contra las mujeres por parte de la pareja íntima y desigualdad de género en la voz de los profesionales de la Atención Primaria de Salud

Resumos

É difícil reconhecer o sexo forçado vivido nas relações sexuais no âmbito doméstico como violência. Há também uma imprecisão entre a violência, tal como no sexo forçado, e a desigualdade de gênero, como na aceitação do dever marital. Buscou-se compreender o que profissionais da Atenção Primária pensam sobre essas duas experiências, como interpretam relatos das mulheres e o que fazem sobre isso. Entrevistados, os profissionais dizem que sexo forçado ou sexo sem consentimento explícito são ambos violência, e assim devem ser nomeados. Agindo desse modo, eles pensam esclarecer suas pacientes acerca dos direitos das mulheres. No entanto, no dia a dia, nem todos o fazem e ninguém reconheceu ou nomeou a aceitação do dever marital como desigualdade de gênero. Conclui-se que, se a violência está presente como questão, sua distinção quanto à desigualdade de gênero ainda é um desafio.

Violência sexual; Saúde; Atenção primária; Desigualdade de gênero; Relacionamento conjugal


Es difícil reconocer el sexo forzado vivido en las relaciones sexuales en el ámbito doméstico como violencia. Hay también una imprecisión entre la violencia, tal como en el sexo forzado, y la desigualdad de género, como en la aceptación del deber conyugal. Se buscó entender lo que los profesionales de la atención primaria piensan sobre esas dos experiencias, cómo interpretan los relatos de las mujeres y qué hacen sobre eso. Al ser entrevistados, los profesionales decían que el sexo forzado o el sexo sin consentimiento explícito son violencia y deben ser denominados como tal. Actuando así, ellos piensan aclarar a sus pacientes los derechos de las mujeres. Sin embargo, en el cotidiano no todos lo hacen y ninguno reconoció o nombró la aceptación del deber conyugal como desigualdad de género. Se concluyó que la violencia está presente como cuestión y que su distinción con relación a la igualdad de género todavía es un desafío.

Violencia sexual; Salud; Atención primaria; Desigualdad de género; Relación conyugal


Studies show how difficult it is to recognize what is experienced in sexual relationships within households. There is an inaccuracy between violence as in the forced sex, and gender inequality as in the acceptance of the marital duty. We aimed to understand what health care providers think about these two experiences, how they interpret women’s reports and what they do about it. Interviewed, the professionals say that both forced sex and sex with no explicit consent are violence and so they should be named. By doing so, professionals intend to enlighten their patients about women’s rights. However, in everyday life not everyone does and no one recognized or named marital duty as gender inequality. We conclude that if violence is present as an issue, its distinction in relation to gender inequality is still a challenge.

Sexual violence; Health; Primary care; Gender inequality; Marital relationship


Introdução

A violência sexual contra mulheres perpetrada por parceiro íntimo (VSPI) é definida como qualquer ato sexual ou tentativa de obter o ato sexual por coação ou força física. A coação envolve todo um espectro de graus de força: força física, intimidação psicológica ou por ameaças e chantagens, como também levar a mulher à perda da capacidade de dar seu consentimento por uso de álcool, drogas, adormecimento ou estar mentalmente incapaz de compreender a situação. Essa violência sexual é considerada a mais extrema situação da violência de gênero11. Cavalcanti LF, organizador. Violência sexual contra a mulher: abordagens, contextos e desafios. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; 2022.

2. Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, França-Junior I. Violência sexual por parceiro íntimo entre homens e mulheres no Brasil urbano, 2005. Rev Saude Publica. 2008; 42 Supl 1:127-37.
- 33. Krug EG, Dahlber LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R. WHO report on violence and health. Genebra: World Health Organization; 2002. .

A VSPI não é uma questão nova, mas não tem sido bem estudada44. Bagwell-Gray ME, Messing JT, Baldwin-White A. Intimate partner sex violence: a review of terma, definitions and prevalence. Trauma Violence Abuse. 2015; 16(3):1-20. , 55. Barker LC, Stewart DE, Vigod SN. Intimate partner sexual violence: an often overlooked problem. J Womens Health. 2018; 28(3):1-11. . Parte das dificuldades está no fato de que as diversas pesquisas que tratam da violência sexual nas relações domésticas e de intimidade não usam a mesma terminologia ou definições, gerando inconsistências de dados. Nem sempre levando em conta os mesmos impactos na saúde da mulher, as pesquisas tornam homogêneas situações de distintas gravidades. Isso produz dificuldades nas estimativas dos danos, o que termina por colocar em dúvida a adequação dos instrumentos utilizados para mensurar a VSPI, além de serem, em geral, os mesmos usados em estudos das demais modalidades de violência contra a mulher44. Bagwell-Gray ME, Messing JT, Baldwin-White A. Intimate partner sex violence: a review of terma, definitions and prevalence. Trauma Violence Abuse. 2015; 16(3):1-20. , 55. Barker LC, Stewart DE, Vigod SN. Intimate partner sexual violence: an often overlooked problem. J Womens Health. 2018; 28(3):1-11. .

Uma revisão da literatura sobre os efeitos na saúde das mulheres derivados da VSPI55. Barker LC, Stewart DE, Vigod SN. Intimate partner sexual violence: an often overlooked problem. J Womens Health. 2018; 28(3):1-11. mostra seu maior impacto em suicídios e feminicídios comparados a outras formas de violência por parceiro íntimo (VPI) e comparados a não exposição à violência. Não obstante, fazendo parte da VPI e ocorrendo majoritariamente em superposição à violência física, raramente é estudada em sua especificidade, permanecendo como parte invisível da situação mais geral da própria VPI44. Bagwell-Gray ME, Messing JT, Baldwin-White A. Intimate partner sex violence: a review of terma, definitions and prevalence. Trauma Violence Abuse. 2015; 16(3):1-20. . O mesmo ocorre em estudos sobre a violência sexual, quando aquela que ocorre por parceiro íntimo fica incluída na definição geral e mensurada com os mesmos instrumentos.

Igualmente, há entre as mulheres dificuldade de reconhecimento do vivido como uma violência44. Bagwell-Gray ME, Messing JT, Baldwin-White A. Intimate partner sex violence: a review of terma, definitions and prevalence. Trauma Violence Abuse. 2015; 16(3):1-20. , 66. Jaffe AE, Steel AL, DiLillo D, Messaman-Moore TL, Gratz KL. Characterizing sexual violence in intimate relationships: an examination of blame attributions and rape acknowledgment. J Interpers Violence. 2021; 36(1-2):469-90.

7. Bagwell-Gray ME. Women’s experiences of sexual violence in intimate relationships: applying a new taxonomy. J Interpers Violence. 2019; 36(13-4):1-27.
- 88. Bennice JA, Resik PA. Marital rape: history, research and practice. Trauma Violence Abuse. 2003; 4(3):228-46. . Por isso, os profissionais dos serviços de saúde, ao enfrentarem a violência contra as mulheres, usam uma variedade de termos, tais como ataque sexual, coação sexual ou sexo forçado44. Bagwell-Gray ME, Messing JT, Baldwin-White A. Intimate partner sex violence: a review of terma, definitions and prevalence. Trauma Violence Abuse. 2015; 16(3):1-20. e, em geral, não usam o termo estupro para nomear o vivido66. Jaffe AE, Steel AL, DiLillo D, Messaman-Moore TL, Gratz KL. Characterizing sexual violence in intimate relationships: an examination of blame attributions and rape acknowledgment. J Interpers Violence. 2021; 36(1-2):469-90. .

Alguns estudos brasileiros também apontam a falta de reconhecimento da situação que ocorre no âmbito doméstico como uma violência e a consequente dificuldade de nomeação. Muitas mulheres e homens consideram a coação sexual dentro de parcerias íntimas como parte da interação sexual “natural” dos relacionamentos, ou mesmo um “direito” do homem99. Schraiber LB, d’Oliveira AFPL, Hanada H, Figueiredo WF, Couto MT, Kiss L, et al. Violência vivida: a dor que não tem nome. Interface (Botucatu). 2003; 7(12):41-54.

10. Dantas-Berger SM, Giffin K. A violência nas relações de conjugalidade: invisibilidade e banalização da violência sexual? Cad Saude Publica. 2005; 21(2):417425.
- 1111. Menezes FM, Gonçalves HS. Estupro nas relações de intimidade: uma violência invisível. Alternat Psicol. 2019; 41:33-48. .

Essa concepção é parte das normas sociais e de gênero, atribuindo uma atitude mais passiva às mulheres também nas relações sexuais, em que a aceitação da coação sexual é a norma. Receio de ser abandonada também faz as mulheres aceitarem tal situação, mostrando o poder desigual entre homens e mulheres, em que elas possuem pouco poder para negociar quando seus parceiros íntimos querem o ato sexual.

Contudo, mesmo quando elas não definem o que vivenciam como “violência”, entrevistas mais aprofundadas sugerem que o sexo forçado com parceiros íntimos com frequência produz sentimento de indignação e repulsa semelhante àqueles relatados por vítimas de violência sexual cometida por não parceiros1010. Dantas-Berger SM, Giffin K. A violência nas relações de conjugalidade: invisibilidade e banalização da violência sexual? Cad Saude Publica. 2005; 21(2):417425. , 1111. Menezes FM, Gonçalves HS. Estupro nas relações de intimidade: uma violência invisível. Alternat Psicol. 2019; 41:33-48. .

Tais questões tornam mais importante ter uma clara definição de termos considerados ainda mais ambíguos que o termo violência. Temos, como exemplo, os termos “forçar” ou “coagir”, que podem significar desde o uso de força física até constrangimentos de ordem emocional ou moral, ou mesmo significar uma insistência em demasia1212. Cordeiro F, Heilborn ML, Cabral CS, Moraes CL. Entre negociação e conflito: gênero e coerção sexual em três capitais brasileiras. Cienc Saude Colet. 2009; 14(4):1051-62. . A ambiguidade também perpassa o termo “consentir”, com a reconhecida distinção de gênero quanto ao significado de atos consentidos ou não.

Estudo brasileiro1313. Barros CRS, Schraiber LB. Violência por parceiro íntimo no relato de mulheres e de homens usuários de unidades básicas. Rev Saude Publica. 2017; 51:7. que entrevistou homens e mulheres usuários de uma mesma Unidade Básica de Saúde (UBS), não necessariamente casais entre si, mas pertencentes ao mesmo território de usuários e valendo-se do mesmo instrumento, mostrou que a percepção da violência foi baixa em ambos os sexos; entretanto, mulheres relataram cerca de seis vezes mais episódios de violência sexual sofrida do que os homens reconheceram que a cometeram, o que não ocorreu com a violência física.

Outra importante imprecisão é a expressão “contra a vontade”, como quando se indaga se a relação sexual ocorreu contra a vontade da mulher, sobretudo quando a pergunta está desacompanhada da definição do que venha a ser essa “vontade” e da problematização quanto à dificuldade de autorreconhecimento e livre enunciação da “vontade”. Essa última questão é de suma importância, pois dado o obscurecimento de caráter ideológico da própria vontade, em razão dos bloqueios de comunicação que a introjeção de ideologias provoca, essa condição impede a compreensão de que uma dada situação possa ser arguida e modificada socialmente1414. Habermas J. O conceito de poder de Hannah Arendt. In: Freitag B, Rouanet SP, organizadores. Habermas. São Paulo: Ática; 1980. Cap. 2, p. 100-11.

15. Freitag B, Rouanet SP, organizadores. Habermas. São Paulo: Ática, 1980.

16. Chauí M. Participando do debate sobre mulher e violência. In: Cardoso R, Paoli MC, Chauí M. Perspectivas antropologias da mulher. Rio de Janeiro: Zahar; 1984. p. 25-62. (Sobre mulher e violência; n. 4).
- 1717. Chauí M. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense; 1982. (Coleção Primeiros Passos n. 13). . Em outros termos, nem sempre o reconhecimento e a expressão pública da própria vontade são possíveis pela introjeção dos valores e comportamentos da cultura dominante. Encontraremos exemplos dessa ordem nas construções históricas das tradicionais atribuições e identidades de gênero por meio da masculinidade hegemônica e, no sentido inverso, das feminilidades subalternas1010. Dantas-Berger SM, Giffin K. A violência nas relações de conjugalidade: invisibilidade e banalização da violência sexual? Cad Saude Publica. 2005; 21(2):417425. , 1616. Chauí M. Participando do debate sobre mulher e violência. In: Cardoso R, Paoli MC, Chauí M. Perspectivas antropologias da mulher. Rio de Janeiro: Zahar; 1984. p. 25-62. (Sobre mulher e violência; n. 4). , 1818. Couto MT, Schraiber LB. Homens, saúde e violência: novas questões de gênero no campo da saúde coletiva. In: Minayo MCS, Couto MT, organizadores. Críticas e atuantes: ciências sociais e humanas em saúde na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. p. 687-706. .

Empiricamente, essas construções se mostram, em mecanismos de banalização e naturalização das violências de gênero e, em especial, no que diz respeito à VSPI, nas formas de negociação quanto às práticas sexuais nas relações de intimidade1212. Cordeiro F, Heilborn ML, Cabral CS, Moraes CL. Entre negociação e conflito: gênero e coerção sexual em três capitais brasileiras. Cienc Saude Colet. 2009; 14(4):1051-62. . Nesse sentido, é interessante retomar a pergunta já formulada nos anos 1980: É estupro quando a mulher faz sexo para “manter a paz em casa”?44. Bagwell-Gray ME, Messing JT, Baldwin-White A. Intimate partner sex violence: a review of terma, definitions and prevalence. Trauma Violence Abuse. 2015; 16(3):1-20. , 88. Bennice JA, Resik PA. Marital rape: history, research and practice. Trauma Violence Abuse. 2003; 4(3):228-46. .

Por um lado, a identificação com estupro esclarece quão opressiva é para as mulheres a relação sexual nessas circunstâncias, mas, por outro lado, esse uso expande e dilui o significado da palavra “estupro”44. Bagwell-Gray ME, Messing JT, Baldwin-White A. Intimate partner sex violence: a review of terma, definitions and prevalence. Trauma Violence Abuse. 2015; 16(3):1-20. . Essa discussão nos remete à ideia de “dever marital”, situação em que se acredita que o dever da mulher seja manter relações sexuais sempre que o marido assim o desejar, independentemente de sua própria vontade.

Revisando o tema do estupro marital, Bennice e Resik88. Bennice JA, Resik PA. Marital rape: history, research and practice. Trauma Violence Abuse. 2003; 4(3):228-46. examinam três dimensões – a legal, a cultural e a profissional –, em que o abuso sexual se torna invalidado socialmente como violência, impedindo que se veja essa experiência como situação traumática próxima à do estupro. Do ponto de vista legal, durante o século XVIII, os maridos não podiam ser considerados culpados por estupro cometidos contra suas esposas legalmente casadas em razão de seus mútuos consentimentos e acordos matrimoniais, o que foi reforçado pelo entendimento, expresso na segunda metade daquele século, de que marido e mulher constituíam uma só pessoa jurídica do ponto de vista civil, perdendo a mulher, em seu casamento, sua identidade civil individualizada.

O estupro por estranhos, por exemplo, era visto como crime contra a propriedade do homem e não violação do corpo e da integridade da mulher. Já no caso brasileiro, quanto a essa dimensão legal, a legislação e a prática jurídica apresentam posições divergentes sobre a ocorrência de crime nas questões inerentes à violência sexual na conjugalidade, pois, como apontam Santos Junior e Araújo1919. Santos JJG Jr, Araújo ANCA. Estupro marital: a violação da dignidade sexual da mulher no casamento. Rev Direito FIBRA Lex. 2019; 4(6):3-14. , há entendimentos jurídicos diversos pautados em correntes de pensamento heterogêneas acerca da possibilidade de caracterizar o crime de estupro nesse contexto, exatamente em razão do débito conjugal. Afinal, esse ainda é referência para anulações de casamento. Nessa dificuldade da tipificação como crime dos comportamentos e atos que se dão na dinâmica familiar e doméstica, bem como quão eficaz pode ser a abordagem penal e o enfrentamento dos casos nas delegacias diante da vontade e das necessidades da mulher, cabe destacar o estudo de Debert e Gregory2020. Debert GG, Gregory MF. Violência e gênero: novas propostas, velhos problemas. Rev Bras Cienc Soc. 2008; 23(66):165-211. em que as autoras discutem a judicialização das relações sociais, dada a crescente invasão do direito na vida social, apontando os limites das negociações no âmbito da justiça para atender às complexas relações em que se inscreve a violência.

Na dimensão cultural88. Bennice JA, Resik PA. Marital rape: history, research and practice. Trauma Violence Abuse. 2003; 4(3):228-46. , essa tradição histórica tornou o estupro pelo marido um “não verdadeiro estupro”, caracterizando o dever conjugal da mulher, que foi bastante reforçado pelas doutrinas e práticas religiosas. Assim, muito embora esse dever conjugal ou marital possa ser superado na letra da lei, moralmente ele pode persistir como costume na sociedade, mantendo a desigualdade de gênero. Outra influência religiosa reside na concepção de que é dever do marido zelar pela conduta moral da esposa, na proteção da família. Caso ele interpretasse a conduta de sua esposa como imoral ou sugestivamente imprópria, caberia o uso da força física ou sexual como estratégia de proteção da moral familiar.

Além disso, diversos estudos mostram que quanto mais aumenta o grau de intimidade, menos a violência sexual é concebida como estupro, mais aumenta a culpabilização da mulher pela situação vivida e diminui o reconhecimento de danos à saúde como consequência dessa situação. E o fato de que as mulheres, nessas circunstâncias, devam caracterizar-se como “vítimas” de estupro ou violência sexual, no próprio ambiente doméstico, para poderem buscar ajuda faz que a busca por apoio para lidar com a situação e mesmo para um atendimento em serviços de saúde seja limitada88. Bennice JA, Resik PA. Marital rape: history, research and practice. Trauma Violence Abuse. 2003; 4(3):228-46. .

Tratando-se, por fim, do ponto de vista dos profissionais, há uma série de obstáculos para enfrentar a VSPI. Eles variam desde o despreparo na formação a impedimentos derivados da organização dos serviços, como, por exemplo, as metas de produtividade ou a falta de educação permanente e de supervisão. Persiste a visão de que os danos físicos e mentais podem ser tratados em si mesmos, sem que se indague a situação de violência que os gerou88. Bennice JA, Resik PA. Marital rape: history, research and practice. Trauma Violence Abuse. 2003; 4(3):228-46. , 2121. D’Oliveira AFPL, Pereira S, Schraiber LB, Gralia CGV, Aguiar JM, Sousa P, et al. Obstáculos e facilitadores para o cuidado de mulheres em situação de violência doméstica na atenção primária à saúde: uma revisão sistemática. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190164. , 2222. Cavalcanti LF, Gomes R, Minayo MCS. Representações sociais de profissionais de saúde sobre a violência sexual contra a mulher: estudo de três maternidades públicas municipais do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica. 2006; 22(1):31-9. .

Há também o reconhecimento de que tais dificuldades decorrem do caráter de objeto de estudo que a violência traz: um objeto complexo que demanda interdisciplinaridade e sensibilidade tanto para estudos científicos como para a prática clínica44. Bagwell-Gray ME, Messing JT, Baldwin-White A. Intimate partner sex violence: a review of terma, definitions and prevalence. Trauma Violence Abuse. 2015; 16(3):1-20. , 2323. Schraiber LB, D’Oliveira AFLP, Couto MT. Violência e saúde: contribuições teóricas, metodológicas e éticas de estudos da violência contra a mulher. Cad Saude Publica. 2009; 25 Supl 2:S205-16. .

Diante do exposto, é de se esperar que os próprios profissionais, quando (e se) mobilizados para identificar a situação de VSPI, tentem diferentes estratégias de abordagem, sendo o objetivo do presente estudo explorar as estratégias adotadas na Atenção Primária à Saúde, bem como as percepções e representações sociais2424. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Rio de Janeiro: Vozes; 2003. que seus profissionais detêm.

Método

O estudo é parte de uma pesquisa multicêntrica sobre a violência contra a mulher no âmbito da saúde sexual e reprodutiva, realizada pelo Grupo de Pesquisa em Saúde Global Health Care Responding to Violence and Abuse (HERA)k k Disponível em: https://www.bristol.ac.uk/primaryhealthcare/researchthemes/hera/ . No Brasil, a pesquisa teve por objetivo a implementação e a avaliação de uma intervenção com profissionais de serviços de Atenção Primária à Saúde, no município de São Paulo, voltada para o aprimoramento da resposta desses serviços a esse tipo de violêncial l Disponível em: https://sites.usp.br/generoviolenciaesaude/ .

Participaram desta pesquisa dez Unidades Básicas de Saúde (UBS) pertencentes a três distintas regiões do município de São Paulo. O desenho investigativo se compôs de três etapas: linha de base, intervenção e avaliação.

Na linha de base, foram entrevistados profissionais das UBS com roteiro que os estimulava a falar sobre o cuidado às mulheres em situação de violência, buscando-se compreender os facilitadores e os obstáculos para a realização desse cuidado.

Na intervenção, foi realizado treinamento para todos os profissionais envolvidos no atendimento a mulheres em situação de violência, das equipes de Saúde da Família, do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf) e/ou do Núcleo de Prevenção à Violência (NPV).

Na avaliação, foram feitas entrevistas voltadas à percepção dos profissionais sobre o treinamento e as mudanças decorrentes dessa intervenção em suas práticas.

Os dados aqui apresentados se referem às entrevistas da linha de base, focando a violência sexual por parceiro íntimo. Entrevistamos 54 trabalhadores e oito gerentes de unidade, sendo cinquenta mulheres e 12 homens. As 28 entrevistas realizadas em 2019 foram presenciais e, em respeito às normas de isolamento da pandemia de Covid-19, as 34 entrevistas de 2020, por videochamada (plataforma Google Meet), não sendo observadas diferenças importantes nas entrevistas derivadas do tipo de acesso. A duração foi similar em ambas as modalidades, com a média de 65 minutos por entrevista. As pesquisadoras foram treinadas e supervisionadas em todo o trabalho de campo, com participação na construção do roteiro da entrevista, na modalidade semiestruturada, e participação na realização da primeira análise de modo supervisionado.

Dentre as categorias profissionais, estão: enfermeiro, médico, assistente social, fonoaudiólogo, psicólogo, agente comunitário de saúde (ACS), dentista, educador físico, técnico em saúde bucal, auxiliar de enfermagem, auxiliar administrativo, nutricionista, agente de promoção ambiental e fisioterapeuta. Os participantes foram indicados para as entrevistas pelos gerentes de cada UBS, buscando-se representar a diversidade de categorias profissionais, bem como incluir profissionais pertencentes aos Nasf e NPV.

A pesquisa foi submetida e aprovada previamente pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Faculdade de Medicina da USP, (parecer 3.084.387 e CAAE 03303718.7.0000.0065) e pelo CEP da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (parecer 3.097.354 e CAAE 03303718.7.3001.0086), respeitando o anonimato das instituições e dos entrevistados, conforme garantido no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Em conformidade com a técnica de gravação2525. Queiroz MIP. Variações sobre a técnica de gravador no registro da informação viva [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; 1983. , todas as entrevistas foram gravadas, transcritas e conferidas quanto à fidelidade da transcrição, seguidas da leitura de impregnação. Foram, então, codificadas em N Vivo versão 11.

Durante a análise de conteúdo2626. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1979. dos dados, emergiram duas categorias de análise que se dividem cada uma em três subcategorias.

A primeira categoria apresenta os relatos dos profissionais sobre casos que foram trazidos pelas mulheres e compreendidos por eles como situações de VSPI. A segunda categoria traz o enfrentamento dos profissionais diante da desigualdade de gênero nas situações trazidas pelas mulheres como dever marital e mostra a complexidade de se abordar VSPI em razão de certa ambiguidade de compreensão e definição do que é vivido pelas mulheres, como já discutido.

Para ambas as categorias, foram definidas as subcategorias: as representações sociais desses profissionais (o que pensam) sobre a VSPI; o que eles interpretaram do que as mulheres falam (ou o que elas falam sobre a violência sexual segundo o entendimento deles); e o que eles efetivamente fazem ou não a esse respeito em suas práticas assistenciais.

Resultados e discussão

Os profissionais diante da VSPI

O que pensam os profissionais sobre a VSPI

Há profissionais que entendem que as mulheres vivem relações violentas as quais elas mesmas não reconhecem como violência, mas como um dever marital, e essa ideia propicia a invisibilidade da VSPI. Isso também pode levar à falta de cuidados, trazendo para os profissionais de saúde o sentimento de perda de poder. Outros parecem incorporar em suas práticas uma perspectiva mais próxima dos Direitos Sexuais e Reprodutivos da mulher ao entenderem ser um direito o exercício de sua sexualidade livre de qualquer tipo de coação.

Às vezes [elas dizem]: “Ah, meu marido é muito agressivo, tem o gênio muito forte.” Às vezes, a paciente reclama muito assim [...] ter uma relação sexual de certa forma forçada, porque não está com vontade, não quer, mas o marido obriga. […] Então, sim, essas coisas aparecem com frequência. (UBS 2 Médica)

É um tipo de violência, né, porque ela não está consentindo uma coisa que... deveria ser consentido das duas partes, né? Então, é um tipo de violência. (UBS 1 Médica)

Como os profissionais interpretam o que as mulheres falam

A fala das mulheres foi trazida pelos profissionais quando perguntamos sobre relatos de VSPI. Trata-se do que lembram e interpretam do que ouviram delas. E eles acham importante nos contar o que ouviram por entenderem que a relação sexual contada por ela não é exatamente desejada e isso é uma queixa frequente nas consultas, mesmo que as próprias mulheres não a nomeiem por violência.

Alguns profissionais constatam que as mulheres que eles atendem têm mais dificuldade em reconhecer VSPI do que outras formas de VPI, como violência física e psicológica.

Para elas é só a violência física. Até às vezes a violência emocional, a psicológica, sim. Mas a violência sexual não é taxada para elas. Aí elas não trazem. (UBS 2 Psicóloga)

Os profissionais de fato reconhecem a ocorrência em superposição da violência física, sexual e psicológica nos relacionamentos, embora, segundo eles, as mulheres rotulem de violência apenas quando ela é física.

Outros estudos apontam a correlação entre violência física, verbal e sexual por parceiro íntimo1010. Dantas-Berger SM, Giffin K. A violência nas relações de conjugalidade: invisibilidade e banalização da violência sexual? Cad Saude Publica. 2005; 21(2):417425. , 1111. Menezes FM, Gonçalves HS. Estupro nas relações de intimidade: uma violência invisível. Alternat Psicol. 2019; 41:33-48. . Nesse sentido, alguns relatos mostram tratar-se de uma violência sexual por envolver violência física no ato, ou pela forma como a mulher expressa o que sente.

[...] ela realmente sofria uma violência psicológica abominável, e realmente ela falava: “eu vou como se fosse para um abatedouro, mas é nessa coisa, eu tenho que ser mulher, eu tenho que me expor porque, tipo, ele é o meu marido, eu não posso chateá-lo”. (UBS 3 Enfermeiro)

Ela falou: [...] “nem naqueles dias ele deixa passar batido. [...] ele me procura até nesses dias e muitas das vezes eu já não quero. Eu não quero, e aí ele é bruto na situação e aí depois quando acaba ele pede desculpas”. (UBS 4 ACS)

Algumas vezes os relatos acontecem fora do serviço de saúde e apenas para a ACS, por ser a profissional com quem a mulher tem mais contato e se sente mais próxima. Outras vezes, os relatos são feitos fora do contexto de consulta, como falou uma auxiliar administrativa que atendia na recepção do serviço.

Teve uma que falou, “eu me sinto estuprada todos os dias há um longo período, mas eu não consigo sair dele, eu gosto dele. Eu sei que ele vai mudar”. São situações bem estranhas assim para mim […]. (UBS 5 Aux Adm)

Pode-se ver nesse depoimento a importância de sensibilizar toda a equipe de trabalho do serviço para o enfrentamento dos casos de VSPI, e não só os provedores dos cuidados assistenciais. Diante do fenômeno da violência, o serviço de saúde como um todo deve atuar compondo e reforçando o atendimento específico programado nos protocolos de atenção às mulheres.

Apesar de um espaço limitado de atuação e do sentimento de impotência, a maioria dos profissionais busca construir estratégias para romper com essa invisibilidade.

O que fazem os profissionais quando enfrentam casos de VSPI

Na tentativa de romper com a invisibilidade da VSPI, nomear o vivido como violência é estratégia bastante adotada pelas psicólogas entrevistadas.

Elas não conseguem caracterizar que isso é uma violência. Então, é a gente que tem que ir explicando para elas quais que são as formas de violência […]. (UBS 2 Psicóloga)

A palavra violência surge mais da minha boca do que da delas. Eu já ouvi história de mulher falando que não sente mais vontade nenhuma de ter relação com o marido e ele força essa relação. Acho que “força” é um termo que aparece bastante. “Ele me força a fazer coisas que não quero...”. E eu costumo nomear para a mulher, eu costumo usar a palavra violência. (UBS 6 Psicóloga)

A garantia de um espaço de escuta que legitime o sofrimento da mulher e a ajude a reconhecer a VSPI também parece oferecer p reconhecimento quanto a seus direitos sexuais. Isso é fundamental, pois apenas se reconhecendo como um sujeito social é possível às mulheres recusarem o ato sexual contra sua livre vontade1010. Dantas-Berger SM, Giffin K. A violência nas relações de conjugalidade: invisibilidade e banalização da violência sexual? Cad Saude Publica. 2005; 21(2):417425. .

Para essas profissionais, nomear claramente o vivido como violência parece ser um comportamento usual, mas é importante lembrar que, no que diz respeito às ações de enfrentamento da violência assim como ao reconhecimento dos direitos das mulheres e de sua condição de sujeito apto ao exercício da subjetividade, é necessário que a mulher, no encontro assistencial, esteja compartilhando desses mesmos valores (horizonte normativo) e da mesma concepção da situação como violação de direitos. Caso contrário, as indicações da profissional de como lidar com a situação podem ser recusadas pela mulher atendida.

Outros profissionais preferem não usar o termo “violência”, pelo receio de que isso possa “assustar” a mulher, ser intimidador, já que muitas não reconhecem que sofrem VSPI. Nesse sentido, algumas profissionais entendem que é mais importante buscar prover o direito à não violência do que o convencimento quanto à nomeação da situação vivida como tal.

E a discussão é: “por que eu preciso me deitar com o meu marido quando ele quer e não quando nós queremos?”. Ninguém entende que uma relação sem consentimento é um “estupro”. Mesmo que seja dentro da sua casa e pelo seu marido. Então é difícil às vezes você olhar para a cara da outra pessoa e falar [...] E eu nunca usei essa palavra “está te agredindo dentro de casa, ele está te estuprando”. Eu nunca usei isso, mesmo tendo ciência. A gente tenta colocar uma palavrinha mais bonita. E aquele famoso “não pode”. (UBS 6 ACS)

A possibilidade de atuação em equipe multidisciplinar é bastante valorizada como uma estratégia que pode oferecer maior êxito. Assim, os profissionais reconhecem que qualquer falha na comunicação entre eles próprios pode significar uma oportunidade perdida na abordagem do tema com a mulher e na oferta de ajuda.

Nós tivemos um caso aqui na nossa equipe. Ela era explorada sexualmente mesmo pelo esposo, e aqui na unidade foram feitos os atendimentos necessários a ela [...] e hoje em dia ela não é mais da área. Eu creio que ela conseguiu se livrar dele, porque ela estava prestes a ir embora, a largar ele, mas a gente a atendeu, acho que mais de um ano. [...] Ele abusava dela, não tinha horário, mesmo sem vontade. [...] Ela só chorava, ela falava que não aguentava mais aquela situação. Aí foi quando entrou os serviços, a assistente social, psicólogo, psiquiatra. Só que ele não sabia que ela veio até a unidade, que ela procurou ajuda. Os atendimentos dela eram todos escondidos porque ele não permitia que ela tivesse acesso a ninguém, justamente para pessoas de fora não ter conhecimento do que acontecia. A gente combinava, o horário que ela pudesse, que o profissional fosse estar na unidade para ela poder vir. (UBS 7 ACS)

O caso narrado ilustra também que, para os profissionais, os casos de sucesso são sempre considerados aqueles em que a mulher consegue romper com a situação de agressão, seja porque o agressor mudou de comportamento, seja porque a mulher se separa do parceiro, rompendo o próprio relacionamento.

Decidir qual é a abordagem mais adequada pelos profissionais é outro desafio. Muitos atuam como juízes da conduta da mulher e não como profissionais da saúde, preocupados com o sofrimento mental ou físico das mulheres decorrente da situação vivida.

A gente teve uma mulher ela tinha sido estuprada à noite por um parceiro íntimo, então é aquela situação que é muito “ah, mas ela é namorada, estuprou, foi consensual” e quando eu vi essa situação de “foi consensual, não foi consensual” eu entrei e falei “gente, vocês têm que fazer menos julgamento [...] prendam-se ao que a paciente falou, ela não falou que foi estuprada?[...] pensa bem se fosse você, se coloca no lugar, você tem o seu parceiro e ele chega alcoolizado, que foi o que aconteceu com essa mulher, e obriga ela a fazer sexo sem proteção, e ela não quer, ela faz e no dia seguinte ela vem porque ela queria fazer os testes, enfim, e aí o serviço acha que enfim, era o marido então... Vocês tão percebendo?” aí o enfermeiro homem falou assim “você tem toda razão”. (UBS 3 Gestora)

Julgar moralmente a mulher é por vezes mais frequente do que identificar os sofrimentos e buscar apoiá-la. E nesse sentido muitos profissionais, em especial gestoras, se esforçam por romper com a invisibilidade da VSPI também entre eles. Como apontado por outros estudos, posturas inadequadas de profissionais que prestam assistência às mulheres podem corroborar com o silenciamento em torno das situações vividas, configurando-se como um importante obstáculo tanto à denúncia do crime quanto ao cuidado integral da mulher1919. Santos JJG Jr, Araújo ANCA. Estupro marital: a violação da dignidade sexual da mulher no casamento. Rev Direito FIBRA Lex. 2019; 4(6):3-14. .

Os profissionais em face da desigualdade de gênero

O que pensam os profissionais do dever marital

Toda desigualdade já é uma violência? A resposta a essa indagação é variada entre os profissionais. A distinção entre desigualdade de gênero e violência é outro desafio colocado diante da tênue fronteira entre elas. Para muitos, a ausência de consentimento explícito é compreendida como violência, não havendo consentimento implícito, tal como em um dever marital. Enquanto que outros entendem que a ausência de consentimento não implica necessariamente um ato violento do parceiro. Contudo, os profissionais não fazem referência à questão da desigualdade de gênero, problematizando a situação experimentada pelas mulheres apenas como poder ser reconhecida ou não como violência. O tema da desigualdade não aparece em seus relatos.

Não era algo forçado, ao que ela me relatou, mas ela não tinha vontade e ela tinha relação com o marido simplesmente para satisfazer a vontade dele. [...] Ela falou: “eu sou casada com ele e a gente tem que ter relação, porque senão ele vai deixar de ser meu marido”. [...] Mas ela não entendeu isso como uma questão de violência, eu não consegui trazer esse conceito, trazer esse contexto para ela. (UBS 4 Médico)

Muitas vezes, as queixas trazidas pelas mulheres não deixam clara sua própria percepção quanto a ter ou não havido uma VSPI ou se é parte do acordo conjugal e, de antemão, relação sexual consentida sempre que desejada pelo parceiro.

[…] isso de ter relação sexual sem vontade é muito comum de acontecer. Seja porque... até certo ponto cultural, de entender que: “ah, sou casada, tenho que ter relação sexual com meu marido, porque é o meu dever como esposa dentro do casamento, independente se quero ou não”. (UBS 3 Médica)

É uma queixa muito comum na ginecologia nessas situações assim, sabe? Que eu não sei se enquadraria isso numa violência sexual de certa forma, mas... (UBS 2 Médica)

Importa lembrar aqui o fato de que a aceitação do dever marital pela mulher, mesmo se já não mais respaldada por uma norma legal, se mantém pela aceitação cultural, pelos costumes, com o reforço no interior das práticas religiosas ou não88. Bennice JA, Resik PA. Marital rape: history, research and practice. Trauma Violence Abuse. 2003; 4(3):228-46. . Nesse sentido, Zanello2727. Zanello V. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris; 2018. utiliza o conceito foucaultiano de “dispositivos” – fatores legais, sociais, culturais e institucionais que corroboram em prol da manutenção de uma desigualdade de poder – para analisar o que chama de dispositivos amorosos e seu papel na subjetivação de mulheres e homens. Essa abordagem permite compreender que certas situações são vividas como violentas pelas mulheres sem, no entanto, envolver ações de um agressor. Nesse sentido, algumas mulheres e alguns profissionais consideram qualquer desigualdade de gênero nas relações sexuais uma violência.

Como os profissionais interpretam o que as mulheres falam

Os relatos das mulheres são de um entendimento cultural de que seria obrigação delas satisfazer sexualmente o marido. Também há relatos de mulheres que explicitam que essa obrigação de satisfazer sexualmente o parceiro é relacionada ao risco ou ao temor de ser abandonada ou traída pelo seu parceiro. Elas se adequam ao papel esperado de esposa para evitar tais riscos.

Elas falam: “Ah, mas é difícil, porque se ele quer, aí eu sou obrigada”. Elas entendem que faz parte de um combinado do casamento, então acontece muito. (UBS 2 Enfermeira)

Tem algumas que falam “ah, você sabe como é, se a gente não tiver relação, o marido pode procurar outra, então eu prefiro também, para não dar confusão lá em casa, eu acho melhor...” então elas trazem isso. (UBS 8 Médica)

Assim, fazer a distinção entre um ato ser ou não forçado, ou ser ou não contra a vontade da mulher, é bastante difícil para profissionais e para as próprias mulheres, o que parece contribuir para mais variações nas abordagens feitas no interior da assistência provida pelos serviços de saúde.

O que fazem os profissionais quando enfrentam casos de desigualdade de gênero conexa ao ato sexual

Alguns entrevistados optam por perguntar se a mulher tem prazer nas relações sexuais como uma forma indireta de investigar a situação do dever marital. Entendem que essa estratégia deixa a mulher mais à vontade para falar sobre o assunto. Nesse sentido, as consultas de papanicolau são momentos propícios para a abordagem do tema.

Mas também saúde sexual – tem prazer na relação? – que não é bem uma doença, mas nunca teve prazer, enfim... Que é uma forma de violência, mas que às vezes a paciente nem vê como violência. (UBS 9 Médica)

Outros, quando suspeitam de algo, preferem perguntar diretamente se ela foi forçada ou não a ter relações sexuais. Diante da questão do sexo como um dever marital, a maior parte dos entrevistados busca por meio do diálogo com a mulher desconstruir essa concepção, buscando promover os direitos sexuais das mulheres.

Eu sempre pergunto “mas ele te forçou” [...] muitas vezes elas fazem por fazer, isso eu percebo sim [...] sempre falo “acho que você tem que ser sincera, você tem que mostrar que o seu corpo não é só um objeto para fazer sexo”. [...] sempre falo sobre preliminares, sempre pergunto “mas você chega a gozar?”, “seu marido faz sexo oral em você”, “vocês se beijam, se acariciam antes da penetração” e muitas vezes elas dizem que não, que é só a penetração e mais nada. (UBS 4 Enfermeira)

Cientes das dificuldades de se romper com essa cultura do “dever marital”, alguns profissionais tentam abordagens que ajudem o casal no exercício de uma sexualidade mais respeitosa, seja discutindo formas de prazer sexual, como no relato acima da enfermeira, seja propondo formas de mediar a comunicação com o parceiro a esse respeito, tal como conversando diretamente com o marido sobre VSPI.

Eu fico um pouco na dúvida se isso é forçada ou não. Daí eu tento dizer “mas depois que começou, foi agradável para a senhora também? Porque às vezes para começar a gente está mais cansada” [...] Eu sempre falo assim “olha, nada forçado é bom. Se a senhora não está com vontade hoje, está cansada, aí fala para o maridão: amor, hoje a gente dorme abraçadinho, amanhã a gente namora”, não pode ser forçado, isso tem que ser bom para o casal, eu tento ir mais discretamente possível. (UBS 8 Enfermeira)

Tem médico que fala – tentei falar com o marido, mas não deu certo, o que a gente pode fazer? –, ah, será que pode ajudar? será que alguém aqui da unidade, desde assistente social, psicóloga, pode ajudar? (UBS 9 Médico)

Entretanto, há também aqueles que preferem não intervir diante da dificuldade de se definir se há ou não VSPI. Eles assumem que isso não pode ser definido como VSPI, está fora de seu âmbito de atuação, e então fica implícito que para as mulheres isso não é um grande problema.

Às vezes eu vou criar um problema ou eu vou... numa relação que isso não é um problema para eles, de repente para eles é aquilo ali mesmo e eu penso que talvez a pessoa fique achando que eu vou ficar ditando o jeito dela viver. Eu não sei que resposta eu teria que dar, eu fico pensando que o certo é só eu escutar e “ah entendi”, assim, colocar meio... às vezes o que eu falo é “e para você, como que é isso? Você fica mal com isso?”, aí elas falam “ah, é ruim, mas já acostumei”, mas sempre que eu abordo está normal, faz parte da vida, não é um grande problema. (UBS 8 Médica)

Considerações finais

A incorporação, pelos profissionais de saúde, da perspectiva dos direitos da mulher no exercício de sua sexualidade no que se refere à investigação da VSPI parece ser fenômeno recente, visto que estudos da primeira década dos anos 20001010. Dantas-Berger SM, Giffin K. A violência nas relações de conjugalidade: invisibilidade e banalização da violência sexual? Cad Saude Publica. 2005; 21(2):417425. ressaltam a pouca investigação desse tipo de violência pelos profissionais de saúde.

Como parte dessa disposição recente estão os depoimentos discutidos neste estudo, que mostram, nos relatos das mulheres, pela voz dos profissionais, a percepção de que uma relação sexual contra a vontade da mulher como uma forma de violência é, na maioria das vezes, uma concepção do profissional e não da própria mulher.

A garantia de um espaço de escuta que legitime o sofrimento da mulher e a ajude a reconhecer a VSPI parece oferecer a ela também seu reconhecimento como um sujeito de direitos, o que é fundamental para a construção de estratégias de enfrentamento da violência. Uma vez que a objetificação sexual serve para o controle e a submissão das mulheres pelos homens, apenas quando se reconhecerem como sujeito de direitos será possível elas enunciarem a recusa ao ato sexual contra sua livre vontade1010. Dantas-Berger SM, Giffin K. A violência nas relações de conjugalidade: invisibilidade e banalização da violência sexual? Cad Saude Publica. 2005; 21(2):417425. .

Menezes e Gonçalves1111. Menezes FM, Gonçalves HS. Estupro nas relações de intimidade: uma violência invisível. Alternat Psicol. 2019; 41:33-48. afirmam que há uma mudança paradigmática do entendimento sobre os crimes sexuais como sendo “Crimes contra os costumes” no Código Penal de 1940, para “Crimes contra a liberdade sexual” na Lei 12.015 de 2009 que altera o Código Penal, com a liberdade sexual sendo o bem a ser protegido. Tal mudança traz o entendimento de que a mulher tem o direito de garantir e proteger sua dignidade sexual, estando sua liberdade de escolha acima do desejo sexual do cônjuge1919. Santos JJG Jr, Araújo ANCA. Estupro marital: a violação da dignidade sexual da mulher no casamento. Rev Direito FIBRA Lex. 2019; 4(6):3-14. .

Contudo, vale lembrar que é relativamente recente no âmbito legal tal entendimento e ainda insuficiente para romper culturalmente com a dupla invisibilidade da VSPI, por ser uma violência sexual e por ser da esfera da vida privada1111. Menezes FM, Gonçalves HS. Estupro nas relações de intimidade: uma violência invisível. Alternat Psicol. 2019; 41:33-48. .

Mas uma vez que a violência contra a mulher é assumida pelos profissionais como uma questão que também se coloca para a saúde2020. Debert GG, Gregory MF. Violência e gênero: novas propostas, velhos problemas. Rev Bras Cienc Soc. 2008; 23(66):165-211. , os desafios relatados com a VSPI vão desde a identificação dessa violência e o rompimento de sua invisibilidade até a oferta segura de uma assistência mais integral que acolha as demandas da mulher. E assim sendo, apesar de, muitas vezes, os profissionais entenderem que possuem um espaço limitado de atuação e desenvolverem o sentimento de impotência na atenção que gostariam de prover às mulheres, a maioria deles busca construir estratégias no cotidiano de suas práticas para romper com essa invisibilidade.

Por fim, há que se considerar uma importante questão trazida pelos dados empíricos desta pesquisa: a ausência de distinção entre desigualdade de gênero e violência de gênero. E nesse processo pode-se perceber que a violência passa a assumir a centralidade do discurso nas narrativas dos entrevistados. Esse processo merece ser aprofundado como formação discursiva dos profissionais e o que representa a problemática da desigualdade de gênero. Com base nos dados empíricos, nota-se que a distinção entre violência e desigualdade não está clara, mas é relevante para um melhor entendimento de como a elaboração tecida em torno da violência se relaciona com o discurso moderno hegemônico sobre a sexualidade.

E nesse sentido, como trata Foucault a propósito da sexualidade2828. Foucault M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1984. , novos reguladores podem estar sendo acionados como olhar disciplinador da violência no âmbito das práticas de saúde. Além disso, a distinção entre violência e desigualdade de gênero é também relevante em ações específicas que cada uma requer, por implicarem diferentes abordagens de cuidado e de ações de promoção de direitos, da liberdade e do fim da violência no exercício da sexualidade. Entendemos que delimitar a referida distinção conceitual é um desafio cultural de primeira ordem e deve ser objeto de estudos futuros específicos.

Referências

  • 1
    Cavalcanti LF, organizador. Violência sexual contra a mulher: abordagens, contextos e desafios. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; 2022.
  • 2
    Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, França-Junior I. Violência sexual por parceiro íntimo entre homens e mulheres no Brasil urbano, 2005. Rev Saude Publica. 2008; 42 Supl 1:127-37.
  • 3
    Krug EG, Dahlber LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R. WHO report on violence and health. Genebra: World Health Organization; 2002.
  • 4
    Bagwell-Gray ME, Messing JT, Baldwin-White A. Intimate partner sex violence: a review of terma, definitions and prevalence. Trauma Violence Abuse. 2015; 16(3):1-20.
  • 5
    Barker LC, Stewart DE, Vigod SN. Intimate partner sexual violence: an often overlooked problem. J Womens Health. 2018; 28(3):1-11.
  • 6
    Jaffe AE, Steel AL, DiLillo D, Messaman-Moore TL, Gratz KL. Characterizing sexual violence in intimate relationships: an examination of blame attributions and rape acknowledgment. J Interpers Violence. 2021; 36(1-2):469-90.
  • 7
    Bagwell-Gray ME. Women’s experiences of sexual violence in intimate relationships: applying a new taxonomy. J Interpers Violence. 2019; 36(13-4):1-27.
  • 8
    Bennice JA, Resik PA. Marital rape: history, research and practice. Trauma Violence Abuse. 2003; 4(3):228-46.
  • 9
    Schraiber LB, d’Oliveira AFPL, Hanada H, Figueiredo WF, Couto MT, Kiss L, et al. Violência vivida: a dor que não tem nome. Interface (Botucatu). 2003; 7(12):41-54.
  • 10
    Dantas-Berger SM, Giffin K. A violência nas relações de conjugalidade: invisibilidade e banalização da violência sexual? Cad Saude Publica. 2005; 21(2):417425.
  • 11
    Menezes FM, Gonçalves HS. Estupro nas relações de intimidade: uma violência invisível. Alternat Psicol. 2019; 41:33-48.
  • 12
    Cordeiro F, Heilborn ML, Cabral CS, Moraes CL. Entre negociação e conflito: gênero e coerção sexual em três capitais brasileiras. Cienc Saude Colet. 2009; 14(4):1051-62.
  • 13
    Barros CRS, Schraiber LB. Violência por parceiro íntimo no relato de mulheres e de homens usuários de unidades básicas. Rev Saude Publica. 2017; 51:7.
  • 14
    Habermas J. O conceito de poder de Hannah Arendt. In: Freitag B, Rouanet SP, organizadores. Habermas. São Paulo: Ática; 1980. Cap. 2, p. 100-11.
  • 15
    Freitag B, Rouanet SP, organizadores. Habermas. São Paulo: Ática, 1980.
  • 16
    Chauí M. Participando do debate sobre mulher e violência. In: Cardoso R, Paoli MC, Chauí M. Perspectivas antropologias da mulher. Rio de Janeiro: Zahar; 1984. p. 25-62. (Sobre mulher e violência; n. 4).
  • 17
    Chauí M. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense; 1982. (Coleção Primeiros Passos n. 13).
  • 18
    Couto MT, Schraiber LB. Homens, saúde e violência: novas questões de gênero no campo da saúde coletiva. In: Minayo MCS, Couto MT, organizadores. Críticas e atuantes: ciências sociais e humanas em saúde na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. p. 687-706.
  • 19
    Santos JJG Jr, Araújo ANCA. Estupro marital: a violação da dignidade sexual da mulher no casamento. Rev Direito FIBRA Lex. 2019; 4(6):3-14.
  • 20
    Debert GG, Gregory MF. Violência e gênero: novas propostas, velhos problemas. Rev Bras Cienc Soc. 2008; 23(66):165-211.
  • 21
    D’Oliveira AFPL, Pereira S, Schraiber LB, Gralia CGV, Aguiar JM, Sousa P, et al. Obstáculos e facilitadores para o cuidado de mulheres em situação de violência doméstica na atenção primária à saúde: uma revisão sistemática. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190164.
  • 22
    Cavalcanti LF, Gomes R, Minayo MCS. Representações sociais de profissionais de saúde sobre a violência sexual contra a mulher: estudo de três maternidades públicas municipais do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica. 2006; 22(1):31-9.
  • 23
    Schraiber LB, D’Oliveira AFLP, Couto MT. Violência e saúde: contribuições teóricas, metodológicas e éticas de estudos da violência contra a mulher. Cad Saude Publica. 2009; 25 Supl 2:S205-16.
  • 24
    Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Rio de Janeiro: Vozes; 2003.
  • 25
    Queiroz MIP. Variações sobre a técnica de gravador no registro da informação viva [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; 1983.
  • 26
    Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1979.
  • 27
    Zanello V. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris; 2018.
  • 28
    Foucault M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1984.
  • Financiamento: A pesquisa foi financiada pelo National Institute of Health Research (NIHR – UK 17/63/125) e a escrita deste artigo teve apoio do CNPq n. 306881/2013-6. As opiniões expressas são de responsabilidade das autoras e não necessariamente do NIHR, do Departamento de Saúde e Assistência Social Reino Unido ou do CNPq.

Editado por

Editora: Denise Martin Coviello
Editora associada: Josefina Leonor Brown

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2022
  • Aceito
    02 Jul 2023
UNESP Distrito de Rubião Jr, s/nº, 18618-000 Campus da UNESP- Botucatu - SP - Brasil, Caixa Postal 592, Tel.: (55 14) 3880-1927 - Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br