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Interconsulta médico-enfermeiro na Atenção Primária à Saúde: discursos do sujeito coletivo

Doctor-nurse interconsultation in primary health care: collective subject discourses

Interconsulta médico-enfermero en la atención primaria de la salud: discursos del sujeto colectivo

Resumos

Objetivando compreender a interconsulta entre médicos e enfermeiros na Atenção Primária à Saúde (APS), empreendeu-se um estudo exploratório e descritivo, qualitativo, com a técnica de grupo focal, analisado à luz do Discurso do Sujeito Coletivo. Participaram quatro enfermeiras e três médicos, cujos discursos sobre sua compreensão da interconsulta e seus formatos originaram quatro ideias centrais: 1. a interconsulta é um trabalho integrado e complementar entre categorias, protagonizado por quem iniciou o atendimento, baseado na comunicação e buscando a integralidade; 2. seu formato depende da segurança dos profissionais, do tempo trabalhando juntos, do ambiente e da demanda do paciente; 3. é importante manter o protagonismo da Enfermagem, rompendo com a lógica centrada no médico; e 4. o modelo “ping-pong” de interconsulta não é funcional. Revelou-se a interconsulta como dispositivo de cuidado bem-sucedido, desafiando a lógica centrada no médico pela atuação integrada e complementar de médicos e enfermeiros da APS.

Palavras-chave
Relações interprofissionais; Comunicação interdisciplinar; Assistência centrada no paciente; Assistência integral à saúde; Atenção Primária à Saúde


With the aim of understanding doctor-nurse interconsultation in primary health care, we conducted a descriptive exploratory qualitative study using focus groups. The data were analyzed using collective subject discourse. Four nurses and three doctors participated in the study, whose discourses on their understanding of interconsultation and its different formats gave rise to four central ideas: interconsultation is integrated and complementary across professions, instigated by the person who began the appointment, communication-based and seeks to promote comprehensiveness; format depends on professional confidence, length of time working together, the environment and patient demands; it is important to maintain nurse protagonism, breaking with doctor-centered logic; the “ping-pong” interconsultation model does not work. The findings reveal that interconsultation is a successful care tool that challenges doctor-centered logic by promoting integrated and complementary working between doctors and nurses.

Keywords
Interprofessional relations; Interdisciplinary communication; Patient-centered care; Comprehensive health care; Primary health care


Con el objetivo de comprender la interconsulta entre médicos y enfermeros en la Atención Primaria de la Salud (APS), se realizó un estudio exploratorio y descriptivo, cualitativo, con la técnica de grupo focal, analizado a la luz del Discurso del Sujeto Colectivo. Participaron cuatro enfermeras y tres médicos, cuyos discursos sobre su comprensión de la interconsulta y sus formatos originaron cuatro Ideas Centrales: la interconsulta es un trabajo integrado y complementario entre categorías, protagonizado por quien comenzó la atención, con base en la comunicación y buscando la integralidad; su formato depende de la seguridad de los profesionales, del tiempo trabajando juntos, del ambiente y de la demanda del paciente; es importante mantener el protagonismo de la enfermería, rompiendo con la lógica médico-centrada; el modelo “ping-pong” de interconsulta no es funcional. La interconsulta se reveló como un dispositivo de cuidado exitoso, desafiando la lógica médico-centrada por la actuación integrada y complementaria de médicos y enfermeros de la APS.

Palabras clave
Relaciones interprofesionales; Comunicación interdisciplinaria; Asistencia centrada en el paciente; Asistencia integral de la salud; Atención primaria de la salud


Introdução

A Atenção Primária à Saúde (APS) em Florianópolis é destaque nacional pela atuação clínica qualificada de médicos de Família e Comunidade (MFC) e enfermeiros, muitas vezes também especialistas em Saúde da Família11 Rede APS. Florianópolis é a capital com melhor saúde primária do país [Internet]. Rio de Janeiro: ABRASCO; 2014 [citado 13 Jan 2023]. Disponível em: https://redeaps.org.br/2014/11/26/florianopolis-e-a-capital-com-melhor-saude-primaria-do-pais/
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2 Báfica ACMF, Gomes AMB, Siqueira EF, Souza JM, Paese F, Belaver GM, et al. Atenção primária à saúde abrangente: ampliando acesso para uma enfermagem forte e resolutiva. Enferm Foco. 2021; 12(7 Supl 1):61-6.
-33 Giovanella L, Martufi V, Ruiz DC, Mendonça MHM, Bousquat A, Aquino R, et al. A contribuição da atenção primária à saúde na rede SUS de enfrentamento à Covid-19. Saude Debate. 2021; 45(130):748-62. doi: 10.1590/0103-1104202113014.
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. Nesse cenário, há frequente cooperação entre profissionais, pautada na horizontalidade da troca de saberes e na responsabilidade conjunta sobre a terapêutica, carecendo de estrutura formal44 Fajardo AP, Farias GB. A interconsulta em serviços de atenção primária à saúde. Rev Gest Saude. 2015; 6 Supl 3:2075-93.. Esse tipo de compartilhamento do cuidado, conhecido como “interconsulta”, é, paradoxalmente, institucionalizado no serviço público municipal desde 2016, a partir da Política Municipal de Atenção Primária à Saúde (PMAPS) de Florianópolis55 Florianópolis. Secretaria Municipal de Saúde. Portaria No 22/2016. Aprova a Política Municipal de Atenção Primária à Saúde para organização dos serviços e gestão e direcionamento das ações de educação permanente no âmbito da Atenção Primária à Saúde no município de Florianópolis. Diário Oficial Eletrônico do Município, Florianópolis, 09 de novembro de 2016 [citado 13 Jan 2023]. Disponível em: http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/29_11_2016_16.17.33.73c009e15b1538cd39469d1b7ec80eb2.pdf
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e reiterado no Protocolo de Enfermagem de atenção à demanda espontânea de cuidados no adulto66 Florianópolis. Secretaria Municipal de Saúde. Protocolo de Enfermagem: Demanda espontânea do Adulto (Volume 4). Florianópolis: Secretaria Municipal de Saúde; 2016. Atualizado por: Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis; 2020 [citado 13 Jan 2023]. Disponível em: http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/saude/index.php?cms=protocolos+de+enfermagem&menu=11&submenuid=1478
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Avançando nesse entendimento, registra-se a introdução do conceito de interconsulta na literatura científica por Ferrari e Luchina nos anos 1970, na Argentina, partindo da psiquiatria77 Nogueira-Martins LA, Botega NJ. Interconsulta psiquiátrica no Brasil: desenvolvimentos recentes. Rev ABP-APAL. 1998; 20(3):105-11.. Na década seguinte, o conceito foi ampliado e aplicado em outras esferas de cuidado88 Bortagarai FM, Peruzzolo DL, Ambrós TMB, Souza APR. A interconsulta como dispositivo interdisciplinar em um grupo de intervenção precoce. Disturb Comun. 2015; 27(2):392-400. , difundindo-se, de modo que é difícil separá-lo dos muitos termos semelhantes que povoam a literatura nacional e internacional, dentre os quais se destacam: “referência”, “encaminhamento”, “comanejo”, “cuidado compartilhado”, “trabalho em equipe”, “colaboração” e “prática interprofissional colaborativa”. A heterogeneidade dos termos, potencializada pela escrita em diferentes idiomas, dificulta o estabelecimento de conceitos99 Núñez-Herrera A, Fernández-Vidal A, Geroy-Fernández A. La interconsulta en la atención primaria de salud: una mirada reflexiva. Medisur. 2019; 17(1):152-4.

10 Greene JG. Collaborative comanagement between neurohospitalists and internal medicine hospitalists decreases provider costs and enhances satisfaction with neurology care at an academic medical center. Neurohospitalist. 2018; 8(2):74-81. doi: 10.1177/1941874417735173.
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11 Norful AA, Swords K, Marichal M, Cho H, Poghosyan L. Nurse practitioner-physician co-management of primary care patients: the promise of a new delivery care model to improve quality of care. Health Care Manage Rev. 2019; 44(3):235-45. doi: 10.1097/HMR.0000000000000161.
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-1212 Montero Ruiz E, Monte Secades R, Padilla López DR, Palomo Antequera C, Gómez Fernández RC, Marco Martínez J, et al. Collaborative hospital models for shared care and on-demand interconsultations. Which offer the best results for orthopaedic surgery and trauma? Rev Clin Esp (Barc). 2020; 220(3):167-73. doi: 10.1016/j.rce.2019.08.007.
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, a ensejar aprofundamento além do escopo deste trabalho. Contudo, convencionada a denominação “interconsulta” em documentos orientadores da rede municipal de saúde e sendo seu emprego rotineiro pelos profissionais da APS, tal termo foi adotado neste estudo, que o tem como objeto de investigação.

Nessa toada, o entendimento de interconsulta assumido na PMAPS é o seguinte:

[...] consulta individual com a discussão presencial ou remota do caso entre profissionais de saúde em atuação complementar de seus núcleos de categoria e com responsabilização compartilhada dentro dos princípios ético-legais de cada categoria55 Florianópolis. Secretaria Municipal de Saúde. Portaria No 22/2016. Aprova a Política Municipal de Atenção Primária à Saúde para organização dos serviços e gestão e direcionamento das ações de educação permanente no âmbito da Atenção Primária à Saúde no município de Florianópolis. Diário Oficial Eletrônico do Município, Florianópolis, 09 de novembro de 2016 [citado 13 Jan 2023]. Disponível em: http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/29_11_2016_16.17.33.73c009e15b1538cd39469d1b7ec80eb2.pdf
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(p. 47)

Ressalta-se que esse conceito não é seguido de orientação prática ou descrição operacional que norteie sua implementação plena. Ademais, em relação à APS, há lacunas de conhecimento acerca da interconsulta persistentes ao longo dos anos44 Fajardo AP, Farias GB. A interconsulta em serviços de atenção primária à saúde. Rev Gest Saude. 2015; 6 Supl 3:2075-93.,66 Florianópolis. Secretaria Municipal de Saúde. Protocolo de Enfermagem: Demanda espontânea do Adulto (Volume 4). Florianópolis: Secretaria Municipal de Saúde; 2016. Atualizado por: Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis; 2020 [citado 13 Jan 2023]. Disponível em: http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/saude/index.php?cms=protocolos+de+enfermagem&menu=11&submenuid=1478
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,1313 Norful AA, Ye S, Van der-Biezen M, Poghosyan L. Nurse practitioner-physician co-management of patients in primary care. Policy Polit Nurs Pract. 2018; 19(7): 152715441881502. doi: 10.1177/1527154418815024.
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, principalmente em relação à parceria médico-enfermeiro1111 Norful AA, Swords K, Marichal M, Cho H, Poghosyan L. Nurse practitioner-physician co-management of primary care patients: the promise of a new delivery care model to improve quality of care. Health Care Manage Rev. 2019; 44(3):235-45. doi: 10.1097/HMR.0000000000000161.
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, sendo necessárias mais produções científicas para se ter uma compreensão verossímil sobre a práxis da contribuição interprofissional nesse ponto de atenção da rede assistencial, aspectos que justificam este estudo.

Registra-se a ausência de regulamentação específica da Enfermagem ou da Medicina sobre o aspecto ético-legal da interconsulta. Contudo, em 2022, a Resolução n. 696 do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen)1414 COFEN. Resolução Nº 0696/2022. Dispõe sobre a atuação da Enfermagem na Saúde Digital, normatizando a Telenfermagem. Brasília: COFEN; 2022., que trata da atuação da Enfermagem na saúde digital, assume a interconsulta como avaliação conjunta entre enfermeiros ou entre enfermeiro e outros profissionais da Saúde, com a participação do paciente, de modo que a responsabilidade pela conduta se mantém com profissional que presta o cuidado, corresponsabilizando os demais envolvidos pelas decisões tomadas.

Destarte, considerando-se a interconsulta uma ferramenta de gestão do cuidado interprofissional, bem como a escassez de estudos sobre o tema na APS, esta pesquisa objetivou compreender a interconsulta entre médicos e enfermeiros no primeiro nível de atenção à saúde. Dessa feita, questionou-se: qual a compreensão de médicos e enfermeiros sobre a interconsulta realizada na Atenção Primária à Saúde de Florianópolis? O estudo poderá contribuir com a discussão sobre o modelo atual de atendimento interprofissional naturalizado no município, fomentando, quiçá, a implantação de modelos semelhantes em outros cenários, assim como a elaboração de diretrizes norteadoras de operacionalização da interconsulta na prática clínica da APS.

Metodologia

Trata-se de um estudo exploratório e descritivo com abordagem qualitativa, realizado na APS de Florianópolis. Norteada pela Estratégia de Saúde da Família e constituída por quatro distritos sanitários (DS), contempla 49 Centros de Saúde (CS)1515 Florianópolis. Secretaria Municipal de Saúde. Centros de saúde [Internet]. Florianópolis: Secretaria Municipal de Saúde; 2022 [citado 21 Abril 2022]. Disponível em https://www.pmf.sc.gov.br/entidades/saude/index.php?cms=centros+de+saude&menu=0.
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, todos com equipes de Saúde da Família, apoiadas por equipes multiprofissionais, geralmente compostas por educador físico, fisioterapeuta, nutricionista, psicólogo, assistente social e farmacêutico.

A população do estudo engloba 421 profissionais: 146 MFC, 17 médicos generalistas e 258 enfermeiros1616 Florianópolis. Secretaria Municipal de Saúde. Quadro funcional - portal da transparência [Internet]. Florianópolis: Prefeitura Municipal; 2022 [citado 23 Mar 2022]. Disponível em https://www.pmf.sc.gov.br/transparencia/index.php?pagina=quadrofuncional&menu=4.
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. Participaram da pesquisa três MFC e quatro enfermeiras. Consideraram-se critérios de inclusão: ser MFC ou enfermeiro atuando em equipe de saúde da família (eSF) por, no mínimo, seis meses; e ter realizado interconsultas no serviço. Foram excluídos: profissionais de licença, férias ou indisponíveis durante a coleta de dados, além dos que não responderam ao convite. O tempo mínimo de atuação se justifica pelo entendimento de que é necessário ter vivências com o fenômeno estudado para desenvolver opiniões e hábitos a partir da rotina.

Considerando-se a premência da qualificação dos participantes na discussão sobre a temática pesquisada, a literatura recomenda selecioná-los com indicação de informantes-chave, familiarizados com o fenômeno estudado. Todavia, a definição final dos participantes mantém-se sob responsabilidade do pesquisador1717 Trad, LAB. Grupos focais: conceitos, procedimentos e reflexões baseadas em experiências com o uso da técnica em pesquisas de saúde. Physis. 2009; 19(3):777-96. doi: 10.1590/S0103-73312009000300013.
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. Assim, os participantes foram escolhidos por amostragem intencional por indicação de um médico e uma enfermeira, chefes na rede municipal, totalizando 16 indicados, oito de cada categoria profissional. A eles, foi solicitada indicação de profissionais de CS de diferentes portes, com e sem relação com os programas de residência, que atendessem aos critérios de inclusão e exclusão. Os indicados foram convidados via e-mail das respectivas equipes, sendo dois MFC e dois enfermeiros de cada Distrito Sanitário (Norte, Sul, Centro e Continente). Houve duas negativas (de um médico e de uma enfermeira) e 14 indicados não responderam. Buscando aumentar a adesão, optou-se pela coleta on-line, reenviando-se convite aos mesmos indicados. Dos oito médicos convidados, um não respondeu, quatro recusaram o convite e três aceitaram. Entre os oito enfermeiros convidados, dois confirmaram presença, dois não responderam e quatro justificaram a indisponibilidade, os quais indicaram outros três enfermeiros, dos quais dois aceitaram, totalizando quatro enfermeiros participantes. Excluíram-se, portanto, cinco médicos e sete enfermeiros, por indisponibilidade ou por ausência de resposta.

Para avaliar a aplicabilidade do grupo focal e do roteiro semiestruturado; e para ajustar a atuação dos pesquisadores, realizou-se um teste-piloto em agosto de 2022. Os três pesquisadores participaram do teste como moderador, observador ou relator. A moderadora, responsável por estimular o debate, orientou os participantes sobre a dinâmica do grupo, aspectos éticos e regras. O observador focou nuances subjetivas, com intervenções pontuais, enquanto a relatora registrou momentos do desenrolar do grupo importantes para a transcrição1818 Lervolino SA, Pelicioni MCF. A utilização do grupo focal como metodologia qualitativa na promoção da saúde. Rev Esc Enferm USP. 2001; 35(2):115-21..

Participaram cinco enfermeiros e três médicos, residentes do segundo ano dos Programas de Residência Multiprofissional em Saúde da Família e de Medicina de Família e Comunidade de Florianópolis. A amostragem, por conveniência, incluiu representantes de quatro Centros de Saúde do Distrito Sanitário Sul. Os residentes foram escolhidos por possuírem boa experiência com interconsulta e semelhança com o grupo-alvo da pesquisa, sem serem elegíveis ao estudo. Em seguida, emergiu a necessidade de ajustes no posicionamento da moderadora, a prevenir interferências quanto a juízo de valores, dirimindo vieses associados à técnica do grupo focal1717 Trad, LAB. Grupos focais: conceitos, procedimentos e reflexões baseadas em experiências com o uso da técnica em pesquisas de saúde. Physis. 2009; 19(3):777-96. doi: 10.1590/S0103-73312009000300013.
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. Os residentes julgaram o roteiro semiestruturado adequado aos objetivos apresentados.

Coletaram-se os dados em 15 de dezembro de 2022, fornecidos de forma on-line por meio de encontros realizados no Google Meet®, utilizando-se o roteiro semiestruturado do piloto, dividindo-se a coleta em três momentos: início, desenvolvimento e considerações finais. No início, foram apresentados a moderadora, o observador e a relatora do grupo; os participantes; e seus papéis. A autora principal da presente pesquisa, moderadora, é médica residente da rede de APS na qual trabalham os sujeitos de pesquisa. Alguns dos participantes são preceptores no programa de residência do qual a autora faz parte, porém, não há relação de subordinação. Dois participantes conheciam a autora previamente. O observador é MFC há 19 anos, com atuação em interconsulta por 12 anos.; e a relatora é enfermeira de Saúde da Família, pós-doutora e ativa em grupos de pesquisa de uma instituição pública de ensino superior, na qual desenvolve pesquisas qualitativas. Ambos são da mesma rede de Atenção Primária e preceptores dos programas de residência, sem funções de chefia e, portanto, sem diferença hierárquica em relação aos demais participantes. Expuseram-se os objetivos do estudo, seu tempo estimado de duração as formas de registro dos dados. O desenvolvimento compreendeu o debate sobre as questões disparadoras: “Quando eu falo em ‘interconsulta’, o que vem à sua mente?” e “Quais elementos você considera fundamentais para realizar uma interconsulta?”. Nas considerações finais, os participantes registraram aspectos ainda não debatidos relacionados à temática. Informações sobre dados sociodemográficos e profissionais foram previamente preenchidas em questionário on-line do Google Forms®. Nenhum dos participantes compartilha o local de trabalho, porém, um MFC e uma enfermeira trabalharam juntos em um mesmo CS anteriormente.

Na coleta, estiveram presentes apenas os participantes e condutores do grupo. Foi aplicada a técnica do grupo focal. Os depoimentos gravados no Google Meet® foram transcritos na íntegra, cujo produto foi o material de análise. Não houve devolução das transcrições aos participantes para comentários e/ou correções. O grupo durou 64 minutos e foi finalizado pelo consenso entre pesquisadores e participantes de que se atingira uma visão ampla, diversa e confiável da complexidade e das camadas do fenômeno1919 Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesq Qualitativa. 2017; 5(7):1-12..

A organização e análise dos dados segue a técnica do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC)2020 Lefèvre F. Discurso do sujeito coletivo: nossos modos de pensar, nosso eu coletivo. São Paulo: Andreoli; 2017., compreendendo quatro operadores metodológicos: expressões-chave (ECh), ideias centrais (IC), ancoragem (AC) e DSC propriamente dito. As ECh são os trechos mais significativos dos depoimentos à luz do que foi perguntado, sintetizadas em IC elaboradas pelo pesquisador. A AC é um tipo especial de IC, um artefato metodológico que permite a identificação de figuras implícitas ou pressupostas trazidas pelo participante. Por fim, o DSC é a junção empírica das ECh em um único discurso, composto pela coletividade das vozes e proferido na primeira pessoa do singular. A técnica do DSC tem duas dimensões: quantitativa, traduzida em amplitude e intensidade; e qualitativa. A intensidade corresponde ao grau de compartilhamento de uma ideia entre os profissionais, enquanto a amplitude revela o espalhamento de uma ideia nas diferentes representações do campo social2121 Lefèvre F, Lefèvre AMC. Pesquisa de representação social: um enfoque qualiquantitativo: a metodologia do discurso do sujeito coletivo. 2a ed. Brasília: Liber Livro; 2012. (Pesquisa, v. 20)..

A análise dos dados iniciou-se com repetida leitura da transcrição, seguindo-se a análise individual dos depoimentos, parametrizada por uma pergunta disparadora e a consecutiva seleção das ECh. Para cada expressão selecionada, foi atribuída uma IC e agrupadas as ideias semelhantes. As IC afins foram fundidas, sendo as ECh correlatas justapostas para formar os DSC, redigidos na primeira pessoa do singular, materializados a partir das opiniões compartilhadas pelos participantes. Não foi revelada AC. Para a organização e processamento dos dados, utilizou-se o Google Planilhas®, com a tabulação de cada ECh, sua respectiva IC e o código do participante que proferiu o depoimento. As IC derivaram tanto de categorias preestabelecidas de acordo com os objetivos do estudo quanto da análise das falas dos participantes.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado de Santa Catarina. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Visando ao anonimato dos participantes, a eles foi atribuído uma sigla, que representa sua categoria profissional – MFC ou Enf (enfermeiro) – e um número.

Resultados e discussão

Entre os três (42,9%) MFC e quatro (57,1%) enfermeiros especialistas em Saúde da Família, a maioria era do sexo feminino (n = 5; 71,4%). Todos concluíram a graduação há pelo menos oito anos. O tempo de atuação na rede municipal de Florianópolis variou de dois a 14 anos, sendo a mediana de cinco anos e a média 5,7 anos. Uma (14,3%) participante, enfermeira, não atua nos programas de residência da rede. Os quatro DS de Florianópolis estiveram representados, com participantes do DS Continente (n = 2, 28,6%), DS Norte (n = 1; 14,3%), DS Centro (n = 1; 14,3%) e DS Sul (n = 3; 42,9%).

A partir dos dados extraídos do grupo focal, construíram-se quatro discursos, cuja síntese corresponde a uma IC. O primeiro discurso (DSC1), representado na IC1, alude ao conceito da interconsulta realizada em Florianópolis, enquanto os outros três discursos – sintetizados nas IC2, IC3 e IC4 – indicam formatos da interconsulta presentes no cotidiano dos profissionais.

IC1: A interconsulta é um trabalho integrado e complementar entre categorias, protagonizado por quem iniciou o atendimento, baseado na comunicação e buscando a integralidade.

DSC1: A primeira coisa que vem à cabeça é uma consulta compartilhada com outro profissional, trabalho em equipe, trabalho conjunto, integrado. Penso também em comunicação, união de diferentes saberes, diferentes categorias profissionais pensando num desfecho integral de cuidado, no cuidado centrado na pessoa, com dois profissionais com um objetivo comum. Amplia nossa capacidade de escuta dos pacientes enquanto equipe, envolve discussão e raciocínio clínico também. É uma junção para chegar num objetivo em comum para aquele paciente, tendo um dos profissionais como protagonista daquele processo. E o outro elemento [outro profissional] vem como uma complementação, mas tentando manter o protagonismo de quem estava conduzindo esse processo. A interconsulta é muito disso, a pessoa que tá ali coordenando vai continuar coordenando aquele cuidado, e ela precisou de outras orientações que fugiam à competência técnica dela daquele momento, ou que vai além das atribuições. Mas vai ser um profissional que tá guiando um pouco mais, quem foi o líder, quem conduziu aquela consulta, quem coletou os dados, quem fez um exame inicial, quem pensou em algumas hipóteses diagnósticas ou que pensou que aquilo lá precisava ser compartilhado com outro profissional, precisava ampliar o pensamento do diagnóstico, do plano em si.

(Enf1, Enf2, Enf3, Enf4, MFC1, MFC2, MFC3)

O DSC1, o mais representativo do estudo em amplitude e intensidade, expressa a interconsulta como trabalho em equipe, conjunto e integrado, em consonância com a literatura1111 Norful AA, Swords K, Marichal M, Cho H, Poghosyan L. Nurse practitioner-physician co-management of primary care patients: the promise of a new delivery care model to improve quality of care. Health Care Manage Rev. 2019; 44(3):235-45. doi: 10.1097/HMR.0000000000000161.
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,2222 American College of Physicians. Nurse practitioners in primary care. Filadélfia: American College of Physicians; 2009.. Aqui, revela-se o caráter de compartilhamento de responsabilidades e complementação dos papéis dos profissionais clínicos de diferentes categorias, com clareza sobre suas atribuições, mas com responsabilidades coalescentes2323 Previato GF, Baldissera VDA. A comunicação na perspectiva dialógica da prática interprofissional colaborativa em saúde na atenção primária à saúde. Interface (Botucatu). 2018; 22 Supl 2:1535-47. doi: 10.1590/1807-57622017.0647.
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,2424 Freitas CC, Mussatto F, Vieira JS, Bugança JB, Steffens VA, Baêta Filho H, et al. Domínios de competências essenciais nas práticas colaborativas em equipe interprofissional: revisão integrativa da literatura. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210573. doi: 10.1590/interface.210573.. Tal formato se aproxima do Modelo Colaborativo de APS de Starfield2525 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Ministério da Saúde, Unesco; 2002. , cujo arranjo de equipe prescinde de uma liderança enrijecida e permanente, assim como na interconsulta, com dinamismo entre os papéis, ainda que um dos profissionais se torne referência ou atue como trabalhador-chave em determinados contextos.

Elementar à interconsulta, evidenciada no DSC1, a comunicação entre os profissionais é definida como “a facilidade e a efetividade com a qual interprofissionais se comunicam entre si”(d (d) “The ease and effectiveness with which ‘interprofessionals’ communicate with each other.” ) (p. 4, tradução nossa) e tem lugar central para alcançar a efetiva “união dos diferentes saberes”2626 Stutsky BJ, Laschinger HKS. Development and testing of a conceptual framework for interprofessional collaborative practice. Health Interprof Practice. 2014; 2(2):eP1066. doi: 10.7710/2159-1253.1066.
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,2727 Peduzzi M, Agreli HF. Trabalho em equipe e prática colaborativa na atenção primária à saúde. Interface (Botucatu). 2018; 22 Supl 2:1525-34. doi: 10.1590/1807-57622017.0827.
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.08...
. Em seu modelo conceitual para Prática Interprofissional Colaborativa (PIC), autores consideram as habilidades de comunicação precursoras da cooperação entre diferentes categorias no cuidado à saúde2626 Stutsky BJ, Laschinger HKS. Development and testing of a conceptual framework for interprofessional collaborative practice. Health Interprof Practice. 2014; 2(2):eP1066. doi: 10.7710/2159-1253.1066.
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. Logo, ao atrelar a comunicação à união de diferentes saberes por meio da interconsulta, os participantes deste estudo exercitam a PIC cotidianamente.

Outro elemento da interconsulta é a discussão clínica. Uma revisão comparou o ponto de vista de médicos e enfermeiros sobre colaboração na APS, sendo o compartilhamento de informações clínicas sobre os pacientes um ponto comum para ambos2828 Schadewaldt V, McInnes E, Hiller JE, Gardner A. Views and experiences of nurse practitioners and medical practitioners with collaborative practice in primary health care – an integrative review. BMC Fam Pract. 2013; 14(1):132-42. doi: 10.1186/1471-2296-14-132.
https://doi.org/10.1186/1471-2296-14-132...
. Na interconsulta, a discussão do caso clínico objetiva construir um projeto terapêutico comum para o sujeito atendido44 Fajardo AP, Farias GB. A interconsulta em serviços de atenção primária à saúde. Rev Gest Saude. 2015; 6 Supl 3:2075-93., a partir da troca interprofissional de saberes.

Ecoando a literatura, o DSC1 aborda a potencialização da integralidade do cuidado por meio da interconsulta44 Fajardo AP, Farias GB. A interconsulta em serviços de atenção primária à saúde. Rev Gest Saude. 2015; 6 Supl 3:2075-93., sendo a integralidade um dos atributos essenciais da APS. O achado é particularmente importante se considerada a premissa de que atingir a integralidade implica oferecer maior gama de serviços, suscitando maior sobrecarga ao clínico responsável2525 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Ministério da Saúde, Unesco; 2002. . Contudo, uma prática interprofissional colaborativa pode diminuir a carga dos profissionais com a coordenação do cuidado proposta pelo modelo devido à divisão de responsabilidades. Portanto, a partir do discurso construído da práxis da APS, divisa-se a materialização da ruptura, ainda que parcial, com um modelo antigo de organização da assistência à saúde e a efetivação de novos processos de trabalho, de gestão e de relação entre profissionais e usuários do sistema44 Fajardo AP, Farias GB. A interconsulta em serviços de atenção primária à saúde. Rev Gest Saude. 2015; 6 Supl 3:2075-93.,2626 Stutsky BJ, Laschinger HKS. Development and testing of a conceptual framework for interprofessional collaborative practice. Health Interprof Practice. 2014; 2(2):eP1066. doi: 10.7710/2159-1253.1066.
https://doi.org/10.7710/2159-1253.1066...
,2929 World Health Organization. Health professions network nursing and midwifery office within the department of human resources for health. Framework for action on interprofessional education & collaborative practice. Genebra: WHO; 2010..

A interconsulta remete ainda à manifestação de uma ética centrada na pessoa3030 Agreli HF, Peduzzi M, Silva MC. Atenção centrada no paciente na prática interprofissional colaborativa. Interface (Botucatu). 2016; 20(59):905-16. doi: 10.1590/1807-57622015.0511.
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, essencial para as PICs e o trabalho em equipe3030 Agreli HF, Peduzzi M, Silva MC. Atenção centrada no paciente na prática interprofissional colaborativa. Interface (Botucatu). 2016; 20(59):905-16. doi: 10.1590/1807-57622015.0511.
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. Isso se notabiliza com uma revisão que analisou 21 artigos sobre competências essenciais para as PICs, dos quais 100% pontuaram a comunicação e 90% aludiram ao cuidado centrado na pessoa (CCP) como competências essenciais2424 Freitas CC, Mussatto F, Vieira JS, Bugança JB, Steffens VA, Baêta Filho H, et al. Domínios de competências essenciais nas práticas colaborativas em equipe interprofissional: revisão integrativa da literatura. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210573. doi: 10.1590/interface.210573.. Colocar o indivíduo e suas necessidades no centro do cuidado impacta na qualidade dos serviços de saúde e não é novidade na literatura científica. Em 2001, o Institute of Medicine já havia estabelecido o CCP como um domínio entre seis marcadores de qualidade, reiterado pelo Canadian Interprofessional Health Collaborative em 20103131 Institute of Medicine. Committee on Quality Health Care in America. Crossing the quality chasm: a new health system for the 21st century. Washington: National Academy of Sciences; 2001.,3232 Canadian Interprofessional Health Collaborative. A national interprofessional competency framework. Vancouver: Her Majesty the Queen in right of Canada; 2010.. O CCP pode, inclusive, ser considerado um dos objetivos da interconsulta ao dar peso ao contexto social do paciente e a seus desejos44 Fajardo AP, Farias GB. A interconsulta em serviços de atenção primária à saúde. Rev Gest Saude. 2015; 6 Supl 3:2075-93., justapondo-se à competência cultural, segundo aspecto derivativo da APS, no qual as necessidades das subpopulações atendidas são valoradas, perpassando aspectos étnicos, sociais, religiosos ou afins2525 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Ministério da Saúde, Unesco; 2002. .

Em relação aos formatos de interconsultas vivenciados pelos profissionais, emergiram três DSCs: DSC2 – abrange fatores que influenciam na condução da interconsulta; DSC3 – trata da valorização da atuação da enfermagem em detrimento da lógica centrada no médico; e DSC4 – aborda um formato disfuncional de interconsulta.

IC2: O formato da interconsulta depende da segurança dos profissionais e do tempo que trabalham juntos, do ambiente e da demanda do paciente.

DSC2: Como vai se dar essa interconsulta é muito diferente dependendo de como é esse relacionamento do médico com enfermeiro da equipe, há quanto tempo eles estão juntos, qual a experiência profissional deles, da segurança do outro profissional, do ambiente, se é uma visita domiciliar ou se é no consultório... a formação de cada um trabalhando com interconsulta faz muita diferença para saber como vai ser o formato, o quanto a gente vai ter que intervir ou quanto a gente consegue fazer intervenções mais pontuais. Às vezes, a gente já viu tantos casos juntos que não tem dúvida daquele diagnóstico. E aí a enfermeira entra em contato comigo pelo aplicativo de comunicação, ou vem até meu consultório discutir o caso e eu faço a prescrição necessária. Então, por exemplo, esse é um caso que boa parte das vezes eu não vou até o consultório para avaliar junto. Mas tem outras situações que “ah, fiquei na dúvida... podemos examinar juntos”. Tem uma necessidade, às vezes, até de habilidade de comunicação, ou de uma relação de confiança que tu já tem com o paciente, um cuidado que já tá há mais tempo, que às vezes a gente precisa entrar em consultório e conversar com o paciente sobre aquele plano. Ou, às vezes, situações mais delicadas de diagnósticos mais difíceis. E também funciona ao contrário. Às vezes, o médico pega na demanda espontânea uma queixa ginecológica e como às vezes vai mais pela enfermagem isso... “Ai, confirma para mim?”. E a gente só vai lá dar uma olhadinha.

(Enf1, Enf2, Enf4, MFC2, MFC3)

O segundo DSC (DSC2) evidencia a relação interprofissional como definidora na interconsulta; e determina se vai haver mais ou menos intervenções e como será a comunicação nesse processo. Em consonância, a literatura aponta que um alto nível de confiança entre profissionais que compartilham o cuidado é crucial para efetivar a partilha das responsabilidades, sendo que essa confiança cresce ao longo do tempo3333 Norful AA, de Jacq K, Carlino R, Poghosyan L. Nurse practitioner-physician comanagement: a theoretical model to alleviate primary care strain. Ann Fam Med. 2018; 16(3):250-6. doi: 10.1370/afm.2230.
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, apresentando forte evidência de sua importância3434 Schadewaldt V, McInnes E, Hiller JE, Gardner A. Experiences of nurse practitioners and medical practitioners working in collaborative practice models in primary healthcare in Australia - a multiple case study using mixed methods. BMC Fam Pract. 2016; 17:99. doi: 10.1186/s12875-016-0503-2.
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. Tal confiança entre os profissionais se revela em dois momentos do discurso: “a gente já viu tantos casos juntos que não tem dúvida daquele diagnóstico” e “boa parte das vezes eu não vou até o consultório para avaliar junto”. Adquirir confiança leva – notadamente entre os médicos – progressivamente a um sentimento de menor necessidade de checar informações passadas pelo enfermeiro3333 Norful AA, de Jacq K, Carlino R, Poghosyan L. Nurse practitioner-physician comanagement: a theoretical model to alleviate primary care strain. Ann Fam Med. 2018; 16(3):250-6. doi: 10.1370/afm.2230.
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,3535 Legault F, Humbert J, Amos S, Hogg W, Ward N, Dahrouge S, et al. Difficulties encountered in collaborative care: logistics trumps desire. J Am Board Fam Med. 2012; 25(2):168-76. doi: 10.3122/jabfm.2012.02.110153.
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. Estudo revelou que a confiança de um profissional na competência de outro é o terceiro fator mais impactante na cooperação entre médicos e enfermeiros na APS2828 Schadewaldt V, McInnes E, Hiller JE, Gardner A. Views and experiences of nurse practitioners and medical practitioners with collaborative practice in primary health care – an integrative review. BMC Fam Pract. 2013; 14(1):132-42. doi: 10.1186/1471-2296-14-132.
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, dado que atribui significância a essa confiança na interconsulta.

Merece destaque a influência das situações clínicas em foco no formato da interconsulta, definindo inclusive a forma de comunicação empregada. Em concordância, estudos reportam que a diversidade de situações clínicas também molda o caráter da interação entre a equipe – que pode se valer de ferramentas de comunicação interna e on-line para discutir casos e ter resolutividade, mesmo sem encontros cara a cara2828 Schadewaldt V, McInnes E, Hiller JE, Gardner A. Views and experiences of nurse practitioners and medical practitioners with collaborative practice in primary health care – an integrative review. BMC Fam Pract. 2013; 14(1):132-42. doi: 10.1186/1471-2296-14-132.
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,3535 Legault F, Humbert J, Amos S, Hogg W, Ward N, Dahrouge S, et al. Difficulties encountered in collaborative care: logistics trumps desire. J Am Board Fam Med. 2012; 25(2):168-76. doi: 10.3122/jabfm.2012.02.110153.
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–; e auxilia na obtenção de ajuda entre membros da equipe de saúde e na troca de informações sobre usuários em momentos informais3434 Schadewaldt V, McInnes E, Hiller JE, Gardner A. Experiences of nurse practitioners and medical practitioners working in collaborative practice models in primary healthcare in Australia - a multiple case study using mixed methods. BMC Fam Pract. 2016; 17:99. doi: 10.1186/s12875-016-0503-2.
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,3636 Poitras ME, Chouinard MC, Gallagher F, Fortin M. Nursing activities for patients with chronic disease in primary care settings: a practice analysis. Nur Res. 2018; 67(1):35-42. doi: 10.1097/NNR.0000000000000253.
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. Além disso, diferentes mecanismos de comunicação entre profissionais otimizam o trabalho na APS3333 Norful AA, de Jacq K, Carlino R, Poghosyan L. Nurse practitioner-physician comanagement: a theoretical model to alleviate primary care strain. Ann Fam Med. 2018; 16(3):250-6. doi: 10.1370/afm.2230.
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,3737 Smith-Carrier T, Pham TN, Akhtar S, Nowaczynski M, Seddon G, Sinha S. “A more rounded full care model”: interprofessional team members’ perceptions of home-based primary care in Ontario, Canada. Home Health Care Serv Q. 2015; 34(3-4):232-51. doi: 10.1080/01621424.2015.1108892.
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,3838 Poghosyan L, Brooks JM, Hovsepian V, Pollifrone M, Schlak AE, Sadak T. The growing primary care nurse practitioner workforce: a solution for the aging population living with dementia. Am J Geriatr Psychiatry. 2021; 29(6):517-26. doi: 10.1016/j.jagp.2021.01.135.
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.

Ademais, diferentes situações clínicas exigem discernimento para identificar as habilidades necessárias – próprias ou alheias – e reconhecer seus limites, a fim de assegurar a maior resolutividade3232 Canadian Interprofessional Health Collaborative. A national interprofessional competency framework. Vancouver: Her Majesty the Queen in right of Canada; 2010.. Nesse sentido, cada parte precisa compreender os limites de sua autonomia e expertise. Frisa-se também que a formação e as experiências prévias com trabalho em equipe são importantes para que a dinâmica interprofissional flua minorando entraves3737 Smith-Carrier T, Pham TN, Akhtar S, Nowaczynski M, Seddon G, Sinha S. “A more rounded full care model”: interprofessional team members’ perceptions of home-based primary care in Ontario, Canada. Home Health Care Serv Q. 2015; 34(3-4):232-51. doi: 10.1080/01621424.2015.1108892.
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.

Outro influenciador é o ambiente do atendimento, a exemplo dos cenários da visita domiciliar ou do consultório, mencionados no DSC2. O espaço do lar propicia uma abordagem mais holística e alinhada, fomentando a colaboração interprofissional ao evidenciar aspectos do cuidado da pessoa sobre os quais a perspectiva de outra categoria pode contribuir com proficiência2323 Previato GF, Baldissera VDA. A comunicação na perspectiva dialógica da prática interprofissional colaborativa em saúde na atenção primária à saúde. Interface (Botucatu). 2018; 22 Supl 2:1535-47. doi: 10.1590/1807-57622017.0647.
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,3737 Smith-Carrier T, Pham TN, Akhtar S, Nowaczynski M, Seddon G, Sinha S. “A more rounded full care model”: interprofessional team members’ perceptions of home-based primary care in Ontario, Canada. Home Health Care Serv Q. 2015; 34(3-4):232-51. doi: 10.1080/01621424.2015.1108892.
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. À perspectiva biomédica, hegemônica nos atendimentos em consultório, integram-se aspectos do cotidiano do usuário que tangenciam consultas ambulatoriais, como relações familiares; e situação social e econômica. Isso permite inferir que a interconsulta realizada no domicílio pode agregar à atenção dispensada um cuidado mais integral, desfecho esperado conforme o DSC1.

O DSC2 desvelou também uma gama de interações interpostas na interconsulta, envolvendo desde atendimentos conjuntos, em que ambos os profissionais estão com o usuário no mesmo consultório, passando por discussões rápidas, presenciais ou on-line, até solicitações meramente burocráticas, que esbarram no limite de ação ou no próprio escopo da função do outro1111 Norful AA, Swords K, Marichal M, Cho H, Poghosyan L. Nurse practitioner-physician co-management of primary care patients: the promise of a new delivery care model to improve quality of care. Health Care Manage Rev. 2019; 44(3):235-45. doi: 10.1097/HMR.0000000000000161.
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, a exemplo da situação de prescrições específicas. Detecta-se, então, que a interação entre as profissões surge por necessidades diversas: de esclarecimento diagnóstico, de suporte a certa demanda e de fornecer diagnósticos mais sensíveis e difíceis, que exigem um projeto terapêutico mais diligente.

Por fim, o DSC2 aponta a implementação bem-sucedida da prática interprofissional colaborativa médico-enfermeiro no território estudado. Independentemente do formato da interconsulta, sempre há um feedback para o profissional condutor do caso, moldado conforme a necessidade apresentada pelo profissional solicitante. Nesse rumo, entende-se a eSF como uma intervenção interprofissional consolidada há mais de duas décadas2727 Peduzzi M, Agreli HF. Trabalho em equipe e prática colaborativa na atenção primária à saúde. Interface (Botucatu). 2018; 22 Supl 2:1525-34. doi: 10.1590/1807-57622017.0827.
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.

Os formatos de interconsulta também trazem em seu bojo a valorização da Enfermagem em detrimento da lógica da atenção centrada no médico, como mostra o DSC3.

IC3: Na interconsulta é importante manter o protagonismo da Enfermagem, rompendo paradigmas de hierarquização entre Medicina e Enfermagem.

DSC3: Um movimento que eu sempre passo é de tentar manter o protagonismo da Enfermagem, que é superimportante. A partir do momento em que o enfermeiro inicia a consulta, que toda a condução até a finalização seja do enfermeiro, independente se ele precisou ali de alguma conduta, de alguma orientação médica, então que ele encerre esse atendimento. Acho que no momento da interconsulta é legal a gente quebrar essa questão da hierarquização, das caixinhas na própria discussão também, sempre minimizando a questão de relação hierárquica que a gente aprende na graduação e que, muitas vezes, tá no imaginário da população.

(Enf1, Enf2, MFC2, MFC3)

Consoante à literatura, a IC3 traduz a compreensão de que, na interconsulta, é necessário subverter a lógica da atenção centrada no médico de hierarquia de poder em que o médico está sempre no topo3333 Norful AA, de Jacq K, Carlino R, Poghosyan L. Nurse practitioner-physician comanagement: a theoretical model to alleviate primary care strain. Ann Fam Med. 2018; 16(3):250-6. doi: 10.1370/afm.2230.
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– o que passa, inexoravelmente, por preservar o protagonismo dos enfermeiros2424 Freitas CC, Mussatto F, Vieira JS, Bugança JB, Steffens VA, Baêta Filho H, et al. Domínios de competências essenciais nas práticas colaborativas em equipe interprofissional: revisão integrativa da literatura. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210573. doi: 10.1590/interface.210573. sempre que assumem a responsabilidade inicial em um atendimento – e fortalecer a autonomia da profissão. A interconsulta toma um lugar potente na contribuição com essa transformação, não substituindo um saber pelo outro, mas atribuindo igual relevância às abordagens no contexto assistencial.

O DSC3 destaca a relevância de assegurar o espaço dos enfermeiros no processo da interconsulta, sugerindo um modelo mais equânime de atuação intercategorias. A respeito disso, salienta-se a autonomia do enfermeiro como o antecedente primário para um verdadeiro compartilhamento do cuidado entre MFC e Enfermagem3333 Norful AA, de Jacq K, Carlino R, Poghosyan L. Nurse practitioner-physician comanagement: a theoretical model to alleviate primary care strain. Ann Fam Med. 2018; 16(3):250-6. doi: 10.1370/afm.2230.
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, sendo fundamental o equilíbrio de poder nas tomadas de decisão1111 Norful AA, Swords K, Marichal M, Cho H, Poghosyan L. Nurse practitioner-physician co-management of primary care patients: the promise of a new delivery care model to improve quality of care. Health Care Manage Rev. 2019; 44(3):235-45. doi: 10.1097/HMR.0000000000000161.
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.

Sobre a autonomia dos enfermeiros na APS, estudo revelou diferentes percepções entre MFC e enfermeiros. Para estes, sua autonomia consiste em ter total responsabilidade sobre um paciente, contando com um médico disponível para ser consultado, se necessário. Já para aqueles, os enfermeiros só são autônomos quando não requerem nenhuma contribuição2828 Schadewaldt V, McInnes E, Hiller JE, Gardner A. Views and experiences of nurse practitioners and medical practitioners with collaborative practice in primary health care – an integrative review. BMC Fam Pract. 2013; 14(1):132-42. doi: 10.1186/1471-2296-14-132.
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. Essas percepções antagônicas contrastam com a visão convergente de MFC e enfermeiros nesta pesquisa no momento em que os representantes dos dois grupos concordam que, mesmo sendo solicitada uma interconsulta pelo enfermeiro, este se mantém autônomo e como figura principal durante todo o processo do atendimento.

Em relação ao rompimento da hierarquização de poder, ressalta-se que frequentemente os modelos de cuidado em equipe são verticalmente estruturados, com um profissional hierarquicamente acima dos demais1313 Norful AA, Ye S, Van der-Biezen M, Poghosyan L. Nurse practitioner-physician co-management of patients in primary care. Policy Polit Nurs Pract. 2018; 19(7): 152715441881502. doi: 10.1177/1527154418815024.
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, papel que geralmente cabe aos médicos. Tal arranjo inibe os enfermeiros de trabalhar seu potencial máximo e pode gerar conflitos2929 World Health Organization. Health professions network nursing and midwifery office within the department of human resources for health. Framework for action on interprofessional education & collaborative practice. Genebra: WHO; 2010.. É salutar que modelos como o da interconsulta cresçam verticalmente, aprofundando-se cada vez mais, e horizontalmente, difundindo-se para outras realidades.

Como contraponto, o DSC4 alerta sobre a realidade de que a interconsulta pode assumir um molde disfuncional, que produz desgaste e insatisfação nos profissionais, com prejuízos ao processo de trabalho da equipe.

IC4: O modelo “ping-pong” de interconsulta não é funcional.

DSC4: Um formato de interconsulta que eu não acho positivo, eu chamo de consulta “ping-pong”, é quando o profissional foi lá perguntar alguma coisa: “Tá, mas você perguntou tal coisa?”, “Não, eu pergunto lá de novo”. Aí volta na outra sala, aí pergunta e volta. “Tá, mas e outra coisa?”, “Não, não perguntei”. Volta lá de novo, né? Então, é uma interconsulta completamente fragmentada que atrapalha o processo de trabalho da equipe inteira e frustra o profissional que tá nesse bate e volta. Eu acho horrível, é uma coisa que me incomoda. Então, quando é demanda espontânea, que eu tenho dúvida, eu vou até o médico, eu falo: olha eu não domino muito isso, tenho muita dúvida. Tu vai lá comigo, pergunta junto comigo, a gente examina junto, que assim eu já aprendo.

(Enf4, MFC3)

O formato de interconsulta descrito se aproxima mais de uma consultoria, em que um profissional consultado precisa de informações que deveriam ser coletadas pelo profissional consultante para elaborar um raciocínio clínico. Evidencia-se uma comunicação truncada, faltando informações para as duas partes.

A ideia expressa no DSC4 com a interconsulta “ping-pong” evoca uma avaliação unilateral da competência do profissional da APS. Revisão abordando a essência da colaboração para médicos e enfermeiros da APS revelou pontos considerados importantes para os dois segmentos: trabalho conjunto; consulta da opinião do outro; confiança e respeito mútuos; comunicação; competência; coordenação; autonomia da Enfermagem; personalidade dos profissionais; e filosofia de cuidado. Entretanto, não houve interseção na compreensão das categorias sobre “sharing”(e (e) “Compartilhar” (tradução nossa). ). Para enfermeiros, compartilhar é um processo dialógico em que se colocam igualmente as visões sobre paciente e plano terapêutico. Na contramão, médicos entendem o compartilhar restrito a pacientes ou consultórios e entendem a busca de ajuda pela Enfermagem como sinal de limitação ou incapacidade. Depreende-se que os médicos avaliam a competência dos enfermeiros com base em situações que necessitariam da expertise médica para serem adequadamente encaminhadas, fugindo do escopo de prática do enfermeiro2828 Schadewaldt V, McInnes E, Hiller JE, Gardner A. Views and experiences of nurse practitioners and medical practitioners with collaborative practice in primary health care – an integrative review. BMC Fam Pract. 2013; 14(1):132-42. doi: 10.1186/1471-2296-14-132.
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.

Destaca-se a comunicação efetiva entre profissionais de uma equipe como primordial para poupar tempo, definir metas de cuidado, lidar com mudanças no quadro dos pacientes e estabelecer o papel de cada profissional na coordenação do cuidado, configurando-se um atributo vital na colaboração interprofissional3333 Norful AA, de Jacq K, Carlino R, Poghosyan L. Nurse practitioner-physician comanagement: a theoretical model to alleviate primary care strain. Ann Fam Med. 2018; 16(3):250-6. doi: 10.1370/afm.2230.
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. O tempo, o lugar e a equidade dentro da equipe são outros aspectos indispensáveis para garantir a troca de informações clínicas e o compartilhamento de saberes2626 Stutsky BJ, Laschinger HKS. Development and testing of a conceptual framework for interprofessional collaborative practice. Health Interprof Practice. 2014; 2(2):eP1066. doi: 10.7710/2159-1253.1066.
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.

Como a interconsulta “ping-pong” é disfuncional e prejudicial à equipe e ao paciente, entende-se que sua implementação é desvantajosa, devendo-se questionar os fatores geradores dessas ocorrências, a fim de reconhecê-las e buscar alternativas eficazes. Aqui, o próprio sujeito coletivo no DSC4 indica realizar a consulta a dois (médico e enfermeiro) diante de situações de pouco domínio/competência profissional, transformando a situação-problema em possibilidade de aprendizado. É o que se considera como processo ação-reflexão-ação2323 Previato GF, Baldissera VDA. A comunicação na perspectiva dialógica da prática interprofissional colaborativa em saúde na atenção primária à saúde. Interface (Botucatu). 2018; 22 Supl 2:1535-47. doi: 10.1590/1807-57622017.0647.
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, mérito da interconsulta. A despeito disso, a literatura é vasta em versar sobre a potencialidade da colaboração interprofissional como ferramenta de educação permanente, que enseja reflexão no cotidiano, convertendo a prática automática em um cuidado pensado e humanizado2323 Previato GF, Baldissera VDA. A comunicação na perspectiva dialógica da prática interprofissional colaborativa em saúde na atenção primária à saúde. Interface (Botucatu). 2018; 22 Supl 2:1535-47. doi: 10.1590/1807-57622017.0647.
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.06...
,2424 Freitas CC, Mussatto F, Vieira JS, Bugança JB, Steffens VA, Baêta Filho H, et al. Domínios de competências essenciais nas práticas colaborativas em equipe interprofissional: revisão integrativa da literatura. Interface (Botucatu). 2022; 26:e210573. doi: 10.1590/interface.210573.,3232 Canadian Interprofessional Health Collaborative. A national interprofessional competency framework. Vancouver: Her Majesty the Queen in right of Canada; 2010..

Considerações finais

Entende-se a interconsulta na APS de Florianópolis como dispositivo de cuidado bem-sucedido entre as práticas interprofissionais colaborativas. Nesse modelo, os MFC e enfermeiros demonstram capacidade de atuar de maneira integrada e complementar, baseados no respeito e na confiança mútua; apostando na comunicação efetiva; e desafiando a lógica centrada no médico, amplamente difundida na sociedade. Salienta-se que a equidade pressuposta pelo modelo ainda não foi completamente atingida e práticas disfuncionais seguem permeando interconsultas no cotidiano das eSF. Assim, a IC4, por um lado, sinaliza que um profissional, ao questionar o outro, de certa forma, testa as competências de seu par, porém, por outro lado, mostra que é notável a busca de muitos profissionais clínicos por romper com a hierarquização.

Entre os resultados obtidos, sublinha-se a comunicação como elementar, permitindo alcançar a gama de benefícios produzidos ao compartilhar o cuidado, associado à valorização dos diferentes saberes. Aumento da resolutividade, diminuição da sobrecarga de trabalho, maior satisfação dos profissionais e humanização do cuidado são ganhos para o serviço decorrentes dessa implementação.

Não obstante, constam limitações no estudo intrínsecas à pesquisa qualitativa, uma vez que os resultados não permitem generalizações. A visão sobre a colaboração interprofissional apresentada pode estar enviesada pelo envolvimento majoritário dos participantes com a residência. Apesar de a técnica escolhida para a coleta de dados restringir o número de participantes, os quatro DS estiveram representados. Além disso, o teste-piloto aplicado apoiou a escolha da técnica, sinalizando sua adequação para atingir o objetivo do estudo e direcionando ajustes necessários à condução do grupo focal com os sujeitos da pesquisa.

Julga-se que o presente estudo contribui para aprofundar a compreensão da interconsulta como prática de cooperação e divisão de tarefas entre MFC e enfermeiros no âmbito da APS, podendo potencializar o acesso e a resolutividade. Quiçá o estudo contribua para o avanço da interprofissionalidade em outros cenários, sobretudo em sistemas públicos de saúde. Ainda, vislumbra-se a possibilidade de a presente pesquisar fornecer arcabouço teórico para melhor delimitar o fenômeno da interconsulta e seus componentes, apontando aspectos positivos e lançando luz sobre deficiências, de modo a abrir a reflexão propulsora do avanço da qualidade do serviço ofertado. Sugerem-se novas investigações sobre a temática, incluindo a perspectiva dos pacientes sobre a interconsulta na APS, a fim de aprimorar esse dispositivo de cuidado.

Titulo

  • (d)
    “The ease and effectiveness with which ‘interprofessionals’ communicate with each other.”
  • (e)
    “Compartilhar” (tradução nossa).

Agradecimentos

À Escola de Saúde Pública de Florianópolis (ESP Floripa); a seus Programas de Residência em Medicina de Família e Comunidade e de Residência Multiprofissional em Saúde da Família; e ao Centro de Saúde Tapera.

  • Pacheco RCP, Hermida PMV, Rodrigues MS. Interconsulta médico-enfermeiro na Atenção Primária à Saúde: discursos do sujeito coletivo. Interface (Botucatu). 2023; 27: e230153 https://doi.org/10.1590/interface.230153

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Editado por

Editor
Tiago Rocha Pinto
Editor associado
Willian Fernandes Luna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2023
  • Aceito
    29 Ago 2023
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