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EDITORIAL

Uma revista acadêmica não pode ser alheia e indiferente a seu tempo. Não pode fazer de conta que não lhe compete, também, criticar os desgovernos, a disseminação do discurso do ódio e o derretimento de valores sociais. Também não tem o direito de calar-se ante a dominação da política pela economia, esta que só se interessa pelos benefícios privados e fere os princípios da democracia. Na falta da democracia, tudo passa a ser permitido. A prática da crítica fundamentada e responsável, respaldada pelo conhecimento e pela ética de agentes educadores, é uma forma autêntica e legítima de fazer política As sociedades humanas não podem submeter-se inertes ao império exclusivo da economia, sempre e quando a economia opera como busca inescrupulosa exclusiva do lucro dos mais poderosos. As sociedades cujo centro e cujo objetivo quase único é o “progresso” econômico a qualquer custo, sempre em favor da concentração de rendas, exacerbam inescrupulosamente as riquezas das classes ricas em detrimento do bem estar humano em geral em suas diversas dimensões. Essas sociedades tendem a ser anêmicas moralmente, indiferentes eticamente e acabam naturalizando as desigualdades e esfarrapando os tecidos da convivência comunitária. São poderosas e influentes pela força do capital, que assegura a hegemonia política, mas frágeis e indiferentes moral e eticamente. Não surpreende nela haver um imparável crescimento de desgovernos, desarmonias, violências, intolerâncias, fome, tragédias naturais, desolação, ruptura dos elos da vida em comum, degeneração da política e, por conseguinte, demolição dos pilares básicos do Estado.

Outra deve ser a perspectiva a vislumbrar um mundo mais civilizado e moralmente mais elevado. A economia autêntica organiza, regula e administra as condições de base da nação, tendo como referência central o conjunto da população que a constrói e lhe dá sentido de existência. Por isso, a economia deve viger como sistema público, em benefício geral e equitativo de toda a população. Na falta dessa concepção, há privilégios, mas não justiça para todos.

Revista acadêmica deve ter compromisso com o social e público. Exercer, portanto, uma tarefa civilizatória. Deve estar comprometida com a formação e a cidadania. Cumprir a missão de cooperar com aquelas instituições, destacadamente a universidade, cujo papel fundamental consiste na orientação crítica a permear as atividades de formação de profissionais-cidadãos capacitados a pensar e contribuir para a melhoria do mundo. Em algum grau, uma revista é um intelectual coletivo e plural, constituído certamente pelo cruzamento de múltiplas racionalidades, divergências, contradições, interesses e tensões, mas sempre intencionados à construção de um mundo humano melhor. As ações dos intelectuais têm alcance limitado e muitas vezes se chocam com outras amplas forças que constituem os sistemas de poder. Mas as ideias têm um grande potencial de força. Os intelectuais, sozinhos, não conseguem mudar o mundo, mas no mundo não há nenhuma mudança importante que possa prescindir dos intelectuais, como assevera Hobsbawm (2013HOBSBAWM, Eric. Tempos Fraturados. Cultura e Sociedade no Século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2013., p. 236).

Ciência que não beneficia o ser humano não tem razão de ser. A pertinência social é um dos requisitos fundamentais da produção e dos usos do conhecimento. Claro que se deve cumprir com profundo denodo a gramática da produção científica, como a pertinência social, o rigor científico e técnico, o apreço pela ética e pela verdade, a obediência às normas que asseguram as bases de uma pesquisa confiável e de um texto correto e bem articulado etc. Aliás, é oportuno observar que o aprofundamento de nossas atuações no mundo e a ampliação da compreensão da realidade em seus múltiplos aspectos guardam uma forte relação dialética com o adequado domínio das normas cultas de comunicação. Não se trata de elitismo o cultivo da norma culta quando empregada apropriada e criteriosamente em situações específicas. Ao contrário, restringir o seu conhecimento a poucos não seria democrático e em nada ajudaria a construção da coesão social.

Não podemos os profissionais da educação, especialmente nas nossas atividades universitárias, abdicar do dever de todo intelectual; principalmente em tempos sombrios como estes. Somos professores e devemos professar compromissos com valores da democracia (hoje tão violentada) e, com o que está no seu cerne: a cidadania participante, crítica, consistentemente fundamentada e orientada à construção de uma sociedade menos bárbara, mais justa e mais humanamente evoluída.

Cidadão é por essência um ser político, um habitante e construtor da “polis”, isto é, da cidade. Alguém que pouco a pouco transcende seu nicho egótico e adentra a “polis”, o social, o comunitário, o convívio com os outros. Exerce, então, um papel político ao inserir-se ativa e construtivamente na vida das comunidades humanas, vale dizer, participando ativamente da cidadania. O indivíduo egoísta não é um cidadão, pois não participa da vida da cidade ampliada, que é a pátria, é a nação, é a sociedade. Nosso ofício de intelectuais críticos e portadores das poderosas armas das ideias, do conhecimento, da palavra e da ação nos impõe rechaçar as conjuras de destruição deliberada da nação, porventura perpetrada com grande impacto pelas políticas de asfixia das instituições de educação, cultura e saúde, pelo entorpecimento da moral e esboroamento da ética em altas instâncias do país.

Todo professor universitário, de todas as áreas de conhecimento, querendo ou não, tem um papel irrecusavelmente político, mas não como aqueles muitos políticos profissionais voltados aos interesses pessoais e ao acúmulo de vantagens alimentadas pelo analfabetismo político de uma grande parcela da sociedade. O exercício político do intelectual requer, além do saber, a garantia da livre crítica e da autonomia. Com responsabilidade pública, mas sem censura de qualquer espécie. Não se lhe admite o pensamento ligeiro, raso e inconsequente. Tampouco são admissíveis opiniões e crenças pessoais, sem fundamento teórico, sem as comprovações do conjunto de exigências técnicas e da confiabilidade dos diversos conteúdos disciplinares. O pensamento crítico se fundamenta em análises da sociedade e dos modos pelos quais estão sendo construídos ou destruídos os processos históricos dos caminhos do homem no mundo.

As análises e as críticas a respeito da vida social das comunidades humanas não eliminam a necessidade da autocrítica dos intelectuais e da admissão da existência de múltiplas racionalidades, com maior ou menor grau de conflitos e contradições. Os atuais e os próximos estágios da civilização estão a exigir cada vez mais conhecimentos científicos e técnicos. Mas o avanço extraordinário da tecnociência, se não vier acompanhado por um sistema de freios e contrafreios, por um pensamento amplo, profundo, analítico-crítico e antibarbárie, arrisca-se a obstruir possibilidades de construção de futuros processos civilizatórios mais dignos, justos e menos sombrios.

Ciência e inovação tecnológica são fundamentais para a sobrevivência da raça humana, mas não podem ser ferramentas de um tipo de “progresso” (cujo conceito é hoje largamente prevalente) que não corresponda ao desenvolvimento da humanidade em sua permanente luta contra a barbárie. Se a ciência e a tecnologia se submetem à escravidão do mercado, elas não desempenham um papel de elevação da moralidade pública. O processo civilizatório é tarefa de todos e exige capacidade e formas de engajamento de toda ordem. Por exemplo, conhecimento, ética, apego à justiça, esforço de superação de desigualdades etc. Porém, só haverá um autêntico processo de humanização da humanidade se democráticas forem as condições de produção, distribuição e uso da ciência e da tecnologia. Na mesma linha de reflexão: a democracia, para ser plena, requer que o conhecimento seja efetivamente um bem público e direito da cidadania.

Esse reconhecimento é importante para nossa reflexão sobre alguns aspectos que ganharam foro de verdades autoevidentes no mundo atual, especialmente presentes no sistema de produção científica e de ensino: competitividade, produtivismo e meritocracia. São palavras cujos significados foram autorreferentemente apropriados pelo mundo do mercado. São expressões que invadiram naturalmente todos os setores da vida humana e se tornaram autoevidentes: não precisariam ser explicadas e não deveriam ser contestadas. Na educação superior, são ícones sacralizados que produzem enormes impactos na gestão e nas atividades pedagógicas e científicas. As instituições educativas, especialmente as de nível superior, estão tendendo a substituir os velhos projetos prioritários que consistiam na formação de cidadãos por objetivos de capacitação de exércitos de competidores e dos novos donos do mundo.

A educação, sendo um bem público, carrega os princípios da solidariedade, e não da competitividade. É includente, não excludente. A rivalidade aética e atroz pertence ao mundo da mais valia. O outro precisaria ser sempre derrotado e inferiorizado. Em caso extremo, rival é o inimigo a ser vencido, quiçá, destruído. A economia de mercado impulsiona a competitividade e dissemina o produtivismo como fatores de progresso e de acúmulo de poder e riquezas materiais. Competitivismo exacerbado e sem preocupação moral produz irreparáveis erosões na vida solidária. Como a educação superior se tornou, em grande parte, serva do mercado, o competitivismo passou a ser, naturalmente, um valor autoevidente. Nas universidades e demais instituições educativas, todos somos obrigados a participar da batalha competitiva, mensurada em geral por critérios prevalentemente quantitaivos de produções e oferecidos sem muito questionamento à determinação dos rankings internacionais, abstratos e donos dos critérios de qualidade, embora essa qualidade quase nunca tenha um caráter social. Essa aliança interessa fundamentalmente às empresas e aos objetivos individualistas. É oportuno lembrar o que dissera Milton Santos, na virada do milênio: “Quando, na universidade, somos solicitados todos os dias a trabalhar para melhorar a produtividade como se fosse algo abstrato e individual, estamos impelidos a oferecer às grandes empresas possibilidades ainda maiores de aumentar sua mais-valia.” (SANTOS, 2.000, p. 31)SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000. . É ainda Milton Santos (2000, p.65) quem adverte: ”Como, frequentemente, a ciência passa a produzir aquilo que interessa ao mercado, e não à humanidade em geral, o progresso técnico e científico não é sempre um progresso moral”.

Não se trata de repelir a competitividade e a produtividade. Grandes méritos pessoais têm aqueles que muito se esforçam para ultrapassar suas limitações. Esses merecem estímulo, reconhecimento e recompensa. O desenvolvimento das sociedades requer proatividade e boas doses de competição entre pessoas e empresas, mas segundo os ditames da ética, da moral e do respeito ao outro. Trata-se de combater o podutivismo e o competivismo erosivos da solidariedade e dos esforços de elevação humana. Essas expressões de sentido mercadológico estão em estreita aliança com a outra verdade autoevidente e largamente proclamada: a meritocracia. Também não se trata de repelir o mérito de quem a ela faz jus pelo esforço, dedicação e uma série de condições e circunstâncias favoráveis. Entretanto, a fábula da meritocracia, tão amplamente diseminada,, muitas vezes mascara as diferenças individuais e de classe. Essa omissão acaba justificando a ausência dos poderes públicos relativamente a políticas de equidade. É como se bastasse somente o esforço individual, sem se levar em conta as diferenças bilógicas, psicossociais, econômicas, culturais, enfim, todas as condições e circunstâncias da existência humana e da vida social. O sucesso ou fracasso seria obra de cada indivíduo. Ora, todos temos que construir nossas vidas, mas não temos nunca os mesmos meios e recursos. “Todos somos condenados à vida de opções, mas nem todos temos os meios de ser optantes” (BAUMAN, 2011BAUMAN, Z. A ética é possível num mundo de consumidores? Rio de Janeiro, Zahar, 2011., p. 94).

Uma revista acadêmica, em seus limites, precisa assumir um papel pedagógico e científico em prol da universidade que nos convém. Em palavras de Mia Couto, a universidade “deve ser um centro de debate, uma fábrica de cidadania activa, uma forja de inquietações solidárias e de rebeldia construtiva” (COUTO, 2011COUTO, M. E se Obama fosse africano? São Paulo, Companhia das Letras, 2011., p.44). Mas, constata ainda Mia Couto (2011, p. 84), infelizmente “perdemos a capacidade de fazermos as perguntas que são importantes. A escola nos ensinou apenas a dar respostas, a vida nos aconselha a que fiquemos quietos e calados”. Uma revista acadêmica deveria preocupar-se com isso e buscar fazer algo, em seus limites, para o reerguimento da universidade crítica, produtiva, socialmente relevante e solidária.

Esta é a edição de número 74. Nestes 21 anos de existência, a revista Avaliação ganhou reconhecimento nacional e internacional (países lusófonos e hispanófonos). Contando com os trabalhos desta edição (salvo algum equívoco no levantamento dos números), 751 textos foram publicados, sendo 118 em espanhol e alguns poucos em inglês, além dos 74 editoriais. O passado não foi nada fácil, o presente é difícil e o futuro será um grande desafio que será vencido com a ajuda de todos os que se disponham a colaborar.

Agradecemos profundamente os articulistas desta 74ª edição pela entrega de seus textos. Certamente, incorporam-se significativamente a todos os outros já publicados e aos que virão no futuro, nessa tarefa abraçada pela revista Avaliação de disseminar e aprofundar as discussões e debates relevantes que fervilham no cotidiano da comunidade universitária. A revista Avaliação, como o fez nesses 21 anos, seguirá esforçando-se por cumprir cada vez melhor os seus objetivos no campo da Avaliação da Educação Superior e, mais amplamente, da temática geral de Educação Superior, Ciência e Tecnologia.

Constrangida pelas condições atuais de publicação e divulgação dos trabalhos científicos, a exemplo de quase todos os periódicos, os textos desta revista, a partir de agora, somente serão disponíveis em meio eletrônico.

Com nossos melhores agradecimentos aos autores, leitores e colaboradores em geral, a revista Avaliação deseja grandes realizações e muitas felicidades neste ano de 2017.

José Dias Sobrinho

Referências

  • BAUMAN, Z. A ética é possível num mundo de consumidores? Rio de Janeiro, Zahar, 2011.
  • COUTO, M. E se Obama fosse africano? São Paulo, Companhia das Letras, 2011.
  • HOBSBAWM, Eric. Tempos Fraturados. Cultura e Sociedade no Século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
  • SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017
Publicação da Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior (RAIES), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade de Sorocaba (UNISO). Rodovia Raposo Tavares, km. 92,5, CEP 18023-000 Sorocaba - São Paulo, Fone: (55 15) 2101-7016 , Fax : (55 15) 2101-7112 - Sorocaba - SP - Brazil
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