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A inter-relação entre transtornos mentais comuns, gênero e velhice: uma reflexão teórica

The interrelationship between common mental disorders, gender and age: a theoretical reflection

Resumo

Introdução

Um dos problemas mais significativos de saúde pública na atualidade é a prevalência de transtornos mentais comuns (TMC) e o uso excessivo de medicamentos psicotrópicos. As mulheres são as que mais sofrem com os TMC e fazem uso de antidepressivos e ansiolíticos.

Objetivo

Desenvolver uma reflexão teórica sobre as inter-relações entre TMC, relações de gênero e velhice, bem como apontar algumas contribuições para a atenção primária à saúde mental.

Método

Foi realizada uma pesquisa de artigos no SciELO e Google Acadêmico. Dos 15 artigos encontrados, foram incluídos 13 sobre a temática e realizada uma análise crítica.

Resultados

Os TMC estão relacionados com as condições de vida e as iniquidades de gênero. Mulheres idosas, ao deixarem de desempenhar papéis sociais para os quais haviam se preparado e por muito tempo desempenharam, experimentam sintomas de TMC. Com a saída dos filhos de casa e as limitações físicas decorrentes do processo de envelhecer, muitas delas se encontram sem outros projetos de vida. Isso contribui para o agravamento dos sintomas.

Conclusão

A atenção primária à saúde precisa incluir discussões sobre velhice e gênero, além de incrementar ações de promoção em saúde mental em suas atividades cotidianas.

Palavras-chave:
transtornos mentais; gênero; envelhecimento; condições de vida; atenção primária à saúde; psicofármacos

Abstract

Background

One of the most significant public health issues today is the prevalence of common mental disorders (CMD) and the overuse of psychotropic drugs. Women are suffering most from the CMD and, consequently, making more use of antidepressants and anti-anxiety drugs.

Objective

This study aims at making some theoretical considerations on the interrelations between CMD, gender relations, and aging.

Method

It is a theoretical reflection. An article search was conducted in SciELO and Google academic. Of the 15 articles found, 13 were included on the subject and a critical analysis was carried out.

Results

It is observed that CMD is related to living conditions and gender inequities. Older women, when they do not play social roles for which they had prepared themselves and which they have long played it, they experience symptoms of CMD. With the departure of children from home and the physical limitations resulting from the aging process, many of them find themselves without other life projects and this fact contributes to the worsening of symptoms.

Conclusion

Primary health care must include discussions of aging, gender and actions to promote mental health in their daily activities.

Keywords:
mental disorders; gender; aging; living conditions; primary health care; psychotropics

INTRODUÇÃO

A ideia de escrever a presente reflexão teórica surgiu a partir de observações realizadas no componente curricular Saúde e Cidadania* * Saúde e Cidadania (SACI) é um componente curricular ministrado a todos os cursos da área de saúde da UFRN. O objetivo é proporcionar o contato dos estudantes com a comunidade e problematizar as questões da atenção primária à saúde. Na Facisa, a turma é formada pelos estudantes dos quatro cursos e subdivididos em pequenos grupos, sendo que cada grupo (com alunos dos diferentes cursos) é orientado por um tutor/docente que fica responsável por uma Unidade Básica de Saúde (UBS). As atividades consistem em visitas domiciliares com a colaboração dos agentes comunitários de saúde, elaboração do mapa social com as principais demandas de saúde observadas e elaboração de um projeto de intervenção de acordo com a demanda da comunidade. (SACI) da Faculdade de Ciências da Saúde do Trairi (Facisa/UFRN), no município de Santa Cruz/RN, e de estudos anteriores sobre o nervosismo no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS) no município de Natal/RN/Brasil11 Medeiros LF. Sofrimento solitário, mal-estar compartilhado: Um estudo sobre a doença dos nervos [dissertação]. PPgPsi/UFRN; 2003.,22 Azevedo LFM. Nervos: rede de discursos e práticas de cuidado na atenção básica no município de Natal/RN. 235 p. [tese]. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2010.. Durante algumas visitas domiciliares realizadas em função da SACI, foram observadas idosas em depressão ou que se diziam deprimidas tomando antidepressivos e/ou ansiolíticos, com outros problemas de saúde, geralmente crônicos, e sem nenhum tipo de acompanhamento a não ser o clínico geral. Embora não tenha sido realizada ainda uma investigação empírica sobre a temática, ficou evidente que muitas mulheres desse contexto tomavam diversos tipos de medicamento, incluindo psicotrópicos. Esse dado aparece em outros estudos e tem sido considerado um problema de saúde pública11 Medeiros LF. Sofrimento solitário, mal-estar compartilhado: Um estudo sobre a doença dos nervos [dissertação]. PPgPsi/UFRN; 2003.

2 Azevedo LFM. Nervos: rede de discursos e práticas de cuidado na atenção básica no município de Natal/RN. 235 p. [tese]. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2010.

3 Langaro F, Pretto Z. Experiências de parentalidade como fatores geradores de sofrimento em mulheres. Fractal. Rev Psicol. 2015;27(2):130-8.

4 Machado LV, Ferreira RR. A indústria farmacêutica e psicanálise diante da “epidemia de depressão”: respostas possíveis. Psicol estud. 2014;19(1):135-44. http://dx.doi.org/10.1590/1413-7372189590013.
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5 Conrad P. The medicalization of society: on the transformation of human conditions into treatable disorders. Baltimore/Maryland: The Johns Hopkins University Press; 2007.
-66 Silveira ML. O nervo cala, o nervo fala: a linguagem da doença. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000. http://dx.doi.org/10.7476/9788575416099.
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.

Muitas mulheres tomam medicamentos em função do nervosismo e da denominada “doença dos nervos”. As queixas de nervos têm sido foco de alguns estudos na tentativa de compreender os significados desse termo para quem sofre desse problema11 Medeiros LF. Sofrimento solitário, mal-estar compartilhado: Um estudo sobre a doença dos nervos [dissertação]. PPgPsi/UFRN; 2003.,22 Azevedo LFM. Nervos: rede de discursos e práticas de cuidado na atenção básica no município de Natal/RN. 235 p. [tese]. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2010.,66 Silveira ML. O nervo cala, o nervo fala: a linguagem da doença. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000. http://dx.doi.org/10.7476/9788575416099.
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. Algumas categorias são utilizadas na literatura especializada para enquadrar esse conjunto de queixas em algum diagnóstico, por exemplo, o termo transtornos mentais comuns (TMC).

Os TMC se referem a queixas polissintomáticas que não conformam um quadro psicopatológico, tal qual consta descrito nos manuais psiquiátricos, como o DSM-IV-TR e a CID-10. Na realidade, as queixas de nervoso não deveriam fazer parte de nenhuma categoria nosológica, visto que são tentativas das pessoas de expressarem um sofrimento advindo das condições de vida e da existência. Se analisadas à luz do paradigma biomédico, não serão compreendidas em sua totalidade.

Contudo, a maioria da população, incluindo aí os próprios queixosos e boa parte dos profissionais de saúde, considera as queixas de sofrimento psicológico e nervoso como sendo um transtorno, uma doença, algo a ser aliviado com medicamentos. Boa parte dessa população procura resolver seu sofrimento por meio de antidepressivos e ansiolíticos pela força que o discurso medicalizador77 Whitaker DCA. Envelhecimento e poder. Campinas: Alínea; 2007. tem sobre toda e qualquer situação de saúde. Isso acontece principalmente no contexto da atenção primária à saúde.

Com o envelhecimento da população brasileira, vários estudos sobre esse período da vida vêm sendo desenvolvidos, tanto no intuito de evidenciar os problemas crônicos de saúde que podem interferir negativamente na qualidade de vida dos idosos77 Whitaker DCA. Envelhecimento e poder. Campinas: Alínea; 2007.,88 Silva PAS, Rocha SV, Santos LB, Santos CA, Amorim CR, Vilela ABA. Prevalência de transtornos mentais comuns e fatores associados entre idosos de um município do Brasil. Cien Saude Colet. 2018;23(2):639-46. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018232.12852016. PMid:29412421.
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quanto em apontar diretrizes para o envelhecer com saúde. Contudo, a literatura sobre o assunto ainda é escassa no que concerne a relacionar estudos de gênero com envelhecimento e suas repercussões na saúde mental.

A partir das experiências no componente curricular SACI e de alguns estudos citados, a presente reflexão teórica busca responder a duas questões: 1) por que há uma maior prevalência de TMC entre as mulheres, incluindo idosas? 2) qual é a relação dos TMC em mulheres idosas com as questões de gênero?

O presente estudo objetiva tecer algumas considerações teóricas sobre as inter-relações entre TMC, relações de gênero e velhice, bem como apontar algumas contribuições para a atenção primária à saúde mental.

MÉTODO

O presente trabalho caracteriza-se como uma reflexão teórica sobre os transtornos mentais comuns e suas inter-relações com o envelhecimento e a temática do gênero. Para essa reflexão ser possível, foi realizado um levantamento de artigos na base de dados do Scientific Electronic Library Online (SciELO) e do Google Acadêmico a partir dos seguintes descritores: 1) envelhecimento e transtornos mentais comuns (TMC); 2) idosas e transtornos mentais comuns (TMC); 3) mulheres e TMC; 4) gênero e TMC; 5) transtorno mental comum. Foram encontrados seis artigos com esses descritores. Dessa maneira, houve a necessidade de ampliar o escopo da pesquisa; assim, buscou-se material no Google Acadêmico com os mesmos descritores. Foram encontrados mais 15 artigos indexados em outras bases de dados.

Foram selecionados 13 artigos dentro desse campo de descritores, dos quais seis eram qualitativos. Só foram incluídos, no presente estudo, os artigos que abordavam diretamente as temáticas de envelhecimento e gênero ou TMC e mulheres. Artigos que contemplavam outras temáticas, como qualidade de vida, atividades físicas ou doenças crônicas, foram excluídos por saírem do escopo do presente trabalho.

Todos os artigos incluídos neste estudo foram publicados entre 2008 e 2018 e se referem a estudos no Brasil. Considera-se importante o período de dez anos da publicação dos artigos para mostrar que os TMC são prevalentes há um tempo significativo no contexto da saúde pública brasileira, mais especificamente na atenção primária à saúde.

O presente estudo apresenta algumas limitações, como o fato de não incluir artigos sobre velhice e doenças crônicas, que normalmente aparecem associadas a sofrimento psicológico e/ou TMC. Também não foram incluídos artigos de outros países por se considerar que os TMC estão permeados por aspectos sociais e culturais que são muito peculiares ao contexto brasileiro.

Para a análise dos artigos, fez-se uma leitura crítica e interpretativa deles, além de escrita própria sobre as reflexões suscitadas com a leitura.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os Transtornos Mentais Comuns (TMC) e as condições de existência

No estudo de Silva e colaboradores88 Silva PAS, Rocha SV, Santos LB, Santos CA, Amorim CR, Vilela ABA. Prevalência de transtornos mentais comuns e fatores associados entre idosos de um município do Brasil. Cien Saude Colet. 2018;23(2):639-46. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018232.12852016. PMid:29412421.
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, a prevalência de TMC na população estudada foi de 55,8%, e entre as mulheres idosas, 66,9%. Esses autores colocam que os idosos e as mulheres de baixa renda são os grupos mais vulneráveis aos TMC. Esses dados apontam para uma alta prevalência de TMC no contexto estudado. Entretanto, outros estudos, alguns mais antigos e outros mais recentes, mostram uma prevalência muito próxima11 Medeiros LF. Sofrimento solitário, mal-estar compartilhado: Um estudo sobre a doença dos nervos [dissertação]. PPgPsi/UFRN; 2003.

2 Azevedo LFM. Nervos: rede de discursos e práticas de cuidado na atenção básica no município de Natal/RN. 235 p. [tese]. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2010.

3 Langaro F, Pretto Z. Experiências de parentalidade como fatores geradores de sofrimento em mulheres. Fractal. Rev Psicol. 2015;27(2):130-8.

4 Machado LV, Ferreira RR. A indústria farmacêutica e psicanálise diante da “epidemia de depressão”: respostas possíveis. Psicol estud. 2014;19(1):135-44. http://dx.doi.org/10.1590/1413-7372189590013.
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5 Conrad P. The medicalization of society: on the transformation of human conditions into treatable disorders. Baltimore/Maryland: The Johns Hopkins University Press; 2007.
-66 Silveira ML. O nervo cala, o nervo fala: a linguagem da doença. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000. http://dx.doi.org/10.7476/9788575416099.
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.

No estudo de Borim, Barros e Botega99 Borim FSA, Barros MBA, Botega NI. Transtorno mental comum na população idosa: pesquisa de base populacional no município de Campinas, São Paulo, Brasil. Cad Saúde Pública. 2013;29(7):1415-1426., as mulheres idosas também aparecem com alto índice de prevalência de TMC. Para esses autores, os fatores que podem contribuir para esse dado em idosos são o aumento das incapacidades e morbidades, os eventos estressantes, o isolamento social e as dificuldades econômicas. Muitos desses idosos com TMC também apresentam doenças crônicas em comorbidade99 Borim FSA, Barros MBA, Botega NI. Transtorno mental comum na população idosa: pesquisa de base populacional no município de Campinas, São Paulo, Brasil. Cad Saúde Pública. 2013;29(7):1415-1426..

Analisando a história de vida das participantes do estudo de Medeiros11 Medeiros LF. Sofrimento solitário, mal-estar compartilhado: Um estudo sobre a doença dos nervos [dissertação]. PPgPsi/UFRN; 2003., observou-se a relação das queixas de nervoso com vários aspectos da vida cotidiana, tais como as privações geradas pelas condições precárias de vida e as preocupações oriundas da falta de perspectivas e da violência comumente presente no contexto de baixa renda. Além disso, ficou claro nos discursos das participantes que o casamento era uma fonte significativa de sofrimento. Nesse sentido, considera-se a hipótese de que o TMC é perpassado pelo gênero, seus papéis sociais e suas iniquidades, além das próprias dificuldades do cotidiano.

Esses dados aparecem em outros estudos que analisaram os TMC em diferentes contextos, como os de Zanello, Fiuza e Costa1010 Zanello V, Fiuza G, Costa HS. Saúde mental e gênero: facetas engendradas do sofrimento psíquico. Fractal: Rev Psicol. 2015;27(3):238-46. e Costa, Dimenstein e Leite1111 Costa MGSG, Dimenstein MD, Leite JF. Condições de vida, gênero e saúde mental entre trabalhadoras rurais assentadas. Estud Psicol. 2014;19(2):89-156.. Para Zanello, Fiuza e Costa1010 Zanello V, Fiuza G, Costa HS. Saúde mental e gênero: facetas engendradas do sofrimento psíquico. Fractal: Rev Psicol. 2015;27(3):238-46., o sofrimento entre as mulheres é construído socialmente e perpassado pela questão do gênero. Isso porque, em sua socialização, a mulher tem de ser calada, recatada e contida, o que pode contribuir para uma espécie de “implosão” emocional expressada sob a forma de sofrimento psíquico e TMC. Já Costa, Dimenstein e Leite1111 Costa MGSG, Dimenstein MD, Leite JF. Condições de vida, gênero e saúde mental entre trabalhadoras rurais assentadas. Estud Psicol. 2014;19(2):89-156. apontam a relação dos TMC com a pobreza, a sobrecarga de trabalho gerada pelo casamento (jornada tripla) e a violência. Esses autores enfatizam as condições de vida como principal geradora de sofrimento psíquico e aludem ao conceito de feminização da pobreza, que significa que as mulheres pobres estão em maior desvantagem social. Fica evidente a questão das relações de gênero e das condições de vida no adoecimento dessas mulheres.

Considerando que muitas dessas mulheres não conseguem uma assistência adequada que realmente contribua para a reflexão sobre suas dificuldades, que promova maior suporte psicossocial e que ajude a diminuir o uso de psicotrópicos, é de se supor que esse sofrimento se cronifique em muitos casos, gerando transtornos psicológicos mais sérios, como a depressão88 Silva PAS, Rocha SV, Santos LB, Santos CA, Amorim CR, Vilela ABA. Prevalência de transtornos mentais comuns e fatores associados entre idosos de um município do Brasil. Cien Saude Colet. 2018;23(2):639-46. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018232.12852016. PMid:29412421.
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,1010 Zanello V, Fiuza G, Costa HS. Saúde mental e gênero: facetas engendradas do sofrimento psíquico. Fractal: Rev Psicol. 2015;27(3):238-46.. Não deixa de ser uma hipótese sugerir que a depressão na velhice, em alguns casos, possa ser fruto desse sofrimento psicológico crônico que geralmente começa no final da adolescência ou no início da vida adulta jovem e que permanece por toda a vida adulta. Alguns estudos apontam justamente essa relação da depressão com a questão do gênero88 Silva PAS, Rocha SV, Santos LB, Santos CA, Amorim CR, Vilela ABA. Prevalência de transtornos mentais comuns e fatores associados entre idosos de um município do Brasil. Cien Saude Colet. 2018;23(2):639-46. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018232.12852016. PMid:29412421.
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,1212 Cunha RV, Bastos GAN, Del Duca GF. Prevalência de depressão e fatores associados em comunidade de baixa renda de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Rev Bras Epidemiol. 2012;15(2):346-54. http://dx.doi.org/10.1590/S1415-790X2012000200012. PMid:22782100.
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13 Molina MRAL, Wiener CD, Branco JC, Jansen K, Souza LDM, Tomasi E, et al. Prevalência de depressão em usuários de unidades de atenção primária. Rev Psiq Clín. 2012;39(6):194-7. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-60832012000600003.
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-1414 Berlezi EM, Balzan A, Cadore BF, Pillatt AP, Winkelmann ER. Histórico de transtornos disfóricos no período reprodutivo e a associação com sintomas sugestivos de depressão na pós-menopausa. Rev Bras Geriatr Gerontol Riso. 2013 jan;16(2):273-83..

As relações de gênero e as iniquidades no âmbito da saúde pública

O gênero é uma categoria bastante estudada nos últimos anos, sobretudo nos campos das ciências sociais e psicológicas. Não diz respeito ao sexo biológico, mas aos papéis sociais e às atribuições esperadas de cada sexo. Ser homem e ser mulher, com todas as características atribuídas a cada um, pode se diferenciar de cultura para cultura. Os processos de socialização e de construção da subjetividade perpassam as construções sociais e culturais sobre o que é ser homem e o que é ser mulher em cada sociedade. Assim, as características atribuídas a cada sexo, em cada contexto sociocultural, permeiam as questões de gênero1515 Haddad G. Amor e fidelidade. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2014..

Na sociedade ocidental, incluindo a brasileira, há resquícios de um modelo de família nuclear e patriarcal que teve seu apogeu em meados do século XIX e primeiras décadas do século XX. Uma das principais características desse tipo de organização familiar são as atribuições e os papéis sociais de cada gênero na sociedade1616 Beauvoir S. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão Européia do Livro; 1960.. Nesse caso, o papel da mulher é muito claro e evidente: ficar em casa, cuidando dos filhos e do marido, sendo o homem o chefe da família e provedor. Essa divisão de papéis e comportamentos socialmente aceitáveis também contribuiu para a naturalização do papel social de cuidadora33 Langaro F, Pretto Z. Experiências de parentalidade como fatores geradores de sofrimento em mulheres. Fractal. Rev Psicol. 2015;27(2):130-8.. Por muitos anos, as mulheres foram socializadas para o exercício do papel de mãe virtuosa, dona de casa prendada e obediente ao marido.

Outras dimensões das questões de gênero são o valor social atribuído ao casamento e a importância da manutenção da coesão familiar. Possivelmente, alguns casamentos foram infelizes, mas necessários para a manutenção do status quo da família. A mulher divorciada foi considerada, por muito tempo, como uma diferente, um pária da sociedade.

O movimento feminista e o próprio processo de modernização contribuem para o questionamento do que vem a ser o feminino e o masculino no mundo ocidental. As mulheres conseguem os mesmos direitos sociopolíticos, e a imagem do homem como provedor e chefe de família começa a perder sua força em função dos novos espaços conquistados pelas mulheres e pela aparente igualdade de condições.

No entanto, por mais que se fale em igualdade de gênero, ainda há resquícios do modelo patriarcal e da ideia de que a esposa deve ser obediente ao seu esposo, paciente com ele e cordata. Um dos dispositivos em que melhor pode se observar a iniquidade entre homens e mulheres é o casamento1515 Haddad G. Amor e fidelidade. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2014.,1616 Beauvoir S. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão Européia do Livro; 1960.. No casamento, a sexualidade feminina, por exemplo, fica restrita ao controle social1515 Haddad G. Amor e fidelidade. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2014.,1616 Beauvoir S. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão Européia do Livro; 1960..

Em primeiro lugar, há o valor dado à virgindade. A mulher que casava virgem era um exemplo de virtuosidade. Em segundo lugar, o casamento moderno pressupõe a fidelidade. Os discursos atuais mantêm o ideal de fidelidade, e a mulher que tem mais de uma relação, seja de que tipo for, é considerada promíscua. O mesmo não acontece com os homens, cuja infidelidade é mais naturalizada e até esperada1515 Haddad G. Amor e fidelidade. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2014..

A perspectiva do amor romântico, que se fortaleceu no século XIX, pressupõe a união de um casal em função do sentimento de amor e de exclusividade. Consequentemente, concordando com Haddad1515 Haddad G. Amor e fidelidade. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2014., a conjugalidade construída dentro desses parâmetros exige a fidelidade como um de seus componentes.

Nesse cenário, a sexualidade feminina fica restrita ao casamento e sua fidelidade é altamente valorizada; terreno fértil para as histéricas que Freud escutou, que denunciavam o desajuste das mulheres tanto em relação ao lugar que lhes era destinado, quanto ao ideal de feminilidade sem chances de ser habitado1515 Haddad G. Amor e fidelidade. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2014. (p. 75).

A sexualidade, portanto, por questões sociais e culturais, fica enquadrada dentro dos padrões de comportamento esperados de uma esposa virtuosa. Como exemplo, há o relato de enfermeiras de uma unidade de saúde da atenção básica, citadas em Azevedo22 Azevedo LFM. Nervos: rede de discursos e práticas de cuidado na atenção básica no município de Natal/RN. 235 p. [tese]. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2010., que fizeram rodas de conversa com mulheres para saber o motivo de não realizarem o preventivo regularmente. Após alguns encontros, as enfermeiras constataram que algumas mulheres tinham vergonha e medo do próprio corpo, outras nunca souberam o que era um orgasmo e outras ainda não se permitiam gozar plenamente o sexo por ser algo sujo e interdito a elas. Nesse contexto, quando há a relação sexual entre os cônjuges, o sexo parece servir apenas para a reprodução.

Para Zanello, Fiuza e Costa1010 Zanello V, Fiuza G, Costa HS. Saúde mental e gênero: facetas engendradas do sofrimento psíquico. Fractal: Rev Psicol. 2015;27(3):238-46., há um ideário que coloca que a verdadeira mulher é recatada em sua sexualidade, mas que deve ser amorosa e cuidadora do outro (principalmente, filhos e marido). Essa experiência pode conduzir a uma vivência permeada pela frigidez e por conflitos existenciais, como coloca Beauvoir1616 Beauvoir S. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão Européia do Livro; 1960.. Como a mulher vai exercer sua sexualidade em um contexto como esse? Muitas delas nem perceberão o que falta em suas vidas. Considerando que o sexo é uma necessidade fisiológica e emocional, a não vivência plena dessa sexualidade pode ter um preço.

Se o casamento é idealizado no sentido de que vai completar a mulher tanto em termos de amor como de sexo, como essa pessoa fica quando constata que a paixão dificilmente sobrevive à rotina do casamento e que o sexo pode vir a degringolar com o tempo? Ou ainda, como fica a mulher que não vive plenamente sua sexualidade?

Para Porto e Bucher-Maluschke1717 Porto M, Bucher-Maluschke JSNF. A permanência de mulheres em situações de violência: considerações de psicólogas. Psicol, Teor Pesqui. 2014;30(3):267-76. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-37722014000300004.
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, mesmo diante dos ideais modernos que valorizam a individualidade e a liberdade, o ideal do amor romântico ainda permanece, sobretudo entre as mulheres. Isso, de alguma forma, estabelece uma tensão entre ideias que se apresentam contraditórias: a completude do amor romântico e a liberdade do individualismo moderno1717 Porto M, Bucher-Maluschke JSNF. A permanência de mulheres em situações de violência: considerações de psicólogas. Psicol, Teor Pesqui. 2014;30(3):267-76. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-37722014000300004.
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.

Haddad1515 Haddad G. Amor e fidelidade. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2014. coloca ainda que as uniões amorosas atuais fazem parte do imaginário com fortes promessas de felicidade, “[...] mas também um lugar de sofrimento patológico quando supõem e exigem que seu fundamento seja o amor” (p. 92).

De acordo com o estudo de Swain1818 Swain TN. (2006). Entre a vida e a morte, o sexo (également em français). [Internet]. Labrys Études Féministes. [cited 2018 Maio 04]. Available from: http://www.intervencoesfeministas.mpbnet.com.br/textos/tania-entre_a_vida_ea_morte.pdf
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, muitas mulheres permanecem em relações permeadas pela violência em função de um ideal de casamento e valores atribuídos à família. “[...] Não é uma questão de gostar ou de ter vontade de apanhar, mas sim realizar um desejo, [...], o desejo de realizar a promessa do amor romântico”1818 Swain TN. (2006). Entre a vida e a morte, o sexo (également em français). [Internet]. Labrys Études Féministes. [cited 2018 Maio 04]. Available from: http://www.intervencoesfeministas.mpbnet.com.br/textos/tania-entre_a_vida_ea_morte.pdf
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(p. 274). Realizar a promessa do amor romântico é também esperar que o cônjuge mude por amor.

A necessidade de ser amada se torna maior que o desamparo de estar sozinha, sem um homem para ampará-la1818 Swain TN. (2006). Entre a vida e a morte, o sexo (également em français). [Internet]. Labrys Études Féministes. [cited 2018 Maio 04]. Available from: http://www.intervencoesfeministas.mpbnet.com.br/textos/tania-entre_a_vida_ea_morte.pdf
http://www.intervencoesfeministas.mpbnet...
. E a constatação de que essa mudança, que é idealizada, não vai acontecer pode ser motivo de muita frustração. Essa frustração, somada a outros determinantes sociais, pode contribuir para o advento de TMC na vida adulta, sua cronificação e possível depressão durante o processo de envelhecimento.

Transtornos Mentais Comuns (TMC) e suas relações com a velhice

Vários estudos apontam a alta prevalência de transtornos mentais comuns (TMC) em mulheres na idade adulta22 Azevedo LFM. Nervos: rede de discursos e práticas de cuidado na atenção básica no município de Natal/RN. 235 p. [tese]. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2010.,1212 Cunha RV, Bastos GAN, Del Duca GF. Prevalência de depressão e fatores associados em comunidade de baixa renda de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Rev Bras Epidemiol. 2012;15(2):346-54. http://dx.doi.org/10.1590/S1415-790X2012000200012. PMid:22782100.
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13 Molina MRAL, Wiener CD, Branco JC, Jansen K, Souza LDM, Tomasi E, et al. Prevalência de depressão em usuários de unidades de atenção primária. Rev Psiq Clín. 2012;39(6):194-7. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-60832012000600003.
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-1414 Berlezi EM, Balzan A, Cadore BF, Pillatt AP, Winkelmann ER. Histórico de transtornos disfóricos no período reprodutivo e a associação com sintomas sugestivos de depressão na pós-menopausa. Rev Bras Geriatr Gerontol Riso. 2013 jan;16(2):273-83.. No estudo de Berlezi et al.1414 Berlezi EM, Balzan A, Cadore BF, Pillatt AP, Winkelmann ER. Histórico de transtornos disfóricos no período reprodutivo e a associação com sintomas sugestivos de depressão na pós-menopausa. Rev Bras Geriatr Gerontol Riso. 2013 jan;16(2):273-83., a maioria das participantes, todas entre 50 e 65 anos, boa parte delas casada, relatou sofrer com nervosismo e vários sintomas de disforia, como tristeza, raiva, irritabilidade, confusão, isolamento social, cansaço e cefaleia. Isso mostra como é alto o índice de sintomas relacionados à depressão no período pós-menopausa1414 Berlezi EM, Balzan A, Cadore BF, Pillatt AP, Winkelmann ER. Histórico de transtornos disfóricos no período reprodutivo e a associação com sintomas sugestivos de depressão na pós-menopausa. Rev Bras Geriatr Gerontol Riso. 2013 jan;16(2):273-83..

No estudo de Brandão e Germando1919 Brandão TO, Germando IMP. Experiência, memória e sofrimento em narrativas autobiográficas de mulheres. Psicol Soc. 2009;21(1):5-15. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822009000100002.
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, boa parte das narrativas das participantes idosas evidencia perspectivas românticas na adolescência, quando consideravam o namorado como representante de uma vida futura. À medida que o tempo foi passando e essas expectativas não se cumpriam, em função das limitações do contexto e das relações de gênero, o companheiro, de herói salvador, passou a ser um antagonista, “[...] justamente quem impede que as metas se concretizem e quem deita a perder as metas familiares conquistadas com esforço”1919 Brandão TO, Germando IMP. Experiência, memória e sofrimento em narrativas autobiográficas de mulheres. Psicol Soc. 2009;21(1):5-15. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822009000100002.
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(p. 12).

Muitas dessas mulheres são dependentes financeiramente, outras sofrem violência e não conseguem sair da situação; algumas relatam o adultério do marido, outras ficam sobrecarregadas com as diferentes atribuições exigidas de uma mulher e outras ainda passam por todas as situações ao mesmo tempo1919 Brandão TO, Germando IMP. Experiência, memória e sofrimento em narrativas autobiográficas de mulheres. Psicol Soc. 2009;21(1):5-15. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822009000100002.
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.

A tudo isso se soma a questão da disciplina dos corpos e do controle dos desejos, como se a mulher não pudesse ter isso para si, usufruir seu corpo como melhor lhe aprouver. As próprias senhoras, participantes do estudo de Brandão e Germando1919 Brandão TO, Germando IMP. Experiência, memória e sofrimento em narrativas autobiográficas de mulheres. Psicol Soc. 2009;21(1):5-15. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822009000100002.
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, referiram precisar envelhecer com comedimento, no sentido de usar roupas adequadas, não namorar (porque isso é “coisa” de jovens) e tomar conta de sua casa.

Fernandes2020 Fernandes MGM. Papéis sociais de gênero na velhice: o olhar de si e do outro. Rev Bras Enferm. 2009;62(5):705-10. observa que as participantes de sua pesquisa, que são idosas, veem-se em um papel de cuidado, cuidadoras da família e de si mesmas. Para a autora, as pessoas que são idosas hoje vivenciaram um modelo mais tradicional em suas relações e nos papéis masculino/feminino no sentido de maior autoridade dos homens sobre as mulheres e os filhos, o que caracteriza uma assimetria relacional2020 Fernandes MGM. Papéis sociais de gênero na velhice: o olhar de si e do outro. Rev Bras Enferm. 2009;62(5):705-10..

A ideia de assimetria relacional fica evidente no caso da senhora deprimida e do marido feliz. Essa situação foi observada em uma das visitas desenvolvidas durante a SACI, em 2015. A senhora em questão, 75 anos, relatou não conseguir andar nem desenvolver suas atividades domésticas em função de sua doença. Embora não houvesse diagnóstico de doenças crônicas, ela tomava antidepressivo todos os dias. Enquanto sua rotina se limitava a ver televisão, seu marido possuía uma mercearia em casa. Ficou evidente o contraste entre os dois: o isolamento social e psicológico da senhora e a vida social ativa do marido. Essa mulher passou a vida dedicada aos filhos e à vida doméstica, enquanto seu marido se dedicou a uma vida pública com a mercearia e os amigos que a frequentavam.

Ao longo de sua vida de casada, essa senhora assumiu a maior parte das tarefas domésticas no âmbito privado, ao passo que o marido teve a oportunidade de viver nos âmbitos público e privado2121 Costa JF. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal; 1999.. Na atualidade, essa senhora continua dentro de casa, mas já sem atividades laborais em função da saída dos filhos e da própria limitação física. A sensação é a de que não há mais nada para fazer. Sua vida não tem mais tanto sentido. A doença provavelmente aparece para expressar isso.

Para Fernandes2020 Fernandes MGM. Papéis sociais de gênero na velhice: o olhar de si e do outro. Rev Bras Enferm. 2009;62(5):705-10., a restrição ao âmbito do privado pode trazer prejuízos biopsicossociais porque diminui o contato com o outro e com o social, além de diminuir as possibilidades de adquirir autonomia e independência financeira. Do ponto de vista sociocultural, essas mulheres provavelmente consideravam como natural essa posição na sociedade, o de ficar em casa cuidando da família. Talvez outras mulheres tenham tido expectativas diferentes, e essa “naturalidade” da família e do casamento pode ter contribuído para um certo ressentimento com relação ao casamento e ao modo de vida a ele relacionado.

No estudo de Brandão e Germando1919 Brandão TO, Germando IMP. Experiência, memória e sofrimento em narrativas autobiográficas de mulheres. Psicol Soc. 2009;21(1):5-15. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822009000100002.
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, aparecem sentidos do feminino nesse contexto sociocultural, apontando para “[...] a vulnerabilidade da mulher, especialmente na relação com os companheiros”1919 Brandão TO, Germando IMP. Experiência, memória e sofrimento em narrativas autobiográficas de mulheres. Psicol Soc. 2009;21(1):5-15. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822009000100002.
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(p. 11). Ao percorrerem as narrativas das participantes, as autoras analisam o sofrimento dessas mulheres cujo companheiro teve um papel ativo nesse processo.

Sendo assim, a mulher casa com os ideais do amor romântico, com o sonho de ter uma família e uma casa para cuidar. Como esses ideais não se realizam completamente – por uma série de motivos, sobretudo em virtude das assimetrias de gênero –, muitas delas chegam à velhice sem outros projetos de vida. Os filhos provavelmente saíram de casa, o envelhecimento dificulta a realização das tarefas domésticas tal como faziam outrora e, mais sutilmente, pode haver uma frustração emocional em função daquilo que não se realizou1616 Beauvoir S. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão Européia do Livro; 1960..

Se essa mulher já sofria com os sintomas dos TMC na vida adulta, em função das relações de gênero e das condições de vida, e não foram devidamente cuidados, a tendência é que, no processo de envelhecimento, tais sintomas possam se agravar com a presença de doenças crônicas99 Borim FSA, Barros MBA, Botega NI. Transtorno mental comum na população idosa: pesquisa de base populacional no município de Campinas, São Paulo, Brasil. Cad Saúde Pública. 2013;29(7):1415-1426..

O estudo de Brandão e Germando1919 Brandão TO, Germando IMP. Experiência, memória e sofrimento em narrativas autobiográficas de mulheres. Psicol Soc. 2009;21(1):5-15. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822009000100002.
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, que analisa as narrativas de mulheres idosas, resume bem a questão das relações de gênero e seu enredamento com o nervosismo e o sofrimento psicológico:

Diante de experiências diferentes de dor – do casamento, dos filhos, da pobreza, das limitadas perspectivas – o vocábulo “sofrer” e seus derivados dominam todas as narrativas, conferindo um aspecto doloroso ao conjunto das histórias1919 Brandão TO, Germando IMP. Experiência, memória e sofrimento em narrativas autobiográficas de mulheres. Psicol Soc. 2009;21(1):5-15. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822009000100002.
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(p. 13).

São essas mulheres que vão chegar à velhice fazendo uso indiscriminado e constante dos medicamentos psicotrópicos, sobretudo calmantes. Mendonça, Carvalho, Vieira e Adorno2222 Mendonça RT, Carvalho ACD, Vieira EM, Adorno RCF. Medicalização de mulheres idosas e interação com consumo de calmantes. Saúde Soc. 2008;17(2):95-106. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902008000200010.
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consideram que o intenso uso de medicamentos pelos idosos pode ser um mecanismo de defesa mediante o processo do envelhecimento, uma tentativa de permanecer ativo e útil, características bastante valorizadas pela sociedade. No caso da mulher, o calmante pode ser visto como uma garantia de que ela vai funcionar bem, não vai sentir fraqueza e não vai deixar de cumprir suas obrigações. A automedicação também pode contribuir para um sentimento de autonomia da pessoa, por poder decidir como e em que momento vai tomar a medicação2222 Mendonça RT, Carvalho ACD, Vieira EM, Adorno RCF. Medicalização de mulheres idosas e interação com consumo de calmantes. Saúde Soc. 2008;17(2):95-106. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902008000200010.
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. Contudo, nos idosos, o uso de calmantes pode ter efeitos indesejados e contribuir para a invisibilidade de certas doenças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desta reflexão teórica foi tecer algumas considerações sobre a inter-relação entre TMC, questões de gênero e velhice. Nessa perspectiva, discutiu-se que os ideais do casamento e do amor romântico a ele associados ainda são hegemônicos na sociedade brasileira. Muitas mulheres buscam no casamento a realização de um projeto existencial que inclui a vida doméstica e o cuidado com os filhos.

Contudo, o casamento, da maneira como é engendrado na sociedade, normalmente coloca a mulher em uma posição mais subordinada e com restrições à sua sexualidade. Os TMC aparecem justamente nesse período em que são exercidos os diferentes papéis sociais atribuídos à mulher. São tarefas difíceis e nem sempre reconhecidas socialmente.

A ausência ou a precariedade de cuidados em saúde mental contribuem para a cronificação do problema, e, consequentemente, muitas mulheres envelhecem sem maiores perspectivas, cada vez mais depressivas e/ou ansiosas, que pioram com a presença de outras doenças crônicas, como hipertensão e diabetes11 Medeiros LF. Sofrimento solitário, mal-estar compartilhado: Um estudo sobre a doença dos nervos [dissertação]. PPgPsi/UFRN; 2003.. Sendo assim, as idosas geralmente apresentam dores generalizadas e começam a apresentar algumas disfuncionalidades em função do processo do envelhecer. Contudo, esses sintomas somáticos podem ser mais graves naquelas que possuem quadros de TMC.

Os estudos analisados neste trabalho apontam, em geral, para a questão de gênero presente nos TMC, mas não fazem essa relação com o processo de envelhecimento.

As ações de saúde mental na atenção primária, bem como outras ações de saúde coletiva, devem ter “[...] 7uma compreensão ampliada do sujeito e a busca pelo desenvolvimento de estratégias pessoais e coletivas”33 Langaro F, Pretto Z. Experiências de parentalidade como fatores geradores de sofrimento em mulheres. Fractal. Rev Psicol. 2015;27(2):130-8. (p. 134). Essas estratégias devem considerar as especificidades de cada grupo e os seus interesses. Além disso, os profissionais de saúde podem buscar maior parceria com as universidades no sentido de participar de projetos de extensão que normalmente são voltados para a comunidade.

Merighi et al.2323 Merigui MAB, Oliveira DM, Jesus MCR, Souto RQ, Thamada AA. Mulheres idosas: desvelando suas vivências e necessidades de cuidado. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(2):408-14. http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342013000200019. PMid:23743908.
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e também Borim et al.99 Borim FSA, Barros MBA, Botega NI. Transtorno mental comum na população idosa: pesquisa de base populacional no município de Campinas, São Paulo, Brasil. Cad Saúde Pública. 2013;29(7):1415-1426. colocam ainda a importância da atividade física e do lazer como fatores protetivos aos TMC. As equipes de saúde que trabalham no contexto da atenção primária podem incluir em suas ações de promoção de saúde atividades de lazer que sejam do interesse das mulheres. Também podem convidar educadores físicos do Núcleo de Atenção à Saúde da Família (NASF) para promover programas de atividades físicas, sobretudo para idosas.

Realizar discussões do gênero e rodas de conversa que abordem essas temáticas e a problemática da medicalização também é um passo importante para o estabelecimento de vínculos com a comunidade e posterior desenvolvimento de ações de promoção em saúde mental.

Por fim, a alta prevalência de TMC em mulheres aponta para um processo de envelhecimento mais desafiador, uma vez que já passaram boa parte da vida adulta sobrecarregadas, com pouco acesso ao lazer e ainda com dificuldades econômicas. Além das doenças crônicas e das disfuncionalidades que podem vir com o processo do envelhecer, essas mulheres ainda sofrem com toda uma vida de dificuldades advindas das questões de gênero.

  • *
    Saúde e Cidadania (SACI) é um componente curricular ministrado a todos os cursos da área de saúde da UFRN. O objetivo é proporcionar o contato dos estudantes com a comunidade e problematizar as questões da atenção primária à saúde. Na Facisa, a turma é formada pelos estudantes dos quatro cursos e subdivididos em pequenos grupos, sendo que cada grupo (com alunos dos diferentes cursos) é orientado por um tutor/docente que fica responsável por uma Unidade Básica de Saúde (UBS). As atividades consistem em visitas domiciliares com a colaboração dos agentes comunitários de saúde, elaboração do mapa social com as principais demandas de saúde observadas e elaboração de um projeto de intervenção de acordo com a demanda da comunidade.
  • Trabalho realizado na Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) – Santa Cruz (RN), Brasil.
  • Fonte de financiamento: Proext/UFRN.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2017
  • Aceito
    03 Abr 2019
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