Propriedade intelectual do soro antiofídico: a efetividade a partir da correlação entre os investimentos do governo federal nos principais institutos responsáveis pela produção do soro e realização de pesquisas para o tratamento de acidentes ofídicos no brasil, com relação ao número de vítimas fatais dos acidentes

Intellectual property of antiophidic serum: the effectiveness from the correlation between federal government investments in the main institutes responsible for the production of serum and conducting researches for the treatment of official accidents in Brazil, with regard to the accident of disease acts

Resumo

Introdução

O envenenamento por picada de serpentes é um latente problema de saúde pública em nível global. Neste contexto, o Brasil se apresenta como referência mundial no tratamento deste tipo de acidente. É importante destacar que o tratamento de acidentes ofídicos no país foi evidenciado a partir dos estudos do sanitarista Vital Brazil, que patenteou o tratamento e doou para o Estado brasileiro. Mas, qual o impacto este ato gerou para a sociedade, já que a gestão da patente se tornou obrigação do Estado?

Objetivo

A partir de uma análise da evolução do tratamento do ofidismo, verificar a correlação entre os investimentos do Governo Federal nos principais institutos responsáveis pela produção do soro e realização de pesquisas para o tratamento de acidentes ofídicos no Brasil, com relação ao número de vítimas fatais dos acidentes.

Método

Realizou-se uma análise de correlação estatística, tendo como base acidentes e óbitos decorrentes dos acidentes ofídicos e os investimentos do governo nos principais institutos produtores de soros antipeçonhentos, no período de 1998 a 2017.

Resultados

Os resultados mostraram que há uma franca evolução no número de acidentes decorrentes dos acidentes ofídicos no Brasil entre 1998 e 2017.

Conclusão

Existe correlação positiva entre os investimentos do Governo Federal nos principais institutos responsáveis pela produção do soro e realização de pesquisas para o tratamento de acidentes ofídicos no Brasil, com relação ao número de vítimas fatais dos acidentes.

Palavras-chave:
efetividade; investimento; controle; acidentes ofídicos

Abstract

Background

Snakebite poisoning is a latent global public health problem. In this context, Brazil is a world reference in the treatment of this type of accident. It is important to highlight that the treatment of ophidian accidents in the country was evidenced by the studies of the sanitary veterinarian Vital Brazil, who patented the treatment and donated to the Brazilian state. But what impact did this act have on society since patent management became a state obligation?

Objective

Based on an analysis of the evolution of the treatment of ophidism, we aimed to verify the correlation between the investments of the Federal Government in the main institutes responsible for the production of serum and researching the treatment of ophidian accidents in Brazil, number of fatal accident victims.

Method

A statistical correlation analysis was performed based on accidents and deaths resulting from ophidian accidents and government investments in the main institutes producing anti-blind sera from 1998 to 2017.

Results

The results showed that there is a clear evolution in the number of accidents resulting from ophidian accidents in Brazil.

Conclusion

there is a positive correlation between the investments of the Brazilian government to control the mortality resulting from these accidents.

Keywords:
effectiveness; investment; control; ophidian accidents

INTRODUÇÃO

O envenenamento por picada de serpente, embora em grande parte negligenciado, trata-se de um problema de saúde pública de relevância global, principalmente considerando as populações empobrecidas de áreas rurais da África, Ásia, América Latina e partes da Oceania. Apesar de existir uma imprecisão nas informações sobre a mortalidade e o envenenamento de quem sofre um acidente ofídico, a estimativa é de que 1,2 a 5,5 milhões de pessoas sofram envenenamentos ofídicos por ano, com 25.000 a 125.000 mortes, e um número estimado de 400.000 vítimas¹.

De acordo com o Ministério da Saúde, o ofidismo, ou acidente ofídico, ocorre quando uma serpente consegue injetar o conteúdo de suas glândulas venenosas em um ser humano. Neste contexto, o Brasil apresenta duas situações: na primeira, possui um aumento substancial no número de acidentes ofídicos; em outro ponto, é uma referência no tratamento destes acidentes².

O Brasil iniciou sua trajetória no tratamento dos acidentes ofídicos a partir das pesquisas do sanitarista Vital Brazil, que descobriu a especificidade da aplicação do tratamento em cada acidente. Todavia, o ponto crucial ocorreu a partir do momento em que Vital Brazil doou a patente de sua descoberta ao Estado brasileiro. Tal ação possibilitou o acesso da população ao tratamento do acidente, fato que não ocorre em outros países, além de tornar a oferta do soro como política pública³. Mas, o que aconteceria se a doação da patente não ocorresse?

Sabe-se que quando um produto ou processo é patenteado, automaticamente concede-se o direito de exclusividade ao criador para explorar comercialmente o que foi criado⁴. Entretanto, apesar da evidente importância da aquisição da propriedade intelectual⁵, um dos questionamentos existentes sobre o direito à propriedade centra-se sobre a sua função social. Isso significa que existem grandes divergências na relação entre a propriedade intelectual privada e a função pública, principalmente no que diz respeito à proteção da vida dos indivíduos⁶.

No caso da patente do soro ofídico no Brasil, o ato de doar a patente fez do processo patenteado um bem público. Isso significa que os indivíduos podem usufruir sem prejudicar o consumo dos demais⁷. Assim, o Estado brasileiro tornou-se responsável pelo fornecimento do soro ao público que necessita. A partir das informações apresentadas, faz-se o seguinte questionamento: entre os investimentos do Governo Federal nos principais institutos responsáveis pela produção do soro e realização de pesquisas para o tratamento de acidentes ofídicos no Brasil, com relação ao número de vítimas fatais dos acidentes? Neste sentido, o objetivo deste artigo é analisar a correlação entre a evolução do tratamento dos acidentes ofídicos e os investimentos governamentais nos principais institutos responsáveis pela produção do soro para o tratamento de acidentes ofídicos no Brasil.

A PROPRIEDADE INTELECTUAL E A SUA FUNÇÃO SOCIAL

Propriedade intelectual, segundo a Convenção da OMPI⁸, se resume aos direitos que um autor ou inventor possui com relação ao que é produzido. Basicamente, uma pessoa que cria algo pode explorá-la e, assim, adquirir benefícios a partir da sua exploração. A legislação brasileira sobre propriedade intelectual está centrada no artigo 5º da Constituição Federal de 1988² e, principalmente, na Lei 9.279, de 14 de maio de 1996, que regula direitos e obrigações relativos à Propriedade Industrial⁹.

Apesar da evidente importância da aquisição da propriedade intelectual⁵, um dos questionamentos existentes sobre o direito à propriedade centra-se sobre a sua função social. Neste caso, a relação entre a propriedade intelectual privada e a função pública se configura como uma grande divergência de ideias, principalmente no que diz respeito à proteção a vida dos indivíduos⁶.

Segundo Burk¹⁰, a partir do momento em que se concede a propriedade intelectual ao inventor, são agregados ao invento os custos sociais. Os custos sociais podem estar associados à limitação do acesso da população ao invento, que pode ser de interesse da sociedade¹⁰. Isso significa que o titular de uma determinada patente, por possuir direitos exclusivos sobre a criação, pode se envolver em práticas desleais que vão do “empilhamento” da patente a fim de extrair os royalties da criação de forma excessiva¹¹, até, e consequentemente, gerar o custo social.

Um exemplo de custo social que pode ser destacado refere-se à vulnerabilidade que países em desenvolvimento possuem com relação ao acesso a medicamentos protegidos por patentes, geralmente fornecidos por empresas estrangeiras. Neste caso, a possível solução seria negociar uma redução de preço com o detentor da patente para que não haja a necessidade da emissão de uma licença compulsória⁴.

Geiger¹² destaca que, em alguns casos, a mera ameaça do licenciamento compulsório sobre a utilização de um direito de propriedade intelectual concedido pode ser suficiente para desencorajar um concorrente de lançar uma atividade inovadora. Por outro lado, o autor destaca que a proteção também pode desestimular o desenvolvimento de uma inovação, pois, por decorrência do monopólio concedido, não existirá concorrência.

O caso estudado refere-se à patente do soro para tratamento dos acidentes ofídicos, cuja patente foi doada voluntariamente para o Estado brasileiro. Por consequência, possibilitou que várias pessoas tivessem acesso, além de salvar várias vidas há mais de 100 anos¹³. Neste contexto, a doação da patente gerou quais consequências para o tratamento de acidentes ofídicos no Brasil? Como o tratamento desses acidentes ocorre em outros países?

EVOLUÇÃO E MORTALIDADE NOS ACIDENTES OFÍDICOS NO MUNDO

Segundo Kasturiratne et al.¹⁴, cerca de 20% das mais de 3 mil espécies de serpentes existentes no mundo são venenosas. O veneno dessas serpentes possui diferentes funcionalidades, desde imobilizar suas presas, até mecanismos de autodefesa^1,8,15,16. Apesar do reconhecimento da importância em se estudar os acidentes ofídicos^17,18, existe uma limitação no fornecimento de informações sobre acidentes e mortalidade em todo o mundo¹⁹.

A pesquisa de Kasturiratne et al.¹⁴ mostrou dados estimados sobre o número de acidentes e mortalidades ocasionados por acidentes ofídicos. No estudo, a Índia figura como ao país com o maior número de acidentes, cerca de 81 mil/ano. As estimativas também apresentam o Sri Lanka (33.000), Vietnã (30.000), México (28.000) e Nepal (20.000) como os países com maior incidência de acidentes. Em 2018, o Brasil registrou mais de 221 mil acidentes ofídicos²⁰.

Dos cinco países em questão, só Índia, Brasil e Sri Lanka apresentam informações seguras a respeito do número de mortes. Entretanto, é evidente que os dados sobre o número de acidentes e mortalidade dos acidentes ofídicos devem ser questionados constantemente, pois cada país possui uma particularidade com relação à coleta e disponibilização de informações, além da metodologia adotada por alguns autores, principalmente as pesquisas relacionadas ao Brasil²¹.

O TRATAMENTO DOS ACIDENTES OFÍDICOS A PARTIR DOS ESTUDOS DE VITAL BRAZIL

O sanitarista Vital Brazil iniciou sua trajetória no tratamento contra o ofidismo tentando descobrir a ineficiência das substâncias aplicadas contra o envenenamento. Todavia, teve que vencer uma fobia de cobras para realizar a extração do veneno. As cobras eram compradas de produtores rurais. Mas, para dar continuidade aos estudos, precisou retornar à capital paulista³.

De acordo com Bochner²¹, no ano de 1898 Vital Brazil identificou que a eficácia dos soros antipeçonhentos estava relacionada à especificidade do veneno utilizado na produção do antídoto e de acordo com o gênero das serpentes. Inicialmente, a eficácia foi constatada a partir da imunização cães infectados com veneno de cascavel e jararaca.

Em 1911, foi lançado o livro intitulado “A defesa contra o ophidismo”, que representa um marco na apresentação de dados relativos aos acidentes, mortalidade, gastos com recursos financeiros e humanos no tratamento de pessoas²¹. Já no ano de 1917, o então Presidente da República brasileira, Venceslau Brás, concedeu a patente do soro ofídico a Vital Brazil pelo prazo de 15 anos. Entretanto, assim que recebeu o registro da patente, o sanitarista doou a propriedade para o Estado brasileiro, por se preocupar com o desenvolvimento da saúde pública¹.

O ineditismo da descoberta da especificidade do soro ofídico realizado por Vital Brazil consolidou-se como o principal meio para o tratamento de acidentes por picada de cobra. Agregando a esta descoberta, a doação da patente ao Estado brasileiro possibilitou que várias pessoas fossem salvas e, principalmente, tivessem acesso de forma gratuita ao soro, algo que não ocorre em muitos países onde o soro não é gratuito²¹.

É importante destacar que o Governo Federal, por meio do Ministério da Saúde, só se responsabilizou em tratar e quantificar os acidentados a partir de 1985, quando ocorreu a “crise do soro” no Brasil²². Em decorrência da “crise do soro”, foi iniciado o controle dos acidentes por meio do Programa Nacional de Ofidismo, que resultou no Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas – SINITOX¹³.

No Portal da Transparência do Governo Federal e no Fundo Nacional da Saúde é possível visualizar que, entre 1998 e 2018, os Institutos Vital Brazil (IVB), Butantan (IB) e a Fundação Ezequiel Dias (FUNED) receberam mais de R$ 9 bilhões em recursos direcionados para o desenvolvimento de pesquisas e insumos para controle de doenças²³. Na figura 1 a seguir, é possível visualizar a evolução dos investimentos nas três referidas instituições:

Figura 1
Investimentos do Governo Federal nos Institutos Vital Brazil (IVB), Butantan (IB) e Fundação Ezequiel Dias (FUNED)

É notória a importância da doação da patente para que houvesse o desenvolvimento no atendimento e mapeamento dos acidentes ofídicos no Brasil^1,3,24. Mas, o que poderia ocorrer se a patente não fosse doada? A ação contrária poderia acarretar na exploração comercial do soro. Outra consequência seria a restrição na coleta e divulgação das informações, algo comum em outros países²⁵. Neste contexto, é importante avaliar quais consequências a doação da patente gerou para o tratamento de acidentes ofídicos no Brasil.

EVOLUÇÃO DOS ACIDENTES E DA MORTALIDADE NOS ACIDENTES OFÍDICOS NO BRASIL

De acordo com o Ministério da Saúde^20,24, a maioria dos acidentes ofídicos registrados no Brasil, independentemente de a serpente ser venenosa ou não, leva a algum tipo de efeito local. Neste sentido, o diagnóstico do tipo de envenenamento é baseado em critérios clínicos (sinais e sintomas).

O Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN)²⁰, do Ministério da Saúde, apresenta informações de acidentes ofídicos com serpentes de acordo com seus tipos e quantidades. No SINAN²⁰, são encontradas informações de acidentes ofídicos com as espécies Bothrops, Crotalus, Micrurus, Lachesis e Não Peçonhentas.

As serpentes da espécie Bothrops também são conhecidas como jararacas, cotiaras e urutus²⁶. As serpentes desta espécie apresentam grande variação em tamanho (as menores não ultrapassando setenta centímetros e as maiores atingindo cerca de dois metros de comprimento)²⁷. De acordo com as informações do SINAN²⁰, são as que revelam a maioria dos acidentes no país. Desde o início das notificações do sistema, aproximadamente 82% dos acidentes ofídicos ocorrem com serpentes da referida espécie (acidente Botrópico). A região da Amazônia é a que indica maior incidência de acidentes com as espécies Bothrops²⁸.

Já as espécies do tipo Crotalus são popularmente conhecida como cascavel. O gênero Crotalus tem uma ampla distribuição geográfica, e os acidentes ofídicos com esta espécie (acidente Crotálico) são responsáveis por fatalidades associadas à insuficiência renal⁵. De acordo com as informações do SINAN²⁰, o total de acidentes com esse tipo de espécie foi acima de 9%, segundo levantamento realizado no ano de 2017, e acima de 8% considerando todo o período de informações que constam no sistema.

De acordo com Serafim et al.²⁹, a serpente do gênero Micrurus, conhecida popularmente como cobra coral, possui 22 diferentes tipos de espécies no Brasil, com reconhecido padrão de distribuição de arcos pretos pelo corpo da serpente. Esta espécie apresenta a menor quantidade de incidência de acidentes (acidente Elapídico), inferior a 1%, de acordo com dados do SINAN²⁰.

Por fim, as serpentes da espécie Lachesis muta, também conhecidas como surucucus, surucutinga, surucucutinga, surucucu-de-fogo, surucucu-pico-de-jaca e cobra-topete, são as maiores da América Latina, podendo atingir até 3,5 metros⁵. No Brasil, os acidentes com este tipo de serpente representam pouco mais que 3%²⁰.

Com relação aos acidentes ofídicos, no Quadro 1 a seguir é possível visualizar informações relacionadas ao tipo de acidente, gravidade do acidente com sua respectiva caracterização e a quantidade de ampolas de soro antiofídico utilizada em cada um dos tratamentos:

Quadro 1
Indicativo para o tratamento de acidentes ofídicos

Acidente	Gravidade	Gravidade	Número de Ampolas
Botrópico	Leve	Quadro local discreto, sangramento discreto em pelo ou mucosas; pode haver apenas distúrbio na coagulação.	2 a 4
	Moderado	Edema e equimose evidentes, sangramento sem comprometimento do estado geral; pode haver distúrbio na coagulação.	4 a 8
	Grave	Alterações locais intensas, hemorragia grave, hipotensão/choque, insuficiência renal, anúria; pode haver distúrbio na coagulação.	12
Crotálico	Leve	Alterações neuroparalíticas discretas; sem mialgia, escurecimento da urina ou oligúria.	5
	Moderado	Alterações neuroparalíticas evidentes; mialgia e miglobinúria (urina escura) discretas.	10
	Grave	Alterações neuroparalíticas evidentes; mialgia e miglobinúria intensas, oligúria.	20
Elapídico	Todos	Considerar todos os casos como potencialmente graves pelo risco de insuficiência respiratória.	10
Laquético	Moderado	Quadro local presente; pode haver sangramento, sem manifestações vagais.	10
	Grave	Quadro local intenso, hemorragia intensa, com manifestações vagais.	20

• Fonte: Adaptado de Brasil24.

Outras consequências dos acidentes ofídicos foram apontadas no estudo de Sachett et al.³⁰, que destacaram outras consequências dos acidentes ofídicos, como: perda permanente de funções e incapacidades, principalmente causadas por infecções bacterianas.

De acordo com Salomão et al.¹⁹, apesar dos avanços nos diagnósticos dos acidentes ofídicos, o Brasil carece de um banco de dados mais robusto que permita uma distribuição do soro em tempo seguro para o atendimento de qualidade. É importante destacar que o estudo de Mise et al.¹ analisou 144.251 casos de picada de cobra no Brasil entre 2007 e 2015, constantes no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN)²⁰. O estudo confirmou que o lapso entre a picada de cobra e o início da atenção médica está associado à gravidade do acidente ofídico. Na figura 2 a seguir, são destacadas informações sobre o número de acidentes com animais peçonhentos de 1985 a 2017:

Figura 2
Número de acidentes com animais peçonhentos no Brasil de 1985 a 2017

É possível visualizar na figura anterior a evolução no número de acidentes a partir do ano de 1986. Desde 1999 ao ano de 2017, foi constante a evolução no número de acidentes com animais peçonhentos no Brasil, atingindo a marca superior a 221 mil acidentes em 2017. Na figura 3 a seguir, pode ser visualizada a evolução dos acidentes ofídicos no Brasil:

Figura 3
Número de acidentes ofídicos no Brasil de 1985 a 2017

De acordo com Bochner²¹, um dos principais fatores no número elevado de acidentados no Brasil está associado ao avanço no desmatamento, o que resulta no desalojamento destes animais e, consequentemente, na migração para os espaços habitados pelo homem. Uma informação importante destacada no estudo de Mise et al.³¹: o tempo médio de atendimento a acidentes ofídicos deve ser inferior a 6 horas. Neste sentido, é apresentada na figura 4 a seguir a evolução dos atendimentos abaixo de 6 horas.

Figura 4
Comparação do tempo de atendimentos de acidentes ofídicos no Brasil

É possível perceber na figura anterior que houve substancial evolução no número de pessoas atendidas com o tempo considerado ideal, conforme exposto no estudo de Mise et al.³¹.

Com relação à mortalidade proveniente desses acidentes, apesar da evidente evolução, manteve-se controlada durante o período. Na figura 5 a seguir, são apresentadas informações relacionadas à mortalidade proveniente de acidentes ofídicos no Brasil no período de 1979 a 2017:

Figura 5
Número de óbitos provenientes de acidentes ofídicos no Brasil de 1979 a 2017

É importante destacar que houve uma crise do soro no Brasil a partir da década de 1970 até o ano de 1986³. A falta generalizada na disponibilização se deu devido à oferta ser regulada pelo mercado. Isso significa que as empresas privadas que forneciam os soros controlavam a oferta que era adquirida pela Central de Medicamentos do Ministério da Saúde. Em 1983, a crise avançou com a saída de um dos laboratórios produtores por causa de problemas na produção, o que ocasionou a paralisação de grande parte da produção. Após a morte do filho de um diplomata, no ano de 1986, institucionalizou-se a “crise do soro” no Brasil¹³. A partir deste incidente, o Ministério da Saúde reestruturou o sistema de suprimento de soros com a criação do Programa Nacional de Ofidismo e a notificação dos acidentes por meio do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN)²⁰. Neste sentido, é importante avaliar como essa intervenção direta do Governo Federal, por meio do Ministério da Saúde, foi importante para a efetividade do tratamento de acidentes ofídicos no Brasil.

MÉTODO

A pesquisa em questão pode ser classificada como exploratória e descritiva³². É exploratória no sentido de que visa à coleta de informações relacionada à história do tratamento dos acidentes ofídicos por meio da busca de informações históricas e dados sobre investimentos governamentais e número de pessoas acidentadas, tempo de atendimento e a mortalidade de indivíduos. Este estudo também possui caráter dedutivo³² e quantitativo³³.

No primeiro momento, foram coletadas informações sobre o quantitativo de acidentes, tempo de atendimento e óbitos decorrentes de acidentes ofídicos. A fonte das informações sobre acidentes e mortes estão disponíveis no portal do Ministério da Saúde do Governo Federal do período de 1975 a 2017. Já a segunda fonte de dados está relacionada aos investimentos nos três principais institutos brasileiros responsáveis por pesquisas e produção de soros: os Institutos Vital Brazil e Butantan, além da Fundação Ezequiel Dias (FUNED). Tentou-se coletar informações sobre o Centro de Pesquisa e Produção de Imunobiológicos (CPPI). Entretanto, não foi possível.

Os dados sobre os investimentos realizados nas instituições em questão estão disponíveis no Portal da Transparência e no Fundo Nacional da Saúde, que corresponde ao período de 1998 a 2017.

Pelo fato de as informações corresponderem a períodos distintos, estabeleceu-se o período de 1998 a 2017 para a análise. Na análise, foi utilizado o Excel para o tratamento das informações e realização de correlação e regressão linear simples, relacionando as informações anteriormente apresentadas. Para o teste de hipótese, foi utilizada uma tabela de distribuição t de Student, considerando o intervalo de confiança de 95% e as vinte unidades relativas ao período considerado.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O primeiro teste realizado comparou os investimentos do Governo Federal nas três principais instituições produtoras de soro para acidentes ofídicos e a proporção de óbitos provenientes de acidentes ofídicos. A finalidade foi verificar se existe relação entre os investimentos e a evolução das mortalidades por proporção de acidentes. Após a coleta de informações nas duas plataformas do Governo Federal, foram consideradas as seguintes informações:

1. a

   20 elementos (n), referentes aos acidentados (de 1998 a 2017) e investimentos do Governo Federal (de 1998 a 2017);

2. b

   α = 0,05, grau de confiança a 95%;

3. c

   coeficiente de correlação entre as duas variáveis (r) no seguinte caso:

• Acidentes x óbitos: r = - 0,46

1. d

   valor da estatística calculada (Zc):

• Acidentes x óbitos: - 2,19

1. e

   Valor da estatística tabelada de Distribuição t de Student o Zt = ± 2,086.

É possível perceber que o valor da estatística calculada (Zc) está fora do intervalo fornecido pela tabela de Distribuição t de Student. Isso significa que a hipótese de nulidade da relação está descartada. Assim, a correlação é válida.

A seguir, é possível visualizar a tabela da estatística de regressão da relação entre os investimentos do Governo federal nos três principais institutos produtores de soro para acidentes ofídicos no Brasil e a proporção entre o número de acidentados x óbitos (Tabela 1).

Tabela 1
Estatística de Regressão

Estatística de regressão
R múltiplo	45,86%
R-quadrado	21,03%
R-quadrado ajustado	16,64%
Erro-padrão	491.938.217,79
Observações	20

Na tabela 1 foi possível perceber que o R-quadrado é de pouco mais de 21%. Isso significa que a relação entre as duas variáveis (investimentos do Governo Federal e a proporção do número de óbitos x acidentados) possui relação moderada⁷. Entretanto, para uma avaliação mais precisa dos resultados, realiza-se a inferência estatística. Segundo Hoffmann³⁴, a inferência tem por finalidade testar se a regressão é estatisticamente significante. A avaliação das informações relacionadas à significância pode ser visualizada na tabela 2 (ANOVA):

Tabela 2
Teste ANOVA de significância

	Coeficientes	Erro-padrão	Stat t	valor-P	95% inferiores	95% superiores
Interseção	840.481.660,76	214.682.826,30	3,91	0,001	389.449.779,32	1.291.513.542,20
TOTAL DE ACIDENTES (ANO)	- 151.769.044.359,12	69.316.868.267,29	-2,19	0,042	- 297.398.380.662,35	- 6.139.708.055,88

A tabela anterior permite avaliar duas informações importantes com relação ao nível de significância da relação: o valor-P e os intervalos inferiores e superiores. Quando o valor-P é de pouco mais de 0,04, apresenta relação estatística. Já quando os intervalos inferiores e superiores não possuem o valor zero dentro do intervalo, também significa que existe forte relação entre as variáveis. Abaixo, apresenta-se na figura 6 o gráfico de distribuição relacionado à correlação.

Figura 6
Gráfico de distribuição da relação entre investimentos do Governo Federal e a proporção entre acidentes ofídicos e óbitos no Brasil

Após a correlação das informações anteriormente apresentadas, pode-se avaliar que quanto mais o Governo Federal investiu, reduziu-se o número de óbitos por acidente proporcionalmente. Foi possível visualizar anteriormente que ocorreu um crescimento no número de acidentes ofídicos. Entretanto, houve um controle no número de óbitos. Assim, os investimentos do Governo Federal nas instituições produtoras de soro para acidentes ofídicos foram primordiais para este controle.

Outra relação importante destacada no estudo de Mise et al.³¹ está relacionada ao tempo de atendimento. Conforme exposto pelos autores, na maioria dos casos em que o acidente resultou em óbito, os acidentados foram atendidos num tempo superior a 6 (seis) horas. Nesse sentido, realizou-se uma análise de correlação para verificar se os investimentos do Governo Federal nas três principais instituições produtoras de soro para acidentes ofídicos no Brasil foram importantes para a redução do tempo de atendimento dos acidentados. Assim, foram consideradas as seguintes informações:

1. a

   20 elementos (n), investimentos do Governo Federal (de 1998 a 2017) e o número de acidentados abaixo de seis horas;

2. b

   α = 0,05, grau de confiança a 95%;

3. c

   coeficiente de correlação entre as duas variáveis (r) no seguinte caso:

• Tempo de Atendimento: r = 0,6

1. d

   valor da estatística calculada (Zc):

• Tempo de Atendimento: 4,69

1. e

   Valor da estatística tabelada de Distribuição t de Student o Zt = ± 2,086.

Foi possível avaliar que o valor da estatística calculada (Zc) está fora do intervalo fornecido pela tabela de Distribuição t de Student. Isso significa que a hipótese de nulidade da relação está descartada. Assim, a correlação é válida.

A seguir, apresenta-se a tabela da estatística de regressão da relação entre os investimentos do Governo Federal nos três principais institutos produtores de soro para acidentes ofídicos no Brasil e o tempo de atendimento de acidentados abaixo das seis horas (Tabela 3).

Tabela 3
Estatística de Regressão

Estatística de regressão
R múltiplo	74,19%
R-quadrado	55,04%
R-quadrado ajustado	52,54%
Erro-padrão	371.209.316,45
Observações	20

Na tabela 3 foi possível perceber que o R-quadrado é superior a 55%. Isso significa que a relação entre as duas variáveis (Investimentos do Governo Federal e o tempo de atendimento de acidentados abaixo das seis horas) possui forte relação. Conforme abordado anteriormente, com base em Gujarati e Porter⁷, as relações entre 30% e 60% são consideradas moderadas. Diante das informações apresentadas, foi realizada inferência estatística para verificar se a regressão pode ser considerada significante. A avaliação das informações relacionadas à significância pode ser visualizada na tabela 4 (ANOVA):

Tabela 4
Teste ANOVA de significância

	Coeficientes	Erro-padrão	Stat t	valor-P	95% inferiores	95% superiores
Interseção	- 47.558.855,66	132.436.867,71	-0,36	0,72369	- 325.798.389,97	230.680.678,64
ATENDIMENTO (ANO)	7.320,18	1.559,55	4,69	0,00018	4.043,68	10.596,67

Na tabela anterior pode-se avaliar que o valor-P é inferior a 0,01. Portanto, existe forte relação estatística. Já os intervalos inferiores e superiores não consideram o valor zero no intervalo. Significa que existe forte relação entre as variáveis. Abaixo apresenta-se na figura 7 o gráfico de distribuição relacionado a correlação:

Figura 7
Gráfico de distribuição da relação entre investimentos do Governo Federal e o tempo de atendimento de acidentes ofídicos abaixo das seis horas no Brasil

Após a correlação, é possível afirmar que existem evidências de que houve evolução no número de atendimentos no tempo considerado como adequado a partir dos investimentos do Governo Federal nas três principais instituições produtoras de soro para acidentes ofídicos no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das análises apresentadas, pode-se afirmar que os investimentos do Governo Federal nos Institutos Vital Brazil, Butantan e Fundação Ezequiel Dias (FUNED) possuem forte relação com a redução na proporção de pessoas que foram a óbitos por causa de acidentes ofídicos no Brasil. Outra afirmação é a forte relação dos investimentos do Governo na evolução dos atendidos decorrentes de acidentes ofídicos no Brasil abaixo de seis horas, sendo o período considerado como adequado para garantir menor risco de óbito.

A partir das análises realizadas, é possível perceber a importância da relação direta do governo brasileiro com relação ao tratamento de acidentes ofídicos no país, tendo em vista que, conforme Bochner²¹, existe um evidente avanço no número de acidentes ofídicos. É importante destacar, também, que a atuação do governo tem grande relevância, se comparadas as informações sobre o controle da mortalidade no Brasil com outros países, principalmente a Índia. Assim, fica evidente que o fato de a patente do tratamento contra acidentes ofídicos ser um bem de interesse da sociedade contribui para o salvamento de várias vidas.

• Como citar: Vaz VHS, Brazil OAV, Paixão AEA. Propriedade intelectual do soro antiofídico: a efetividade a partir da correlação entre os investimentos do governo federal nos principais institutos responsáveis pela produção do soro e realização de pesquisas para o tratamento de acidentes ofídicos no brasil, com relação ao número de vítimas fatais dos acidentes. Cad Saúde Colet, 2020; Ahead of Print. https://doi.org/10.1590/1414-462X202028030018
• Trabalho realizado com dados secundários disponibilizados pelo Portal da Transparência do Governo Federal.
• Fonte de financiamento: nenhuma.

REFERÊNCIAS

• ¹
  Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Estatísticas [Internet]. Brasilia, DF: INPI; 2015. [citado em 2019 Set 6]. Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.50530&seo=1
  » http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.50530&seo=1
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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  21 Set 2020
• Data do Fascículo
  Jul-Set 2020

Histórico

• Recebido
  19 Abr 2018
• Aceito
  06 Set 2019