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Provisão de recursos de saúde nas regiões intermediárias do Brasil, 2018

Provision of health resources in the intermediate regions of Brazil, 2018

Resumo

Introdução:

A pandemia de COVID-19 exigiu a ampliação da capacidade dos serviços de saúde nos estados e municípios do Brasil. Este estudo analisou a distribuição geográfica da provisão de recursos de saúde no país no período que antecede essa crise sanitária.

Objetivo:

Descrever a provisão de recursos de saúde segundo o índice de desenvolvimento humano (IDH) das 133 regiões geográficas intermediárias do Brasil, em 2018.

Método:

Dados sobre cobertura populacional da Estratégia Saúde da Família, número de consultas ambulatoriais e hospitalizações, investimento público em saúde, leitos hospitalares, leitos mantidos pelo SUS, leitos de UTI e leitos de UTI mantidos pelo SUS foram obtidos junto ao Ministério da Saúde e IBGE. A associação das variáveis com o IDH das regiões intermediárias foi avaliada pela correlação de Pearson.

Resultados:

A provisão de recursos de saúde foi mais elevada nas regiões intermediárias do Sul e Sudeste, enquanto as regiões do Centro-Oeste tiveram valores intermediários. O IDH correlacionou positivamente com os recursos em saúde. O inverso ocorreu para a cobertura da Estratégia Saúde da Família, que foi maior nas regiões Norte e Nordeste.

Conclusões:

Monitorar geograficamente a provisão de recursos de saúde pode instruir estratégias para reduzir desigualdades no país. Em 2018, as regiões intermediárias estavam desigualmente preparadas para atender às necessidades em saúde de suas populações e refletiam a lei do cuidado inverso. Foi este o cenário de partida para a resposta à pandemia por COVID-19 em 2020.

Palavras-chave:
disparidades em assistência à saúde; equidade em saúde; recursos em saúde; equidade na alocação de recursos

Abstract

Introduction:

The COVID-19 pandemic required expanding the health services capacity in Brazilian states and municipalities. This study analyzed the geographic distribution of the health resources provision in the country in the period before the pandemic.

Objective:

This study aimed to describe the availability of health resources in the 133 intermediate geographic regions of Brazil in 2018 according to the human development index (HDI).

Method:

Data on population coverage of the family health strategy, number of outpatient consults and hospitalizations, public investment in health, total number of hospital beds, beds maintained by SUS, intensive care unit (ICU) beds, and ICU beds maintained by SUS were obtained from the Ministry of Health and IBGE. the association of variables with the HDI of the intermediate regions was assessed using Pearson's correlation.

Results:

The indices of health resources had higher average values for the South and Southeast regions, whereas the Central West ranked intermediate values. The HDI correlated positively with health resources. The coverage by family health strategy had an inverse distribution and was higher in the North and Northeast regions.

Conclusions:

Monitoring the health system at the intermediate region level can be a useful strategy to promote access and reduce health inequalities in Brazil. In 2018, the intermediate regions were unevenly prepared to meet their populations’ health needs and reflected the inverse care law. This scenario was the starting point for the response to the COVID-19 pandemic in 2020.

Keywords:
healthcare disparities; health equity; health resources; equity in the resource allocation

INTRODUÇÃO

No início de 2020, o Brasil registrou seus primeiros casos de COVID-19 e, em pouco tempo, o primeiro óbito. Tendo a doença se manifestado antes em outros países, justificava-se a necessidade de implementar medidas drásticas como o distanciamento social e preparar o Sistema Único de Saúde (SUS) com os insumos para enfrentar a pandemia. A provisão de recursos físicos do sistema de saúde, como hospitais, leitos em terapia intensiva e respiradores tornou-se objeto prioritário de discussão para a elaboração de planos emergenciais e de contingenciamento. Muitos municípios do país não possuíam a estrutura necessária para lidar com um aumento expressivo no volume de pacientes que necessitariam de atenção especializada.

Em pouco tempo, estados e municípios procuraram ampliar sua capacidade para atender pacientes com síndrome respiratória aguda grave. Essa necessidade implicou expandir o investimento governamental em saúde e instalar hospitais de campanha em vários municípios. Implicou, também, aumentar o número de leitos hospitalares, em especial em unidades de terapia intensiva para suporte respiratório11 Bastos LS, Niquini RP, Lana RM, Villela DAM, Cruz OG, Coelho FC, et al. COVID-19 e hospitalizações por SRAG no Brasil: uma comparação até a 12ᵃ semana epidemiológica de 2020. Cad Saúde Pública. 2020;36(4):e00070120. https://doi.org/10.1590/0102-311x00070120
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.

Este estudo procurou descrever a distribuição geográfica da provisão de recursos de saúde no Brasil, no período que antecede a pandemia. Procurou-se dimensionar a capacitação regional, não apenas para o enfrentamento da crise sanitária, mas para o atendimento em saúde em geral.

Para avaliar a variação no aporte de recursos físicos, humanos e financeiros aplicados à saúde nas diferentes macrorregiões do país, utilizamos as regiões intermediárias como unidade de análise. Essas unidades geográficas refletem importantes características organizacionais do sistema de saúde no país.

A classificação de regiões intermediárias foi criada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para substituir a antiga divisão geográfica do país em mesorregiões. O novo sistema de classificação foi criado em 2013 e atualizado em 2017, seguindo diretrizes metodológicas previamente estipuladas para agrupar municípios segundo o fluxo de pessoas, o comércio e outras relações sociais. Dentre essas relações, destaca-se a procura por serviços de saúde. Presume-se que as regiões intermediárias delimitam a busca preferencial por exames laboratoriais, consultas médicas, tratamentos e internações hospitalares para os indivíduos que não encontram esses serviços em seus municípios de residência22 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Coordenação de Geografia. Divisão regional do Brasil em regiões geográficas imediatas e regiões geográficas intermediárias: 2017 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2017 [acessado Jul. 3, 2020]. 82 p. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv100600.pdf
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.

A opção por esse sistema de classificação leva em consideração o tamanho populacional das unidades resultantes. O número de habitantes das regiões intermediárias é usualmente maior que o de municípios e menor que o de estados, o que representa vantagens para a pesquisa em saúde. De um lado, o número reduzido de habitantes em muitos municípios pode não propiciar poder estatístico para a investigação de vários desfechos em saúde. Por outro lado, a maior extensão territorial e volume populacional dos estados e macrorregiões pode elidir a percepção de disparidades socioeconômicas e desigualdades em saúde quando se opta por analisar essas unidades geográficas.

O objetivo desse estudo foi descrever a provisão de recursos de saúde nas 133 regiões geográficas intermediárias do Brasil em 2018. A expectativa é que essa descrição referencie a capacitação dessas unidades territoriais para o atendimento das necessidades em saúde em geral, servindo também para refletir o ponto inicial a partir do qual se procurou implementar os serviços de saúde para o enfrentamento da COVID-19 em 2020.

MÉTODO

Unidades de análise

As unidades de análise foram as Regiões Geográficas Intermediárias do Brasil, que correspondem a uma estratificação territorial do país realizada pelo IBGE22 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Coordenação de Geografia. Divisão regional do Brasil em regiões geográficas imediatas e regiões geográficas intermediárias: 2017 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2017 [acessado Jul. 3, 2020]. 82 p. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv100600.pdf
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em 2017 como classificação intermediária entre as Unidades da Federação (estados) e as Regiões Geográficas Imediatas. Em sua delimitação espacial, as regiões intermediárias são formadas por agrupamentos de municípios tendo como polo metrópoles ou capitais regionais e, na ausência destas, centros urbanos representativos. Sua delimitação considera, além da proximidade, a relação dos sujeitos com o território, atentando para a viabilidade de fluxos, malha rodoviária e conexões nessa extensão geográfica.

As regiões intermediárias organizam o território, articulando os municípios e as Regiões Geográficas Imediatas em um nível hierárquico superior, que considera a existência de funções urbanas de maior complexidade22 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Coordenação de Geografia. Divisão regional do Brasil em regiões geográficas imediatas e regiões geográficas intermediárias: 2017 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2017 [acessado Jul. 3, 2020]. 82 p. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv100600.pdf
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. Os 5.570 municípios do Brasil foram distribuídos em 133 regiões intermediárias. A decisão por essa unidade de análise considerou sua conformação hierárquica, que tende a abranger o percurso pelo sistema de saúde que a população acaba percorrendo quando busca por serviços de saúde, com as cidades de maior porte servindo como referência para cidades de menor porte, pois tendem a ser mais bem providas de serviços de saúde e de recursos de maior densidade tecnológica.

Bases de dados

Foram selecionadas oito variáveis para refletir a capacitação física, humana e financeira do sistema de saúde e abranger diferentes dimensões de sua atuação.

A primeira variável foi a cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF). Essa medida foi definida pelo número de pessoas cobertas pela ESF (considerando que cada equipe, idealmente, cobre 3.450 pessoas) dividida pela quantidade de residentes em cada região intermediária no ano de 201833 Neves RG, Flores TR, Duro SMS, Nunes BP, Tomasi E. Time trend of Family Health Strategy coverage in Brazil, its Regions and Federative Units, 2006-2016. Epidemiol Serv Saúde. 2018;27(3):e2017170. https://doi.org/10.5123/s1679-49742018000300008
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. As informações sobre o número de equipes da ESF são de domínio público e estão disponíveis para consulta no site de Informação e Gestão da Atenção Básica do Ministério da Saúde.

A segunda variável foi o número de consultas ambulatoriais per capita, obtida junto ao Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS e relativa a todos os meses de 2018. Os dados informados para cada município foram somados no âmbito de suas respectivas regiões intermediárias e, em seguida, divididos pela respectiva soma de população.

Em terceiro, foi obtido o número de internações hospitalares per capita junto ao Sistema de Informações Hospitalares do SUS para todo o ano de 2018. De modo análogo à variável anterior, essa medida foi obtida pela agregação dos dados de internações e população para todos os municípios de cada região intermediária. Para fins de apresentação, considerou-se o resultado na forma percentual, ou taxa para cada 100 habitantes.

Referenciando o investimento público em saúde nas regiões intermediárias, a quarta variável foi o valor per capita da despesa total em saúde em 2018. Esses dados foram fornecidos pelo Sistema de Informações de Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS) do Ministério da Saúde.

Foram obtidos os valores mensais de quatro variáveis adicionais para indicar a capacitação física do sistema de saúde: o número total de leitos hospitalares, o número de leitos hospitalares mantidos pelo SUS, o número total de leitos em unidades de terapia intensiva − UTI e o número de leitos em UTI mantidos pelo SUS. Essas informações foram extraídas para cada mês, com sua média (por 10 mil habitantes) sendo tomada como valor de referência para o ano como um todo em cada região intermediária. Esses dados foram informados pelo Cadastro Nacional de Estabelecimentos em Saúde (CNES) do Ministério da Saúde.

O Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo aprovou o projeto de pesquisa que gerou os dados aqui relatados (CAAE: 10801619.2.0000.5421).

Análise de dados

Todas as variáveis acima mencionadas foram expressas em termos populacionais. Para esse fim, o denominador comum de todas as medidas de provisão dos serviços de saúde foi o número de habitantes em cada município e a soma dessas quantidades em cada região intermediária. A população de cada município foi estimada para 2018 pelo método da progressão geométrica, com base nos valores obtidos pelos censos de 2000 e 201044 Laurenti R, Mello Jorge MHP de, Lebrão ML, Gotlieb SLD. Estatísticas de saúde. São Paulo: EPU; 2005..

Os dados assim obtidos foram descritos de forma tabular e gráfica, sempre com estratificação por macrorregião brasileira. Os gráficos de caixa (boxplots) apresentam visualmente as medianas e intervalos interquartis. Os mapas apresentam a distribuição geográfica dos valores em categorias classificadas pela média e desvio padrão. As médias e os desvios padrão de cada variável foram apresentados nas Tabelas 1 e 2.

Tabela 1
Índice de Desenvolvimento Humano (2010) e provisão de recursos de saúde (2018) por região intermediária. Média (desvio padrão) nas macrorregiões brasileiras
Tabela 2
Coeficiente de Correlação de Pearson entre o Índice de Desenvolvimento Humano (2010) e a provisão de recursos de saúde (2018) por região intermediária nas macrorregiões brasileiras

Foi ainda obtido a informação sobre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) municipal para fins de qualificar a descrição das medidas de provisão dos serviços de saúde. Essa variável foi informada pelo Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, mantido pelo escritório regional no país do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Os valores de IDH de cada região intermediária foram obtidos como média ponderada do IDH de cada um de seus municípios, usando como pesos a proporção da população do município em relação ao total de sua região intermediária.

Todas as análises estatísticas foram realizadas no Stata v. 15.1 (College Station, Tx; 2017). A análise de correlação entre o IDH e as variáveis de provisão dos serviços de saúde foram feitas utilizando o coeficiente de correlação de Pearson.

RESULTADOS

As regiões intermediárias localizadas nas macrorregiões Norte e Nordeste tiveram valores de IDH mais baixos que as localizadas no Sul e Sudeste, enquanto as regiões intermediárias no Centro-Oeste tiveram valor médio intermediário ao das demais macrorregiões. Não obstante, o Distrito Federal foi a região intermediária com o mais elevado IDH do país e situa-se no Centro-Oeste (Figura 1). De modo geral, assim como ocorreu para o IDH, as medidas de provisão de recursos de saúde tiveram valores médios e medianos mais elevados para as regiões intermediárias do Sul e Sudeste (Tabela 1, Figuras 1 e 2).

Figura 1
Índice de Desenvolvimento Humano (2010) e provisão de recursos de saúde (2018) por região intermediária. Diagramas de caixa nas macrorregiões brasileiras identificando medianas, intervalos interquartis e valores discrepantes
Figura 2
Índice de Desenvolvimento Humano (2010) e provisão de recursos de saúde (2018) por região intermediária. Distribuição geográfica nas macrorregiões brasileiras de cada variável segundo classificação intervalar definida pela média (M) e desvio-padrão (DP)

Apesar de terem pior perfil das medidas de serviços de saúde, as regiões intermediárias no Norte e Nordeste destacaram-se na atenção básica em saúde, com cobertura populacional de Estratégia Saúde da Família mais elevada que no restante do país.

As variáveis do estudo apresentaram características intermediárias nas regiões do Centro-Oeste, na comparação com as demais macrorregiões. O número médio de atendimentos ambulatoriais nas regiões intermediárias do Centro-Oeste foi intermediário ao das demais regiões. O total de despesas em saúde foi compatível com as regiões mais ricas; enquanto o número de leitos de terapia intensiva mantidos pelo SUS, nas regiões do Centro-Oeste, foi compatível com os valores das macrorregiões mais pobres (Tabela 1). O Centro-Oeste foi a única região do país com uma correlação negativa entre despesa em saúde e IDH e apresentou a maior correlação positiva do país entre IDH e hospitalizações (Tabela 2).

As regiões intermediárias da macrorregião Norte apresentaram o menor número de leitos per capita (Tabela 1). Situa-se nessa macrorregião a região intermediária de Breves, no Pará, que apresentou os valores mais baixos de IDH e de despesa per capita em saúde em todo o país. A região intermediária de Boa Vista, em Roraima, também na macrorregião Norte, apresenta a maior taxa de internação hospitalar do país. A região intermediária de Rorainópolis-Caracaraí, também em Roraima, é uma das três regiões intermediárias do país com 100% de cobertura da ESF. A macrorregião Norte também apresenta os maiores valores no país de correlação entre IDH e despesa em saúde, leitos totais, leitos SUS e leitos UTI/SUS (Tabela 2).

As regiões intermediárias da macrorregião Nordeste apresentaram os menores valores médios de IDH, despesa per capita em saúde, taxas de atendimento ambulatorial, e o maior valor médio de cobertura da ESF (Tabela 1). A região intermediária de Corrente-Bom Jesus, no Piauí, apresentou a mais baixa taxa de atendimento ambulatorial, enquanto Itabaiana, em Sergipe, teve a menor quantidade de leitos per capita no país. A correlação entre IDH e leitos UTI no Nordeste foi a maior do país (0,790) (Tabela 2).

Com valores relativamente próximos de IDH em suas regiões intermediárias, as macrorregiões Sul e Sudeste contrastaram das demais nas variáveis de estudo (Figura 1). As regiões do Sudeste tiveram valores mais elevados de despesas em saúde, atendimento ambulatorial e leitos de UTI, enquanto as regiões do Sul tiveram as maiores taxas de hospitalizações, leitos e leitos SUS (Figura 2). Na macrorregião Sudeste, a região intermediária Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, teve o valor mais elevado de despesa em saúde, sendo também a região intermediária com as maiores taxas de leitos, leitos de UTI e leitos de UTI/SUS por habitante. A região intermediária de São Paulo, capital do estado, foi a região com menor cobertura da ESF.

As regiões também diferiram em relação à correlação entre os indicadores de provisão de recursos de saúde e o IDH. As macrorregiões Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste tiveram intensa correlação negativa entre IDH e cobertura da ESF, indicando atenção básica menos extensa nas regiões intermediárias mais desenvolvidas. As regiões Norte e Sul, por sua vez, praticamente não apresentaram correlação entre essas medidas.

Também houve discrepância entre as regiões no que diz respeito à relação entre IDH e leitos mantidos pelo SUS. Enquanto no Sul e Sudeste a correlação entre essas variáveis foi quase inexistente, nas demais regiões, a correlação positiva indica que o SUS manteve número mais elevado de leitos gerais e em terapia intensiva nas regiões intermediárias mais desenvolvidas (Tabela 2).

DISCUSSÃO

Na perspectiva de que equacionar um problema é o primeiro passo para sua solução, ter documentado a desigualdade na distribuição dos serviços de saúde no Brasil foi o resultado mais importante do presente estudo. Os dados examinados mostraram que as macrorregiões e, dentro delas, as regiões intermediárias do país estavam desigualmente preparadas para atender às necessidades em saúde de suas populações, de modo geral, e para enfrentar a pandemia de COVID-19, de modo específico.

Esse estudo mostrou que, em 2018, as macrorregiões mais ricas do país, Sul e Sudeste, aplicaram mais verbas em saúde, na média por habitante, que as demais. Também puderam dispor mais leitos e realizar mais internações hospitalares e atendimentos ambulatoriais per capita. Quando essas variáveis foram medidas nas regiões intermediárias, também se verificou o padrão de melhores resultados para as áreas mais desenvolvidas, isto é, com IDH mais elevado.

Esses resultados são compatíveis com a “lei do cuidado inverso” originalmente formulada por Julian Tudor Hart55 Hart JT. The inverse care law. Lancet. 1971;297(7696):405-12. https://doi.org/10.1016/s0140-6736(71)92410-x
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. há cinco décadas. A disponibilidade de serviços de saúde é inversamente proporcional à necessidade da população; aqueles que mais precisam tendem a ser os que menos recebem. Esses resultados também são compatíveis com a definição de iniquidade em saúde, tal como formulada por Margaret Whitehead66 Whitehead M. The concepts and principles of equity and health. Int J Health Serv. 1992;22(3):429-45. https://doi.org/10.2190/986L-LHQ6-2VTE-YRRN
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: desigualdades que são desnecessárias, evitáveis e injustas.

Pode-se concluir que os achados desse estudo não são surpreendentes; ao contrário, a desigualdade é um problema crônico dos serviços de saúde em nível global. Sua importância tem motivado diferentes estudos, usando estratégias variadas. Stopa et al.77 Stopa SR, Malta DC, Monteiro CN, Szwarcwald CL, Goldbaum M, Cesar CLG. Use of and access to health services in Brazil, 2013 National Health Survey. Rev Saúde Pública. 2017;51(supl 1):3s. https://doi.org/10.1590/S1518-8787.2017051000074
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, por exemplo, analisaram os dados da Pesquisa Nacional de Saúde, realizada em 2013, para descrever diferenciais de acesso e utilização de serviços de saúde segundo grau de escolaridade e macrorregião geográfica.

Embora não haja novidade na constatação da distribuição desigual dos serviços de saúde, o presente estudo inovou ao aferir esse problema no nível geográfico das regiões intermediárias. A perspectiva de usar esse novo recorte geográfico para comparar a distribuição de desfechos em saúde pode ser bastante profícua e já motivou estudos em diferentes áreas temáticas, como a mortalidade por câncer88 Bigoni A, Antunes JLF, Weiderpass E, Kjærheim K. Describing mortality trends for major cancer sites in 133 intermediate regions of Brazil and an ecological study of its causes. BMC Cancer. 2019;19(1):940. https://doi.org/10.1186/s12885-019-6184-1
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e o número de casos de COVID-1999 Barros AJD, Victora CG, Menezes AMB, Horta BL, Hartwig F, Victora G, et al. Padrões de distanciamento social em nove cidades gaúchas: estudo EPICOVID19/RS. Rev Saúde Pública. 2020;54:75. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2020054002810
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. Considera-se que as regiões intermediárias com menor IDH deveriam receber mais recursos públicos para implementar os serviços de saúde e suprir, com isso, as necessidades geradas por seu menor desenvolvimento humano. Mas o presente estudo mostrou que isso não ocorreu para a maior parte dos indicadores examinados, reforçando a constatação de que a distribuição geográfica dos serviços de saúde segue a lei do cuidado inverso. Esta é a primeira hipótese levantada pelos resultados aqui descritos.

No período da pandemia por COVID-19, a discussão sobre a oferta de leitos em UTI no país ganhou destaque, tornando-se um interesse não apenas dos pesquisadores e gestores em saúde, mas também da mídia e da população em geral. Esse estudo mostrou que, em todas as macrorregiões, a densidade dessa oferta em 2018 esteve positivamente correlacionada ao IDH, entretanto, nas regiões Sul e Sudeste, essa correlação foi mais fraca − principalmente quando apenas a oferta de leitos de UTI do SUS foi analisada. Essa observação sugere uma segunda hipótese resultante desse estudo: a existência de um gradiente na manifestação da lei do cuidado inverso no país, que parece ter sido mais evidente nas macrorregiões menos desenvolvidas.

Apesar dessas observações, verificou-se o contrário para a atenção básica. O indicador de cobertura da Estratégia Saúde da Família tendeu a ser mais elevado nas macrorregiões mais pobres. No nível das regiões intermediárias, a cobertura da ESF correlacionou negativamente com o IDH, indicando que as áreas menos desenvolvidas foram contempladas com mais recursos de atenção básica em saúde. No contrafluxo dos resultados acima discutidos, este achado é também um importante resultado e apoia a diretriz pró-equidade da atenção básica em saúde como uma terceira hipótese desse estudo.

Implantada em 1994 como Programa de Saúde da Família, a ESF se expandiu consideravelmente nas décadas seguintes, tendo atingido, em 2018, uma cobertura de cerca de três quartos da população brasileira. Essa expansão foi resultado de uma priorização estratégica na gestão do SUS em investir na atenção básica1010 Castro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NAM, Andrade MV, Noronha KVMS, et al. Brazil's unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet. 2019;394(10195):345-56. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)31243-7
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. A aplicação de mais recursos de atenção básica nas regiões Norte e Nordeste também foi uma opção estratégica de gestão do SUS, para a promoção de equidade em saúde1111 Porto SM, Ugá MAD, Moreira RS. Uma análise da utilização de serviços de saúde por sistema de financiamento: Brasil 1998-2008. Ciênc Saúde Colet. 2011;16(9):3795-806. https://doi.org/10.1590/s1413-81232011001000015
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.

Essas considerações são compatíveis com o resultado descrito neste estudo, de associação inversa entre cobertura da ESF e IDH. A maior presença de equipes de saúde da família nas regiões intermediárias com piores condições socioeconômicas responde à diretriz organizacional do SUS de promoção da equidade. De fato, estudos contemporâneos vêm relatando o sucesso da atenção básica em favorecer o acesso local ao sistema de saúde e propiciar melhores resultados de saúde, como a redução da mortalidade infantil e dos óbitos por causas evitáveis1212 Aquino R, De Oliveira NF, Barreto ML. Impact of the family health program on infant mortality in Brazilian municipalities. Am J Public Health. 2009;99(1):87-93. https://doi.org/10.2105/AJPH.2007.127480
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,1313 Dourado I, Oliveira VB, Aquino R, Bonolo P, Lima-Costa MF, Medina MG, et al. Trends in primary health care-sensitive conditions in Brazil: the role of the Family Health Program (Project ICSAP-Brazil). Med Care. 2011;49(6):577-84. https://doi.org/10.1097/MLR.0b013e31820fc39f
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.

Em 2019, o Ministério da Saúde instituiu um novo modelo de financiamento da atenção básica, denominado “Programa Previne Brasil” (Portaria N. 2.979, de 12/11/2019). No âmbito do custeio, esta medida foi uma das principais modificações pelas quais passou a atenção primária desde a implantação do Programa de Saúde da Família, em 1994. Embora a vulnerabilidade socioeconômica da população tenha permanecido como um dos critérios para o cálculo dos repasses financeiros aos municípios, a manutenção do caráter pró-equidade da ESF precisará ser novamente avaliada nos próximos anos. Nesse sentido, as regiões intermediárias são uma alternativa que propomos como unidade de análise, e o presente estudo serve ao registro da realidade do país no momento que precede a reestruturação da atenção básica à saúde.

Sabe-se que os sistemas de informações em saúde estão sujeitos a falhas de qualidade dos dados consolidados, o que deve ser considerado uma possível limitação do estudo1414 Werneck G. Epidemiologia Descritiva: qualidade das informações e pesquisa nos serviços de saúde. Epidemiol Serv Saúde. 2009;18(3):205-7. https://doi.org/10.5123/S1679-49742009000300002
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. Ademais, observa-se que a classificação dos municípios brasileiros em regiões intermediárias é ainda muito recente — foi estabelecida em 2017 —, o que restringe a comparabilidade de seus resultados com estudos anteriores. Esse fato também é reconhecido como limitação do estudo. Apesar disso, a nova divisão territorial pode ser especialmente relevante para o estudo do acesso e da distribuição de serviços de saúde, representando, assim, uma perspectiva promissora para a análise de dados espaciais.

A classificação das regiões geográficas intermediárias empregou o conceito de “território-rede”, que considera os diferentes fluxos intra e inter-regionais nos municípios22 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Coordenação de Geografia. Divisão regional do Brasil em regiões geográficas imediatas e regiões geográficas intermediárias: 2017 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2017 [acessado Jul. 3, 2020]. 82 p. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv100600.pdf
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,1515 Fuini LL. O território em Rogério Haesbaert: concepções e conotações. Geog Ens Pesq. 2017;21(1):19-29. https://doi.org/10.5902/2236499422589
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. Com isso, o processo de territorialização resultou em unidades de análise que congregam municípios não apenas contíguos espacialmente, mas interconectados por múltiplas interações. Esta particularidade pode ser vantajosa para a identificação de pontos críticos da rede de saúde.

A provisão de serviços de saúde tornou-se um dos temas centrais das políticas emergenciais para mitigar os efeitos da pandemia de COVID-191616 Barreto ML, Barros AJD, Carvalho MS, Codeço CT, Hallal PRC, Medronho RA, et al. O que é urgente e necessário para subsidiar as políticas de enfrentamento da pandemia de COVID-19 no Brasil? Rev Bras Epidemiol. 2020;23:e200032. https://doi.org/10.1590/1980-549720200032
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. A emergência da doença implicou a necessidade de ampliar rapidamente o número de leitos hospitalares, inclusive com a organização de hospitais de campanha, de leitos de UTI e recursos para diagnóstico, além de insumos como respiradores e equipamentos de proteção individual. A maior capacidade de resposta dos grandes centros urbanos, no entanto, fez com que a ampliação de recursos não ocorresse de modo homogêneo, possivelmente ampliando as diferenças entre as regiões intermediárias.

Neste contexto, o presente estudo procurou descrever a distribuição espacial dos indicadores de provisão de serviços de saúde, projetando as regiões intermediárias como uma estratégia nova e potencialmente interessante para implementar o acesso e a utilização desses serviços. Acreditamos que essa divisão territorial pode ser pertinente para o planejamento, especialmente em situações limites como a que vimos enfrentando na pandemia. Além disso, o monitoramento dos recursos físicos, humanos e financeiros aplicados à saúde no nível das regiões intermediárias pode favorecer estratégias para a provisão de atenção especializada, reduzindo a necessidade de deslocamentos intermunicipais de pacientes.

  • Fonte de financiamento: nenhuma.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Nov 2020
  • Aceito
    19 Jul 2021
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