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Sistema de justiça criminal e violência doméstica contra as crianças e os adolescentes: um estudo sociológico

The criminal justice system and domestic violence against children and adolescents: a sociological study

Resumos

A violência doméstica contra as crianças e os adolescentes constitui hoje um dos parâmetros de discussão apresentados pelos movimentos sociais e pela sociedade civil. Reconhecida há poucas décadas como um problema social no país, ela representa um dos componentes relacionados aos debates sobre a operacionalidade da justiça no Brasil. Neste artigo procura-se discutir a relação existente entre os conflitos sociais, envolvendo a infância e a adolescência, e a justiça, através da análise do tratamento conferido pelo sistema de justiça criminal em Santa Maria, município de 266 mil habitantes a 300 quilômetros da capital do estado do Rio Grande do Sul. Para tanto, teve-se por objetivo examinar, além do modo como estes embates sociais são encaminhados para os mecanismos de controle social formal, os procedimentos adotados pelos operadores do direito perante estes litígios e os tipos de sentenças terminativas atribuídas a estas ações judiciais criminais, buscando compreender quais são os elementos prevalecentes nestas decisões, a partir de uma caracterização da população que acessa este sistema.

sistema de justiça criminal; violência doméstica; infância e adolescência


Domestic violence again children and adolescents currently constitutes an important issue for discussion by social movements and civil society. Recognized in recent decades as a social problem in Brazil, it is one of the components of the debates about the exercise of justice in Brazil. This article seeks to discuss the existing relationship between the social conflicts involving childhood and adolescence and the judicial system through an analysis of how this problem is treated by the criminal courts in Santa Maria, a municipality of 266 thousand people, 300 kilometers from the capital of Rio Grande do Sul State. To do so, it examined how these social conflicts are handled by the formal mechanisms of social control and the procedures adopted by legal authorities in response to the legal conflicts and the types of sentences attributed to these criminal court actions. The study sought to understand the prevailing elements in the decisions, based on a characterization of the population that accesses this system.

criminal justice system; domestic violence; childhood and adolescence


ARTIGOS

Sistema de justiça criminal e violência doméstica contra as crianças e os adolescentes: um estudo sociológico

The criminal justice system and domestic violence against children and adolescents: a sociological study

Mari Cleise Sandalowski

Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS.

RESUMO

A violência doméstica contra as crianças e os adolescentes constitui hoje um dos parâmetros de discussão apresentados pelos movimentos sociais e pela sociedade civil. Reconhecida há poucas décadas como um problema social no país, ela representa um dos componentes relacionados aos debates sobre a operacionalidade da justiça no Brasil. Neste artigo procura-se discutir a relação existente entre os conflitos sociais, envolvendo a infância e a adolescência, e a justiça, através da análise do tratamento conferido pelo sistema de justiça criminal em Santa Maria, município de 266 mil habitantes a 300 quilômetros da capital do estado do Rio Grande do Sul. Para tanto, teve-se por objetivo examinar, além do modo como estes embates sociais são encaminhados para os mecanismos de controle social formal, os procedimentos adotados pelos operadores do direito perante estes litígios e os tipos de sentenças terminativas atribuídas a estas ações judiciais criminais, buscando compreender quais são os elementos prevalecentes nestas decisões, a partir de uma caracterização da população que acessa este sistema.

Palavras-chave: sistema de justiça criminal, violência doméstica, infância e adolescência.

ABSTRACT

Domestic violence again children and adolescents currently constitutes an important issue for discussion by social movements and civil society. Recognized in recent decades as a social problem in Brazil, it is one of the components of the debates about the exercise of justice in Brazil. This article seeks to discuss the existing relationship between the social conflicts involving childhood and adolescence and the judicial system through an analysis of how this problem is treated by the criminal courts in Santa Maria, a municipality of 266 thousand people, 300 kilometers from the capital of Rio Grande do Sul State. To do so, it examined how these social conflicts are handled by the formal mechanisms of social control and the procedures adopted by legal authorities in response to the legal conflicts and the types of sentences attributed to these criminal court actions. The study sought to understand the prevailing elements in the decisions, based on a characterization of the population that accesses this system.

Key words: criminal justice system, domestic violence, childhood and adolescence.

Introdução

A complexificação das sociedades contemporâneas ao longo das décadas desencadeou um processo de mudança social, por meio do qual foram reconfiguradas as relações interpessoais, seja no ambiente de trabalho ou nas diversas relações sociais que ocorrem em espaços públicos ou no âmbito privado/doméstico. Acompanhando este fenômeno, a efetivação de uma série de direitos sociais transpassou as décadas do século XX, mais especificamente após o período da Segunda Guerra Mundial. Por conseqüência, há uma ampliação e extensão do conceito de cidadania nas sociedades ocidentais, nas quais a noção de infância, adolescência, identidade étnica e sexual, dentre outras categorias, passam a adquirir importância.

Este fator está intimamente relacionado, no caso brasileiro, à fase de redemocratização do país na década de 1980, período que foi perpassado por uma irrupção de movimentos sociais, os quais passaram a demandar novas políticas e direitos sociais para estes grupos considerados como minoritários (LAVINAS, 1997).

Estas novas práticas e atores sociais que emergem nessa época mudam significativamente o contexto legislativo, no sentido da edificação de uma cidadania plena, baseada não somente na idéia de direitos e deveres, mas também na criação de formas de participação, através das quais estes indivíduos possam ser capazes de influenciar o governo em suas políticas, seja por meio de eleições ou através de outros métodos democráticos (FERREIRA, 2000).

É nesse contexto que é criada e promulgada a Constituição de 1988, da qual se origina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Estas legislações estendem o direito de eqüidade para todos os indivíduos, outorgando às crianças e aos adolescentes medidas de proteção integral de seus direitos e cidadania.

Se até a década de 1970 era atribuída uma conotação negativa à infância e à adolescência em fase de risco, relacionada, freqüentemente, com a pobreza e a delinqüência, a partir dos anos 1980 e 1990 ocorre uma ruptura com estas noções. O abandono do termo "menor"1 1 Este conceito encontrava-se revestido por uma série de elementos estigmatizantes, já que era utilizado para qualificar meninos e meninas, oriundos de classes populares, como abandonados e delinqüentes. Deste modo, crianças e adolescentes provenientes de famílias pobres, cujo modelo familiar não era nuclear, tinham maior probabilidade de serem encaminhados ao juízo, mesmo que não se enquadrassem no modelo descritivo proposto pela legislação, baseado na noção de privação de condições essenciais para a sua subsistência e na existência de maus-tratos imoderados (OLIVEIRA, 1999). , presente no Código de Mello Matos e no Código de Menores2 2 O Código de Mello Matos foi criado na década de 1920 como conseqüência das novas concepções de infância que surgem naquele período. As mudanças sociais observadas na sociedade brasileira nas primeiras décadas do século XX influem na transformação da estrutura familiar e, conseqüentemente, na modificação das relações sociais entre os indivíduos, levando a sociedade a remodelar e reorganizar o espaço público; estas mudanças fizeram com que os ciclos de vida passassem a serem definidos mais nitidamente, havendo a separação entre infância, adolescência, juventude, maturidade e velhice (ARPINI, 2001). Na década de 1970, este estatuto é substituído pelo Código de Menores. , utilizado para designar este período de vida como irregular e que reificava a idéia que vinculava pobreza e marginalidade, é suplantado por uma denotação de valor ético positivo, que concebe este grupo como portador de individualidade e direitos cidadãos (LAVINAS, 1997).

Frente a este novo cenário nacional, as ciências sociais se deparam com novos temas, antes por elas ignorados. Até os anos 1970 seus objetos de investigação correspondiam àquelas questões consideradas como macrossociais (processo de redemocratização do país, industrialização e trabalho, por exemplo); a partir desse período, no entanto, elas voltam sua atenção para aqueles temas que passam a ser considerados como os novos problemas sociais, dentre eles as questões de gênero, identidade, sexualidade e violência familiar (NEDER, 1994).

Começa, assim, a violência doméstica a ser investigada em suas mais diferentes formas, seja física, sexual ou psicológica. Ao contrário da violência familiar, também denominada como intrafamiliar, o conceito de violência doméstica é mais amplo, pois abrange não somente aqueles conflitos existentes entre membros consangüíneos, mas também os embates sociais vivenciados no âmago das relações interpessoais, entre os indivíduos que possuem algum tipo de relação doméstica. Deste modo, ele engloba, além do grupo familiar, aquelas formas de violência praticadas por amigos, vizinhos e parentes afins (SAFFIOTI, 1999).

Compreendida neste contexto, a partir da noção de conflito, a violência doméstica adquire diferentes formas, uma vez que a família constitui o principal eixo de análise. Neste sentido, todos os seus membros são considerados como vítimas potenciais destes embates (SOARES, 1999).

Do mesmo modo que outros conflitos sociais, relacionados às questões de trabalho e racismo, por exemplo, as situações de violência doméstica também passam a confluir para os tribunais, afim de que estes embates sejam resolvidos juridicamente.

Embora a esfera judiciária represente apenas uma dentre outras tantas formas alternativas de resolução de conflitos sociais, é preciso compreender que os novos litígios que passaram a convergir para o seu campo são produtos de uma construção social. A história social e política de uma determinada nação influenciam no reconhecimento de determinadas condutas como litigiosas. Logo, fatores econômicos, culturais, pessoais (tipo de relação entre as partes litigáveis) e sociais (classe social, identidade, sexo) preponderam na decisão de quais conflitos passarão a ser transformados em objeto de análise judicial (SANTOS et al., 1996).

A variação que estes embates assumem no tempo e no espaço significa que o quadro de valores e interesses que os norteia, orienta o comportamento dos indivíduos em relação aos direitos, uma vez que os elementos acima expostos influenciam a sua disposição para acionar, ou não, o Poder Judiciário.

Tais aspectos refletem, por conseqüência, na demanda pela justiça, uma vez que, diante da conquista destes direitos e frente à criminalização de determinadas condutas sociais, a presença dos novos conflitos sociais, que derivaram no processo de mudança social, observado ao longo do século passado, passam a ser remetidos aos tribunais para obter uma decisão.

Detendo-se na realidade que permeia a sociedade brasileira, a procura pelo sistema judiciário, a fim de solucionar os embates sociais vivenciados no cotidiano desta população, pode ser explicada a partir de um paradoxo. De um lado, são estendidos, formalmente a estes indivíduos, uma série de direitos sociais, considerando-os iguais perante a lei, enquanto que, por outro lado, esta eqüidade não é percebida na prática social, uma vez que o Estado não consegue operacionalizá-la, devido à crise estrutural com a qual se depara.

Esta situação está diretamente relacionada à complexidade da sociedade ocidental que implica diferentes conflitos e formas de sociabilidade; tais elementos não são mais idealizados no modelo de distanciamento desinteressado da vida em público. A construção desta nova ordem social está fundamentada na tese de unicidade entre o conceito de democracia e de direitos humanos (LOCHE, 1999). Diante deste fenômeno, o problema central que se apresenta, tanto para o sistema judiciário como para a sociedade civil e para o próprio Estado, não corresponde ao fato de justificar os direitos concedidos aos atores sociais, mas sim às formas encontradas para protegê-los, revelando não um questionamento filosófico e, sim, político. A exclusão destes direitos sociais para parcelas significativas da população faz emergir uma demanda pelo Poder Judiciário, procurando nesta instância formal garantir o acesso a estes direitos.

Contudo, é preciso salientar que, paralelamente a estas instâncias formais de resolução de conflitos interpessoais, existem outras esferas informais nas quais eles podem ser apaziguados3 3 No período anterior ao Estado Moderno, os controles formais e informais atuavam paralelamente e sua diferenciação praticamente inexistia. Contudo, ao longo de todo o processo histórico, as transformações sociais que foram observadas produziram algumas mudanças nos modelos de controle social. Enquanto os controles informais são exercidos por meio de interações sociais habituais, tendo como referência a reciprocidade, os controles formais passam a derivar das instituições socialmente legitimadas para o seu exercício (ROMANI, 2003). Passando a se constituir como o meio legal para a resolução dos conflitos, o controle social formal, a fim de se tornar efetivo, passa a exigir a criação de uma série de mecanismos e instituições, responsáveis pela normatização dos aspectos de vida dos indivíduos. Inserido neste processo de formação do Estado Moderno, o aparato jurídico e o discurso de seus representantes assumem um caráter abstrato e formal. . A presença destas vias alternativas, através das quais estes embates podem ser administrados, engloba a maior parte destas situações, mostrando, a partir disto, que os litígios que chegam ao Poder Judiciário referem-se somente a uma pequena parcela daqueles existentes nas relações socais.

Esta pluralidade jurídica põe em evidência que o monopólio da produção de direito pelo Estado é acompanhado de outras instâncias sociais, que agem paralelamente à atuação dos tribunais (SANTOS et al., 1996). Recontextualizar o direito, entendendo que este pode ser produzido em contextos não oficiais e formais, permite uma compreensão do modo como os conflitos sociais são regulados pelo sistema judiciário.

Ter presente estas questões possibilita apreender os processos e relações que se desenvolvem na esfera judiciária. É através da análise destes elementos que se torna viável entender como a justiça criminal, responsável pelo controle formal da sociedade, procede em relação àqueles embates sociais que dão origem às situações de violência doméstica.

Considerando que as ações litigiosas percorrem o sistema de justiça criminal desproporcionalmente e tendo em vista que somente uma parcela dos conflitos é dirimida pelo poder judiciário, é preciso destacar que somente parte destes litígios penetram no fluxo interno deste sistema e atingem certos patamares. Este movimento indica que apenas aqueles delitos considerados como mais graves chegam à fase final da justiça criminal, recebendo uma sentença condenatória ou absolutória (VARGAS, 2000).

Contudo, a forma como o sistema de justiça criminal encontra-se organizado no Brasil, dividido entre os Juizados Criminais Comuns e os Juizados Especiais Criminais4 4 Ao longo das últimas décadas, o sistema judiciário brasileiro tem enfrentado uma problemática constante quanto a sua incapacidade de responder satisfatoriamente as demandas da sociedade. O processo de desenvolvimento desencadeado no país a partir dos 1970, cuja origem é encontrada na industrialização, gerou uma série de mudanças políticas, econômicas e sociais que repercutiram no crescimento de conflitos e nos padrões de comportamento de diferentes segmentos da sociedade. Por conseqüência, diferentes grupos sociais passaram a exigir judicialmente do Estado serviços essenciais para o seu dia-a-dia, além de buscar nesta instância a solução para conflitos anteriormente apaziguados em outras esferas da sociedade. Esta explosão de litígios onera o sistema judiciário, tornando-o mais lento. Assim, este sistema passa a defrontar-se com uma crise de legitimidade e credibilidade em vários setores da sociedade. Buscando tornar a justiça mais célere e informal é criada no ano de 1995 a Lei 9.099 para aqueles crimes considerados de menor potencial ofensivo. Esta legislação tem por princípio a oralidade, a celeridade, a composição entre as partes e a informalidade, buscando, sempre que possível, a redução de danos às vítimas (AZEVEDO, 1999). , permite elucidar os aspectos que regem a lógica de funcionamento destas instâncias em relação às situações de violência doméstica contra as crianças e os adolescentes. A seguir serão analisados os procedimentos penais em relação aos delitos que envolvem situações de violência doméstica e os elementos que permeiam as decisões terminativas destes litígios.

1 Procedimento penal nos crimes de violência doméstica

Os operadores do direito possuem papéis específicos dentro do sistema de justiça criminal, desempenhando suas funções de acordo com os objetivos pretendidos pela atividade que exercem. Os elementos dos quais se utilizam para a construção de uma problemática judicial estão adequados ao modelo social e legal de seu contexto de ação. Esta característica pode ser percebida no momento em que "[...] essa coerência é testada a partir da aceitação da violação cometida, sua atenuação ou condenação, manifesta na atribuição de penas baixas ou elevadas" (CORRÊA, 1983, p. 33).

Embora a escolha dos técnicos que atuam no judiciário seja limitada por diversos mecanismos legais, estes, assim como os julgadores, ainda, possuem uma determinada margem de liberdade para a sua ação ao longo do percurso de um processo. Antes de compreender a forma através da qual eles operam no sistema é necessário, porém, analisar as principais etapas que acompanham a construção de um processo criminal.

O percurso percorrido, pelas partes envolvidas em um determinado delito, para a resolução do conflito na esfera da justiça criminal comum, inicia-se no momento do registro do Boletim de Ocorrência (BO) nas delegacias policiais. No caso desta pesquisa, as ocorrências que envolvem situações de violência doméstica contra as crianças e os adolescentes são registradas em duas delegacias de polícia especializadas no município de Santa Maria: a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) e a Delegacia de Defesa da Mulher (DDM).

É preciso, no entanto, salientar uma questão importante que envolve estas instituições. A DPCA foi criada em Santa Maria no ano de 2002, passando a atuar somente a partir do mês de agosto daquele ano. Antes desse período os Boletins de Ocorrências que envolviam esta população eram efetuados na DDM e nas demais delegacias de polícia do município.

A partir do segundo semestre de 2002, mesmo existindo uma instituição especializada no atendimento a meninas e meninos no município, houve um acordo entre os delegados responsáveis pelas DPCA e DDM e os delitos de abuso sexual contra adolescentes continuaram sendo atendidos e acompanhados pela Delegacia de Defesa da Mulher.

Assim, logo que é registrada uma ocorrência policial, relacionada a um determinado crime, são acionados os mecanismos de ação repressiva do aparato policial e judicial, encarregados da execução das normas previstas no Código Penal, as quais são responsáveis pela regulamentação das condutas públicas previstas para os indivíduos. A ação deste aparato é organizada, também, por um corpo de normas que explicitam e delimitam as tarefas e os procedimentos formais a serem prosseguidos pelos funcionários que atuam no sistema judiciário, sendo estabelecidas pelo Código do Processo Penal.

O caminho que um processo percorre é regulamentado por etapas formais previstas neste Código, submetidas a um determinado período de tempo. A fase que segue após o registro do BO corresponde ao inquérito policial, cuja finalidade é apurar o fato criminoso em sua autoria e materialidade.

A instauração de um inquérito policial em casos de crimes sexuais ou maus-tratos contra crianças e adolescentes é configurada, pelo Código, como uma ação penal incondicionada, ou seja, cabe ao Estado, através do Ministério Público, dar início a uma ação pública, independentemente da vontade dos queixosos estar orientada para o seu prosseguimento, ou não, no sistema criminal, por meio da denúncia.

Esta fase compreende um conjunto de decisões tomadas em diferentes instâncias para a elaboração das peças a serem anexadas aos autos dos processos. Ela resulta de uma série de procedimentos, dentre os quais estão os depoimentos da vítima e das testemunhas, o interrogatório do acusado ou acusada, os exames de corpo de delito e os exames técnicos do local em que teria ocorrido o crime. Os fatos coletados nestas seções são incorporados ao relatório final do delegado, que é encaminhado, por conseguinte, ao Poder Judiciário. A remessa desta documentação ao judiciário significa a conclusão da etapa policial, que se inicia no momento da efetuação do BO e é concluída com o esgotamento das investigações sobre o ocorrido.

No entanto, a fase que se refere ao inquérito policial está revestida por uma série de interferências, que vão influenciar se um determinado processo será cooptado, ou não, pelo fluxo do sistema de justiça criminal. Estas interferências estão relacionadas ao modo como os agentes policiais ordenam e selecionam os fatos a serem investigados. São eles que decidem quais indivíduos devem ter o direito à palavra nos interrogatórios e depoimentos e qual o conteúdo destas falas vai constar como prova no relatório final. A linguagem técnica utilizada na construção dos autos é também um exemplo da reflexão sobre os fatos, pois todos os atos praticados são mediados por um vocabulário uniformizado, sendo, assim, padronizados5 5 As pesquisas realizadas pelas antropólogas Mariza Correa (CORREA, 1983) e Joana Vargas (VARGAS, 2000) permitem uma análise mais detalhada sobre a influência que os agentes policiais exercem no arquivamento ou prosseguimento do fato dentro do sistema de justiça criminal. .

Embora os crimes sexuais e de maus-tratos contra crianças e adolescentes sejam de natureza incondicionada, é possível que a resolução do conflito ocorra na própria instância policial, mediante a negociação das partes envolvidas no ocorrido. O trabalho realizado por Vargas (2000) descreve bem esta prática e vislumbra a freqüência com que os delitos classificados pelo artigo 213 do Código Penal, ou seja, como atentado violento ao pudor, nos quais as partes envolvidas constam como pai e filha, são solucionados dentro das próprias delegacias de polícia. Logo, percebe-se a importância que possuem os profissionais que atuam nas delegacias para a inclusão de um fato no sistema judicial.

Com a conclusão do inquérito policial, é iniciada uma segunda etapa, relacionada à fase jurídica. Neste momento entra em cena o Ministério Público, que representa o Estado perante o Poder Judiciário, sendo de sua obrigação a acusação, responsável pelo início do litígio processual6 6 De acordo com Vargas (2000, p. 139), "[...] a responsabilidade da ação penal que dá origem à denúncia é do Ministério Público, quando pública, e do representante legal do ofendido (advogado), quando privada. [...] em crimes sexuais, salvo condições especiais, a ação é privada. No entanto, de acordo com o CP, uma ação privada pode tornar-se pública, condicionada à manifestação da vítima ou de seu representante legal através da representação, quando os queixosos alegarem que não podem arcar com as custas do processo". . Cabe a ele, portanto, a responsabilidade da autoria da ação penal, procedendo por meio da denúncia, na qual reconhece o delito como um fato sucedido e tipificado e o indiciado como o seu autor.

Para justificar um processo criminal, é necessário que o promotor público permeie a denúncia com uma série de elementos, encontrados sob a forma de um texto. Neste, o fato é reescrito, da mesma forma que é elaborado um relato estruturado sobre o acusado e as testemunhas, com base no inquérito policial. Estas informações, por sua vez, são comparadas com os artigos do Código Penal a fim de estabelecer a necessidade ou não no prosseguimento da ação.

O percurso percorrido por uma denúncia no Foro é semelhante àquele do inquérito policial. Nesta fase, caso existam circunstâncias satisfatórias para configurar o delito, o juiz recebe a denúncia, tendo, no entanto, a possibilidade de decretar a absolvição sumária do réu. Esta absolvição pode ocorrer em qualquer período do processo penal, sendo possível diante da presença de elementos que indiquem a inocência do réu ou que excluam o crime. É o juiz que passa a administrar a ação penal; neste instante os envolvidos no delito (a vítima, o acusado e as testemunhas7 7 O número máximo de testemunhas permitido, tanto de acusação como de defesa, é de oito indivíduos para cada parte envolvida no delito. , tanto de acusação quanto de defesa) passam a ser ouvidos, prestando novos depoimentos em juízo. Neste momento, caso o acusado não possua um advogado, é-lhe designado pelo juiz um defensor público, que passa a ser responsável pela sua defesa.

Conforme o percurso da ação judicial vai se delineando, são anexados ao processo pedidos de exames de sanidade mental, de exames técnicos de psicólogos e assistentes sociais, recursos, cartas precatórias com pedidos de testemunhos de pessoas que residam em outra comarca e laudos periciais do local do crime.

Em cada um dos momentos da instrução criminal, o promotor e o advogado se manifestam. O trajeto percorrido pelas pessoas envolvidas no fato durante a instrução é realizado do seguinte modo: primeiro é realizado o interrogatório do réu, após o qual é feita sua defesa prévia, diante da apresentação de suas testemunhas (em casos de homicídio são apresentadas no máximo oito testemunhas pela defesa e pela acusação, reduzindo-se este número para no máximo cinco nos processos ordinários, que comportam outros delitos); em seguida, são apresentadas as testemunhas de acusação. Por conseguinte, são requeridas as diligências a fim de fornecer elementos que ajudem na elucidação da questão em debate.

A participação da vítima no processo é praticamente nula, dando-se somente em ocasiões que exijam seu depoimento para o esclarecimento de alguns pontos referentes ao fato. Deste modo, toda a ação penal transcorre entre o acusado e o Poder Judiciário, mantendo-se a vítima afastada do processo.

A sentença é prolatada quando, diante da análise dos relatórios fornecidos pela defesa e pela acusação, decide-se pela existência ou não do fato jurídico, isto é, pela absolvição ou pela condenação8 8 Diante da existência de uma ação condenatória, são considerados os elementos e os artigos previstos no Código Penal para a aplicação da pena. É a partir destes elementos que o tipo do regime da prisão e o tempo previsto são definidos. do réu.

Ao contrário das decisões terminativas promulgadas nos Juizados Criminais Comuns, nos Juizados Especiais Criminais procura-se, antes de tudo, o acordo entre as partes envolvidas no conflito.

Como o caráter da legislação, que rege os juizados especiais, tem por objetivo a reparação de danos à vítima, a não aplicação da pena privativa de liberdade e a conciliação penal, tendo sempre como pressuposto a informalidade e maior presteza no percurso das ações, a oralidade passa a constituir um elemento preponderante neste contexto, já que possibilita o diálogo entre as partes e confere à vítima um empoderamento9 9 O conceito de empoderamento é utilizado por Izumino (2003, 2004) para definir os casos de violência doméstica, comunicados por mulheres vítimas às autoridades policiais e à esfera judiciária. Ao contrário da perspectiva feminista, que compreende a Lei 9.099/95 (BRASIL, 1995) como um retrocesso na solidificação dos direitos das mulheres, devido ao caráter de "impunidade" que seria atribuído a estes delitos através das transações penais, esta autora entende que os juizados especiais criminais viabilizaram o acesso à Justiça para estes tipos de crime. As mulheres ao efetuarem um registro policial e acionarem o Juizado Especial Criminal contra seus companheiros utilizam estratégias e recursos de poder, do qual estão investidas em uma relação conjugal, para tornarem pública a agressão. para decidir o rumo da ação penal.

Dispensada a realização do inquérito, a autoridade policial, seja o delegado ou qualquer outro indivíduo que trabalhe em uma delegacia, ou a própria Brigada Militar, ao tomar conhecimento do fato, elabora o termo circunstanciado e o remete ao Juizado Especial Criminal (Jecrim). Neste termo constam informações básicas sobre o ocorrido, como a identificação das partes nele envolvidas e dados que possibilitem a individualização dos fatos: a indicação de provas e das testemunhas. É neste momento que, também, são providenciadas as requisições dos exames periciais, para serem anexadas ao relatório. Além disso, caso seja possível, as partes podem comparecer imediatamente ao juizado para serem ouvidas.

Na fase subseqüente, assim que o Termo Circunstanciado é recebido pelo cartório do Jecrim, é marcada uma audiência preliminar e, em seguida, são intimadas as partes, via correio, para nela comparecerem. Nesta audiência, comparecem o acusado do fato, a vítima, seguidos de seus advogados (particulares ou defensores públicos) e o Ministério Público; o juiz procura esclarecer as partes sobre a possibilidade de acordo10 10 A conciliação pode ser conduzida pelo juiz ou por um conciliador leigo, que esteja sob sua orientação, desde que não faça parte das instâncias da justiça criminal; caso prevaleça a presença deste último, a homologação da conciliação deve ser realizada por um juiz de direito. e sobre as conseqüências imediatas quanto à aceitação da aplicação da pena restritiva de direitos ao autor do fato pela transação penal.

Se ocorrer o acordo para a composição de danos, é extinta a punibilidade; esta possibilidade é viável para aqueles delitos condicionados à representação, independentemente de se constituírem como uma ação penal privada ou como uma ação penal pública.

Diante da inexistência do acordo, a vítima pode encaminhar imediatamente a representação ou oferecer queixa-crime. Nos crimes caracterizados como ações penais públicas incondicionadas11 11 Para os crimes que constituem ações penais públicas incondicionadas, a responsabilidade de promover a ação cabe ao Ministério Público, independentemente da manifestação da vontade ou interferência da vítima. , o promotor público pode propor a transação penal ao acusado do fato, pela qual a aplicação da pena restritiva de direitos ou multa pode ser imediata, desde que ele não seja reincidente. Se o autor recusar-se a aceitar a transação penal, proposta pelo Ministério Público, o representante desta instância oferece a denúncia oralmente ao juiz, dando seguimento ao processo segundo o rito previsto pela Lei 9.099/95 (BRASIL, 1995).

Logo após o oferecimento da denúncia, o promotor pode, ainda, decidir pela suspensão do processo por dois ou até quatro anos. Esta medida somente pode ser aplicada para aqueles indivíduos que não possuem nenhum outro tipo de envolvimento criminal, em que figurem como acusados. A suspensão do processo também pode ser anulada caso estes descumpram qualquer uma das condições impostas em juízo12 12 Estas condições geralmente referem-se à restrição judicial para que o autor transfira sua residência para outra região, durante o período em que o processo está suspenso; à necessidade deste de comunicar, a este Poder, as viagens a serem realizadas por ele, que perdurem por mais de uma semana e ao seu comparecimento mensal, ou bimensal ao juizado, para assinar um prontuário. ou por serem processados por outro delito. Cumprido o prazo determinado, é extinta a punibilidade.

Por fim, inexistindo a possibilidade deste recurso, as partes são intimadas pelo juiz para comparecerem à audiência de instrução e julgamento, na qual a defesa apresenta seus argumentos oralmente em resposta à acusação. Caso o juiz aceite os elementos apresentados pela defesa, o processo é encerrado, sem que a queixa-crime ou denúncia seja recebida. Ao contrário, a vítima e as testemunhas, tanto de defesa quanto de acusação, são ouvidas e o acusado é interrogado; em seguida é aberto um espaço para os debates orais entre defesa e acusação, após os quais é proferida a sentença absolutória ou condenatória pelo juiz.

2 A construção dos elementos determinantes para a aplicação da sentença terminativa

Analisando o conteúdo dos relatórios anexados aos processos e as falas dos operadores do direito, foi possível elencar os elementos que permeiam as estratégias e argumentos utilizados nos tribunais, para definir o tipo de decisão judicial de um determinado caso. Frente a estes componentes, foi possível, ainda, dispor de dados e informações que fundamentam estas decisões e o modo como elas são usadas para determinar a entrada do litígio no fluxo deste sistema.

Diante da realidade empírica encontrada ao longo do trabalho de campo foi possível perceber as diferenças entre estes juizados criminais13 13 Os Juizados Especiais Criminais (Jecrim), instituídos em 1995 pela Lei 9.099/95 (BRASIL, 1995), passam a tratar daqueles crimes considerados de menor potencial ofensivo, cujos delitos compreendem as contravenções penais, e aqueles crimes em que a pena máxima atribuída, pela lei penal, não ultrapassa a um ano de reclusão ou detenção. Posteriormente a competência foi ampliada para delitos com pena máxima de até dois anos de reclusão. Deste modo, enquanto a Justiça Criminal Comum atende os litígios que envolvem crimes de estupro, atentado violento ao pudor, homicídio e lesões corporais graves, o Juizado Especial Criminal atua no sentido de administrar delitos de maus-tratos e lesões corporais leves e ameaça. e o tipo de tratamento que conferem para estas ações judiciais.

O modo como a justiça comum está organizada e a formalidade de seus procedimentos torna-a mais morosa, despendendo com isto um tempo prolongado para a resolução dos litígios a ela encaminhados. Com isto, uma ação judicial pode durar de dois a três anos, senão mais, até que receba uma sentença final. O papel da vítima nestas instâncias resume-se a uma participação insignificante; com exceção dos depoimentos por ela prestados na delegacia e em juízo, quando necessário, o processo todo transcorre entre o acusado e o Estado, independentemente do conflito entre as partes litigantes ter sido solucionado ao longo desse período. Este afastamento da vítima do percurso da ação penal, paralelo ao paradigma normativista que rege o cotidiano dos tribunais, incide sobre as decisões promulgadas em relação a estes tipos de embates sociais.

Um processo envolve falas, adaptações e enquadramentos de fatos aos artigos previstos pelo código legal (CÔRREA, 1983). Uma vez feita a queixa na delegacia de polícia, ela é remetida ao universo de articulações e ações que circundam o sistema de justiça criminal, sendo tratada de acordo com as atividades exercidas pelos técnicos do judiciário.

Ignorar a complexidade deste movimento impede um entendimento pormenorizado da lógica que rege o cotidiano nos tribunais. É a partir destas interpretações e dos sentidos atribuídos aos litígios pelos operadores do direito e magistrados que cada caso vai sendo construído. Os limites, as falas dos depoimentos que podem ou não ser anexadas aos autos dos processos, são determinados pelos operadores do direito, os quais vão delineando e lapidando a verdade a ser apresentada.

Nas ações criminais analisadas14 14 Ao longo do período investigado, que abrange os anos de 2000 a 2003, foram encontradas 100 ações judiciais conclusas de violência doméstica contra crianças e adolescentes nos três Juizados Criminais Comuns que compõem a Comarca de Santa Maria. Este número passa para 660 registros no Juizado Especial Criminal. A partir do levantamento realizado nos arquivos dos respectivos cartórios criminais, foi possível mapear os tipos de delitos e conflitos, relacionados à violência doméstica contra esta população, que entram no fluxo do sistema de justiça criminal desta comarca, quais sejam o atentado violento ao pudor, o estupro, os maus-tratos, o homicídio, a ameaça e as lesões corporais. ao longo da pesquisa percebeu-se que, além do conjunto de provas formais apresentadas, como os exames periciais, por exemplo, e o tipo de depoimento da vítima (coerente ou contraditório ao longo do percurso da ação judicial), elementos extralegais permearam a construção do processo, incidindo sobre as sentenças terminativas.

O tipo de relação concreta que os indivíduos envolvidos no fato possuem em suas relações sociais e o modelo de organização familiar do qual fazem parte influem no desfecho do processo. A reincidência de um acusado, independente do tipo de delito anteriormente praticado, impera como um agravante para a sua condenação, uma vez que se pressupõe a partir deste componente a sua "inclinação" para o mundo do crime. O mesmo ocorre em relação ao grupo familiar da vítima. A noção de família da qual partem estes operadores para interpretar e julgar o ocorrido está ligado à idéia de um modelo nuclear. A presença de outras formas de organização, assim como o meio em que as partes envolvidas vivem, é levada em consideração na decisão do tipo de sentença atribuída no final no processo.

Os valores dos magistrados, permeados pelos estereótipos presentes nas categorias sociais em que estão inseridos, são repletos de ambigüidades, permitindo com isto um extenso jogo de ação. Ao deparar-se com famílias de classes populares ou com aquelas que vivem em condições de pobreza absoluta, nas quais pais e filhos dividem o mesmo espaço para desempenhar suas tarefas diárias, a visão "relativizadora" destes profissionais para compreender os costumes locais ou as condições de determinada situação esvaece-se. Diante deste quadro, a existência da violência doméstica é posta em dúvida sob o argumento de que o ambiente promíscuo que cerca o contexto familiar não pode ser considerado como critério para a atribuição de uma sentença condenatória. A lógica deste discurso inverte-se quando as vítimas e acusados aproximam-se mais dos modelos de comportamento e de organização familiar esperados por estes profissionais; nestes casos, a possibilidade de uma sentença absolutória torna-se reduzida.

Os elementos de ordem extralegal que são utilizados pelas autoridades policiais, pela defesa e pela acusação para estruturar suas táticas de trabalho em relação aos crimes de violência doméstica contra as crianças e os adolescentes, manifestam-se igualmente nas atividades da magistratura.

As provas formais utilizadas pelo Poder Judiciário para confirmar a existência ou não de um delito são combinadas a componentes não legais. Deste modo, os exames periciais, os depoimentos e interrogatórios dividem espaço com aquelas informações referentes ao comportamento social apresentado pelas partes envolvidas no delito. O tipo de conduta apresentada pelo acusado ou pela vítima na sociedade influencia no desfecho da ação processual. O acesso à justiça não representa, necessariamente, uma garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes enquanto cidadãos. Neste contexto, o crime não é julgado por si só, enquanto uma infração a uma determinada norma social. A ação penal é revestida por conteúdos de ordens não convencionais, sendo transpassada por critérios valorativos encontrados na sociedade. A sustentação das sentenças terminativas ocorre a partir destes elementos. Neste sentido, não se julga somente o delito cometido, mas também o comportamento social das partes envolvidas no processo.

Se estes elementos extralegais orientam as decisões judiciais na justiça comum, no Juizado Especial Criminal há uma maior possibilidade de a vítima decidir o curso que deve tomar a ação litigiosa. Mesmo que os valores mencionados acima continuem presentes nas falas dos operadores do direito, o espaço para a sua manifestação é mais restrito, já que a informalização da justiça permite uma participação mais efetiva da parte que sofreu os danos.

Havendo a necessidade de representação da vítima para os delitos de ação privada ou pública condicionada, o desfecho da ação judicial vai depender unicamente de sua decisão. Isto permite que aqueles fatos que foram solucionados ou apaziguados fora dos tribunais, através de vias alternativas, não prossigam no fluxo do sistema como ocorre na justiça criminal comum.

A possibilidade de composição entre as partes e o princípio da conciliação, que orientam a Lei 9.099/95 (BRASIL, 1995), permite um desenlace mais célere destes litígios frente à justiça comum e uma resposta mais condizente em relação aos conflitos existentes. Mesmo diante dos problemas encontrados no seu funcionamento, os quais estão relacionados ao modo como esta legislação é interpretada pelos juízes, a forma como são atribuídas as transações penais ou, então, a necessidade de representação dos pais da criança ou do adolescente para o prosseguimento da ação judicial, os Juizados Especiais Criminais permitem um espaço mais amplo de negociação para os conflitos domésticos.

Se no período anterior a esta legislação os crimes que envolviam violência doméstica dificilmente entravam no fluxo do sistema de justiça criminal, a partir de sua instituição abriu-se um espaço para que estes embates pudessem ser negociados dentro dos tribunais (AZEVEDO, 2002). A mudança do Boletim de Ocorrência, que exigia a realização do inquérito policial, pelo termo circunstanciado, viabilizou a inserção destes delitos no sistema, os quais anteriormente eram postos de lado em detrimento às ocorrências policiais consideradas, pelos seus agentes, como mais graves como, por exemplo, aquelas relacionadas aos furtos, roubos, homicídios e ao tráfico de entorpecentes. Diante deste quadro, estas infrações dificilmente eram transformadas em ações litigiosas, pois os operadores do sistema consideravam outros delitos como prioritários (IZUMINO, 2004).

De modo geral, mesmo que a lei tenha aspectos positivos e inovadores procurando garantir a punição dos delitos que acabavam fugindo do fluxo do sistema de justiça criminal, a sua implementação plena tem-se deparado com alguns obstáculos. Problemas relacionados às questões fundamentais para o funcionamento do Poder Judiciário são observados no cotidiano. A instituição do termo circunstanciado agilizou o trabalho da polícia nestas situações, pois não há mais necessidade do inquérito policial; contudo, o que se tem percebido é a ausência do termo circunstanciado e o encaminhamento direto do registro de ocorrência para o juizado. Como este termo se constitui em um documento informativo sobre o fato, tendo por objetivo fornecer informações básicas a respeito das partes envolvidas no delito e da presença de outros elementos preponderantes para a ação judicial, como testemunhas e exames periciais, a sua não elaboração dificulta o trabalho do Ministério Público e do juiz na audiência preliminar, pois estes se deparam com a escassez de informações a respeito do acontecimento.

Paralelo a esta questão existe, ainda, outro ponto problemático sobre este assunto; com exceção os delitos de maus-tratos, que compõem uma ação pública incondicionada, sendo de responsabilidade do Ministério Público, os delitos de lesões corporais e ameaça necessitam da representação da vítima, para terem prosseguimento no sistema.

Como, neste caso, as vítimas são crianças e adolescentes, quem os representa nos tribunais são seus pais ou responsáveis legais. Logo, cabe a eles a decisão de oferecer ou não a queixa-crime contra o acusado no tribunal; tratando-se de delitos que envolvem violência doméstica há a possibilidade do responsável legal optar pelo não prosseguimento da ação litigiosa, inviabilizando, assim, qualquer tipo de intervenção do Poder Judiciário. Estas questões dificultam a adequação das respostas da justiça para estes tipos de delito.

Não obstante as inovações criadas pela legislação, que trouxe mudanças para o sistema de justiça, estes juizados se constituem como espaços nos quais não está em jogo a demanda para a obtenção destes direitos. Ao contrário, a publicização destes delitos configura estas instâncias como um espaço de (re)ordenamento dos conflitos familiares. A aplicação de uma pena restritiva de direito ou a composição entre as partes não significam a ausência de punição pela justiça; elas representam o uso de outras sanções empregadas.

Considerações finais

Devido à proposta da Lei 9.099/95 (BRASIL, 1995) e a forma de atuação dos Juizados Especiais Criminais, a aplicação de elementos extralegais nas ações penais de menor potencial ofensivo é muito restrita. Ao contrário do modelo empregado na justiça criminal comum, mesmo que os operadores do direito, que atuam no Jecrim, percebam estes delitos a partir destes componentes, o modo como operam os Juizados Especiais não permite a sua inserção nestes litígios. A necessidade de a vítima representar criminalmente contra o autor do fato reduz o campo de inferência destes elementos na decisão das sentenças terminativas.

Levando em consideração os problemas relacionados ao acesso à justiça e às informações de como esta instituição opera, além daqueles derivados de seu funcionamento interno, a informalização da justiça permite a reparação de danos sofrida pela vítima, sua participação no decorrer da ação judicial e a possibilidade de conciliação entre as partes. Esta perspectiva contrapõe-se ao modelo tradicional de justiça criminal, que é caracterizado pela apropriação do embate social pelo Estado e pelo recurso à punição, elementos que, além de não solucionarem o conflito, são geradores de estigmatização do acusado e de sua família, conservando a vítima afastada das decisões tomadas.

Neste sentido, os Juizados Especiais Criminais, em relação à justiça criminal comum, surgem como formas alternativas de resolução dos conflitos que envolvem situações de violência doméstica, oportunizando sua entrada no sistema judiciário. As dificuldades encontradas não dizem respeito à legislação, mas correspondem às interpretações e a forma como ela é aplicada pelos operadores do direito. É neste sentido que as mudanças devem ser pensadas.

Notas

Este trabalho tem sua origem nos estudos feitos para a dissertação O tratamento dado à violência contra crianças e adolescentes pela justiça criminal: estudo de caso em Santa Maria, orientados pelo Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, entre 2002 e 2003.

Recebido em 17.10.2005.

Aprovado em 19.12.2005.

Mari Cleise Sandalowski

mari_ppgs@yahoo.com.br

Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

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  • VARGAS, J. Crimes sexuais e sistema de justiça São Paulo: IBCCrim, 2000.
  • 1
    Este conceito encontrava-se revestido por uma série de elementos estigmatizantes, já que era utilizado para qualificar meninos e meninas, oriundos de classes populares, como abandonados e delinqüentes. Deste modo, crianças e adolescentes provenientes de famílias pobres, cujo modelo familiar não era nuclear, tinham maior probabilidade de serem encaminhados ao juízo, mesmo que não se enquadrassem no modelo descritivo proposto pela legislação, baseado na noção de privação de condições essenciais para a sua subsistência e na existência de maus-tratos imoderados (OLIVEIRA, 1999).
  • 2
    O Código de Mello Matos foi criado na década de 1920 como conseqüência das novas concepções de infância que surgem naquele período. As mudanças sociais observadas na sociedade brasileira nas primeiras décadas do século XX influem na transformação da estrutura familiar e, conseqüentemente, na modificação das relações sociais entre os indivíduos, levando a sociedade a remodelar e reorganizar o espaço público; estas mudanças fizeram com que os ciclos de vida passassem a serem definidos mais nitidamente, havendo a separação entre infância, adolescência, juventude, maturidade e velhice (ARPINI, 2001). Na década de 1970, este estatuto é substituído pelo Código de Menores.
  • 3
    No período anterior ao Estado Moderno, os controles formais e informais atuavam paralelamente e sua diferenciação praticamente inexistia. Contudo, ao longo de todo o processo histórico, as transformações sociais que foram observadas produziram algumas mudanças nos modelos de controle social. Enquanto os controles informais são exercidos por meio de interações sociais habituais, tendo como referência a reciprocidade, os controles formais passam a derivar das instituições socialmente legitimadas para o seu exercício (ROMANI, 2003). Passando a se constituir como o meio legal para a resolução dos conflitos, o controle social formal, a fim de se tornar efetivo, passa a exigir a criação de uma série de mecanismos e instituições, responsáveis pela normatização dos aspectos de vida dos indivíduos. Inserido neste processo de formação do Estado Moderno, o aparato jurídico e o discurso de seus representantes assumem um caráter abstrato e formal.
  • 4
    Ao longo das últimas décadas, o sistema judiciário brasileiro tem enfrentado uma problemática constante quanto a sua incapacidade de responder satisfatoriamente as demandas da sociedade. O processo de desenvolvimento desencadeado no país a partir dos 1970, cuja origem é encontrada na industrialização, gerou uma série de mudanças políticas, econômicas e sociais que repercutiram no crescimento de conflitos e nos padrões de comportamento de diferentes segmentos da sociedade. Por conseqüência, diferentes grupos sociais passaram a exigir judicialmente do Estado serviços essenciais para o seu dia-a-dia, além de buscar nesta instância a solução para conflitos anteriormente apaziguados em outras esferas da sociedade. Esta explosão de litígios onera o sistema judiciário, tornando-o mais lento. Assim, este sistema passa a defrontar-se com uma crise de legitimidade e credibilidade em vários setores da sociedade. Buscando tornar a justiça mais célere e informal é criada no ano de 1995 a Lei 9.099 para aqueles crimes considerados de menor potencial ofensivo. Esta legislação tem por princípio a oralidade, a celeridade, a composição entre as partes e a informalidade, buscando, sempre que possível, a redução de danos às vítimas (AZEVEDO, 1999).
  • 5
    As pesquisas realizadas pelas antropólogas Mariza Correa (CORREA, 1983) e Joana Vargas (VARGAS, 2000) permitem uma análise mais detalhada sobre a influência que os agentes policiais exercem no arquivamento ou prosseguimento do fato dentro do sistema de justiça criminal.
  • 6
    De acordo com Vargas (2000, p. 139), "[...] a responsabilidade da ação penal que dá origem à denúncia é do Ministério Público, quando pública, e do representante legal do ofendido (advogado), quando privada. [...] em crimes sexuais, salvo condições especiais, a ação é privada. No entanto, de acordo com o CP, uma ação privada pode tornar-se pública, condicionada à manifestação da vítima ou de seu representante legal através da representação, quando os queixosos alegarem que não podem arcar com as custas do processo".
  • 7
    O número máximo de testemunhas permitido, tanto de acusação como de defesa, é de oito indivíduos para cada parte envolvida no delito.
  • 8
    Diante da existência de uma ação condenatória, são considerados os elementos e os artigos previstos no Código Penal para a aplicação da pena. É a partir destes elementos que o tipo do regime da prisão e o tempo previsto são definidos.
  • 9
    O conceito de empoderamento é utilizado por Izumino (2003, 2004) para definir os casos de violência doméstica, comunicados por mulheres vítimas às autoridades policiais e à esfera judiciária. Ao contrário da perspectiva feminista, que compreende a Lei 9.099/95 (BRASIL, 1995) como um retrocesso na solidificação dos direitos das mulheres, devido ao caráter de "impunidade" que seria atribuído a estes delitos através das transações penais, esta autora entende que os juizados especiais criminais viabilizaram o acesso à Justiça para estes tipos de crime. As mulheres ao efetuarem um registro policial e acionarem o Juizado Especial Criminal contra seus companheiros utilizam estratégias e recursos de poder, do qual estão investidas em uma relação conjugal, para tornarem pública a agressão.
  • 10
    A conciliação pode ser conduzida pelo juiz ou por um conciliador leigo, que esteja sob sua orientação, desde que não faça parte das instâncias da justiça criminal; caso prevaleça a presença deste último, a homologação da conciliação deve ser realizada por um juiz de direito.
  • 11
    Para os crimes que constituem ações penais públicas incondicionadas, a responsabilidade de promover a ação cabe ao Ministério Público, independentemente da manifestação da vontade ou interferência da vítima.
  • 12
    Estas condições geralmente referem-se à restrição judicial para que o autor transfira sua residência para outra região, durante o período em que o processo está suspenso; à necessidade deste de comunicar, a este Poder, as viagens a serem realizadas por ele, que perdurem por mais de uma semana e ao seu comparecimento mensal, ou bimensal ao juizado, para assinar um prontuário.
  • 13
    Os Juizados Especiais Criminais (Jecrim), instituídos em 1995 pela Lei 9.099/95 (BRASIL, 1995), passam a tratar daqueles crimes considerados de menor potencial ofensivo, cujos delitos compreendem as contravenções penais, e aqueles crimes em que a pena máxima atribuída, pela lei penal, não ultrapassa a um ano de reclusão ou detenção. Posteriormente a competência foi ampliada para delitos com pena máxima de até dois anos de reclusão. Deste modo, enquanto a Justiça Criminal Comum atende os litígios que envolvem crimes de estupro, atentado violento ao pudor, homicídio e lesões corporais graves, o Juizado Especial Criminal atua no sentido de administrar delitos de maus-tratos e lesões corporais leves e ameaça.
  • 14
    Ao longo do período investigado, que abrange os anos de 2000 a 2003, foram encontradas 100 ações judiciais conclusas de violência doméstica contra crianças e adolescentes nos três Juizados Criminais Comuns que compõem a Comarca de Santa Maria. Este número passa para 660 registros no Juizado Especial Criminal. A partir do levantamento realizado nos arquivos dos respectivos cartórios criminais, foi possível mapear os tipos de delitos e conflitos, relacionados à violência doméstica contra esta população, que entram no fluxo do sistema de justiça criminal desta comarca, quais sejam o atentado violento ao pudor, o estupro, os maus-tratos, o homicídio, a ameaça e as lesões corporais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      19 Dez 2005
    • Recebido
      17 Out 2005
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