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Entre o público e o privado: as estratégias atuais no enfrentamento à questão social

Between the public and the private: current strategies for confronting the social question

Resumos

O objetivo deste artigo é refletir sobre a relação público/privado no Estado burguês e sobre a relação destas esferas no que se refere ao enfrentamento da questão social. Inicia apresentando a origem dessas relações com o desenvolvimento da sociedade burguesa para, a seguir, contextualizar as situações e relações surgidas com a transição ao capitalismo monopolista. Busca demonstrar que nas várias etapas do capitalismo são construídas estratégias econômicas, políticas, sociais e culturais, no intuito de responder às demandas geradas pela contradição entre capital e trabalho. Finaliza apontando as formas atuais destas estratégias que, reformuladas, a partir da década de 1970, sinalizam novos padrões de intervenção na questão social.

Estado burguês; público; privado; questão social


The purpose of this article is to reflect on the relationship between the public and private in the bourgeois state and about the relationship of these spheres in terms of confronting the social question. It begins by presenting the origin of these relationships at the development of bourgeois society, and then contextualizes the situations and relations that arose with the transition to monopoly capitalism. It seeks to demonstrate that in the various phases of capitalism, economic, political, social and cultural strategies are constructed to respond to the demands generated by the contradiction between capital and labor. It concludes by pointing to the current forms of these strategies which, reformulated since the 1970's, indicate new standards of intervention in the social question.

bourgeois state; public; private; social question


PESQUISA TEÓRICA

Paula Bonfim

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

RESUMO

O objetivo deste artigo é refletir sobre a relação público/privado no Estado burguês e sobre a relação destas esferas no que se refere ao enfrentamento da questão social. Inicia apresentando a origem dessas relações com o desenvolvimento da sociedade burguesa para, a seguir, contextualizar as situações e relações surgidas com a transição ao capitalismo monopolista. Busca demonstrar que nas várias etapas do capitalismo são construídas estratégias econômicas, políticas, sociais e culturais, no intuito de responder às demandas geradas pela contradição entre capital e trabalho. Finaliza apontando as formas atuais destas estratégias que, reformuladas, a partir da década de 1970, sinalizam novos padrões de intervenção na questão social1.

Palavras-chave: Estado burguês, público, privado, questão social.

ABSTRACT

The purpose of this article is to reflect on the relationship between the public and private in the bourgeois state and about the relationship of these spheres in terms of confronting the social question. It begins by presenting the origin of these relationships at the development of bourgeois society, and then contextualizes the situations and relations that arose with the transition to monopoly capitalism. It seeks to demonstrate that in the various phases of capitalism, economic, political, social and cultural strategies are constructed to respond to the demands generated by the contradiction between capital and labor. It concludes by pointing to the current forms of these strategies which, reformulated since the 1970's, indicate new standards of intervention in the social question.

Key words: bourgeois state, public, private, social question.

Introdução

Chama atenção o fato de que uma das peculiaridades da sociedade burguesa é o isolamento entre as esferas do público e do privado que dá ao Estado burguês um caráter diferenciado de todas as outras formas de dominação de classe (MANDEL, 1982). Esse autor afirma que, embora a origem do Estado coincida com a origem da propriedade privada e esteja associada, em certa medida, à separação das esferas privada e pública, o Estado é mais antigo que o capital e suas funções se modificam nos diferentes modos de produção.

Outro aspecto importante para a compreensão da relação entre público e privado na sociedade capitalista, está no fato de que esta autonomização do Estado, a qual Mandel se refere, não é absoluta, mas só pode ser pensada em termos relativos. Isto porque

[...] as decisões do 'capitalista total ideal', enquanto transcendem os interesses competitivos conflitantes de capitalistas específicos, têm efeitos importantes sobre esses interesses. Toda decisão estatal relativa a tarifas, impostos, ferrovias ou distribuição do orçamento afeta a concorrência e influencia a redistribuição social global da mais-valia, com vantagens para um ou outro grupo de capitalistas. Todos os grupos capitalistas são obrigados, portanto, a se tornarem politicamente ativos, não só para articular suas concepções sobre os interesses coletivos de classe, mas também para defender seus interesses particulares (MANDEL, 1982, p. 337, grifos do autor).2 2 Um exemplo bem atual disto é a disputa entre a burguesia industrial e a burguesia financeira. Enquanto a burguesia industrial tenta junto ao Estado reduzir os juros para recuperar seu poder de investimento, a burguesia financeira (que atualmente detém o maior poder de força) disputa por maior espaço no campo da especulação.

A esfera pública da sociedade burguesa, portanto, consolida-se dentro dos princípios do Estado de direito burguês, identificando assim o interesse geral com os interesses da classe burguesa (HABERMAS, 1984 apud RAICHELIS, 2000).

A bibliografia consultada3 3 Mandel (1982) e fundamentalmente Paulo Netto (1996). , revela que, com a transição do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista, a relação entre público e privado sofre alterações substanciais. Se no capitalismo concorrencial o Estado era o representante do "capitalista coletivo" e não interferia nas condições internas da produção, no capitalismo monopolista ele passa a garantir tanto as condições externas como as condições internas de forma contínua e sistemática: "Mais exatamente, no capitalismo monopolista, as funções 'políticas' do Estado imbricam-se organicamente com suas funções 'econômicas'" (PAULO NETTO, 1996, p. 21, grifos do autor).

Dentre as muitas funções assumidas pelo Estado nessa fase do capitalismo - inserção nos setores não rentáveis (como os de energia e matérias-primas), ajuda a empresas, entrega aos monopólios de complexos construídos com fundos públicos, investimentos em infraestrutura etc. -, destaca-se aquela referente às garantias da reprodução e do controle da força de trabalho. Pois, enquanto

[...] no capitalismo concorrencial, a intervenção estatal sobre as sequelas da exploração da força de trabalho respondia básica e coercitivamente às lutas das massas exploradas ou à necessidade de preservar o conjunto de relações pertinentes à propriedade privada burguesa como um todo - ou, ainda, à combinação desses vetores; no capitalismo monopolista, 'a preservação e o controle contínuos' da força de trabalho, ocupada e excedente, 'é uma função estatal de primeira ordem': não está condicionada apenas àqueles dois vetores, mas às enormes dificuldades que a reprodução capitalista encontra na malha de óbices à valorização do capital no marco do monopólio (PAULO NETTO, 1996, p. 22, grifos do autor).

É por causa desta dinâmica, própria da ordem monopólica (considerando aqui também a pressão da classe trabalhadora) que as expressões da questão social tornaram-se objeto da ação estatal. As esferas do público e do privado imbricam-se de tal forma neste momento que possibilitam a responsabilização do Estado pelo que se convencionou chamar de "problemas sociais".

As formas de enfrentamento às expressões da questão social na ordem monopólica

Com a organização monopólica, observa-se uma inflexão no que se refere ao enfrentamento das expressões da questão social, ou seja, atribuiu-se, neste momento, um caráter "público" a tais refrações:

[...] as sequelas da ordem burguesa passaram a ser tomadas como áreas e campos que legitimamente reclamavam, e mereciam, a intervenção da instância política que, formal e explicitamente, mostrava-se como expressão e manifestação da coletividade (PAULO NETTO, 1996, p. 30).

O autor chama a atenção para um fato: embora esta inflexão, que se verifica com a fase dos monopólios, contraponha-se à lógica liberal do período anterior e, assim, ao ethos individualista deste ideário, observa-se que esta lógica não se rompe por completo, mas é recuperada e adequada a esta fase específica. Ou seja,

[...] nas condições da idade do monopólio, o caráter público do enfrentamento das refrações da questão social incorpora o substrato individualista da tradição liberal, 'ressituando-o' como elemento subsidiário no trato das sequelas da vida social burguesa. [...]. Eis por que o redimensionamento do Estado burguês no capitalismo monopolista em face da questão social simultaneamente corta e recupera o ideário liberal - 'corta-o', intervindo através de políticas sociais; 'recupera-o', debitando a continuidade das suas sequelas aos indivíduos por elas afetados (PAULO NETTO, 1996, p. 31-32, grifos do autor).

Esse processo o autor interpreta como um dispositivo de psicologização da vida social e afirma que ele não se constitui somente quando é imputada ao indivíduo a responsabilidade por seus problemas, mas também quando, através do atendimento institucional "personalizado" (através de técnicas de ajustamento), ocorre a sensação de inserção social.

Se assim é, o potencial legitimador da ordem monopólica contido na psicologização ultrapassa de longe a imputação ao indivíduo da responsabilidade do seu destino social; bem mais que este efeito, por si só relevante, implica um tipo novo de relacionamento 'personalizado' entre ele e instituições próprias da ordem monopólica que, se não se mostram aptas para solucionar as refrações da 'questão social' que o afetam, são suficientemente lábeis para entrelaçar, nos 'serviços' que oferecem e executam, desde a indução comportamental até os conteúdos econômicos-sociais mais salientes da ordem monopólica - num exercício que se constitui em verdadeira 'pedagogia' psicossocial, voltada para sincronizar as impulsões individuais e os papéis sociais propiciados aos protagonistas (PAULO NETTO, 1996, p. 38, grifos do autor).

Esta análise leva a questionar a relação que se estabelece entre público e privado na atualidade, já que a fase atual do capitalismo monopolista exige também uma rede-finição destes espaços. Se, por um lado, observa-se ainda a permanência do setor estatal no enfrentamento das se-quelas da questão social, por outro, verifica-se a expansão do setor "privado"4 4 Em referência às ações institucionais privadas de enfrentamento da questão social. , representado fundamentalmente pelo que se convencionou chamar de "terceiro setor"5 5 Apesar de utilizar esta expressão, vale salientar que esta definição não é algo consensual, nem mesmo entre os seus teóricos. Para Montaño (2002, p. 55, grifos do autor), entre as debilidades do termo "terceiro setor" está a falta de consenso no que diz respeito ao tipo de instituições que o integram. "[...] Para alguns, apenas incluem-se as 'organizações formais'; para outros, contam até as 'atividades informais, individuais', ad hoc; para alguns outros, as 'fundações empresariais' seriam excluídas; em outros casos, os 'sindicatos, os movimentos políticos insurgentes, as seitas' etc. ora são considerados pertencentes, ora são excluídos do conceito." . Se, na primeira etapa do capitalismo monopolista, as políticas sociais privadas (PAULO NETTO, 1996), apresentavam-se de forma muito pontual, neste momento já não se pode dizer o mesmo.

É importante esclarecer que o capitalismo mundial ainda se encontra na sua fase monopólica. No entanto, em virtude da crise mundial, que se apresenta a partir da década de 1970, surge a necessidade de se fazer ajustes com o objetivo de combater tal crise.

Os ajustes que são formulados a partir da década de 70 não dizem respeito somente aos aspectos econômicos e políticos da crise global, mas estão também relacionados aos aspectos social e moral. Hobsbawm (1995, p. 20-21) chama a atenção para este fato:

[...] a crise moral não dizia respeito apenas aos supostos da civilização moderna, mas também às estruturas históricas das relações humanas que a sociedade moderna herdara de um passado pré-industrial e pré-capitalista e que, agora vemos, haviam possibilitado seu funcionamento. Não era a crise de uma forma de organizar sociedades, mas de todas as formas.

O que entra em colapso - no final do século 20 - são os velhos padrões de relacionamento humano, aqueles herdados de um passado pré-capitalista e conservados na estrutura da sociedade burguesa, onde a lógica da busca individual pela satisfação pode conviver com um conjunto de normas morais avessas a tal lógica. Observa-se um acirramento dos princípios do liberalismo clássico e, desta forma, do ethos individualista que, por sua vez, vai se manifestar tanto no que se refere à localização dos "problemas sociais" - esses retornam ao âmbito privado onde a satisfação das necessidades é função exclusiva dos indivíduos - quanto ao enfrentamento de tais problemas. Esse enfrenta-mento, que na fase inicial do capitalismo monopolista pertenceu ao campo de intervenção estatal, passa a ter, na atualidade, a "perspectiva privada" como uma alternativa expressiva. A "[...] ótica de 'individualização' que transfigura os problemas sociais em problemas pessoais (privados)" (PAULO NETTO, 1996, p. 32, grifos do autor) permanece, mas a respon-sabilização pública por tais problemas torna-se ausente no discurso e residual na prática.6 6 Quando se afirma a ausência no discurso da respon-sabilização estatal pelo enfrentamento das sequelas da questão social, refere-se ao componente ideológico que contém este tema na atualidade (o estímulo e a divulgação da mídia às alternativas "privadas") embora do ponto de vista jurídico/formal o Estado (ainda) seja o responsável por tal enfrentamento. A este respeito ver Behring (2003), Montaño (2002) e Yazbek, (2002).

A lógica neoliberal ao mesmo tempo em que identifica os problemas sociais como responsabilidade dos indivíduos também sugere que sejam resolvidos no âmbito privado - através de esforços próprios ou, quando isso não é possível, através de instituições privadas da sociedade civil atreladas às práticas de doações e do "trabalho" voluntário.

Há a considerar um outro aspecto importante referente à psicologização da vida social. Segundo Paulo Netto (1996, p. 42, grifos do autor), para que isto ocorra é preciso tomar a questão social como algo natural, próprio das relações humanas, por isso, um problema moral. Ou seja,

[...] a rota da psicologização passa, num primeiro momento, pela determinação da problemática da 'questão social' como sendo 'externa' às instituições da sociedade burguesa - ela deriva não das suas dinâmicas e estrutura, mas de um conjunto de 'dilemas mentais e morais'; [...] O deslocamento que verificamos aqui não converte a psicologização em individualização. Ele consiste basicamente em dois movimentos: um, que 'deseconomiza' (e, portanto desistoriciza) a 'questão social'; outro, que situa o alvo da ação tendente a intervir nela no âmbito de algumas expressões anímicas.

Observa-se, de forma ainda mais explícita, o caráter conservador contido no tratamento da questão social. Com a "cultura da crise" (MOTA, 2000) e a tese do "fim da história" (FUKUYAMA,1992), as refrações da questão social devem ser tratadas, mais do que nunca, no âmbito da moral. Não é por acaso que se evidencia a tentativa de se estabelecer, a todo custo, uma moralidade que dê conta deste momento histórico onde a suposta harmonia social está ameaçada.

A lógica conservadora, portanto, não ignora o perigo instaurado pelo acirramento da questão social. Durkheim (1984 apud PAULO NETTO, 1996, p. 44, grifos do autor), afirma que a alternativa para este problema não pode ser encontrada na individualização, mas deve ir na direção da coesão social:

O nervo da reflexão durkheimiana pode corretamente ser localizado na questão do 'controle social' - e é então que a sua modalidade de psicologização das relações sociais aparece inteira: a essência de um tal controle, efetivo e operante, encontra-se na 'esfera da moral'. [...] Durkheim insere o seu moralismo [...] por um lado, com o mais direto apelo à naturalização da sociedade, considera eternos e a-históricos certos mecanismos básicos que determinam a estratificação social que tem sua culminação com a sociedade burguesa; [...]. A função [...] da moral, compulsoriamente constrangedora, é justamente garantir a vigência dos comportamentos 'normais' e, universalizada, sancionar a classificação da sua variação como desvio sociopático.

Durkheim (1984 apud PAULO NETTO, 1996, p. 45) aponta a necessidade de coesão social, que se dê através de reforma moral, intermediada por instituições estatais. Desenvolvendo seu pensamento, ele (1984, p. 184-186) critica a caridade individual:

[...] a caridade, no sentido corrente e geral do termo, a caridade de indivíduo para indivíduo, não tem valor moral por si mesma, e não poderia, por si só, construir o objetivo normal do comportamento moral. [...]. Só os objectivos colectivos são verdadeiramente morais. [...] A caridade só terá pois valor moral, como sintoma das situações com as quais é solidária, e pelo facto de indicar uma disposição moral para nos entregarmos, para sairmos de nós mesmos, para ultrapassarmos o âmbito dos interesses pessoais, disposição essa que abre as vias à moralidade verdadeira.

Embora a alternativa durkheimiana, não se ajuste à lógica neoliberal atual, as alternativas propostas pelo "novo" padrão de intervenção social, que incluem parcerias entre público e privado, com destaque para a "perspectiva privada", correspondem de certo modo, aos objetivos da coletividade, para Durkheim. Para esse autor, as condições sociais só podem ser modificadas com ações coletivas, pois

[...] males tão manifestamente sociais, requerem um tratamento social. Contra os mesmos, o indivíduo isolado nada consegue. O único remédio eficaz encontra-se numa 'caridade colectivamente organizada'. Necessário se torna que os esforços particulares se congreguem, se concentrem, se organizem, para produzirem algum efeito. Então, o acto adquire simultaneamente um mais elevado caráter social, precisamente porque serve finalidades mais genéricas e mais impessoais [...] (DURKHEIM, 1984, p.187, grifos nossos).

Esta passagem leva a inferir que o desenvolvimento da "perspectiva privada" através do "terceiro setor"7 7 Existe uma variedade de instituições que compõe o chamado "terceiro setor", que vão desde aquelas comprometidas com a manutenção das relações sociais burguesas até aquelas com conteúdo crítico que visam outro projeto societário. Estou me referindo aqui àquelas que se enquadram na primeira definição. e das ações voluntárias é perfeitamente compatível com o pensamento conservador de Durkheim, levando-se em conta os seguintes aspectos: em ambos os casos observa-se uma tendência a naturalizar os processos sociais, como se as manifestações da questão social (pobreza, desemprego, a exploração, as precárias condições de inserção da força de trabalho no mercado e de moradia, saúde, habitação etc.) fossem eternas e a-históricas, e que o máximo que se pode fazer é amenizá-las ou administrá-las. Além disso, tanto na teoria durkheimiana como no âmbito da "perspectiva privada", outros dois aspectos são enfatizados: o caráter moralizador e o caráter pragmático das ações.

Um outro aspecto em destaque na atualidade, e também em sintonia com o pensamento durkheimiano, é a ênfase dada à educação. Aqui, aparece a necessidade de desenvolver e/ou reforçar certos valores fundamentais para uma convivência pacífica entre as classes, ou como diria Durkheim, necessários à coesão social (DURKHEIM, 1984, p.16):

[...] a sociedade somente poderá viver se entre os seus membros existir uma suficiente homoge-neidade: a educação perpetua e reforça essa homo-geneidade, fixando antecipadamente na alma da criança as similitudes essenciais que a vida coletiva exige.

A conjuntura atual necessita, mais do que nunca, desta homogeneidade social e a escola é o lugar mais apropriado para isto.

Desta forma é que valores como a solidariedade tem que ser resgatados a todo custo. Não mais aquela solidariedade do passado que decorre da mútua dependência, ou puramente uma solidariedade cristã, mas uma "solidariedade interclasses" (GUSMÃO, 2000), que oculte as relações de exploração, que possa conviver em harmonia com as diferenças sociais (para não dizer desigualdades sociais).

Considerações finais

As reflexões feitas até o presente momento permitem verificar que, com a transição do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista, as relações entre o público e o privado sofrem transformações significativas.

O Estado burguês passa a interferir cada vez mais na economia e observa-se também uma nova forma de intervenção social, ou seja, o Estado assume a responsabilidade no enfrentamento das manifestações da questão social. Percebe-se entretanto, que, ao mesmo tempo que este enfrentamento passa a ser feito através de políticas públicas, as ações profissionais continuam enfocando o âmbito privado via moralização da questão social. Neste sentido é que muitos teóricos como Paulo Netto chamam a atenção para a psicologização das relações sociais. Pois tanto a perspectiva quanto a lógica neoliberal voltam-se para novos padrões de intervenção, corroborando e encorajando ações que se desenvolvam no âmbito privado.

Observa-se, assim, que a "perspectiva pública" não sai de "cena". A ideia principal é que esta "perspectiva" não pode (e, para alguns teóricos neoliberais, não deve) assumir sozinha a responsabilidade pelas manifestações da "questão social" que se expressam nas situações de pobreza, miséria, desemprego, precariedade na educação, na saúde, nas relações de trabalho etc. O que deve prevalecer é a fusão cada vez maior entre o público e o privado com o intuito de desconstruir o "referencial público" no caso daquelas áreas em que houve este reconhecimento (por exemplo, na educação, na saúde e na previdência social), pois, no caso da assistência este referencial não foi alcançado, o que a compromete ainda mais.

A opção por esta fusão entre a "perspectiva pública" e a "privada", com destaque para essa última, desconstrói a ideia de direito na garantia das políticas sociais. Sugere alternativas que "privilegiam" a "perspectiva privada" na garantia dos "mínimos sociais", enfatizando e publicizando assim a ideia de que esta é a "única" alternativa viável na conjuntura atual. Desta forma, atua como um componente ideológico importante - nesta fase específica do capitalismo - para a manutenção das relações de exploração e desigualdade.

Esta é uma tendência em legitimar "novas" formas privadas de provisão de atenções sociais, por meio de "velhas" formas de solidariedade familiar, comunitária e beneficente, que não alterem os mecanismos de exploração e de desigualdade social (MESTRINER, 2001).

Entretanto, como já foi sinalizado, isto não significa afirmar que o Estado deixa de assumir totalmente sua responsabilidade no enfrentamento às sequelas da questão social. Suas ações, portanto, devem ser focalizadas, atendendo àqueles que estão em situação de extrema vulnerabilidade social.

Refletir sobre estas relações possibilita apreender as contradições referentes às respostas dadas às manifestações da questão social na atualidade e questionar a direção político-ideológica de tais alternativas.

Notas

1 Este artigo foi elaborado a partir da dissertação de Bonfim (2004) As principais determinações econômicas e ideopolíticas da "cultura do voluntariado" no Brasil na atualidade, apresentada na Escola de Serviço Social. da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em dezembro de 2004.

Recebido em 03.03.2010. Aprovado em 24.06.2010.

Paula Bonfim

bonfimpaula@gmail.com Doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Orientadora: Profa. Dra. Yolanda Aparecida Demétrio Guerra

UFRJ - Escola de Serviço Social, Pós-Graduação

Av. Pasteur, 250 fds

Praia Vermelha

Rio de Janeiro - RJ

CEP: 22290-240

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  • Entre o público e o privado: as estratégias atuais no enfrentamento à questão social

    Between the Public and the Private: Current Strategies for Confronting the Social Question
  • 2
    Um exemplo bem atual disto é a disputa entre a burguesia industrial e a burguesia financeira. Enquanto a burguesia industrial tenta junto ao Estado reduzir os juros para recuperar seu poder de investimento, a burguesia financeira (que atualmente detém o maior poder de força) disputa por maior espaço no campo da especulação.
  • 3
    Mandel (1982) e fundamentalmente Paulo Netto (1996).
  • 4
    Em referência às ações institucionais privadas de enfrentamento da questão social.
  • 5
    Apesar de utilizar esta expressão, vale salientar que esta definição não é algo consensual, nem mesmo entre os seus teóricos. Para Montaño (2002, p. 55, grifos do autor), entre as debilidades do termo "terceiro setor" está a falta de consenso no que diz respeito ao tipo de instituições que o integram. "[...] Para alguns, apenas incluem-se as 'organizações formais'; para outros, contam até as 'atividades informais, individuais',
    ad hoc; para alguns outros, as 'fundações empresariais' seriam excluídas; em outros casos, os 'sindicatos, os movimentos políticos insurgentes, as seitas' etc. ora são considerados pertencentes, ora são excluídos do conceito."
  • 6
    Quando se afirma a ausência no discurso da respon-sabilização estatal pelo enfrentamento das sequelas da questão social, refere-se ao componente ideológico que contém este tema na atualidade (o estímulo e a divulgação da mídia às alternativas "privadas") embora do ponto de vista jurídico/formal o Estado (ainda) seja o responsável por tal enfrentamento. A este respeito ver Behring (2003), Montaño (2002) e Yazbek, (2002).
  • 7
    Existe uma variedade de instituições que compõe o chamado "terceiro setor", que vão desde aquelas comprometidas com a manutenção das relações sociais burguesas até aquelas com conteúdo crítico que visam outro projeto societário. Estou me referindo aqui àquelas que se enquadram na primeira definição.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      2010
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