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Desafios contemporâneos das políticas sociais

EDITORIAL

Desafios contemporâneos das políticas sociais

Contemporary challenges to social policy

O presente fascículo da Revista Katálysis proporciona aos leitores artigos que oferecem um panorama nacional e internacional das principais inquietações que atravessam o debate da política social hoje.

Os artigos, como se verá, partem de mirantes de observação diferenciados e ferramentas conceituais diversificadas, evidentemente, sempre mediados pela visão de mundo dos autores. Há que lembrar que, especialmente, o tema da política social, a despeito do mito da neutralidade e da objetividade científicas, sempre foi atravessado por fortes tensões políticas, considerando que se trata de políticas públicas e sociais que incidem na questão distributiva, lidam com as desigualdades e múltiplas expressões da questão social, e resultam da luta de classes.

As expressões da questão social, por seu turno, encontram-se exponenciadas nesse tempo histórico de crise do capitalismo, com seus fortes impactos sobre o mundo do trabalho. Essa situação redimensiona a política social em todos os quadrantes, imprimindo uma dinâmica focalista e assistencialista - o que é diferente da visão de assistência social como política de seguridade, que vimos defendendo no âmbito do projeto ético-político, construído pelo Serviço Social no Brasil.

Neste início de século 21, estamos cada vez mais distantes da experiência social-democrata europeia dos tempos de pleno emprego e crescimento após a Segunda Guerra Mundial, e cujos ares chegaram retardatariamente entre nós com a Constituição de 1988, e se tornaram logo em seguida rarefeitos pelos impactos das orientações neoliberais e da política macroeconômica desde o Plano Real (1994).

Na verdade, temos uma forte reação burguesa à crise do capital, desde os anos 1980, que vem desencadeando processos regressivos, sendo marcada por um triplo movimento.

Primeiro, tem-se a contrarreforma do Estado, com o redirecionamento do fundo público para assegurar as condições gerais de produção e reprodução do capital, processo este coordenado pelas necessidades do capital portador de juros. Neste passo, são alocados menos recursos à reprodução da força de trabalho, fragilizando as políticas sociais de caráter universal e forçando a lógica do custo benefício para a proteção social, e não a lógica do direito. Este movimento é acompanhado de alterações da estrutura tributária dos países, com menores taxas sobre a propriedade privada e as grandes fortunas e maior participação da renda dos trabalhadores nas cargas tributárias nacionais, atingindo mortalmente perspectivas redistributivistas de caráter social-democrata. A impressionante apropriação privada do fundo público no contexto da crise desencadeada pelo chamado "capitalismo tóxico" em 2008 e 2009, com a destinação de bilhões de dólares, euros e reais para operações de salvamento das empresas e contenção da espiral da crise, diz-nos muito sobre esse processo da contrarreforma e do redirecionamento das funções do Estado. Não há política social capaz de redistribuir renda com estruturas tributárias fortemente regressivas e tamanha expropriação privada dos recursos produzidos pela força do trabalho social.

O segundo, e absolutamente fundamental movimento, é a reestruturação produtiva, engendrando uma retomada de condições gerais ótimas de exploração da força de trabalho, o que significa para o capital ampliar a superpopulação relativa, que vive em condições de falta de acesso à satisfação das necessidades mais elementares, de barbárie e violência, num recrudescimento generalizado das expressões da questão social. A ofensiva sobre o mundo do trabalho teve um efeito deletério sobre a consciência de classe e as lutas sociais, dessindicalizando os trabalhadores e desorganizando a sua iniciativa política. Pensamos que a política social, como um processo, é marcada pela contradição, e seu desenho mais ou menos abrangente tem relação com as pressões políticas dos trabalhadores e seus segmentos. Portanto, a erosão política e material das organizações dos trabalhadores abriu espaços para uma reinvenção neoliberal das políticas sociais, à sua imagem e semelhança, inspiradas em aportes das agências multilaterais e na base conceitual da "sociedade do risco", de Giddens, e do desenvolvimento das "capacidades", de Sen. Assim, as respostas às novas expressões da questão social - cuja origem se encontra na lei geral da acumulação capitalista - têm vindo: na forma da criminalização da pobreza, com uma ampliação desmesurada da população carcerária, especialmente de homens jovens que compõem a população economicamente ativa, de um lado; e por meio de políticas sociais focalizadas e de gestão da barbárie, de outro. A exemplo de programas de transferência de renda com critérios draconianos de acesso e valores ínfimos, para assegurar a ética do trabalho num ambiente que não oferece empregos protegidos para todas e todos. Tais programas se centram na presença e participação das mulheres, sobrecarregadas com a dupla ou tripla jornada de trabalho e a viabilização de programas sociais e suas contrapartidas.

O terceiro movimento é o da mundialização do capital, a partir das estratégias de retomada das taxas de lucro das empresas, que se conecta aos dois outros, já que o capital busca desregulamentar para se mover sem barreiras e explorar com liberdade e eficiência a força de trabalho. Assim, esses são três processos articulados e com fortes impactos para a questão social e as políticas sociais.

Este número da Revista Katálysis oferece um panorama internacional no qual se expressam essas tendências, analisando as respostas à questão social via políticas sociais e as condições de sua implementação na Colômbia, Argentina, Brasil e países europeus. Há também artigos que analisam os impactos de gênero e étnico-raciais desses movimentos mais gerais, a exemplo do debate da chamada "feminização da pobreza" e das políticas de ação afirmativa.

O fato é que nestes tempos, onde são desencadeadas forças fortemente destrutivas da humanidade e da natureza - e o acidente nuclear no Japão é mais um sinal trágico dessa perda progressiva da capacidade do sistema se reproduzir sem grandes perdas humanas e de futuro -, é muito importante recolocar no centro dos debates a construção de estratégias de resistência e de luta contra a barbarização da vida social e pela construção de uma outra forma de sociabilidade. Dentro disso, a defesa de políticas sociais abrangentes, de caráter universal, que possam disputar e gerar tensões efetivas na alocação do fundo público, e que, sobretudo, tenham impactos maiores nas condições de vida e trabalho das maiorias é uma agenda importante de resistência, em tempos de focalização, privatização e encarceramentos.

Este fascículo da Revista Katálysis, ao pautar o debate sobre a política social e a questão social, reunindo reflexões críticas e dados relevantes sobre o Brasil e outros países, contém em suas páginas mais que dados, análises, reflexões e massa crítica, ultrapassando assim o alcance de uma revista acadêmica: subsidia a luta dos trabalhadores nesses tempos de crise, neste momento em que a fragmentação começa lentamente a dar lugar a uma espécie de reinvenção da resistência, especialmente no continente latino-americano. Desejo a todas e a todos uma boa leitura!

Elaine Rossetti Behring, março 2011.

Elaine Rossetti Behring

elan.rosbeh@uol.com.br

Pós-Doutoramento na Universidade de Brasília (UnB)

Doutorado em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), no Departamento de Política Social da Faculdade de Serviço Social

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 2011
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