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O sentido de igualdade e bem-estar em Marx

Resumos

Neste artigo expõe-se a concepção de Marx a respeito da igualdade e do bem-estar substantivos, os quais mantêm relações orgânicas com as necessidades humanas, o trabalho e a liberdade real. Por esta concepção ancorar-se em premissas e critérios incompatíveis com a noção capitalista desses conceitos, procura-se adotá-la como referência legítima à crítica da política social burguesa. Disso decorre o entendimento de que, embora Marx não tenha privilegiado a temática da proteção social, há na sua vasta obra uma espécie de sociologia do bem-estar que precisa ser desvendada.

Igualdade substantiva; Emancipação humana; Bem-estar anticapitalista


This article presents Marx's conceptualization about substantive equality and well-being, which have an organic relation with human needs, labor and true liberty. Because this conceptualization is anchored in premises and criteria that are incompatible with the capitalist understanding of these concepts, the paper uses it as a legitimate reference for the criticism of bourgeois social policy. This is based on the understanding that although Marx did not emphasize the theme of social protection, his vast work includes a type of sociology of well-being that must be unveiled.

Substantive equality; Human emancipation; Anti-capitalist well-being


ESPAÇO TEMÁTICO: MARX, MARXISMOS E SERVIÇO SOCIAL

ENSAIO

O sentido de igualdade e bem-estar em Marx

Potyara A. P. Pereira

Universidade de Brasília (UnB)

RESUMO

Neste artigo expõe-se a concepção de Marx a respeito da igualdade e do bem-estar substantivos, os quais mantêm relações orgânicas com as necessidades humanas, o trabalho e a liberdade real. Por esta concepção ancorar-se em premissas e critérios incompatíveis com a noção capitalista desses conceitos, procura-se adotá-la como referência legítima à crítica da política social burguesa. Disso decorre o entendimento de que, embora Marx não tenha privilegiado a temática da proteção social, há na sua vasta obra uma espécie de sociologia do bem-estar que precisa ser desvendada.

Palavras-chave: Igualdade substantiva. Emancipação humana. Bem-estar anticapitalista.

Introdução

O que será aqui discutido inclui-se entre os poucos, mas não menos importantes, esforços de detectar em Marx1 1 Quando falo em Marx e em produção marxiana, isto é, do próprio Marx, não estou excluindo a participação de Engels em várias dessas produções. uma espécie de sociologia2 2 Ao falar de uma "espécie de sociologia" do bem-estar marxiana, quero dizer que Marx, embora não possua uma sociologia particular (da mesma forma como não possui uma economia, antropologia etc.), tem uma visão de totalidade do processo histórico capitalista na qual o social, o político e o econômico são dimensões inseparáveis. Nesse sentido, é possível observar, na sua obra, duas principais afinidades científicas com os estudos sociais, e sociológicos em particular: a) O caráter histórico-científico de suas análises sobre a sociedade capitalista, expresso no seu intento de abarcá-la para além da aparência. Esta é uma forma de cientificidade detectável em Marx que está explícita neste seu pensamento: "toda ciência seria supérflua se a forma de manifestação [a aparência] e a essência das coisas coexistissem imediatamente" (MARX, 1985, p. 271); b) O fato de Marx vir prestando enorme contribuição à formação de uma teoria social do bem-estar dotada ao mesmo tempo de cientificidade, postura crítica e intenção transformadora. do bem-estar social que autoriza adotá-la como referência legítima às análises críticas da política social capitalista. Certamente que este entendimento não estará isento de controvérsias, dada à particularidade complexa do trabalho teórico de Marx, e à multiplicidade de marxismos existentes - cada um considerando-se o seu verdadeiro e único intérprete, quando não o pioneiro. Isso, sem falar de usos nada edificantes da obra de Marx, como o que a reduz a uma espécie de Oráculo de Delfos3 3 Da mitologia grega: local sagrado na Grécia Antiga, dedicado ao deus Apolo, onde pitonisas em transe emitiam respostas como verdades absolutas. no qual poderão ser encontradas todas as respostas às indagações que lhes são dirigidas.

Contrariando essa postura, o presente texto procura se beneficiar da contribuição de Marx para a crítica teórica da política social capitalista, exatamente como foi dito inicialmente: uma referência legítima (rica e respeitável) e, por isso mesmo, livre de codificações, sabedorias oraculares e interpretações intocáveis. E sabendo que este pensador não criou sistemas filosóficos, receitas e modelos científicos, estou ciente também de que terei de enfrentar os seguintes desafios: a) descobrir em meio a um volume expressivo de assuntos tratados por Marx (muitos deles esparsos e poucos visíveis) a sua provável sociologia do bem-estar; b) arcar por conta própria com a responsabilidade de possíveis equívocos cometidos; c) e, por fim, correr o risco de ser enquadrada, por algum "epígono aborrecido"4 4 Frase de Marx (1983, p. 20), ao dirigir-se aos filósofos burgueses alemães que trataram Hegel com desrespeito e covardia. , em alguma categorização tipológica arbitrária, entre as várias existentes a propósito de Marx.

O cerne do texto versará sobre uma implícita concepção de bem-estar em Marx, associada ao seu explícito interesse teórico e político pela emancipação humana (ou liberdade) do jugo do capital, mediada pela conquista da igualdade real, contraditoriamente perseguida no seio do próprio capitalismo. Para essa discussão, fez-se necessário, de minha parte, o cumprimento de uma tarefa que não é recente: conhecer produções-chave tanto do Marx jovem, quanto do Marx maduro, elaboradas inicialmente em torno de questões histórico-filosóficas e, mais tarde, relacionadas a uma economia política divergente da dos economistas liberais clássicos, então influentes. Tal tarefa teve início nos anos 19805 5 Durante o Curso de doutoramento, iniciado em 1982, no Iuperj, e finalizado em 1987 na UnB, do qual resultou a tese intitulada Crítica marxista da teoria e da prática da política social no capitalismo: peculiaridades da experiência brasileira (PEREIRA, 1987). e continua se impondo até o momento, dada à atualidade dos achados investigativos de Marx sobre os determinantes estruturais e históricos da desigualdade social no capitalismo; e dada, ainda, à retomada substanciosa da tematização dessa desigualdade e das necessidades humanas como um dos seus referentes, associadas à liberdade e à autonomia, por autores do porte intelectual de Mészáros (2007) e Gough (2003), dentre outros. Por fim, é justo informar que o meu interesse por este instigante, e pouco explorado, veio analítico, engastado na alentada e sempre surpreendente obra de Marx, foi despertado pela leitura de um antigo e luminoso ensaio de Mishra (1975)6 6 Este ensaio foi, mais tarde, aprofundado e inserido como um capítulo específico no seu livro Society and Social Policy: theories and practice of welfare (MISHRA,1982). sobre a temática da política social. A Mishra, portanto, devo o empurrão inicial (e providencial) na incursão às reflexões que se seguem; o grosso da caminhada, principalmente os tropeços, são de minha inteira e exclusiva alçada.

A centralidade da desigualdade social para a compreensão do sentido de bem-estar (social) em Marx

Apesar de a teoria marxiana não tratar explicitamente de política social, pelo menos um motivo justifica a adoção dessa teoria como referência para análise desta temática, qual seja: o fato de a desigualdade social, relacionada à aparição e manutenção de um proletariado indigente, sob o influxo da exploração burguesa, ter constituído a base de sustentação empírica da empresa teórica e política marxiana. Assim sendo, não se pode dizer que inexistem, em Marx, contribuições que ajudem a elucidar o movimento real da política social capitalista, já que os fundamentos das análises marxianas sobre acumulação do capital e dominação do Estado burguês continuam historicamente confirmados e estão no âmago da explicação do surgimento dessa política.

Além disso, em seus estudos filosóficos, a questão da igualdade e da liberdade é recorrentemente contemplada, o que, de par com o tratamento científico conferido a esta questão em sua obra O capital - cujo primeiro volume foi escrito em 1867 - permite a constatação do comprometimento intelectual e moral de Marx com o tema do bem-estar social. As suas teorias da revolução e da ditadura do proletariado, passando pela extinção do Estado, do capital, das classes sociais, não apenas erigiram-se sobre a realidade da desigualdade social capitalista, como se assentaram na sua concepção de igualdade que lastreou toda a sua obra. Em vista disso, pode-se chegar à seguinte ilação: sendo a desigualdade o fato justificador da política social burguesa e a igualdade o seu parâmetro idealizado, nenhuma teoria poderia fornecer maiores subsídios à crítica dessa política do que a marxiana. Isso porque, parafraseando Mishra (1982), ela é a única teoria que aborda a questão da desigualdade de forma abrangente, isto é, tanto nas suas dimensões econômica, política e social, quanto nas suas versões capitalista e socialista. Ademais, dada a sua índole transformadora e, portanto, comprometida com a construção futura de uma sociedade realmente igualitária, tal teoria é também a única que, ao mesmo tempo em que oferece com riqueza de argumentos uma radiografia dos determinantes e efeitos da desigualdade social no capitalismo, prediz uma solução para a sua erradicação.

Mas, antes de se fazer um balanço da contribuição que esta teoria, ainda que indiretamente, legou ao estudo da política social capitalista, convém explicitar dois conceitos que estão, clara ou implicitamente, no âmago da desigualdade nas sociedades burguesas e que, neste texto, assumiram conotações específicas: a "acumulação" e a "legitimação".

Em linhas gerais, por acumulação concebe-se o mesmo processo histórico definido por Marx em contraposição à definição dos economistas políticos clássicos. Assim, em vez de se considerar a acumulação como poupança a ser investida em busca do lucro, com vista ao progresso individual e coletivo, tal como concebia Adam Smith (1993), entende-se, com Marx, que: a acumulação capitalista resulta da exploração da força de trabalho pelos proprietários dos meios de produção, com vista à reprodução ampliada do capital. Por conseguinte, tal processo está diretamente relacionado à divisão do trabalho e à extração, pelo capitalista, da mais-valia produzida pelo trabalhador, que é reconvertida em capital adicional; este, por seu turno, permite maior apropriação de mais-valia, que será transformada em mais capital adicional, e assim por diante, caracterizando, desse modo, a inesgotável busca de lucro pelo capital. O êxito desse mecanismo, considerado por Marx a força motriz da acumulação capitalista, exige a criação de um exército de reserva que, mediante a sua concorrência com os trabalhadores ativos no mercado laboral, impedirá um equilíbrio entre o valor da força de trabalho e o valor do produto por ela realizado. Esse fato, aliado ao constante melhoramento da produção, graças à utilização de métodos e técnicas mais avançados e eficientes, provoca diretamente a piora das condições sociais dos trabalhadores. Portanto, "a acumulação de riqueza num polo é, ao mesmo tempo, acumulação de miséria, tormento de trabalho, escravidão, ignorância, brutalização e degradação moral no polo oposto, isto é, do lado da classe que produz seu próprio produto como capital" (MARX, 1984, p. 210).

Porém, se a acumulação tem caráter mais econômico, a legitimação tem forte conotação política. Isso significa que a legitimação inscreve-se mais diretamente nas esferas políticas, já que somente estas podem ganhá-la ou perdê-la porque a legitimação constitui a capacidade de uma ordem institucional se fazer reconhecida e aceita. Segundo O'Connor (1977), o Estado capitalista ao manter e criar condições favoráveis ao processo de acumulação intentará, simultaneamente, assegurar níveis mínimos de harmonia social por meio da legitimação. Para tanto, as políticas sociais podem contribuir com ações preventivas ou de controle de descontentamentos e rebeliões; mas, também podem ser funcionais à acumulação como quando investem em capacitação para o trabalho, ou ativam compulsoriamente os demandantes das políticas assistenciais para o mercado laboral, como acontece atualmente. Esta é a razão porque o conceito de legitimação, que é oposto ao de usurpação e de coerção, forma com estes uma unidade de contrários, pois onde houver polêmica sobre a legitimação da ordem política, mais esta é desejada.

Todavia, a busca de legitimação se dá de várias formas. A que interessa particularmente a esta discussão é aquela referente à justificação da existência do Estado social; isto é, do Estado capitalista moderno, intervencionista, que, ao criar condições para a acumulação e obtenção de consensos, institucionaliza conflitos associados à produção e ao aumento da desigualdade social. Com isso, o Estado social penetra, cada vez mais, em áreas que antes eram exclusivas da competência privada, criando, para efeitos da sua própria legitimação, situações contraditórias, a saber: se, por um lado, transforma essas novas áreas em importantes redutos de manejo político, por outro vê aumentada a pressão, inclusive da classe trabalhadora, sobre si, em busca de ganhos particulares. Este é o dilema ou a contradição central do Estado social, não observada pelas análises funcionalistas e, curiosamente, não ressaltada por O'Connor e nem por vários "marxistas", a qual pode ser explicada com base em Marx; ou melhor, com base na análise marxiana das contradições fundamentais, presentes na totalidade concreta do modo de produção capitalista, e que estão no cerne da desigualdade social, conforme explanações a seguir.

Igualdade social substantiva versus direitos burgueses na reflexão de Marx

Rastreando o sentido de igualdade em Marx, cuja concepção revela uma consistente unidade entre o seu pensamento filosófico, econômico e político, tem-se que ele se refere à idêntica posição social dos homens em sociedades sem classes. Trata-se, de um conceito que desloca a discussão da igualdade do âmbito do Estado (uma instituição prioritariamente comprometida com a classe dominante) para o âmbito da sociedade sem classes (o lócus onde estarão ausentes diferenças e condições que podem produzir desigual posição social dos homens). Desse modo, a postura de Marx no que tange à igualdade não indica uma defesa da igualação de todos no terreno das suas necessidades pessoais; mas a defesa da supressão das classes sociais e, por conseguinte, da igualação de todos no terreno das suas posições socioeconômicas. Isso equivale a dizer que somente com a socialização dos meios de produção e, consequentemente, com a eliminação da propriedade privada e da exploração do trabalho, inerentes às sociedades de classe, todos poderão contar com igual oportunidade de trabalho e com salários compatíveis com a produção de cada um. Portanto, para Marx, a igualdade não se confunde com a uniformidade de direitos, tal como entende a ideologia liberal, e nem tampouco com a supressão de toda e qualquer posse pessoal, como entendia a visão socialista vulgar e a do comunismo primitivo. Para Marx, a propriedade privada que deverá ser suprimida é a dos meios de produção, ficando as pessoas livres para preservarem as suas diferenças e manterem e/ou cultivarem hábitos e valores que melhor correspondam aos estímulos e rendimentos materiais de uma coletividade que priorize a satisfação das necessidades sociais. Dessa feita, o conceito de igualdade guarda afinidade com o de liberdade, haja vista que só em uma sociedade de bem-estar econômico e social, livre da preocupação com a sobrevivência, os homens serão capazes de incorporar o patrimônio cultural e os valores morais que se encontrarão à disposição de todos; e também de realizarem plenamente as suas capacidades e potencialidades (MARX; ENGELS, 2000). Só em uma sociedade livre da presença das classes sociais poderá haver a extinção do Estado e, consequentemente, nas palavras de Engels (1975, p. 149), "a substituição do governo sobre as pessoas pela administração das coisas e pelo controle dos processos de produção". Os homens, uma vez emancipados como "entes da espécie" - e não como sujeitos emancipados apenas politicamente, como indica Marx em A questão judaica (1969), ou como meros cidadãos identificados com a liberdade formal compatível com a desigualdade cultivada pela ideologia liberal - estariam livres do trabalho assalariado, realizado sob coação; portanto, seriam capazes de usufruir da liberdade de realizar pelo trabalho (considerado em sua modalidade específica) a sua própria humanidade. E mais: só então os homens poderão fazer a sua própria história e realizar o seu trânsito do reino da necessidade para o da liberdade (ENGELS, 1975, p. 151).

Ao se falar em trabalho, convém esclarecer que é em torno dessa categoria, como um tertium comparationis7 7 Uma terceira parte comum entre duas coisas comparáveis. da igualdade e liberdade reais, que Marx começou a construir não só a sua teoria econômica, mas também a sua ideia de bem-estar, ideia esta que resultou frontalmente divergente da concepção liberal-burguesa. Enquanto nesta concepção a igualdade e a liberdade podem ser medidas pela ampliação dos direitos de cidadania - que, desde o século 18, vem se apresentando como uma conquista possível -, no pensamento marxiano, não. Para Marx, a igualdade e a liberdade podem ser medidas com base na realização do trabalho como uma necessidade vital e eterna. Partindo do suposto de que sob as mesmas condições sociais cada pessoa realiza, em princípio (enquanto valor), igual trabalho no mesmo período de tempo, Marx vê no trabalho não só a substância comum de todas as mercadorias, mas a unidade de medida do bem-estar da sociedade. O trabalho como parâmetro de comparação deverá ser avaliado pela sua duração e intensidade (abstraído de toda e qualquer diferença individual dos trabalhadores), senão deixará de ser uma medida de aferição.

Avançando mais nas suas reflexões sobre a noção (implícita) de bem-estar numa sociedade sem classes, vis-à-vis as ambiguidades do direito associado ao trabalho, Marx considera que, na primeira fase da sociedade comunista, a distribuição de direitos proporcionalmente ao trabalho dos indivíduos é ainda um direito burguês que, como todo direito, pressupõe desigualdade. Ou, nos seus próprios termos:

[...] o direito dos produtores é proporcional ao trabalho que produzem [...]. Porém, uns indivíduos são superiores física ou intelectualmente a outros e rendem, pois, no mesmo tempo, mais trabalho [...]. Este direito igual é um direito desigual para trabalho desigual. Não reconhece nenhuma distinção de classe, porque aqui cada indivíduo não é mais que um trabalhador como os demais; porém, reconhece tacitamente, como outros tantos privilégios naturais, as desiguais atitudes dos indivíduos e, por conseguinte, a desigual capacidade de rendimento. No fundo é, portanto, como todo direito, o direito da desigualdade. O direito só pode consistir, por natureza, na aplicação de uma medida igual; porém, os indivíduos desiguais (e não seriam indivíduos distintos se não fossem desiguais) só podem medir-se pela mesma medida sempre e quando enfocados desde um ponto de vista igual, sempre e quando se os encara somente em um aspecto determinado. [....] A igual trabalho e, por conseguinte, a igual participação no fundo social de consumo, uns obtêm de fato mais que outros, uns são mais ricos que outros etc. Para evitar todos esses inconvenientes, o direito não teria que ser igual, mas desigual (MARX, 1975a, p.16, tradução nossa).

Direito desigual, no sentido marxiano, tem a ver, especificamente, com a fase superior do comunismo, quando tiverem desaparecido por completo as contradições da sociedade burguesa herdadas pela fase de transição da ordem capitalista para a comunista. Por isso, embora Marx reconheça as limitações da primeira fase do comunismo em realizar a igualdade e a liberdade de fato - ou a liberdade igualitária, na expressão de Della Volpe (1982) -, ele considera que, nesta fase, tais contradições, nascidas na sociedade capitalista depois de um longo e doloroso parto, são inevitáveis. O direito, segundo ele, "não pode nunca ser superior à estrutura econômica nem ao desenvolvimento cultural da sociedade por ela condicionado" (MARX, 1975a, p. 16-17); contudo, se, nesta fase, o direito igual ainda é o direito burguês, pelo menos a exploração do homem pelo homem já foi eliminada e ninguém poderá apoderar-se, a título de propriedade, dos meios de produção (LÊNIN, 1978). Estes são os primeiros passos em direção à sociedade igualitária, de bem-estar, na qual, além das transformações dos meios de produção em propriedade comum, realizadas na primeira fase, são também suprimidas todas as disparidades da repartição do produto social e da desigualdade do direito burguês. Assim, segundo Marx (1975a, p. 16),

Na fase superior da sociedade comunista, quando tiver desaparecido a escravidão dos indivíduos à divisão do trabalho, e, com ela, a oposição entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem abundantemente os mananciais da riqueza coletiva, só então poder-se-á ultrapassar totalmente o estreito horizonte do direito burguês, e a sociedade poderá escrever em seu estandarte: de cada um, segundo a sua capacidade; a cada um segundo as suas necessidades.

Do exposto, resulta claro que, para Marx, a sociedade de bem-estar não se confinaria aos limites de uma revolução econômica, isto é, de uma revolução unicamente preocupada com a socialização dos meios de produção. Para que o bem-estar implique igualdade substantiva - para usar a expressão de Mészáros (2007) - e se efetive na prática, é preciso, segundo Marx, que a repartição do trabalho e do produto social garanta e seja garantido pelo desenvolvimento e pela livre ação das faculdades físicas e intelectuais dos indivíduos; isso sugere a importância da participação política na conquista da autonomia (GOUGH, 2003) e na preservação do bem-estar geral. Em mais de uma obra de sua lavra, tanto da juventude quanto da maturidade, a participação política como um requisito importante para a transformação, com vista à igualdade substantiva, é contemplada. Desde as suas críticas às ideias hegelianas sobre o Estado (MARX, 1973), até as suas teorias sobre a sociedade, a economia política, passando por suas análises conjunturais específicas, como a revolução de 1848, na França, a ditadura de Luís Napoleão, e a Comuna de Paris, tal pensamento está presente. Mas foram as reflexões sobre a Comuna de Paris, contida em sua obra da maturidade Guerra Civil na França (MARX, 1975b), que melhor retratam a concepção marxiana desse tipo de participação, como será tratado a seguir.

Marx entre falsas antíteses: econômico versus político e reforma versus revolução

É na Comuna de Paris, considerada o prelúdio de sua teoria da revolução, que fica claro o seu posicionamento quanto à problemática até hoje discutida sobre: a) a prioridade, ou não, das premissas econômicas sobre as políticas, no processo de transformação social; b) a exclusividade, ou não, da participação operária neste processo; e c) a rejeição, ou não, da teoria marxiana das mudanças reformistas anticapitalistas dentro do próprio capitalismo.

No que tange à prioridade das premissas econômicas, Marx considera que, embora o contexto geral da França, em 1870, não possuísse as condições materiais para a derrubada do regime monárquico classista, que ali imperava, não deixava de apresentar condições supraestruturais excepcionais que, politicamente, facilitavam este intento. Diante do esvaziamento do aparelho estatal, em decorrência da Guerra Franco-Germânica, os trabalhadores, ainda que insuficientemente organizados, poderiam implantar, mediante ação espontânea, formas de democracia direta, imprescindíveis à ação política emancipatória do proletariado. Transparece, aí, a importância dada por Marx às lutas políticas estratégicas na conquista do poder, isto é, à ação dos sujeitos. E tal atitude, apesar de não desprezar as determinações econômicas, em última instância, desmente a pecha de economicismo a ele impingida pelos que se atêm a uma interpretação mecânica de sua referência às "leis naturais da produção capitalista" no Prefácio da primeira edição de O capital. Relacionada a este desmentido está também a posição marxiana referente à participação operária no processo revolucionário, reveladora de nova refutação à ideia de que, para Marx, o único protagonista da história seria o proletariado.

Efetivamente, embora Marx parta do princípio de que só a luta independente do proletariado poderia levar à libertação do trabalho do jugo do capital, sua análise sobre a Comuna de Paris dá um voto de confiança à participação dos grupos populares na luta pelas transformações estruturais. Assim, nesse evento, demonstra aceitar todos os recursos e todas as tendências que contribuíssem para a reconquista do poder político pela massa popular, considerando como o mais importante, na República implantada pelos communards de Paris (além da substituição do exército permanente pelo "povo armado"), a criação de um executivo comprometido com o povo e por este administrado. É o que se pode inferir da seguinte citação:

A maioria de seus membros era, naturalmente, operários e representantes reconhecidos da classe operária. A Comuna não seria um organismo parlamentar, mas uma corporação de trabalho, executiva e legislativa ao mesmo tempo. Em vez de continuar sendo um instrumento do governo central, a política foi despojada imediatamente de seus atributos políticos e convertida em instrumento da Comuna, responsável ante ela e revogável a qualquer momento. O mesmo se fez com os funcionários dos demais ramos da administração. Desde os membros da Comuna para baixo, todos os que desempenhavam cargos públicos deviam desempenhá-los com salários de operários [...] os cargos públicos deixaram de ser propriedade privada dos testas de ferro do governo central (MARX, 1875b, p. 507-508).

Contudo, em que pese a importância histórica da forma política assumida pela Comuna, caracterizada por alianças entre a classe operária e amplos setores da população francesa - pequenos burgueses urbanos e camponeses - e pela prática do sufrágio universal na eleição dos conselhos diretores, ela ainda não significava, para Marx, uma revolução socialista, mas sim, a fase preparatória necessária ao alcance desta meta. Donde se infere que a Comuna de Paris representava para Marx um exemplo concreto de reforma anticapitalista dentro do capitalismo, configurado na mudança da ordem monárquica para a ordem republicana, e, como tal, um pré-requisito às transformações posteriores e mais radicais. A Comuna - uma sublevação da massa descontente de proletários e pequeno-burgueses contra o Estado monárquico francês -, antes de realizar a transformação da organização social e política da França em uma federação de municípios autônomos, iniciou por balizar o caminho para o comunismo, respaldada em fórmulas que, na crítica de Lênin (1978), significaram um governo de democracia pequeno-burguesa; ou seja, um governo popular que, apesar da sua ruptura radical com o Estado burguês e da implantação da democracia direta, não traçou, como previa Marx, o caminho das futuras revoluções proletárias; e isso porque, dentre outros problemas, os revolucionários confundiram a luta pela república com a luta pelo socialismo.

Todavia, apesar das contradições e dos obstáculos vivenciados pela Comuna, ela foi o preâmbulo exitoso da revolução socialista; e, na qualidade de processo de participação política popular, ela continua sendo o mais significativo exemplo de ação dos movimentos anticapitalistas ligados ao pensamento marxiano. Os comunistas chineses, por exemplo, citaram a Comuna de Paris como modelo para a sua revolução cultural (MOMMSEN; MESCHKAT, 1975). Além disso, a história da Comuna despertou acentuado interesse dos círculos intelectuais marxistas do Ocidente, chegando-se a admitir, conforme Mommsen e Meschkat, que o pensamento de Marx só teria se convertido no marxismo que hoje se conhece graças às suas reflexões sobre as experiências da Comuna de Paris. E mais, as rebeliões de 1968, na França, não só reeditaram (ainda que temporariamente) a experiência da Comuna, como também passaram a exigir um aprofundamento teórico da participação política, concebida por Marx, no processo revolucionário da atualidade, com vista a uma "sociedade" de bem-estar.

Para tanto, o rastreamento do bem-estar na obra de Marx terá também de abranger a sua produção econômica e detectar, aí, a reafirmação de seu interesse pela conquista da igualdade social presente em seus textos políticos.

Marx e as instituições de bem-estar inglesas

Tanto em suas reflexões políticas quanto econômicas, Marx pouco se preocupou8 8 Esse desinteresse pode ser creditado ao empenho moral e intelectual de Marx em explicar os determinantes do mal-estar social, engendrado pelo capitalismo, e de conceber uma alternativa definitiva para esse mal-estar. com as instituições de bem-estar existentes em sua época (a Poor Law, de 1834, por exemplo) e com a crescente intervenção estatal na Inglaterra vitoriana; e nem em entendê-las em suas especificidades. Prevendo a extinção do Estado, Marx não via como se daria o bem-estar no marco das atividades da organização estatal prioritariamente comprometida com os interesses das classes dominantes. Portanto, o Estado seria, a seu ver, sempre um instrumento de dominação e de manutenção da estrutura de classes e, como tal, uma instituição incapaz de garantir bem-estar social.

Logo, se se quiser detectar o envolvimento de Marx com algum aspecto relacionado à ação reguladora do Estado na área social, para daí tirar inferências sobre a sua posição quanto à conquista do bem-estar pelos trabalhadores no seio do capitalismo, será na legislação fabril tratada em O capital, que se deverá deter. Aí ele foi ímpar, entre os teóricos clássicos e entre os socialistas antigos e modernos, no empenho em analisar as leis que regulamentavam as atividades fabris (os Factory Acts): os relatórios das autoridades de saúde pública; as inspeções nas fábricas; as várias comissões de inquérito determinadas pelo Parlamento inglês. Mesmo assim, o estudo da legislação fabril como instituição de proteção trabalhista assumiu em sua teoria um escopo limitado. Essa análise colaborava, apenas, com o seu propósito mais amplo de melhor entender as relações sociais de produção, em suas múltiplas determinações e em sua forma mais evoluída de representação e controle (no capitalismo). Portanto, em que pesem as contribuições de Marx, tanto ao estudo da regulamentação legal dos processos de trabalho capitalistas, quanto aos assuntos relacionados às condições de vida dos trabalhadores e aos programas sociais (como foi o caso da prevenção de acidentes, da saúde e da educação), o perfil do seu bem-estar terá que ser detectado em passagens espalhadas em sua obra.

Isso não quer dizer que a análise de Marx sobre a legislação fabril inglesa e sobre a igualdade e a liberdade não possa indicar elementos de uma sociologia marxiana do bem-estar. Em absoluto, o que se quer salientar é que essa sociologia, por não ser facilmente percebível, torna-se falaciosa se ficar adstrita a interpretações isoladas e pontuais do pensamento de Marx sobre esta temática.

É na tentativa de evitar essa falácia que pretendo relacionar a análise de Marx da legislação fabril com as suas posições sobre a participação política inscritas em suas reflexões sobre a Comuna de Paris. E, com base nessa relação, identificar o fio condutor que articula os fundamentos filosóficos, científicos e políticos que serviram de base à sua visão transformadora. Aliás, não é possível distinguir, em Marx, os limites políticos e científicos de sua teoria e de sua práxis, assim como de sua postura intelectual e ética, posto serem estas esferas inseparáveis. Portanto, é válido afirmar que nunca houve rupturas entre Marx jovem e maduro, e nem entre Marx filósofo, cientista e político. Na verdade, a grande originalidade de Marx consiste fundamentalmente na sua impressionante capacidade de articular, com criatividade crítica, os múltiplos aspectos da vida social e os múltiplos aportes intelectuais de vários pensadores de diferentes tendências.

Tal fato pode ser comprovado na análise da legislação fabril, uma espécie de estudo de caso no âmbito da sua teoria sobre o trabalho, no qual também se pode identificar a sua posição com relação à reforma social, ao confronto bipolar de classes e à prioridade do econômico sobre o político, já detectada na Comuna de Paris.

Efetivamente, no estudo da legislação fabril, Marx reafirma o seu acatamento à luta dos trabalhadores no interior do capitalismo, com vista à melhoria de suas condições de vida, de trabalho e de salário. Isso, a seu ver, está perfeitamente compatível com a correlação de forças existentes no âmbito do sistema produtivo e com as disputas decorrentes do confronto entre os interesses antagônicos das classes fundamentais (burguesia e proletariado). Assim sendo, a conquista da legislação fabril afigura-lhe como uma das primeiras reações conscientes da classe trabalhadora contra a exploração a que estava submetida, contando, para isso, com o apoio de outros grupos e frações de classe, também prejudicados com os privilégios e com a dominação dos capitalistas industriais, como foi o caso da aristocracia agrária. Sem subestimar a importância dessas adesões à causa operária (fato que indica, novamente, a sua predisposição em valorizar todas as forças contribuintes para o êxito da luta trabalhista, e o seu não alinhamento à noção ortodoxa de confronto bipolar de classe), o que lhe pareceu mais significativo nesse processo não foi tanto a conquista dessa legislação, mas a restrição imposta por essa conquista ao despotismo do capital. Isso tem a ver com a contraposição à tese da pauperização absoluta, incorretamente atribuída a Marx. No entendimento de que o salário compõe-se de dois elementos - o físico e o histórico-social -, Marx argumenta que o último elemento é susceptível de alterações que podem resultar tanto de fatores espontâneos, relacionados aos altos e baixos dos ciclos econômicos, quanto da ação política dos trabalhadores contra a redução do salário real às suas necessidades fisiológicas. É, graças ao elemento histórico-social do salário que é possível à classe operária conquistar não só aumentos salariais, mas também impor restrições legais que, acima da "lei férrea" da economia dos salários, coloquem um freio à propensão desta lei de equiparar a remuneração da força de trabalho ao mínimo vital.

Eis porque a legislação trabalhista mereceu a simpatia de Marx. Em si, ela pouco significa em termos de transformação social, embora tenha trazido benefícios físicos, morais e intelectuais aos trabalhadores. Mas, se vista pelo prisma do princípio que representa, ou seja, de que é possível contrapor à política econômica da classe proprietária a política econômica da classe trabalhadora, ela, mais que uma conquista política, é uma confirmação teórica.

No entanto, vale salientar que o reconhecimento de Marx da importância da legislação fabril como uma conquista dos trabalhadores contra os interesses do capital tem suscitado polêmicas a respeito da incompatibilidade deste reconhecimento com as suas propostas revolucionárias. É que um exame menos atento das nuances que permeiam tal proposta tende a identificar em Marx duas ideias de mudanças: uma, política, resultante do conflito permanente entre forças produtivas e relações de produção que, por sua vez, vai acirrar as contradições nos diferentes âmbitos da vida social, especialmente entre as classes antagônicas; e outra, econômico-jurídica que, no caso da legislação fabril, parece apontar para a defesa de um processo reformista no qual as mudanças dar-se-iam gradualmente no interior do sistema capitalista. Mas, tal dualismo não ocorre em Marx. Um exame mais detido da teoria da revolução marxiana vai mostrar que esta teoria ergue-se sobre as bases do processo de produção, mas não se reduz exclusivamente a este. Por conseguinte, tudo o que contribuir para a necessária e crescente consciência do homem no processo de trabalho converte-se em consciência do processo de trabalho e das possibilidades de mudança em uma espiral de distintas determinações. O processo revolucionário engloba componentes econômicos, culturais e políticos que se reforçam mutuamente, embora o peso principal recaia nas mudanças de base econômica. Em vista disso, revolução para Marx parece não significar apenas o processo revolucionário total. Pode ser uma revolução política, tal como foi a da Comuna de Paris, apoiada em valores culturais que foram determinados, em última instância, pelas contradições internas ao processo econômico em um contexto histórico específico9 9 Ver, a esse respeito, Marx (1973, 1978, 1987). No Manifesto (1987), ele enfatiza uma questão prática: a luta de classes. Aí, não só analisa os postulados essenciais dessa luta, como convoca os operários do mundo inteiro à união. E, em conformidade com esta orientação, assume uma posição avançada diante da economia política - se forem comparados o conteúdo dos Manuscritos econômicos e filosóficos, de 1844, com o da Miséria da filosofia, de 1846/47 (2001) - ao propor "a substituição do programa contra a propriedade em geral pelo projeto de apropriação coletiva dos meios de produção, atingindo, pois, pela raiz, tanto o funcionamento do modo de produção capitalista, quanto a fonte de alienação do homem que vive numa sociedade desse tipo" (MARX, 1978, p. XVII). .

Daí a importância da legislação fabril como um contributo ao despertar da consciência proletária de que o domínio do trabalho pelo capital não é uma fatalidade, e do empenho de Marx (1983, p. 13) em relacionar essa legislação à possibilidade de a luta política também propiciar mudanças ou melhorar circunstâncias. Tanto é que, ao ter essa possibilidade em mente, ele assim se expressa: "mesmo quando uma sociedade descobriu a pista da lei natural do seu desenvolvimento [...] ela não pode saltar nem suprimir por decreto as suas fases naturais de desenvolvimento. Mas ela pode abreviar e minorar as dores do parto". É na possibilidade de abreviar as dores do parto que Marx insere a interferência legislativa nas questões trabalhistas, ao mesmo tempo em que revela, no trato desta questão, o seu reconhecimento da autonomia relativa do Estado, isto é: a relativa independência da ordem política da infraestrutura econômica de um Estado burguês, como o da Inglaterra do século 19, que, ao ser alvo das pressões de diferentes interesses, não mais poderia ser visto como um instrumento puro e simples da burguesia. Esta é uma linha do pensamento de Marx sobre o Estado - por sinal, pouco explorada - que descredencia o trato da política social apenas pelo ângulo da sua funcionalidade ao sistema capitalista, tal como pensam vários autores, ditos marxistas.

Isso, porém, não quer dizer que Marx desconhecesse as ambiguidades do Estado capitalista, no que se refere ao cumprimento da legislação, bem como às limitações e precariedades impostas a este cumprimento pelo poder estrutural do capital. Marx era consciente de que, no capitalismo, o Estado cai constantemente em contradição diante da incompatibilidade do princípio da isonomia, contido na norma legal, com a realidade conflituosa e desigual de uma sociedade dividida em classes. Apesar de reconhecer no prefácio de O capital que o governo britânico, diferentemente do alemão, impunha algum controle sobre os proprietários industriais, ele nunca teve ilusões quanto ao fato de o Estado expressar, prioritariamente, os interesses das classes dominantes. E apesar de confessar que "onde a produção capitalista se implantou plenamente (na Alemanha, por exemplo), nas fábricas propriamente ditas, as condições são piores do que na Inglaterra, pois falta o contrapeso das leis fabris" (MARX, 1983, p. 12), ele não deixou de denunciar, na Inglaterra, os artifícios utilizados pelos capitalistas e pelo próprio Estado burguês com o fito de burlar a lei. Assim, em O capital, descreve as diversas formas de burla patronal à legislação, com a conivência do Estado, bem como as manipulações e os estilos capciosos de apurar irregularidades efetuadas pelas autoridades parlamentares, junto aos empregadores, em detrimento da justiça do trabalhador.

Finalizando

Ficam claras, tanto a descrença de Marx em relação ao poder transformador da legislação fabril, quanto a sua convicção de que os proletários não deveriam encarar esse poder senão como um componente estratégico da sua luta maior pelo bem-estar total, identificado com a emancipação humana dos grilhões do capital - apesar dos ganhos auferidos com esta legislação. Isso porque, prevalecem, de fato, no capitalismo, os princípios da competitividade econômica e da coerção política que, alicerçados em mecanismos tais como o exército industrial de reserva e seus efeitos depressivos sobre os salários, conduzem a uma crescente (mas não fatalmente absoluta) pauperização da força de trabalho, não obstante as utópicas medidas liberais de proteção social.

Assim sendo, bem-estar total para Marx é um fenômeno que está baseado nos princípios da solidariedade e da cooperação, identificados com a atenção efetiva às necessidades humanas, moral e historicamente alicerçadas no processo coletivizado de produção e distribuição do produto social10 10 Marx, ao contrário da ideologia liberal-burguesa, não relaciona as necessidades humanas básicas a um mínimo de subsistência, fisiologicamente determinado. As "necessidades naturais do trabalhador", segundo ele, "como a alimentação, roupa, combustível e habitação, variam de acordo com o clima e outras condições físicas do seu país. Por outro lado, o número e as proporções das chamadas exigências indispensáveis [...] são, em si, o produto de uma evolução histórica e dependem, portanto, em grande parte, do grau de civilização do país" (SWEEZY, 1974, p. 288). Isso sugere que, embora as necessidades sociais sejam de difícil quantificação precisa, elas, por serem um fato objetivo, podem ser identificadas e medidas aproximadamente em cada sociedade e em cada época. ; e não nos princípios da competição e da coerção, identificados com o processo da rentabilidade privada que resulta da exploração e da manipulação da força de trabalho como mercadoria especial, tal como está implícito na concepção liberal-burguesa de proteção social pelo Estado capitalista e de direitos de cidadania.

Notas

Recebido em 30.08.2012.

Aprovado em 12.09.2012.

Potyara A. P. Pereira

potyamaz@gmail.com

Pós-Doutorado em Política Social na Universidade de Manchester/UK

Doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB)

Professora do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UnB

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  • SWEEZY, P. Capitalismo monopolista Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
  • 1
    Quando falo em Marx e em produção marxiana, isto é, do próprio Marx, não estou excluindo a participação de Engels em várias dessas produções.
  • 2
    Ao falar de uma "espécie de sociologia" do bem-estar marxiana, quero dizer que Marx, embora não possua uma sociologia particular (da mesma forma como não possui uma economia, antropologia etc.), tem uma visão de totalidade do processo histórico capitalista na qual o social, o político e o econômico são dimensões inseparáveis. Nesse sentido, é possível observar, na sua obra, duas principais afinidades científicas com os estudos sociais, e sociológicos em particular: a) O caráter histórico-científico de suas análises sobre a sociedade capitalista, expresso no seu intento de abarcá-la para além da aparência. Esta é uma forma de cientificidade detectável em Marx que está explícita neste seu pensamento: "toda ciência seria supérflua se a forma de manifestação [a aparência] e a essência das coisas coexistissem imediatamente" (MARX, 1985, p. 271); b) O fato de Marx vir prestando enorme contribuição à formação de uma teoria social do bem-estar dotada ao mesmo tempo de cientificidade, postura crítica e intenção transformadora.
  • 3
    Da mitologia grega: local sagrado na Grécia Antiga, dedicado ao deus Apolo, onde pitonisas em transe emitiam respostas como verdades absolutas.
  • 4
    Frase de Marx (1983, p. 20), ao dirigir-se aos filósofos burgueses alemães que trataram Hegel com desrespeito e covardia.
  • 5
    Durante o Curso de doutoramento, iniciado em 1982, no Iuperj, e finalizado em 1987 na UnB, do qual resultou a tese intitulada
    Crítica marxista da teoria e da prática da política social no capitalismo: peculiaridades da experiência brasileira (PEREIRA, 1987).
  • 6
    Este ensaio foi, mais tarde, aprofundado e inserido como um capítulo específico no seu livro
    Society and Social Policy: theories and practice of welfare (MISHRA,1982).
  • 7
    Uma terceira parte comum entre duas coisas comparáveis.
  • 8
    Esse desinteresse pode ser creditado ao empenho moral e intelectual de Marx em explicar os determinantes do mal-estar social, engendrado pelo capitalismo, e de conceber uma alternativa definitiva para esse mal-estar.
  • 9
    Ver, a esse respeito, Marx (1973, 1978, 1987). No
    Manifesto (1987), ele enfatiza uma questão prática: a luta de classes. Aí, não só analisa os postulados essenciais dessa luta, como convoca os operários do mundo inteiro à união. E, em conformidade com esta orientação, assume uma posição avançada diante da economia política - se forem comparados o conteúdo dos
    Manuscritos econômicos e filosóficos, de 1844, com o da
    Miséria da filosofia, de 1846/47 (2001) - ao propor "a substituição do programa contra a propriedade em geral pelo projeto de apropriação coletiva dos meios de produção, atingindo, pois, pela raiz, tanto o funcionamento do modo de produção capitalista, quanto a fonte de alienação do homem que vive numa sociedade desse tipo" (MARX, 1978, p. XVII).
  • 10
    Marx, ao contrário da ideologia liberal-burguesa, não relaciona as necessidades humanas básicas a um mínimo de subsistência, fisiologicamente determinado. As "necessidades naturais do trabalhador", segundo ele, "como a alimentação, roupa, combustível e habitação, variam de acordo com o clima e outras condições físicas do seu país. Por outro lado, o número e as proporções das chamadas exigências indispensáveis [...] são, em si, o produto de uma evolução histórica e dependem, portanto, em grande parte, do grau de civilização do país" (SWEEZY, 1974, p. 288). Isso sugere que, embora as necessidades sociais sejam de difícil quantificação precisa, elas, por serem um fato objetivo, podem ser identificadas e medidas aproximadamente em cada sociedade e em cada época.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      30 Ago 2012
    • Aceito
      12 Set 2012
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