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Espaço e desigualdade: Maria Inês Sugai

Space and inequality: Maria Inês Rugai

Hélder e Maria - Maria Inês Sugai1 1 Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Autora do livro Segregação silenciosa: investimentos públicos e dinâmica socioespacial na área conurbada de Florianópolis (1970-2000). Florianópolis: UFSC, 2015. , recentemente foi publicado seu livro, Segregação silenciosa: investimentos públicos e dinâmica socioespacial na área conurbada de Florianópolis (1970-2000), onde demonstra que a distribuição dos espaços na área conurbada de Florianópolis acompanhou a distribuição do poder econômico e político. Esse fenômeno não é novo, apenas ocorre com maior ênfase a partir dos anos 1950 e, desde então, somente tem-se reafirmado e expandido. Considerando que a distribuição dos espaços geográficos está intimamente relacionada com a distribuição do poder econômico e político, e, portanto, com o problema da democracia, este processo não sofreu modificações de rumo ou de intensidade com o fim da ditadura e a retomada da democratização das relações sociais nos anos de 1990?

Maria Inês - De fato, a segregação socioespacial não é um fenômeno novo, é uma manifestação de caráter estrutural e inerente às cidades capitalistas. Os estudos críticos do fenômeno é que são mais recentes. Tomo a liberdade de fazer um rápido preâmbulo para facilitar essa resposta. Em linhas gerais, pode-se dizer que as primeiras pesquisas sistemáticas do urbano ocorreram nas primeiras décadas do século 20, quando integrantes da chamada Escola de Chicago descreviam os centros urbanos enfocando a proliferação da criminalidade, da violência urbana, os enclaves de pobreza, o abandono das áreas urbanas centrais, a periferização, entre tantos outros indícios e conflitos que se revelavam nas cidades. Buscavam, numa abordagem positivista, criar modelos teóricos de urbanização a partir da combinação de conceitos predeterminados com metódicas observações de campo. Apenas nas décadas de 1950 e 1960 é que começam a se difundir os estudos urbanos sob a perspectiva histórica e dialética, em que as desigualdades, as contradições sociais, as injustiças e os conflitos de classe são evidenciados. Esse enfoque crítico possibilitou a compreensão histórica das contradições urbanas, do processo de produção das cidades, das disputas sociais pela terra urbanizada, da segregação urbana e de seu papel como instrumento de dominação e de reprodução social.

Concretamente, a segregação urbana se constitui no processo de ocupação e de concentração de uma camada ou classe social em uma mesma área ou região do espaço urbano que, inclusive, pode apresentar continuidade intraurbana e envolver diferentes municípios conurbados. A classe dominante, através de seus diversos agentes, tem instrumentos para decidir e priorizar a ocupação e a qualificação de bairros ou de setores da cidade que são de seu interesse. As áreas habitadas pela classe dominante constituíram-se em uma concentração espacial de poder econômico e também de poder político, com capacidade de pressão para garantir a valorização da terra, seja através da criação de leis ou da localização dos investimentos públicos, sistema viário, equipamentos e serviços, produzindo espaços urbanos privilegiados e auto-segregados. No outro extremo social, encontram-se as camadas sociais pobres e excluídas que tendem a ocupar e a se concentrar nos espaços que sobram nas cidades, constituindo assentamentos informais nas áreas periféricas ou em bairros centrais e quase sempre em áreas desprezadas, desabitadas, de preservação permanente ou inadequada para a ocupação - como manguezais, encostas íngremes, bordas d'água, dunas, áreas alagáveis, margens de vias urbanas, áreas de mananciais etc. Essa condição de desigualdade socioespacial também possibilita a manutenção dos investimentos desiguais, ou seja, a reprodução do fenômeno da segregação. Nesse contexto, para se entender a dinâmica e as contradições do espaço urbano, inclusive para atuar no sentido de mudança, é necessário considerarmos e compreendermos historicamente as disputas pela posse da terra urbanizada, a segregação espacial e os interesses envolvidos na sua produção.

Nesse comentário inicial quis evidenciar que a segregação urbana é uma manifestação espacial das desigualdades sociais, certamente a mais significativa delas. Quanto maior a desigualdade social, maior será a intensidade da segregação socioespacial e dos seus mecanismos de reprodução. A segregação espacial, por ser estrutural, não será eliminada das cidades capitalistas, mas, por resultar de um processo histórico de disputas socioespaciais, pode ter a sua intensidade reduzida em função da maior ou da menor desigualdade social. Como toda produção social, esse processo de disputas socioespaciais vai depender da correlação de forças políticas, assim, e sob uma perspectiva social, são fundamentais o exercício pleno da democracia, a possibilidade de livre expressão, de mobilização, de participação e de controle social.

Com o fim da ditadura militar e o processo de redemocratização, houve uma efetiva ampliação das mobilizações sociais e dos mecanismos que permitiram maior participação popular, o que certamente dificultou ações arbitrárias do executivo, do legislativo e do judiciário, além de garantir um maior controle do patrimônio público e de interesse social, do uso e controle dos investimentos públicos urbanos. Nas últimas décadas, sem dúvida, houve muitos avanços e conquistas sociais, como a construção de novos marcos jurídicos e novas instâncias de representação e de participação, bem como das mobilizações populares que dificultaram avanços e ações agressivas da especulação e do capital imobiliário, e as diversas disputas que garantiram a participação popular e a preservação do patrimônio histórico-social-arquitetônico-ambiental-paisagístico. No entanto, constata-se que o processo de democratização e de redução da pobreza não determinou redução significativa da desigualdade espacial. Hoje, infelizmente, a segregação socioespacial na área conurbada de Florianópolis é muito mais ampla, estruturada e consolidada do que há poucas décadas. As disparidades sociais e as desigualdades espaciais intensificaram-se e tornaram-se mais excludentes, abrangendo o tecido intraurbano de pelo menos quatro municípios. Os espaços de pobreza estão cada vez mais apartados visual e fisicamente, inclusive a invisibilidade das desigualdades talvez possa representar o êxito deste processo.

A produção da segregação espacial quase sempre se desenvolve e se consolida ao longo de extenso período histórico, tal como a da área conurbada de Florianópolis, cujo processo vem sendo construído desde o inicio do século 20 e perpassou diferentes governos e conjunturas políticas. Por exemplo, se Florianópolis apresentava, até a década de 1950, desigualdade social mais restrita, a partir da intensa concentração espacial de investimentos públicos das décadas de 1970 e de 1980 esse processo começa a se ampliar, repercutindo na dinâmica imobiliária e na consolidação da atual segregação socioespacial. Em 2005, o grupo INFOSOLO efetuou amplo levantamento das áreas de informalidade em Florianópolis, São José, Palhoça e Biguaçu, identificando 171 favelas e assentamentos informais, 61 deles localizados em Florianópolis, indicando que 14,4% das moradias da área conurbada localizavam-se nessas áreas. Por outro lado, desde a virada do século 21 os dados do IBGE vêm assinalando a ampliação da migração pendular, da desigualdade social e da concentração de renda em Florianópolis, inclusive, no Censo Geral de 2000, apresentou o maior rendimento médio dentre as capitais brasileiras, confirmando as disparidades que já se refletiam espacialmente.

Os investimentos viários efetuados durante a ditadura militar contribuíram para tornar o processo segregativo em Florianópolis mais intenso e consolidado, resultando na delimitação e na valorização de espaços privilegiados na metade norte da ilha, bem como nas desigualdades socioespaciais entre a ilha e o continente, e entre Florianópolis e os municípios conurbados. No entanto, apesar da democratização, das políticas sociais, da redução da pobreza e do maior controle na distribuição dos recursos públicos, nos últimos 30 anos mantiveramse os investimentos públicos em áreas já privilegiadas, consolidando e reproduzindo essa estrutura segregada. Esse fato evidencia não apenas o aumento das desigualdades sociais na área conurbada e a estreita relação entre a produção capitalista do espaço e a segregação socioespacial, mas também o forte controle da classe dominante sobre a produção das cidades.

Se as desigualdades sociais e espaciais são produzidas num longo processo de disputas históricas e conformam essas estruturas socioespaciais injustas e extremamente arraigadas, certamente a transformação ou a redução dessas desigualdades espaciais irá exigir um processo de enfrentamento social bastante árduo, intenso e ininterrupto de investimentos públicos, de intervenções urbanas e de políticas sociais, não apenas como políticas de governo descontínuas, mas de políticas de Estado que sejam focadas, inclusivas e duradouras.

Hélder e Maria - Estabelecendo uma relação entre espaço e participação no poder político, poderíamos afirmar que os grupos sociais segregados no espaço também sofrem segregação política? Portanto, podemos estabelecer a mesma relação entre segregação espacial e desigualdade na distribuição da riqueza socialmente produzida, e entre segregação espacial e desigualdade na representação de interesses no âmbito do Estado e, consequentemente, na definição das políticas públicas?

Maria Inês - Certamente essas relações podem ser estabelecidas. Numa cidade segregada, as áreas residenciais ocupadas pelas camadas sociais de maior renda constituem-se também numa alta concentração espacial de poder econômico e também de poder político. A existência desses espaços segregados e a tendência à aproximação ou conexão entre áreas segregadas, delimitando uma região privilegiada da cidade, estabelece uma estratégia de poder fundamental, pois possibilitam maior capacidade de controle e de pressão política para garantir a contínua reprodução das politicas, dos investimentos públicos e da valorização imobiliária da área. Além do poder de pressão política sobre os poderes executivo e legislativo, a classe dominante também possui capacidade de controle direto ou indireto das diversas mídias, o que favorece e pressiona a divulgação, o atendimento e a manutenção pelo poder público de suas demandas e de seus interesses no contexto urbano. No outro extremo, áreas onde se concentram as camadas sociais com menores recursos e socialmente excluídas, são constituídas por moradores que não possuem proximidade ou contato com o chamado círculo privilegiado, nem a possibilidade de influência direta junto às representações institucionais e às esferas de poder do executivo, legislativo e judiciário.

No entanto, essas restrições de acesso direto às estruturas de poder, através do clientelismo, por exemplo, não significam que esses moradores não poderão obter atendimento às suas demandas e reivindicações, mas que dependerão dos canais públicos de negociações políticas, portanto, da sua capacidade de organização, de mobilização popular, da correlação de forças, da conjuntura política etc. Por exemplo, um dos movimentos que vêm apresentando conquistas sociais em sua luta pela moradia e pelo direito à cidade é o Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST), em São Paulo, que apesar das violentas ações repressivas da polícia militar de São Paulo, conseguiu recentemente reverter em dois dias uma decisão do governo interino Temer, de extinguir o financiamento do Programa Minha Casa, Minha Vida - Entidades (PMCMV-Entidades), uma das modalidades de financiamento habitacional mais caras aos movimentos populares.

No caso da área conurbada de Florianópolis, também há diversos casos de mobilização, de luta pelos direitos à moradia e de resistência contra remoções: a comunidade da Ponta do Leal, no Estreito, conseguiu garantir o direito à permanência da comunidade em um terreno ao lado do assentamento original a partir da doação do terreno pelo poder público e a construção de moradias financiadas através do PMCMV-Entidades; a comunidades do Angra dos Reis, localizada nas dunas de Ingleses, conseguiu a permanência das 19 famílias no local a partir de um acordo com a Prefeitura, o Ministério Público, a Fundação do Meio Ambiente (Fatma) e a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); a comunidade do Panaia, próximo ao aeroporto, conseguiu sua permanência e regularização fundiária acordada; mais recentemente, a comunidade do alto da Serrinha, que há décadas habita em terras da UFSC, teve aprovada a doação, para fins de moradia, pelo Conselho Universitário.

Por outro lado, são inegáveis as injustiças, a violência, o preconceito e os constrangimentos de toda ordem que esse acesso desigual às estruturas de poder político e econômico determinam às comunidades segregadas em áreas informais. Um dos casos mais significativos e trágicos é o da comunidade da Ilha do Arvoredo, situada nas dunas próximo à praia de Ingleses, que demonstra o nível de estigma, de preconceito, de intolerância e de injustiça social que os grupos sociais excluídos sofrem frente às mesmas condições de posse e ocupação da terra urbana que camadas de melhores condições econômicas. Essa comunidade informal há décadas ocupou e habita uma área nas dunas de Ingleses, sendo que parte da comunidade situa-se numa área imprópria e de risco, enquanto outra tem suas moradias assentadas na faixa lindeira à Rua do Siri em áreas de dunas já consolidadas da mesma forma que os moradores de classe média situados nas ruas do entorno, os quais também ocuparam áreas que eram originalmente dunas e que foram aterradas e hoje estão consolidadas. Mas essa população de classe média situada do outro lado da Rua do Siri originalmente construiu casas de madeira para veraneio nas antigas áreas de dunas, posteriormente modificaram para alvenaria e hoje, inclusive, muitas delas possuem até piscinas. Apesar de terem ocupado áreas de dunas, não sofrem riscos de remoção, inclusive já possuem escritura de posse. Por outro lado, pressionam o poder publico (PMF, FATMA, MPF etc.) para remover a comunidade do Arvoredo, inclusive moradores que habitam áreas de dunas já consolidadas. Essa ação tem apoio de alguns empreendimentos hoteleiros de Ingleses e de Santinho, também interessados na remoção da favela que estaria desvalorizando os imóveis do entorno. Por duas vezes a prefeitura tentou adquirir terrenos na região, um próximo à Cachoeira do Bom Jesus e outro na Vargem Grande, para a construção de um conjunto habitacional para remoção da comunidade do Arvoredo. Nas duas ocasiões houve protestos dos moradores desses bairros que se recusavam a ter pobres como vizinhos!

A alta concentração espacial de poder econômico e político faz com que essas camadas já privilegiadas consigam manter as condições privilegiadas, os constantes investimentos públicos que valorizam o solo urbano além de evitarem a implantação de equipamentos ou serviços públicos que venham a desvalorizar a terra ou mesmo a reduzir a qualidade de vida (atividades que produzam barulho, sujeira, poluição, insegurança, fluxo intenso de caminhões ou ônibus, transito pesado, terminais de transporte, aterro sanitário, central de tratamento de esgoto, cemitério etc.). Essas áreas onde se concentram as famílias de alta renda, uma vez que têm maior poder de garantir decisões favoráveis do poder público, tendem a receber maiores investimentos do Estado, além de captarem os rendimentos da valorização através das rendas fundiárias captadas pelo proprietário da terra ou por meio de outros excedentes pelos incorporadores. Além disso, a concentração espacial de camadas de maior rendimento determinará novas demandas por outros tipos de serviços e de comércios especializados no entorno, gerando maior valorização e interesses por novas incorporações de imóveis na área. Isso abre caminho para maior densificação e, como decorrência, novas demandas por serviços e investimentos públicos. Ademais, a valorização imobiliária irá gerar o aumento dos impostos prediais e de despesas mais elevadas dos serviços no bairro, podendo determinar a saída dos moradores de menor rendimento, ampliando ainda mais a concentração e a homogeneidade social do bairro, ou seja, aprofundando as disparidades sociais. Todo esse processo determina um círculo de subsequentes investimentos públicos sempre nos mesmos lugares, onerando o gasto público, ampliando a valorização imobiliária das mesmas partes da cidade e as desigualdades espaciais.

O Professor David Vetter, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na década de 1970 expôs esse processo nocivo que chamava de teoria de causação circular, em que evidencia a produção de investimentos públicos contínuos em áreas segregadas que, por sua vez, gera benefícios líquidos representados por rendas fundiárias as quais são apropriadas privadamente e geram novas demandas por ações do Estado, ou seja, expondo como a concentração de poder político e econômico determina um ciclo contínuo de investimentos públicos e aprofunda o processo de segregação urbana.

Hélder e Maria - Parece que estamos presos em um círculo vicioso: as análises dos investimentos públicos - definidos pelos representantes do povo - evidenciam a lógica de uma distribuição que reproduz as desigualdades sociais. Ao mesmo tempo, a desigualdade econômica, política e cultural reproduz as condições para que isso continue acontecendo, isto é, continua-se a eleger os representantes dos interesses dominantes. Quais os fatores responsáveis pela permanência desse ciclo perverso depois de mais de 20 anos de governos eleitos pelo voto popular?

Maria Inês - A produção da segregação socioespacial, em especial, a segregação residencial das camadas de maior renda, exige a efetivação de sucessivos e duradouros investimentos públicos, sempre concentrados nas mesmas áreas urbanas já privilegiadas o que, sem dúvida, determina esse ciclo perverso que amplia as desigualdades, as injustiças e contribui para a reprodução e consolidação das disparidades. O fato não é exclusivo à área conurbada de Florianópolis, ocorre em maior ou menor grau nas demais cidades brasileiras e latino-americanas.

Creio que seria interessante ressaltar algumas questões importantes para entendimento desse processo ininterrupto e a sua eventual reversão. Tendo em vista a necessidade de garantir seus canais de controle e de influência política, para a classe dominante é imprescindível eleger os candidatos que representem os seus interesses, contribuindo financeiramente de forma maciça para a campanha política dos gestores e de legisladores com os quais se identifica e que estejam comprometidos em defender interesses dessa classe. Apesar de aprovado o fim do financiamento privado de campanha eleitoral, certamente haverá quem busque meios de garantir a legalização dos recursos auferidos. Frente à disputa entre interesses conflitantes e economicamente díspares, os movimentos populares necessitarão atuar no sentido de garantir condições mínimas de equidade e de justiça no processo eleitoral para que possam eleger representantes e governantes comprometidos com as demandas populares - democracia, cidadania, inclusão socioespacial etc. -, percursos necessários para enfrentar e reduzir as desigualdades.

Sob uma perspectiva social, também é indispensável a efetiva representação nas instâncias de gestão urbana, de controle social e de participação popular. Dependeria também do processo de organização e de mobilização popular para se garantir o efetivo cumprimento de instrumentos jurídicos importantes, como o Estatuto da Cidade e leis complementares, que oferecem a possibilidade de refrear a reprodução desses investimentos recorrentes e, talvez, de reduzir desigualdades socioespaciais. Será necessária maior participação popular no processo de controle social do orçamento e no uso e recuperação dos recursos públicos como, por exemplo: a localização espacial dos investimentos públicos; o controle da especulação imobiliária através de instrumentos como o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo; a recuperação da mais valia fundiária decorrente dos investimentos públicos; o controle social da valorização da terra urbanizada; a delimitação das ZEIS tanto para assentamentos já ocupados como para estoque de terras centrais para habitação de interesse social; a justa taxação das benfeitorias urbanas; entre outros instrumentos urbanos condizentes com as determinações constitucionais previstas no Estatuto da Cidade.

Além disso, há um instrumento estratégico utilizado pela classe dominante que deve ser reconhecido e entendido. A produção do espaço urbano constitui-se num território de disputas que determina não apenas as melhores localizações, a valorização imobiliária, o controle do tempo de deslocamentos, mas também uma estrutura segregada que garante a reprodução dessa relação de poder. A segregação urbana constitui essa estrutura espacial de poder que, conforme reitera Lefebvre, é essencial para a manutenção do capitalismo e das relações de dominação. No entanto, para garantir e reproduzir essa relação entre a segregação e a dominação que se efetiva através do espaço, a classe dominante se utiliza de um poderoso instrumento de dominação, que é a ideologia. A ideologia é fundamental para garantir esse ciclo constante e duradouro dos investimentos. É através da ideologia que se constroem os discursos que: justificam a reiterada distribuição desigual dos investimentos públicos na cidade; que toleram como natural a existência das desigualdades sociais e espaciais; que admitem sem espanto a convivência entre a pobreza e a riqueza, entre a comunidade do Arvoredo e o empreendimento Jurerê Internacional; que disseminam a imagem da cidade e a delimitação dos lugares da cidade que devem ser preservados e valorizados; que definem as ações prioritárias e as urgências urbanas; que se difundem características de segurança e de criminalidade, ou atributos de qualidade e de carências; entre infindáveis discursos.

Finalmente, é interessante partilhar que, infelizmente, a maior parte da população não tem uma ideia clara sobre como se organiza o espaço da cidade, sobre quem são os agentes significativos que produzem a cidade, quais as disputas em jogo, como se estabelecem os bairros ricos e os bairros pobres, como operam os deslocamentos intraurbanos, como se distribuem os recursos, as obras, a manutenção urbana e os serviços públicos. Em geral, conhece as ausências e as demandas próximas as suas áreas residencial e profissional, mas nem sempre tem consciência de que os investimentos públicos são feitos de forma contínua ou restritas em diferentes partes da cidade. Inclusive, as diversas mídias também favorecem esse processo indicando, de forma recorrente, as qualificações, os eventuais problemas e as reclamações das áreas residenciais da população de mais alta renda, divulgação que permite pressionar o poder público ou valorizar os locais já privilegiados. Por outro lado, atuam de modo mais depreciativo em áreas periféricas ou informais, de forma a desvalorizar, denunciar, depreciar e criar estigmas nessas partes da cidade.

Há poucos anos orientei a pesquisa de mestrado da jornalista Paula Scheidt Manoel onde pudemos constatar esse fato, essa relação entre cidade, poder e imprensa. A partir de exaustivo levantamento e comparação entre as notícias veiculadas durante alguns anos em dois jornais concorrentes, A Noticia e o Diário Catarinense, pôde-se evidenciar o poder da mídia na veiculação ou não veiculação de notícias, considerando o processo segregado da área conurbada de Florianópolis. Também se pôde perceber o fato das reportagens publicadas serem ou não favoráveis às demandas sociais ou às determinadas localidades urbanas valorizadas. Indica como a ação da imprensa tem o poder de criar prestígio ou de favorecer estigmas, de favorecer a valorização ou a desvalorização imobiliária desses locais, assim como a capacidade de pressão sobre o poder publico ou a população na determinação da localização, da necessidade e da prioridade dos investimentos e dos serviços públicos.

Hélder e Maria - As áreas residenciais de setores sociais de alta renda determinaram de algum modo os investimentos públicos do sistema viário da Ilha. Então, podemos afirmar que esse critério de seletividade continuou após 2000 ou que houve uma modificação nas áreas dos investimentos a partir de 2003 com as novas políticas sociais?

Maria Inês - Sim, como comentei anteriormente, apesar de terem ocorrido investimentos em algumas áreas da cidade antes abandonadas (PAC, urbanização favelas, pavimentação) continuou-se privilegiando os investimentos públicos desiguais.

Hélder e Maria - Qual o impacto do Estatuto da Cidade na dinâmica socioespacial na área conurbada de Florianópolis?

Maria Inês - O Estatuto da Cidade é uma das leis brasileiras mais inovadoras e socialmente inclusivas. Regulamentou os conteúdos sobre política urbana da Constituição de 1988 e consagrou princípios fundamentais, como a função social da propriedade imobiliária e da cidade, a justa distribuição dos ônus e dos benefícios do processo de urbanização, a participação popular e a gestão democrática da cidade. Sua aprovação, em 2001, foi resultado de um amplo e longo processo de debates e de negociações. Foi uma conquista dos movimentos sociais, em especial, do Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU). Desde então e principalmente durante o governo Lula, o Estatuto da Cidade foi sendo complementado por dezenas de outras importantes leis federais que ampliaram os direitos sociais e urbanos, como: a lei que trata da Concessão de uso especial para fins de moradia; a do Crédito e registro imobiliário; de Consórcios Públicos; a das Parcerias públicoprivadas, da criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS); de concessão de Terras da União para moradia de interesse social; da Assistência Técnica gratuita para as comunidades; do Programa MCMV, que também dispôs sobre Regularização Fundiária de Interesse Social; da Política de Saneamento; da Política de Resíduos Sólidos; da Política de Mobilidade Urbana, da Política Nacional de Defesa e Proteção Civil; e diversas leis que tratam do Patrimônio Cultural e Ambiental e de resoluções de conflitos fundiários. Enfim, a articulação desse conjunto de leis, decretos e resoluções estabeleceu o que os juristas progressistas chamam de uma "nova ordem jurídico-urbanística" no país, fundamental para garantir os direitos sociais e alcançar as desejadas reforma urbana e justiça social.

No entanto, apesar desses marcos legais e da efetiva redução da pobreza ocorrida nas ultimas décadas, mantiveram-se as desigualdades socioespaciais. As cidades brasileiras continuam reproduzindo o processo de segregação socioespacial; os investimentos públicos permaneceram distribuídos de maneira desigual no espaço intraurbano; ainda não há um efetivo controle social que reduza a especulação imobiliária, que garanta a arrecadação da mais valia urbana ou que institua o IPTU progressivo, instrumentos que poderiam controlar a valorização da terra urbanizada, um dos obstáculos à moradia das camadas populares nas áreas mais centrais.

Desse modo, persistem a informalidade urbana, os conflitos fundiários e as contínuas remoções de assentamentos em várias cidades. A simples existência de leis, mesmo significativa como o Estatuto da Cidade, não garante a sua implementação plena e imediata, menos ainda as mudanças rápidas e significativas na realidade urbana e na dinâmica socioespacial. Ainda há diversos obstáculos jurídicos, sociais, políticos e culturais. Esses novos marcos jurídicos precisam ser melhor conhecidos, compreendidos e aplicados não apenas pelos atuais e futuros profissionais que atuam no campo jurídico, social, territorial e de planejamento urbano, mas pela sociedade como um todo. Além disso, a concretização dos instrumentos do Estatuto da Cidade ficou principalmente sob a responsabilidade das administrações municipais. E, como essas decisões e intervenções envolvem diferentes projetos de cidade e interesses socioeconômicos conflitantes, então a ocorrência das disputas socioespaciais, das disputas políticas e das disputas jurídicas são previsíveis e bastante árduas. Enfim, séculos de apartação social, exclusão, violência, coerção e de disputas territoriais são difíceis e árduos de serem superados.

Nessas condições, não seria factível esperar que o Estatuto da Cidade suscitasse impacto significativo na dinâmica socioespacial de Florianópolis e municípios conurbados. Porém, houve repercussões positivas e as mais evidentes se concentram nas demandas pela efetiva participação popular no planejamento urbano, nas reivindicações sociais de caráter pontual e nas ações de resistência e de luta para a preservação dos espaços públicos e do patrimônio histórico, arquitetônico, paisagístico e ambiental, possibilitadas por essa nova ordem jurídica-urbanística estabelecida pelo Estatuto da Cidade. Em Florianópolis, a ação mais conhecida é a disputa que, há mais de dez anos, vem ocorrendo entre gestores municipais, movimentos populares, setores empresarial e legislativo municipal para a elaboração e a aprovação do Plano Diretor Participativo. Disputas políticas, sociais e judiciais envolvem diferentes proposições, entendimentos, prioridades e planos para o desenvolvimento da cidade, evidenciando conflitos de interesses e também o anseio legítimo de garantir a participação popular no processo de gestão urbana.

Outras ações dos movimentos populares da cidade também utilizaram instrumentos jurídicos apoiados no Estatuto da Cidade para coibir violações de preceitos legais ou mudanças urbanísticas e ambientais que, certamente, teriam acirrado os danos socioambientais ou ampliado as desigualdades socioespaciais. Entre elas pode-se citar: o processo de mobilização popular na Lagoa da Conceição que enfrentou o capital imobiliário e conseguiu impedir projeto de aumento do gabarito das edificações; a mobilização da comunidade do Campeche, que em diversas ocasiões confrontou os planos oficiais e elaborou projetos urbanos alternativos; o movimento popular para impedir a construção de hotel de luxo de grandes dimensões na Ponta do Coral, interligando a demanda pela apropriação pública da área, com a defesa do manguezal do Itacorubi; outras mobilizações e disputas de interesse social que, direta ou indiretamente, repercutem no processo de valorização fundiária, imobiliária e na dinâmica socioespacial da cidade.

Dentre as ações respaldadas no Estatuto da Cidade e em leis complementares, talvez a que tenha determinado as repercussões mais significativas no que tange à redução das desigualdades e da segregação socioespacial seja a instituição das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), que restringiu a possibilidade de expulsão e de remoção das comunidades localizadas nas terras urbanizadas centrais. Inicialmente, o poder público local demarcou diversos assentamentos informais nas encostas do Maciço do Morro da Cruz, exigência do Ministério das Cidades para a liberação dos recursos federais do PAC. Posteriormente, foram demarcadas áreas de ZEIS em outras comunidades na Ilha, como no Saco Grande, Costeira do Pirajubaé, Ingleses, Tapera da Base etc., assim como diversos outros assentamentos informais nos municípios vizinhos. Essa demarcação das ZEIS e AEIS no Plano Diretor Participativo, assim como as diversas obras de urbanização de favelas executadas pelo PAC, expressam o reconhecimento do direito à moradia digna e o direito à cidade, ou seja, o direito à permanência dessas comunidades em terras urbanizadas centrais. Ações como essas garantem a imprescindível diversidade social das cidades, representam a possibilidade de inclusão socioespacial e protegem essas comunidades das investidas recorrentes do capital imobiliário. No entanto, ainda é urgente e essencial a regularização fundiária das terras situadas em ZEIS, para se garantir uma efetiva segurança jurídica aos moradores dessas comunidades e se evitar que decisões discricionárias de futuros gestores promovam eventuais conflitos fundiários, despejos ou remoções.

Ainda estamos muito distantes de alcançar uma redução das desigualdades sociais e da segregação espacial como resultado desses instrumentos legais e das politicas públicas urbanas. A redução das desigualdades passa não apenas pela redução da pobreza e a criação de políticas inclusivas, mas exige também outras ações incisivas como a equidade na distribuição dos serviços urbanos e dos investimentos públicos, e a localização central das habitações de interesse social, essenciais para se reduzir os conflitos urbanos, permitir uma interação socioespacial e garantir justiça social. Hoje os movimentos populares já começam a entender que devem perseguir não apenas os direitos estabelecidos na Constituição, no Estatuto da Cidade e nesse conjunto de leis inclusivas, mas que a mobilização e as demandas populares devem buscar um processo de articulação entre as politicas urbanas, fundiárias, habitacionais, ambientais, fiscais, orçamentárias e de controle social. Por outro lado, no atual momento político brasileiro, quando está em curso um golpe de Estado e um avanço das forças conservadoras, mais do que nunca é fundamental que os movimentos populares e as forças progressistas possam ter como meta a defesa da democracia, das conquistas sociais e dos legados obtidos nos últimos anos, inclusive a defesa e implementação plena do Estatuto da Cidade.

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    Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Autora do livro Segregação silenciosa: investimentos públicos e dinâmica socioespacial na área conurbada de Florianópolis (1970-2000). Florianópolis: UFSC, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2016
  • Aceito
    15 Ago 2016
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