Enquanto o leão não puder contar a sua história, o caçador terá sempre a última palavra. (Provérbio africano).
Introdução
O dia 13 de maio de 2018 marca exatamente 130 anos da abolição da escravatura no Brasil. Há o que comemorar? Distante das análises que condenam esta data atribuindo-lhe apenas o fato de ter sido o dia em que as classes dominantes se desvencilharam do peso que a escravidão passou a representar, consideramos que se libertar do cativeiro foi e é motivo de festa. Concordamos com Jacob Gorender (1982, p. 21) que, em análise da burguesia brasileira, considera “[...] a extinção das relações de produção escravistas, no Brasil um evento revolucionário [...]” ou, ainda mais enfaticamente, afirma que a abolição “[...] foi a única revolução social jamais ocorrida na história do país”. E, insistimos, com imensa participação popular. Isto inclui as massas escravizadas em luta!
Porém, quando nos debruçamos sobre o que ocorreu nos dias posteriores ao congraçamento de 13 de maio de 1888, percebemos que as correntes formais deixaram de existir, mas o salto para que os(as) trabalhadores(as) negros(as) fossem reconhecidos(as) como parte constitutiva da insipiente nação brasileira tornou-se um longo e intolerável cortejo. O Estado brasileiro não implementou políticas que impulsionassem a inclusão destes(as) no universo da cidadania, até porque isto implicaria profundas mudanças nas relações sociais, especialmente no campo. Ironia das ironias, finalmente libertos(as) e aptos(as) a venderem livremente sua força de trabalho ao capitalista, a almejada liberdade não garantiu condições para que se integrassem de fato ao proletariado, não puderam sequer compor o exército industrial de reserva, a não ser, parafraseando Florestan Fernandes (2008), como escória da escória do operariado em formação. A história, concordamos com Emília Viotti da Costa (1998), não se desenrola no mesmo nível de abstração que suas teorias. Ao contrário das regiões que foram berço do capitalismo, não houve para os(as) trabalhadores(as) negros(as) daqui a etapa em que se tornariam classes laboriosas para depois, em razão da pouca disposição do capital em atender às demandas geradas por sua própria dinâmica predadora (falta de moradia, saneamento básico, melhores salários etc.), se tornarem as classes perigosas1 (CHEVALIER, 2002). Foram imediatamente tratados(as) como um perigo à ordem burguesa.
Na gênese do Serviço Social, na década de 1930, esta população permaneceu escanteada. Diluída na condição de pobre e miserável, tornou-se objeto de uma caridade que, mais do que flertar, estabeleceu ligações perigosas com a política eugenista do Estado brasileiro. Produto histórico das relações sociais, a profissão esteve estreitamente vinculada às ideias da classe dominante e reproduziu ou reforçou o status quo. De um lado, recebeu investidas eugenistas sob o argumento de que, para assegurar moralmente o destino da comunidade nacional, era preciso contribuir para melhorar a raça. De outro, e sem sair do universo ideológico conservantista, a categoria se viu sob o manto do mito da democracia racial, ideologia responsável por propagar a ideia de uma escravidão branda e de uma convivência pacífica entre os povos, não havendo, portanto, no Brasil um problema negro, como se reconhecia existir em outros países. Em ambos os casos, de harmonia entre as raças e de eugenia, os(as) primeiros(as) assistentes sociais não perceberam que o nó da questão social, núcleo elementar da profissão, residia justamente na ofuscada questão racial.
Considerando as particularidades da formação social brasileira, pretendemos demonstrar ao longo deste artigo que a questão racial não é apenas expressão da questão social, ela antecedeu e, ao mesmo tempo, sustentou a conformação do antagonismo entre as classes sociais, isto é, foi alicerce da desigual distribuição de riquezas no emergente capitalismo brasileiro. Por fim, indagamos qual a razão do Serviço Social ainda permanecer tímido com relação à abordagem da questão racial e de sua face mais cruel: o racismo2naturalizado nas práticas institucionais cotidianas.
Da revolução abolicionista às margens de direitos sociais
Na contramão das concepções típicas de uma conhecida escola paulista que insistiu no caráter passivo das massas no processo que culminou na abolição da escravatura, atribuindo o protagonismo das transformações societárias em curso à racionalidade empresarial dos fazendeiros do oeste de São Paulo, Clóvis Moura (1988); Décio Saes (2001) e Jacob Gorender (1990) identificam uma forte participação de escravizados(as) na luta antiescravista, levando ao colapso aquela ordem social.
A luta dos(as) escravizados(as) é central em toda a obra de Moura, em especial no clássico Rebeliões da Senzala, publicado pela primeira vez em 1959 3 . Neste livro, Moura (2014b) demonstra que nunca houve escravização branda e que tampouco existiu uma docilidade inerente ao comportamento do(a) escravizado(a), ideia bastante difundida mesmo entre destacados críticos do sistema escravista (como veremos adiante). Em diferentes textos, o autor enfatiza que a formação dos quilombos era um risco à ordem escravocrata, pois colocava em evidência a possibilidade de desenvolvimento de uma estrutura social alternativa “[...] supreendentemente progressista para a economia e os sistemas de ordenação social da época. Um embrião de nação que foi destruído para que o seu exemplo não determinasse uma economia que transcendesse os padrões econômicos e políticos do sistema escravista”. (MOURA, 1988, p. 184).
No período de lutas abolicionistas, as fugas e a constituição dos quilombos contra o trabalho compulsório, transformaram a massa escravizada na “[...] força principal da revolução política antiescravista, na medida em que, sem a sua ação violenta, seria impossível curvar as classes dominantes escravistas e a burocracia imperial; vale dizer, seria impossível destruir o conjunto das instituições escravistas”. (SAES, 2001, p. 30, grifo do autor). O problema é que esta revolução permaneceu no plano político-jurídico e foi incapaz de desencadear “[...] simultaneamente uma revolução nacional, democrática e agrária, cuja eclosão teria conferido ao nascente capitalismo brasileiro uma feição distinta”. (SAES, 2001, p. 32). Tratou-se de uma trágica revolução burguesa inacabada. (FERNANDES, 2008).
Décio Saes destaca um outro grupo social, diferente daquele propagado pela escola paulista, que age como força dirigente da revolução política antiescravista: a classe média urbana, mais precisamente, como escreve o autor, “aquela parte dessa classe social” que não se acomodou “ao ‘favor’ das classes dominantes” e aderiu aos “ideais da meritocracia e da cidadania” (SAES, 2001, p. 30). É esta classe que, segundo o cientista político, orientou “[...] a revolta dos escravos rurais para objetivos que extrapolam as aspirações da massa escrava: a implantação de um novo direito e a construção de um novo aparelho de Estado, ambos fundados no princípio da igualdade entre todos os homens”. (SAES, 2001, p. 30).
A introdução das bases jurídico-políticas para implantar o capitalismo no País esbarrou num processo que vinha ganhando corpo não somente junto à classe dominante, mas se espraiava por todos os poros da sociedade brasileira: a depreciação de ex-escravizados(as).
Um defeito de cor4
O discurso dominante proclamava que estes(as) ex-cativos(as) não eram qualificados(as) o suficiente para ajudarem a erguer os pilares da futura grandiosa nação capitalista. Aqui se consolidavam as ideias racistas que ganharam status de verdadeira ciência no século XIX. Em consonância com as teorias raciais, nestes trópicos, os racistas sentiam-se desconfortados com traço mais característico da população brasileira, um defeito de cor, que, segundo tal ciência, representava um grande obstáculo podendo levar o País à tragédia da degeneração.
Atento e parte fundamental deste desconforto, o Estado brasileiro não hesitou em implementar uma inescrupulosa política migratória. O argumento era grotesco: importar mão-de-obra apta ao novo processo de produção resolveria o problema da falta de trabalhadores(as) qualificados(as) e, ao mesmo tempo, evitaria a degenerescência da nação branqueando-a. Em definitivo, o princípio da igualdade, que encantou parte da classe média urbana, só incluiria no projeto de nação em curso determinados homens (mesmo se, inclusive para estes, os direitos plenos só viessem a conta-gotas).
Clóvis Moura (1988) elucida o quanto a política adotada no final do Império e na jovem República era racista. No sentido arianizante da palavra, era preciso melhorar o sangue e a raça da nação. Para o autor, o problema não era importar trabalhadores(as), mas sim a exaltação de determinadas características de alguns grupos sociais. Buscava-se um trabalhador que fosse membro “[...] de uma raça mais nobre, ou melhor, caucásica, branca, europeia e, por essas qualidades, superior”. (MOURA, 1988, p. 80, grifo do autor). Estampada na rejeição a fazer uso da mão-de-obra de trabalhadores(as) negros(as), cristalizava-se a ideologia do branqueamento da sociedade brasileira.
A popularidade do ideal de branqueamento jamais foi acidental. Havia um engenhoso compromisso entre as teorias racistas e o futuro do Brasil. E os argumentos científicos foram fundamentais na justificativa da defesa da supremacia racial branca. A ciência, sobretudo difundida pelas escolas de medicina e de direito, de acordo com Lilia Schwarcz (1994, p. 142), “[...] convivia com um discurso racial, prontamente acionado quando se tratava de defender hierarquias, explicar desigualdades sociais”. E não faltaram ingredientes naturalizantes para se referir ao problema negro como fator explicativo da inferioridade do povo brasileiro. Aliás, escreve a autora, a coerência com os procedimentos científicos pouco importava. Era preciso garantir um resultado capaz de tornar o Brasil uma nação branca.
Falar da adoção das teorias raciais no Brasil implica refletir sobre um modelo que incorporou o que serviu e esqueceu o que não se ajustava. Ou, melhor dizendo, procurou nessas teorias justificativas para expulsar a parte gangrenada da população, sem deixar de garantir que o futuro seria branco e ocidental (SCHWARCZ, 1994, p. 147, grifo da autora).
Impossível não se surpreender com a adesão a este ideário de intelectuais críticos oriundos de uma tradição democrática, como Celso Furtado. Ao analisar o problema da mão-de-obra naquele período, o autor observa que o homem formado dentro do sistema escravista não conseguiria responder aos estímulos econômicos. Para o economista, “[...] quase não possuindo hábitos de vida familiar, a ideia de acumulação de riqueza é praticamente estranha. Demais, seu rudimentar desenvolvimento mental limita extremamente suas ‘necessidades’”. (FURTADO, 2000, p. 144). O trabalho para o escravo (sic) era uma maldição, levando-o a preferir o ócio. Antes se consideravam os(as) negros(as) dóceis e aptos(as) ao trabalho forçado; agora se insistia em vinculá-los(as) à ociosidade como justificativa para empregar a força de trabalho do imigrante europeu.
Atrelado a este desejo de arianização, existia o indiscreto charme5 da burguesia agrária, que lucrou fartamente com o estímulo estatal de importação de imigrantes brancos. Ao contrário dos autores que elevavam os fazendeiros paulistas à categoria de nova classe empresarial, cuja racionalidade capitalista os teria feito compreender que a escravidão já não era mais rentável, Jacob Gorender (1980) assinala a permanência altamente lucrativa do trabalho escravo até o último momento. O fim do tráfico externo, na verdade, estimulou internamente a comercialização de escravizados(as). O apelo à força de trabalho do imigrante operou “[...] como fonte alternativa de mão-de-obra tão somente suplementar, sob formas de escravidão incompleta6”. (GORENDER, 1980, p. 564, grifo do autor).
Somente no momento derradeiro, às vésperas da abolição, com um pé atrás, mas com a garantia de que dos cofres públicos viria a solução imigrantista para ocupar o lugar do imprescindível trabalho escravo, a carroça do atraso paulista, sem charme e sem escrúpulo algum, aderiu à abolição. Os estímulos do Estado foram fundamentais para a substituição da força de trabalho com vistas a “[...] satisfazer uma teia de interesses que se conjugavam dentro de uma visão capitalista dessa transação, com capitais em jogo e interesses ideológicos e políticos que se completam”. (MOURA, 1988, p. 88). Longe de qualquer distinta qualificação, os imigrantes chegavam de áreas da Europa “[...] onde o avanço do capitalismo criava uma superpopulação desocupada e miserável, cujo excesso inassimilável os próprios governos europeus tinham interesse em expelir”. (GORENDER, 1980, p. 566).
Vitoriosa a campanha abolicionista, o destino dos(as) negros(as) já não interessava a nenhum outro grupo social, nem mesmo à força dirigente adepta dos ideais da igualdade. A classe média urbana se voltou aos propósitos de sua própria ascensão social alicerçada pela ideologia meritocrática. A revolução burguesa foi limitadíssima. Aboliu a escravidão, mas deixou intocado o problema do negro, resolvendo apenas o problema do branco (SAES, 2001).
Num País cujo destino era ser branco e capitalista, os(as) trabalhadores(as) negros(as) foram exorcizados(as) da comunidade nacional e viram-se às margens de direitos sociais básicos. E não faltaram homens de ciência a responsabilizarem os(as) próprios(as) negros(as) por este destino miserável. E mais uma vez Furtado surpreende:
Cabe tão somente lembrar que o reduzido desenvolvimento mental da população submetida à escravidão provocará a segregação parcial desta após a abolição, retardando sua assimilação e entorpecendo o desenvolvimento econômico do país. Por toda a primeira metade do século XX, a grande massa dos descendentes da antiga população escrava continuará vivendo dentro de seu limitado sistema de “necessidades”, cabendo-lhe um papel puramente passivo nas transformações econômicas do país (FURTADO, 2000, p. 145).
O autor atribui aos negros(as) uma deficiência de ordem psicológica e confunde “[...] retardamento mental com atraso cultural, avaliado segundo o padrão da cultura europeia” (GORENDER, 1990, p. 199). Furtado não percebe que era a estrutura social racista que dificultava a integração. Mais que isto, desconsidera o estreito vínculo entre capitalismo e relações raciais. Assim, não estamos diante de um problema do negro, tampouco de um problema de natureza psicológica, mas de relações sociais capitalistas que, por meio da discriminação racista, impõem, em determinados setores da população ex-escravizada, o fardo mais pesado (GORENDER, 1990). Manter estas relações implicou para a classe dominante criar uma polícia forte e uma justiça severa com vistas a conter os maus instintos. Egressos(as) das senzalas, foram encurralados(as) nas áreas mais precárias para fincar suas moradias, constituindo as primeiras aglomerações de favelas e compondo a grande franja de marginalizados(as) criada pelo modo de produção que surgia.
De classes perigosas a objetos de caridade: os(as) negros(as) na aurora do Serviço Social
O Estado brasileiro, alicerçado pelo ideário da superioridade branca, cuidou de organizar e legitimar o tratamento vil que seria destinado a ex-cativos(as). O Código Penal de 1890 tornou-se um importante instrumento jurídico que transformou em práticas criminais as manifestações da cultura negra (a capoeira, a feitiçaria, o curandeirismo, etc.) e passou a regulamentar e qualificar como delito o ócio, mesmo aquele que resultava da recusa em contratar força de trabalho por causa de seu defeito de cor. Leis, Atos, Decretos, etc. que se seguiram evidenciam a preocupação da administração pública com esta gente, julgada preguiçosa, que perambulava pelas ruas.
Em missão diplomática pelo País, em 1869, o conde de Gobineau, autor de Essai sur l’inégalité des races humaines, fez um péssimo prognóstico: a mestiçagem entre índios, negros e um pequeno número de portugueses levaria à extinção da raça dos brasileiros. Contribuiu para a persistência de um projeto de nação de raça pura e forte, a ariana. O Traité des Dégénerescences, de Bénédict-Augustin Morel (1857), e os escritos de Francis Galton (1869), sobretudo o Hereditary Genius7, inspiraram muitos brasileiros de ciência, que tinham Oliveira Vianna, e suas ideias de branqueamento, como expressão maior nas primeiras décadas do século XX. Vianna se transformou num dos maiores ideólogos das políticas de intervenção social na Era Vargas (AGUILAR FILHO, 2011). Com ele e outros adeptos da “razão científica da eugenia” (AGUIAR FILHO, 2011, p. 84), aumentava incessantemente no País a crença (e a prática) de que para se chegar ao progresso moral e à perfeição da espécie, seria necessário passar “[...] pela seleção e pela discriminação: selecionar e discriminar como prática cultural de ‘hygiene’”. (AGUILAR FILHO, 2011, p. 75).
Destas concepções higienistas/eugenistas pulularam inúmeras construções de saneamento e embelezamento das cidades. No artigo intitulado Territórios negros nas cidades brasileiras, Raquel Rolnik (1989) observa que em São Paulo, não por acaso, na edificação da Praça da Sé a demolição dos cortiços, hotéis e pensões resultou dessa limpeza. Implantou-se um centro burguês exclusivo para as classes dominantes. Materializou-se, literalmente, a segregação racial, a discriminação, a dominação branca. No Rio de Janeiro este processo remonta ao período pré-abolição, quando negros(as) escravizados(as) e libertos se misturavam e organizavam uma rede de proteção e esconderijo nos cortiços cariocas. A repressão para controlar estas áreas fez do negro o suspeito preferencial e desmantelar esta rede significou estabelecer um vínculo entre a população dos cortiços e as epidemias, como a febre amarela. A classe dominante soube fazer uso ideológico da mistura, atribuindo as epidemias não às péssimas condições de moradia, mas à falta de moralidade. A solução era higienizar a cidade, isto é eliminar as habitações coletivas e retirar do centro da capital a população indesejada que, além de propagar doenças, desafiava a ordem vigente e dificultava as políticas de controle social (CHALHOUB, 1990).
Expulsão, isolamento, violência sacramentaram o percurso que classificaria os(as) negros(as) como suspeitos(as) preferenciais ou classes perigosas, antes mesmo de terem a possibilidade de se constituírem como classes laboriosas. Num aparente paradoxo, as formulações, mesmo as mais abstratas, de Marx (1985) abrangem de forma distinta este segmento. Sobretudo em O capital, o autor evidencia que o modo de produção capitalista institui a igualdade de status jurídico entre os agentes do processo de produção, transforma os indivíduos livres, isto é, os não proprietários dos meios de produção e proprietários apenas de sua força de trabalho, em proletários. A questão social no Brasil é fruto desse processo de transição para o trabalho livre (ALMEIDA, N. L. T. de, 2016). No entanto, o defeito de cor da população ex-escravizada imputou enormes obstáculos para que esta se constituísse como parte, de fato, da classe trabalhadora, dificultando, inclusive sua constituição como exército industrial de reserva. Comprimidos nos porões da sociedade, os(as) negros(as) ou estavam destinados a morrer, com vidas nuas, supérfluas e, portanto, facilmente descartáveis ou se constituíam como um viveiro de mão-de-obra barata, como reserva da reserva (GORENDER, 1990). Em tais condições, tornaram-se alvo prioritário das caridades (e de certa dose de eugenia) do Estado8, especialmente no que compete à Assistência Social.
Estava traçado o inevitável encontro entre o Serviço Social e as classes perigosas. Ampla literatura demonstra a estreita relação entre o surgimento da profissão e a Igreja Católica, que almejava recuperar as áreas de influência ameaçadas pelas transformações sociais e pela reorganização do Estado. Esta simbiose com o movimento católico não impediu uma envolvente demanda do Estado, antes mesmo da criação da primeira Escola de Serviço Social, adiantando o que viria a se consolidar na década seguinte: o “[...] estabelecimento e controle de uma política assistencial intimamente vinculada às organizações representativas das ‘classes produtoras’”. (IAMAMOTO, 2011, p. 31). Salta aos olhos, por exemplo, a Carta Constitucional de 1934, que vislumbrava introduzir na legislação brasileira um programa unitário de ação social. Do capítulo Assistência Social, art. 138, lê-se:
Incumbe à União como aos Estados e aos Municípios, nos termos da lei federal: velar pela saúde pública assegurando o indispensável amparo aos desvalidos, criando serviços especializados e estimulando os serviços sociais cujas finalidades procurará coordenar; incentivar a educação eugênica e sexual; [...] adotar medidas de higiene social, visando impedir a propagação das doenças transmissíveis; socorrer as famílias de prole numerosa; cuidar da higiene mental incentivando a luta contra os venenos sociais.
Parágrafo único: todos os problemas relativos à saúde e à assistência públicas serão estudados e coordenados por Conselhos Técnicos e pelos órgãos criados visando o aperfeiçoamento da raça. (AGUILAR FILHO, 2011, p. 104, grifo nosso).
A relação entre o surgimento do Serviço Social e a ordem burguesa foi amplamente examinada por diversos(as) autores(as) e é consenso mesmo dentre aqueles(as) que se distanciam das análises que se apoiam no materialismo histórico. O art. 138 da Constituição de 1934 demonstra o quanto naquele momento, às vésperas da criação da primeira Escola de Serviço Social, delineavam-se os princípios básicos que a classe dominante esperava que o Serviço Social viesse a executar. Atividades que, bem mais que científicas, são doutrinárias e atendem precisamente ao interesse reformista-conservador, que transforma a questão social em um problema de ordem moral, como observou Marilda Iamamoto (2011). Aos poucos, a profissão deixa de apenas exercer a caridade e passa, por meio da assistência, a intervir de forma cada vez mais ideológica na vida dos(as) trabalhadores(as). Esta intervenção produz resultados “[...] essencialmente políticos: o enquadramento dos trabalhadores nas relações sociais vigentes, reforçando a mútua colaboração entre capital e trabalho”. (IAMAMOTO, 2011, p. 20).
E o que dizer daquela massa que se constituiu como reserva da reserva da reserva? Ao tratar a todos(as) como trabalhadores(as), as análises sobre a profissão permaneceram desatentas acerca da questão racial. A categoria não pode ser compreendida sem que se considerem as múltiplas determinações de seu processo de constituição9. A questão racial é, insistimos, o nó da questão social, e ganha novos contornos nos dias atuais.
Como observamos, as discussões sobre o branqueamento da nação era tema constante das nascentes políticas de Estado, mas também das organizações que surgiam em nome da chamada construção da patria brasilis. No bojo destes debates, surgiu em 1932 a Ação Integralista Brasileira (AIB), órgão de extrema direita que também pretendia orientar os rumos morais da nação com Deus, a pátria e a família. Sendo a fé católica considerada um dos elementos constitutivos da nacionalidade, não será obra do acaso se nomes expoentes do mundo católico aderem ao integralismo10. Notáveis representantes da Ação Católica e do clero nutriam fortes simpatias pelo fascismo europeu, antes mesmo do surgimento da AIB. Tal disposição “[...] só poderia contribuir para a aproximação entre os dois movimentos. A trilogia integralista - Deus, Pátria e Família - seu visceral anticomunismo e a defesa intransigente da ‘família e da propriedade’ se identificaram plenamente com o espírito do movimento católico”. (IAMAMOTO; CARVALHO, 2014, p. 173). Aquela massa comprimida nos porões da sociedade ficou refém da encruzilhada católico-integralista e de sua caridade. Obviamente, o Serviço Social não permaneceu inerte, ao contrário, foi peça fundamental.
Quando o autogolpe estadonovista de Vargas extinguiu os partidos e, com estes, a AIB, a Igreja permaneceu intacta. A nova aliança com o Estado permitiu que ela seguisse com um projeto cujo núcleo só difere do integralismo de forma quase imperceptível. As primeiras Escolas de Serviço Social já estavam em funcionamento, sob o amparo da doutrina social da Igreja. Esta, compreendendo a questão social como ausência de moralidade, atribuía aos(às) assistentes sociais a tarefa de harmonizar a sociedade e promover o Brasil-potência-católico (FERREIRA, 2010).
Os laços entre eugenia e Serviço Social11, estabelecidos pela Constituição de 1934, aparecem na Revista Serviço Social, publicação dos(as) primeiros(as) profissionais da área, conforme pesquisa desenvolvida por Ferreira (2010) sobre O negro na gênese do serviço social. Os resultados da minuciosa investigação demonstram que a temática racial foi pautada na revista, mesmo se por caminhos tortuosos e com espasmos de abordagem direta. Apesar de não haver um debate aberto sobre o assunto, o periódico expressou e incorporou o pensamento dominante. Além da inferiorização dos descendentes de africanos, muitos artigos expressaram preconceito com relação à herança ibérica, responsável por um tipo ruim de português que, longe das virtudes da raça ariana, degradava ainda mais a nação ao se misturar com os impuros índios e negros. E a questão racial apareceu mais uma vez de forma velada quando o assunto era a política migratória varguista, que ergueu intensas barreiras a imigrantes asiáticos e africanos. Atenta a estas questões consideradas centrais, uma das autoras defendeu, em 1939, que era preciso discutir o “problema étnico”, pois este, além de provocar tensões econômicas e políticas, atinge moral e culturalmente o indivíduo, a família e a sociedade (FERREIRA, 2010, p. 86).
Na contramão da eugenia negativa, que postulava que para se livrar da degeneração era preciso promover a esterilização e/ou segregar, e não podendo definitivamente contornar a miscigenação12, o serviço social adere à vertente “[...] positiva, profilática e não radical, que enfatizava que a solução para o problema nacional era a higiene”. (FERREIRA, 2010, p. 108). Sob a égide da bem aceita higienização, o racismo, que passou a estruturar as relações sociais, foi escamoteado.
Ainda assim, nem sempre foi possível esconder a truculenta maneira como a classe dominante considera os(as) negros(as). Ao traçar um panorama da situação das crianças nas casas de acolhimento, outra autora enfatiza que estas não se influenciam pelo preconceito de cor. No entanto, a assistente social, não hesitou em ressaltar que estas crianças apresentam “sérios problemas de conduta devido ao meio de que provém”. (ODILIA FERREIRA, 1944, p. 37 apud FERREIRA, 2010, p. 160). Tais afirmações propagam “a ideia de que os negros padecem de uma deformação moral grave”, o que significa que “seriam naturalmente mais problemáticas”. (FERREIRA, 2010, 161, grifo da autora). Aí subjaz, escreve Ferreira, “[...] um dos pilares da eugenia: o de que a ‘raça negra’ possui um comportamento psicológico instável”. (FERREIRA, 2010, p. 161). Nem mesmo o sagrado manto do mito da democracia racial consegue camuflar o escancarado racismo. Entranhado nas relações sociais, inclusive como arma ideológica de dominação (MOURA, 2014a), este não poderia ser estranho ao (nem estranhado pelo) Serviço Social nem ontem e nem hoje. As práticas institucionais13naturalizam a discriminação racial que chega naturalizada até o(a) profissional. Num ciclo vicioso, a naturalização dos sérios problemas de conduta naturaliza a miséria, o meio de que provém. Suspeita-se da índole dos(as) trabalhadores(as) negros(as) e não das desigualdades de classes.
Ante o exposto, cabe indagar: por que o Serviço Social ainda guarda reticências14 em perceber que a questão racial é nuclear à questão social? Se a questão social é produzida compulsoriamente pelo capitalismo (NETTO, 2001b), qual a nossa dificuldade em compreender que a questão racial e seu mais grave subproduto, o racismo, fazem parte das relações que impulsionam e dinamizam a sociedade burguesa? Ora o modo de produção capitalista beneficiou-se enormemente do escravismo e amparou as bases da opressão racial, possibilitando que esta se mantenha e continue a sustentar a reprodução do capital. Para a visão turva do Serviço Social acerca das relações étnico-raciais talvez tenha contribuído uma certa tradição marxista que considerava que os problemas raciais se resolveriam por meio da luta dos(as) trabalhadores(as) em geral. O problema é que esta formulação, demasiada abstrata, não percebeu que o racismo estava entranhado no seio da classe trabalhadora não negra, que viu vantagens em se identificar com o ex-senhor de escravos (GONÇALVES; GÓES, 2017). O racismo é parte do processo por meio do qual o capitalismo tornou-se (e se mantém) sistema dominante (CALLINICOS, 1993); é esta arma de dominação que fragmenta a classe trabalhadora, em especial neste momento em que o capitalismo não pode mais integrar massas imensas que se tornam cada vez mais supérfluas, descartáveis; em que a barbárie não é mais momentânea, mas tende a se tornar regra (TOSEL, 2011); o que, aliás, não é novidade para os(as) ex-escravizados(as), que tiveram dificuldades de serem aceitos como parte das classes laboriosas e desde sempre foram considerados(as) classes perigosas.
Se, para suprimir a ordem burguesa, é necessário por fim à questão social (NETTO, 2001b) e se a questão racial, como insistimos, constitui e alimenta esta mesma ordem, numa perspectiva revolucionária uma e outra precisam ser eliminadas. O marxismo fornece as bases conceituais para compreendermos cientificamente a questão racial e, da mesma maneira, a “[...] análise do fenômeno racial abre as portas para que o marxismo cumpra sua vocação de tornar inteligíveis as relações sociais históricas em suas determinações sociais mais concretas”. (ALMEIDA, S. L. de, 2016, p. 24). A luta contra a opressão racial é indissociável da luta de classes e, ao mesmo tempo, esta não pode triunfar sem aquela.