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Acumulação de capital, crise e mercado de trabalho no Brasil contemporâneo

Resumo

O propósito deste artigo é relacionar as recentes mudanças no mercado de trabalho brasileiro com a dinâmica recessiva da economia capitalista mundial das últimas décadas, que se manifestou desde a crise de 2007-2008. Considerando a específica inserção brasileira na economia capitalista global e as bases fundamentais sobre as quais ocorrem o processo de reprodução do capital analisamos alguns indicadores do mercado de trabalho relativos à ocupação e desocupação da força de trabalho, aos níveis salariais, às taxas de formalização e de rotatividade do trabalho, à luz de tendências e determinações fundamentais do hodierno processo de reprodução ampliada do capital. A partir desse esforço, tornam-se inteligíveis fenômenos, tais como a tendência à identificação entre os chamados trabalho formal e informal, à reconstituição do exército industrial de reserva, à repressão salarial e à intensificação do trabalho, que são catapultados pelas reformas em curso no Brasil.

Palavras-chave:
Acumulação de capital; Crise econômica; Mercado de trabalho brasileiro

Abstract

This article presents the recent changes in the Brazilian labor market, resulting from the recessionary dynamics of the world capitalist economy of the last decades manifested since the 2007-2008 crisis. It observes the insertion of Brazil in the global capitalist economy and the foundations supporting the processes of reproduction of capital, analyzing some indicators of the labor market related to the labor-power employment, wage, rates of formalization and turnover, in light of central tendencies and determinations of today’s process of expanded reproduction of capital. The study contributes to clarify phenomena such as the tendency to identify formal and informal work, the reconstitution of the industrial reserve army, wage repression and intensification of labor, which are promoted by the ongoing “reforms” in Brazil.

Keywords:
Capital accumulation; Economic crisis; Brazilian labor market

Introdução

Ainda ontem a apologética oficial ressuscitava o mito do Brasil Potência; tratava-se, como toda ideologia, de um equívoco com algum fundamento nas aparências, que encontrou eco na grande mídia internacional - basta lembrar da famosa capa da revista The Economist (2009), com o Cristo Redentor decolando. Afinal, a taxa anual média de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) na década de 2000, de 3,6%, era mais do que o dobro da verificada na década de 1980, de 1,7%, e um tanto maior do que a não tão perdida década de 1990, de 2,6% (ainda que muito abaixo daquela auferida nas décadas de 1950, 1960 e 1970, respectivamente de 7,4%, de 6,2%, e de 8,7%!). Tirou-se meio bode da sala... Porém, tomada de modo acrítico, uma medida como a do PIB mais mistifica do que revela a realidade, como se verá.

Nesse contexto alvissareiro, diante da elevação das taxas de emprego formal, de redução das taxas de desocupação, de elevação do salário mínimo e dos rendimentos médios reais, de aumento da participação dos salários no PIB, da ampliação dos gastos estatais com políticas sociais bem como do crédito ao consumo e à produção, entre outros, vivificou-se o já putrefato desenvolvimentismo, e não foram poucos os que saldaram a tão esperada estruturação do mercado de trabalho brasileiro. Não obstante, quão remotos nos afiguram tal cenário e tais veleidades, após a deflagração da crise econômica no final de 2014... Esses descaminhos analíticos apenas revelam a necessidade de se apreender conceitualmente o processo histórico recente.

Numa palavra, o objetivo deste artigo é o de contextualizar algumas das recentes mudanças ocorridas no mercado de trabalho brasileiro, tendo como pressuposto a dinâmica recessiva da economia capitalista mundial ao longo das últimas décadas, manifestada especialmente a partir da crise de 2007-2008. De fato, acreditamos que esta crise dimana de várias outras ocorridas em décadas anteriores, em escala de maior proporção e/ou com efeitos diretos tanto na periferia quanto no centro do sistema capitalista mundial.

Partimos do pressuposto de que o entendimento dos movimentos específicos que se manifestaram sobretudo a partir da década de 1990 no Brasil, período de consolidação da política neoliberal, da regressão dos direitos sociais e trabalhistas, da intensificação das políticas de austeridade, dentre outros, são reflexos da dinâmica atrofiada da acumulação capitalista. Por mais evidente que isto possa parecer, ao menos para aqueles que se debruçam sobre o método da crítica da economia política, este caminho nos parece pavimentar o entendimento de movimentos concretos que as políticas implantadas, e suas mudanças qualitativas e quantitativas, apresentaram ao longo das últimas décadas no que tange, no caso aqui a ser analisado, ao mercado de trabalho brasileiro. Acreditamos que somente este relacionamento tem o poder de desvendar e deixar evidente que o mercado de trabalho brasileiro é, por si só, desestruturado em sua origem e desenvolvimento, carregando determinações que remontam à escravidão, manifestadas de modo sempre renovado em informalidade, desigualdade, heterogeneidade e precarização, símbolos de um capitalismo periférico e dependente.

Para delimitarmos nosso objeto de estudo, trataremos de indicadores recentes do mercado de trabalho, dando especial atenção à recente crise econômica brasileira, marcada, dentre outros, por uma brutal regressão do PIB, de mais de 9% entre a segunda metade de 2013 e a primeira metade de 2017, e por um abrupto e acentuado desemprego da força de trabalho, que salta de 6% no início de 2015 para mais de 13% ao final de 2016. A despeito de contundente propaganda oficial, a propalada recuperação econômica está longe de se consolidar, já que, como se verá, os determinantes estruturais da crise e do pífio desempenho da economia brasileira nas últimas décadas não foram nem remotamente atingidos. Ao contrário, a rede viva histeria neoliberal dos últimos anos tenderá a agravar esse quadro com seu avassalador reformismo, visando, conforme argumentaremos adiante, garantir e canalizar recursos para remunerar fartamente os investidores financeiros, reconstituir o exército industrial de reserva brasileiro, disciplinando e rebaixando os custos da força de trabalho, bem como abrir à iniciativa privada novos campos de atuação e transferir a ela patrimônio estatal a preços vis.

É dessa ótica que se pode destacar a Emenda Constitucional 95, que congela e determina estreitos limites aos minguados gastos primários do governo federal; a Lei das Terceirizações, que libera e dá novo impulso a essa prática de evasão às políticas trabalhistas, ao sistema tributário etc.; a Reforma Trabalhista, que destrói todo um conjunto de direitos, legaliza o trabalho intermitente, desestrutura os sindicatos, determina tetos às indenizações em caso de danos trabalhistas, subordina o legislado ao negociado, e, por conseguinte, compete para borrar as fronteiras entre o trabalho formal e o informal; bem como as tentativas de aprovação da Reforma Previdenciária, que também implica na eliminação de direitos, na extinção da aposentadoria por tempo de contribuição, na elevação da idade mínima de aposentadoria, em forte aumento do tempo mínimo de contribuição, em redução dos rendimentos, em proibição de acúmulo de benefícios etc. (MARQUES; UGINO, 2017Marques, R. M., & Ugino, C. K. (2017). O Brasil é chamado à ordem. Argumentum, 9(3), 8-23.)1 1 Nesse balaio, deve-se acrescentar ainda a renovada onda de privatizações, com a bilionária pilhagem do patrimônio de empresas como a Petrobras,a autorização para que empresas privadas comandem a extração de petróleo no Pré-Sal, as parcerias público-privadas e a privatização da gestão nas mais diversas áreas, incluindo aquelas que haviam se mantido mais ou menos preservadas, como a da educação e a da saúde estatais, a iminente venda da Eletrobras, a maior empresa geradora e distribuidora de energia elétrica do país; os perdões de dívidas acumuladas pelos grandes grupos econômicos, incluindo aquelas oriundas de evasão fiscal; a abertura econômica e os novos incentivos à entrada de capital transnacional, com destaque para mercados outrora interditados ou obstaculizados pela legislação, como o mercado de terras e a área da saúde, e assim por diante. .

Este artigo está dividido da seguinte forma: a esta introdução sucede uma seção que descreve algumas salientes características do mercado de trabalho brasileiro nos últimos anos. O terceiro item apresenta, em linhas gerais, os determinantes conjunturais e estruturais da economia brasileira nas últimas décadas, levando em consideração tendências elementares da acumulação de capital. Com base nessas análises, a seção seguinte busca apreender a natureza e a atual configuração do mercado de trabalho formal, de modo a revelar o significado das atuais reformas que se abatem sobre o mercado de trabalho, em particular a Reforma Trabalhista aprovada em 2017. Por fim, são tecidas algumas considerações finais.

Tendências recentes do mercado de trabalho brasileiro

Acreditamos que o mercado de trabalho brasileiro é expressão das relações de trabalho de uma nação que ocupa um papel na divisão internacional do trabalho de forma periférica e dependente, na qual as formas de trabalho imbricam as relações de favor e de trato com o escravo - fundantes da nossa condição colonial (SCHWARZ, 2012Schwarz, R. (2012). Ao vencedor as batatas: Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo, Brazil: 34. ) - com a subsunção formal e real do trabalho ao capital. O que resulta do próprio desenvolvimento desigual e combinado do mercado mundial capitalista (OLIVEIRA, 2003Oliveira, F. de. (2003). Crítica à razão dualista. O ornitorrinco. São Paulo, Brazil: Boitempo.). Isto posto, acreditamos, ao contrário do que comumente é afirmado, que o mercado de trabalho brasileiro sempre foi flexível e desestruturado.

De fato, a noção de estruturação e desestruturação nos remonta também as já frágeis associações setorialistas que tratam, por exemplo, o trabalho formal e o informal como segmentos isolados no ciclo de reprodução capitalista (D-M-D’). Esta leitura convencional, muito contestada por vasta literatura (LAUTIER, 2004Lautier, B. (2004). L’économie informelle dans le tiers monde. Paris, France: La découverte.; SOARES, 2008Soares, M. A. T. (2008). Trabalho informal: Da funcionalidade à subsunção ao capital. Vitória da Conquista, Brazil: UESB. ), revela-se fragmentada e repleta de fragilidades, isso se quisermos ter uma visão totalizante das funções desempenhadas pelos trabalhadores no ciclo geral.

Segundo Vargas (2015Vargas, J. (2015). A informalidade no mercado de trabalho: Um desafio institucional permanente para a economia brasileira. (Master’s thesis, Federal University of Espírito Santo, Vitória, Brazil). Retrieved from http://dspace2.ufes.br/
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), com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o percentual de trabalho informal na economia brasileira era muito expressivo no início dos anos 1980. Considerando nessa rubrica os empregados sem carteira assinada, os trabalhadores por conta própria e os trabalhadores não remunerados, em 1981 os trabalhadores informais perfazem 59,5% do total da população ocupada e 41,9% do total de trabalhadores empregados; em 1984 essas porcentagens se elevam, respectivamente, a 61,8% e 45,1%, para depois apresentar uma tendência à queda, chegando em 1989 a 56,8% e 40,7%, respectivamente. Na década de 1990, num contexto de crescente desemprego, essa situação se agrava, e os trabalhadores informais, segundo o critério acima exposto, passa de 59% da população ocupada total em 1992 para 60,7% em 1999 (VARGAS, 2015Vargas, J. (2015). A informalidade no mercado de trabalho: Um desafio institucional permanente para a economia brasileira. (Master’s thesis, Federal University of Espírito Santo, Vitória, Brazil). Retrieved from http://dspace2.ufes.br/
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). Cabe enfatizar, por conseguinte, que a informalidade não deve ser tratada como uma anomalia que está somente associada ao maior ou menor nível da atividade econômica, ou a partir de uma regulação maior ou menor, em que pese que tais fatores possa contribuir para o aumento ou diminuição de sua magnitude. Marx (1996bMarx, K. (1996b). O capital: Crítica da economia política: Livro primeiro: O processo de produção do capital (Vol. 1, t. 2). São Paulo, Brazil: Nova Cultural.), colocando o processo de acumulação capitalista como fator decisivo para o surgimento da superpopulação relativa, já indicava que parte desta população, a estagnada, identifica-se a uma

[...] parte do exército ativo de trabalhadores, mas com ocupação completamente irregular. Ela proporciona ao capital, um reservatório inesgotável de força de trabalho disponível. Sua condição de vida cai abaixo do nível normal médio da classe trabalhadora, e exatamente isso faz dela uma base ampla para certos ramos de exploração do capital [...] (MARX, 1996bMarx, K. (1996b). O capital: Crítica da economia política: Livro primeiro: O processo de produção do capital (Vol. 1, t. 2). São Paulo, Brazil: Nova Cultural., p. 272).

Se existe, por um lado, um exército industrial de reserva, por outro, tem-se também um exército industrial ativo em permanente atividade, com particularidades e características específicas, que se transformaram do período de análise do autor até os nossos dias.

Por outro lado, a partir dos primeiros anos da década de 2000 até a eclosão da crise econômica brasileira, no final de 2014, quando analisamos os vínculos de trabalho, as estatísticas oficiais nos indicam uma melhoria nos indicadores formais do mercado de trabalho. Este costuma ser apontado como um momento favorável para a população trabalhadora brasileira, posto que esses contratos formais de trabalho garantiriam certa estabilidade nas relações trabalhistas. Como se pode ver no Gráfico 1, segundo a estimativa da Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE ([2016]), os vínculos formais saltam de 44,2%, em 2003, para 54,7% em 2016; ao seu lado, as relações informais que totalizavam 40,6% da população ocupada no país em 2003 diminuem para 32,6% em 2016.

Gráfico 1
Percentual médio da população ocupada no Brasil (2003-2016)

Ademais, entre 2003 e 2011 a taxa de desemprego cai de 12,4% para 6%, atingindo um mínimo de 4,3% em dezembro de 2014 (a partir daí, vê-se uma abrupta elevação do número de desempregados, atingindo um pico de 13,7% em janeiro de 2017) de acordo com a PNAD contínua (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2017). Já a participação dos salários no PIB, que era de 30,7% em 2004, passa a 34,6% em 2014, ao mesmo tempo em que, entre 2003 e 2015, o rendimento médio real total elevou-se em 52,7% (SABADINI; MELLO; BRAGA, 2018Sabadini, M. de S., Mello, G. M. de C., & Braga, H. P. (2018). O mercado de trabalho brasileiro no período 1994-2016. Unpublished manuscript., mimeo). Já segundo a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), “[...] entre 2003 e 2013, o salário médio [...] registrou um [...] crescimento real de 30,6%, ou um ritmo de crescimento de 2,7% ao ano acima da inflação [...]” (CAMPOS, 2016Campos, G. C. S. (2016). Evolução do emprego formal no Brasil (2003-2013). Carta Social e do Trabalho, 33, 93-98., p. 96)2 2 Segundo dados da PNAD contínua do IBGE analisados por Sabadini, Mello e Braga (2018, mimeo), em 1995 os empregos que remuneravam em até 1 salário mínimo correspondiam a 22% do total, parcela que se eleva a 29,3% em 2009, caindo para 25,6% em 2015. Já a faixa de remuneração entre 1 e 2 salários mínimos apresenta uma elevação constante no período, saltando de 20,4% em 1995 para 36,7% em 2015. Entre esses anos, as ocupações que pagam entre 2 e 5 salários mínimos tiveram uma queda relativamente modesta, passando de 24,3% para 21,2%, ao passo que a porcentagem dos que ganham mais de 5 salários mínimos reduziu-se fortemente, de 17% em 1995 para 8,3% em 2015. .

Condicionantes estruturais e conjunturais da atual dinâmica econômica brasileira

O período em questão perfaz um momento peculiar da economia brasileira. Como se sabe, o processo de industrialização brasileira ao longo de boa parte do século XX, pleno de vicissitudes, foi abruptamente interrompido pela crise da dívida que sucedeu ao choque de juros capitaneado por Paul Volcker. Nesse contexto, saltaram à vista as fragilidades da economia brasileira expressas na crescente dependência em relação aos capitais voláteis que singravam o mercado mundial, e na incapacidade de produção endógena de tecnologia.

Diante dessa virtual insolvência, a corrida aos parcos fundos das organizações multilaterais foi condicionada, na prática, a um reposicionamento da economia brasileira no mercado mundial: tratava-se, sobretudo, de reforçar a sua especialização na produção de commodities, e de se consolidar como “plataforma de valorização financeira” (PAULANI, 2016Paulani, L. M. (2016). Modernity and capitalist progress in the periphery: The Brazilian case. European Journal of Social Theory, 19(2), 210-227., p. 210). Para tanto, competiam, entre outros, a securitização da dívida estatal, as ondas de privatização, as políticas de austeridade, os incentivos ao desenvolvimento dos mercados financeiros domésticos - fartamente alimentados pelos fundos de previdência das grandes empresas de origem estatal e pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) ou seja, às expensas do trabalho formal -, e a eventual adoção do chamado tripé econômico (constituído pela manutenção de superávits primários; por um regime de metas de inflação, garantidas por juros reais exorbitantes; e por um sistema de câmbio flutuante, notadamente sobrevalorizado). Era imperativo garantir segurança, calculabilidade, e sobretudo gerar divisas para remunerar o capital sobreacumulado em escala global, sempre ávido por rendimentos financeiros (SAMPAIO JÚNIOR, 2018Sampaio Júnior, P. de A. (2018, September 10). Crise econômica mundial e tendências da divisão internacional do trabalho. Retrieved from http://teoriaerevolucao.pstu.org.br/crise-economica-mundial-tendencias-divisao-internacional-do-trabalho/
http://teoriaerevolucao.pstu.org.br/cris...
).

São arquiconhecidos os resultados dessa dinâmica, em particular a degradação de boa parte do parque industrial brasileiro e a manutenção de baixíssimas taxas de acumulação, inversamente proporcionais às taxas de desemprego (SAMPAIO, 2013Sampaio, D. P. (2013). A desindustrialização em marcha no Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, 34, 33-55. ). A exceção a essa regra foram alguns anos compreendidos entre 2003 e 2012, em grande parte por causa da explosão dos preços das commodities, em particular sob efeito da monumental demanda chinesa, que abre espaço para uma mais forte elevação real do salário mínimo3 3 Que teve elevação de aproximadamente 70% entre 2003 e 2016, em termos reais. Cabe recordar que o salário mínimo ancora o Regime Geral de Previdência Social e do Regime de Assistência Social; por conseguinte, sua variação tem relevante e amplo impacto, particularmente sobre a renda das parcelas mais pauperizadas da população. , bem como para a ampliação das políticas focalizadas de transferência de renda4 4 O “Gasto Social Federal (GSF) per capita aumentou quase 60% entre 2004 e 2010”. (FAGNANI, 2014, p. 2). , e para a tentativa de puxar a economia a fórceps sobretudo por meio da expansão do crédito ao consumo e à produção5 5 Entre 2004 e 2010 o crédito à pessoa física teve uma expansão de 160%, e o voltado à pessoa jurídica, de 83% (FAGNANI, 2012). Ainda segundo Fagnani (2014, p. 2), “[...] os bancos públicos lançaram uma estratégia agressiva de ampliação do crédito, que praticamente dobrou entre 2003 e 2010 (de 24% para 49% do PIB)”. .

Segundo Marqueti, Hoff e Miebach (2016), entre 2002 e 2007 houve um aumento da taxa média de lucro6 6 Calculadas sem descontar os impostos e o pagamento de juros. , o aguilhão da produção capitalista na esfera concorrencial (MARX, 1996), que passa de 26% para 32%, e uma elevação das taxas de investimento, que passam de 16,6% em 2003 para 18% em 2007. Não obstante, os referidos autores (MARQUETI; HOFF; MIEBACH, 2016) constatam que já em 2007 a taxa de lucro líquida passa a cair e, com certo atraso, a taxa de acumulação segue sua trajetória. Nesse mesmo ano, o endividamento privado se acelera, atingindo níveis exorbitantes (REZENDE, 2016Rezende, F. (2016). Financial fragility, instability and the Brazilian crisis: A Keynes-Minsky-Godley approach. Multidisciplinary Institute for Development and Strategies.).

Menos do que uma decorrência de um aumento mais ou menos generalizado da composição orgânica do capital, ainda segundo Marqueti, Hoff e Miebach (2016), a compressão das taxas de lucro relacionou-se com a mencionada elevação da massa salarial, em termos reais. A partir de 2007, estendendo-se até 2014, a taxa de crescimento do salário médio real se eleva acima das taxas de produtividade do trabalho. Não surpreende, assim, que a parcela de lucro líquido na renda nacional tenha caído de 40,8% em 2003 para 32,9% em 2014 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2017), pari passu a uma redução da taxa média de lucro, que atinge 22% em 2014, segundo os referidos autores (MARQUETI; HOFF; MIEBACH, 2016) , recuo de mais de 30% em relação a 2007.

A explicação para essa relação reside, conforme Marx (1996), nos efeitos da elevação salarial em uma fase ascendente do ciclo econômico quando a composição orgânica do capital é relativamente constante. Quando os crescentes gastos com a força de trabalho começam a constranger a lucratividade, o capital lança-se a uma cruzada para reconstituir o exército industrial de reserva, rebaixar salários, intensificar o trabalho, e assim por diante. O que atualmente implica em dinamitar direitos trabalhistas, previdenciários, dentre outros. Em suma, trata-se da velha extração de mais-valia, em particular em sua forma absoluta. Mas não nos adiantemos.

Nesse contexto, agravado pela crise econômica mundial deflagrada em 2007, com o estouro da bolha imobiliária norte-americana, pode-se perceber que o colapso econômico brasileiro só foi adiado por meio da mobilização de um conjunto de medidas estatais anticíclicas, viabilizado pela relativa bonança dos anos anteriores. Destaca-se aqui os gastos bilionários com o Programa Minha Casa, Minha Vida, o Programa de Aceleração do Crescimento e o Programa de Sustentação do Investimento; além dos monumentais montantes de crédito subsidiado fornecido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); o vigoroso investimento por parte das empresas estatais, Petrobras à frente; bem como o represamento de preços de insumos estratégicos, em particular dos combustíveis e da energia elétrica, e as desonerações fiscais (que saltaram de R$ 3,6 bilhões para R$ 100,6 bilhões entre 2011 e 2014), entre outros.

A despeito dessas medidas, a taxa de utilização da capacidade produtiva passa a cair fortemente a partir de 2011, e por volta do terceiro trimestre de 2013, a taxa de formação bruta de capital fixo entra em trajetória descendente, e em queda livre a partir do primeiro trimestre de 2014 (ROSSI; MELLO, 2017Rossi, P., & Mello, G. (2017). Choque recessivo e a maior crise da história: A economia brasileira em marcha à ré. Retrieved from https://www.eco.unicamp.br/images/arquivos/NotaCecon1_Choque_recessivo_2.pdf
https://www.eco.unicamp.br/images/arquiv...
). Diante dessas tendências, reforçadas pelo choque recessivo produzido pelo Governo Federal no início de 2015 articulando elevação dos juros; queda dos gastos estatais; elevação dos preços administrados e desvalorização cambial (ROSSI; MELLO, 2017), a economia brasileira entra em depressão. Desvela-se assim os equívocos e os limites das sobreditas políticas estatais anticíclicas, que apenas refletem e reforçam as miseráveis condições de produção e apropriação de riqueza capitalista no Brasil, sobretudo na forma de mais-valia relativa, a qual, como se sabe, pressupõe uma indústria pujante e diversificada, ou então a capacidade de realizar punções sobre a mais-valia produzida alhures por meio de patentes e toda sorte de títulos de propriedade e de dívida.

A Reforma Trabalhista e seus impactos sobre o mercado de trabalho formal

Se, por um lado, constatamos uma tendência recente de criação de postos de trabalho formais, por outro, estes mesmos, não só no Brasil, mas também na economia mundial, têm se mostrado em boa parte de curto-prazo, ou de duração determinada, representados, por exemplo, pelos trabalhos temporários e parciais. Na Europa, tanto nos países do centro quanto nos da periferia da Zona do Euro, a utilização dos contratos de trabalho temporário e parcial são recorrentes. Entre 2007-2012, 14,4%, em média, do total dos ocupados desempenhavam trabalhos temporários, enquanto, no mesmo período, 19,3% eram trabalhadores parciais. Em 2016, segundo dados do Eurostat7 7 Os dados podem ser acessados em: https://ec.europa.eu/eurostat/data/database. , 21,6% do emprego total para a população de 15 a 64 anos referiam-se a trabalho parcial, enquanto 13,3% eram trabalhos temporários. Por serem de duração determinada, carregam consigo menores garantias sociais e normalmente apresentam para os trabalhadores remunerações inferiores. Como um reflexo da dinâmica capitalista em crise, estes vínculos se multiplicam em diversos países capitalistas no mundo, numa tendência de redução de custos do capital variável, a partir de flexibilização na legislação do trabalho, numa tentativa de reativar a dinâmica da acumulação capitalista, com revés significativo para os trabalhadores.

No Brasil, esses tipos de contratos determinados são, neste momento, aparentemente poucos utilizados, ao menos quando encontramos estatísticas referentes a eles, tendência que, a nosso ver, pode ser alterada nos próximos anos, já que, conforme o Departamento Intersindical de Estatística e Estudo Socioeconômicos (DIEESE), “[...] a Lei nº 13.429 amplia as possibilidades do uso do trabalho temporário por parte das empresas [...]”, podendo reforçar a imbricação entre o trabalho temporário e as terceirizações (DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS, 2017d, p. 6). De todo modo, segundo o DIEESE (2017c), o trabalho temporário, que foi criado pela Lei nº 6.019 de 1974, totalizava, em relação ao mercado de trabalho formal, 1,8% em 1995, 2,4% em 2005 e 1,0% em 2015, ou seja, um percentual pouco expressivo.

Estas informações foram corroboradas por Krein et al. (2018Krein, J. D., Abílio, L., Freitas, P., Borsari, P., & Cruz. R. (2018). Flexibilização das relações de trabalho: Insegurança para os trabalhadores. In J. D. Krein, D. M. Gimenez, & A. L. dos Santos (Orgs.), Dimensões críticas da reforma trabalhista no Brasil (pp. 95122). Campinas, Brazil: Curt Nimuendajú.), já que as contratações temporárias apresentadas na RAIS perfaziam somente 0,13% dos vínculos empregatícios ativos em 31 dezembro de 2016, não muito diferente da porcentagem de 2002, que era de 0,40%, conforme a Tabela 1. Ainda segundo Krein et al. (2018, p. 99) sinalizam, então, para o fato de que “[...] o contrato por prazo indeterminado já é suficientemente flexível no Brasil, visto que as empresas têm liberdade de romper o vínculo, o que explica, em parte, a baixa expressão das formas atípicas de contratação”. Nota-se que os vínculos de contratos regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que representam a chamada formalidade, totalizaram valores expressivos que chegaram a quase 80% em 2014 e 2016.

Tabela 1
Vínculos empregatícios ativos em 31/dez, por tipo de vínculo

O somatório destas formas atípicas de contratações indicadas pelos autores, que incluem os temporários, avulsos, estatutário não efetivo, por tempo determinado e contratos especiais no setor público, é baixo e indica diminuição ao longo dos anos: 5,71% em 2002, 4,79% em 2014 e 3,94% em 2016. Em que pese as bases de dados diferentes, percebemos, como indicado anteriormente, que estas formas de contratação nos países europeus atinge percentuais mais elevados.

Diante do exposto, quais conclusões podemos tirar, até o momento, destas informações? Além do caráter já flexível do mercado de trabalho brasileiro, pode-se dizer que ainda existe uma margem muito grande de utilização destas formas de contratação no país, que, sendo formas mais vulneráveis, exprimem um espectro de avanço maior quanto a uma acumulação de capital ainda mais predatória, com base ainda mais flexíveis e instáveis de trabalho. Eis aí, novamente, o fulcro da Reforma Trabalhista de 2017.

Não obstante, diga-se de passagem, talvez mais importante do que incrementar a plasticidade da força de trabalho, a referida reforma compete para dinamitar o poder de negociação dos trabalhadores, bem como as possibilidades de ganhos trabalhistas por meio da Justiça do Trabalho, que em alguns casos podem redundar em custos e em insegurança para o capital (MARQUES; UGINO, 2017Marques, R. M., & Ugino, C. K. (2017). O Brasil é chamado à ordem. Argumentum, 9(3), 8-23.)8 8 Que, na condição de personificações do capital, possuem “[...] tão ‘boas razões’ para negar os sofrimentos da geração trabalhadora que o circunda, é condicionado em seu movimento prático pela perspectiva de apodrecimento futuro da humanidade e, por fim, do incontrolável despovoamento tão pouco ou tanto como pela possível queda da Terra sobre o Sol. Em qualquer malandragem com ações ninguém ignora que um dia a casa cai, porém todos confiam que ela cairá sobre a cabeça do próximo, após ele próprio ter colhido a chuva de ouro e a posto em segurança. Après moi le déluge! É a divisa de todo capitalista e toda nação capitalista. O capital não tem, por isso, a menor consideração pela saúde e duração de vida do trabalhador, a não ser quando é coagido pela sociedade a ter consideração. À queixa sobre degradação física e mental, morte prematura, tortura do sobretrabalho, ele responde: Deve esse tormento atormentar-nos, já que ele aumenta o nosso gozo (o lucro)?” (MARX, 1996a, p. 383). . Neste sentido, supondo uma pseudoigualdade entre trabalhadores e capitalistas, a tal reforma joga para escanteio os acordos coletivos, subordina o legislado ao negociado, colocando frente a frente patrões e trabalhadores, e expõe os últimos ao risco de arcar com todas as despesas decorrentes das querelas jurídicas. Além disso, estabelece um limite máximo às indenizações trabalhistas, proporcional aos salários do litigante9 9 Em entrevista à Folha de S. Paulo (FLEURY, 2017), o então Procurador-Geral do Ministério Público do Trabalho, Ronaldo Fleury, enfatizava que assim se estabelecia juridicamente “[..] que a integridade física e moral de um trabalhador bem remunerado valem mais do que a de um trabalhador precarizado”. Além disso, Fleury prenunciava que, com a Reforma Trabalhista, “[...] haverá uma demanda muito grande para contratação por jornada intermitente”. Ademais, no que tange à remuneração dos trabalhadores, asseverava: “[...] o que a reforma vai fazer é criar uma massa salarial baixíssima”. Já em relação aos seus impactos sobre as dinâmicas de negociação entre patrões e empregados, dizia: “[...] sabe quando vai haver negociação coletiva? Nunca”. . Assim, o número de ações trabalhistas e os gastos com indenizações tende a se reduzir drasticamente.

Ainda no que tange à atual morfologia do trabalho formal, e levando em consideração as diferenças metodológicas das pesquisas, informações divulgadas por agências de trabalho e pelos próprios meios de comunicação sinalizam para um quadro algo diferente no que se refere ao trabalho temporário no país. Um estudo da International Confederation of Private Employement Agencies (Ciett), publicado em 2012 com dados referentes a 2010, sobre os chamados agency workers, trabalhadores temporários que possuem vínculos contratuais junto às agências de trabalho, indica que o Brasil é o terceiro maior contratante de agency workers do mundo, com média de 965 mil contratos diários, sendo o primeiro os EUA, com aproximadamente 2,58 milhões desses trabalhadores, seguido da África do Sul, com 967 mil. Ainda segundo esse estudo, “[...] juntos, os EUA, África do Sul e Brasil representam 44% de todos os trabalhadores das agências atribuídos em todo o mundo [...]” (INTERNATIONAL CONFEDERATION OF PRIVATE EMPLOYMENT AGENCIES, 2012, p. 24, tradução nossa).

Já quanto ao trabalho parcial, os dados de Reis e Costa (2016Reis, M., & Costa, J. (2016). Jornada de trabalho parcial no Brasil. Mercado de Trabalho: conjuntura e análise, 22(61), 33-40. ) indicam um percentual mais elevado destes contratos no mercado de trabalho brasileiro. Segundo eles, o total de trabalhadores desempenhando atividades parciais sendo ocupados (com ou sem carteira) de 16 a 80 anos de idade com jornada de trabalho de 10 horas ou mais foi de 13,4% em 2014. Esta jornada de trabalho foi implantada no país em 1998 pela Medida Provisória no 1.709 de 1998, sendo alterada em 2001 por nova medida provisória. Uma outra informação importante, é que 31% dos ocupados sem carteira de trabalho assinada são trabalhadores temporários, enquanto entre os com carteira este percentual cai para 5,6%. Isso significa dizer que a jornada parcial apresenta uma maior ocorrência entre os empregados que estão inseridos em relações informais de trabalho. Desta forma, a maior parte dos contratos parciais não são registrados, o que pode contribuir para falsear o total dos trabalhadores parciais do país.

Com as constantes e recentes mudanças no mercado de trabalho, temos também outras formas de contratos temporários que foram criadas a partir de regras jurídicas específicas, podendo até mesmo se diferenciar do trabalho temporário clássico. Nos referimos, por exemplo, aos estágios e ao trabalho intermitente (DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS, 2017b), este último relacionado ao contrato zero hora inglês, indícios efetivos de busca por novas formas de acumulação de capital por meio da mobilização de um exército industrial de reserva, disponível em abundância, e, quando necessário, contratando-o a partir de custos ainda menores de remuneração, admissão e desligamento. Isso nos remete, além do claro reforço das relações de favor, a uma tendência ao incremento da flexibilidade desta estrutura, sobretudo com a aprovação de outras medidas como o estímulo a terceirização que, conforme Galvão et al. (2017Galvão, A., Krein, J. D., Biavaschi, M. B., & Teixeira, M. O. (Orgs.). (2017.) Contribuição crítica à reforma trabalhista. Retrieved from https://www.ael.ifch.unicamp.br/pf-ael/public-files/noticias/arquivos/dossie_cesit_-_contribuicao_critica_a_reforma_trabalhista.2017.pdf
https://www.ael.ifch.unicamp.br/pf-ael/p...
, p. 66), “[..] trata-se de legalizar o estabelecimento de uma nova lógica de subordinação, gestão e controle da força de trabalho, que pode se generalizar por diversos setores da economia”.

Neste sentido, diante do quadro exposto, há que se perguntar: qual tipo de trabalho formal está sendo criado no Brasil? O trabalho por tempo determinado e o trabalho formal, e suas características, também devem ser levados em consideração para o entendimento desta nova e ainda mais precária configuração do trabalho no país10 10 Algumas alterações nos contratos de trabalho por tempo determinado podem ser observadas em DIEESE (2017a). . A Tabela 2 nos proporciona reflexões importantes que podem nos ajudar a, se não responder, pelo menos qualificar melhor as indicações aqui propostas.

Tabela 2
Tempo de permanência no emprego dos trabalhadores formais desligados no Brasil, 2000, 2005, 2009 (em %)

Em primeiro lugar, é importante indicar que os dados foram elaborados pelo DIEESE com base na RAIS, portanto, a mesma fonte de pesquisa levantada na Tabela 1. Segundo, o percentual expressivo de 70%, em média, dos trabalhadores formais desligados nos anos acima indicados permaneceram no trabalho por somente até 2,9 meses, indicando o alto grau de flexibilidade e rotatividade das contratações formais. Isso representa o que chamamos de uma tendência à informalização do formal nos contratos vigentes no mercado de trabalho do país. Se, como foi indicado anteriormente, a flexibilização já é uma característica presente no mercado de trabalho brasileiro, tanto pelo alto grau de informalidade quanto pela liberdade de rompimento dos vínculos, os dados acima reforçam e deixam mais claro o fato de que os contratos formais determinados têm duração bastante limitada, demonstrando a também flexibilidade nas formas contratuais com registros formais.

Nesse sentido, o avanço do capital na busca de novas formas de sua reprodução engloba tanto as funcionalidades que o exército industrial de reserva ativo tem no mercado de trabalho, submetendo-o ao ciclo do capital (SOARES, 2008Soares, M. A. T. (2008). Trabalho informal: Da funcionalidade à subsunção ao capital. Vitória da Conquista, Brazil: UESB. ); quanto, sob a via da informalidade, as relações mistificadas de flexibilização existentes nos vínculos formais. Por essa razão, ao contrário da leitura tradicional, a visão dicotômica do entendimento do trabalho formal enquanto protegido e do trabalho informal enquanto desprotegido acaba, se não ruindo totalmente, tornando-se extremamente enfraquecida quando observamos os dados anteriores. É bem verdade que ainda existem garantias significativas e importantes para aqueles trabalhadores com registros formais e não verificadas para os trabalhadores informais, mas, ao que parece, o limite da tentativa desta separação, enquanto formas opostas, torna-se cada vez mais estreito no capitalismo contemporâneo.

A busca por redução de custos e aumento da lucratividade, verificada na perda de garantias sociais e do trabalho, para tentar reativar a dinâmica da acumulação capitalista comprometida com as crises recentes, encontra, assim, por um lado, espaços de criação e apropriação de riqueza que se manifestam diretamente no aumento da flexibilidade do trabalho e nas várias reformas que têm sido feitas no mundo e, não diferente, no Brasil. Tanto é que podemos engrossar ainda mais estas indicações a partir da adoção da liberalização das contratações terceirizadas, já indicada anteriormente, bem como via adoção da contratação por pessoa jurídica, os Microempreendedores Individuais (MEI), e as novas formas de contrato de trabalho denominadas de uberização (KREIN et al., 2018Krein, J. D., Abílio, L., Freitas, P., Borsari, P., & Cruz. R. (2018). Flexibilização das relações de trabalho: Insegurança para os trabalhadores. In J. D. Krein, D. M. Gimenez, & A. L. dos Santos (Orgs.), Dimensões críticas da reforma trabalhista no Brasil (pp. 95122). Campinas, Brazil: Curt Nimuendajú.).

Considerações finais

Buscamos indicar que as vicissitudes do mercado de trabalho e que os sentidos das reformas atuais, em particular a Reforma Trabalhista, só ganham inteligibilidade à luz da dinâmica global de acumulação de capital e das tendências fundamentais de sua reprodução ampliada, tendo em vista o modo específico de inserção da economia brasileira no mercado mundial e seus determinantes estruturais, que ganham vulto diante da crise econômica ainda em curso no país. Nesse contexto, as reformas neoliberais, em curso desde 1990, foram ampliadas e aceleradas nos últimos dois anos.

Assim, ao contextualizarmos relevantes mudanças ocorridas no mercado de trabalho brasileiro, mostrou-se o seu caráter historicamente desestruturado e a tendência a uma ainda maior precarização. Isso porque, em linha gerais, o mercado de trabalho brasileiro reflete, por conta da contínua renovação dos processos de produção de desigualdade, heterogeneidade, exploração e espoliação, o caráter histórico de nossa formação social. A saber, uma sociedade na qual as relações típicas de nosso passado colonial se combinam de forma harmônica com as relações propriamente capitalistas, produzindo um padrão de acumulação de capital sui generis, periférico e dependente.

Ao mesmo tempo, é de se reconhecer que as mudanças recentes, que impactam negativamente na vida da população trabalhadora, sinalizam para um sistema ainda maior de desproteção social e do trabalho, como uma reação na busca por novas formas de acumulação, e, desta maneira, se estabelecendo como uma tentativa de contra-arrestar a queda na taxa de lucro.

Finalmente, se, diante desse quadro, pode-se auspiciar tempos sombrios, ao interditar os equívocos da nostalgia desenvolvimentista e do reformismo de modo geral, a crítica da economia política pode favorecer a luta contra as atuais tendências societais fascistizantes, diante dos antagonismos sociais que certamente se agudizarão.

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Notas

  • 1
    Nesse balaio, deve-se acrescentar ainda a renovada onda de privatizações, com a bilionária pilhagem do patrimônio de empresas como a Petrobras,a autorização para que empresas privadas comandem a extração de petróleo no Pré-Sal, as parcerias público-privadas e a privatização da gestão nas mais diversas áreas, incluindo aquelas que haviam se mantido mais ou menos preservadas, como a da educação e a da saúde estatais, a iminente venda da Eletrobras, a maior empresa geradora e distribuidora de energia elétrica do país; os perdões de dívidas acumuladas pelos grandes grupos econômicos, incluindo aquelas oriundas de evasão fiscal; a abertura econômica e os novos incentivos à entrada de capital transnacional, com destaque para mercados outrora interditados ou obstaculizados pela legislação, como o mercado de terras e a área da saúde, e assim por diante.
  • 2
    Segundo dados da PNAD contínua do IBGE analisados por Sabadini, Mello e Braga (2018, mimeo), em 1995 os empregos que remuneravam em até 1 salário mínimo correspondiam a 22% do total, parcela que se eleva a 29,3% em 2009, caindo para 25,6% em 2015. Já a faixa de remuneração entre 1 e 2 salários mínimos apresenta uma elevação constante no período, saltando de 20,4% em 1995 para 36,7% em 2015. Entre esses anos, as ocupações que pagam entre 2 e 5 salários mínimos tiveram uma queda relativamente modesta, passando de 24,3% para 21,2%, ao passo que a porcentagem dos que ganham mais de 5 salários mínimos reduziu-se fortemente, de 17% em 1995 para 8,3% em 2015.
  • 3
    Que teve elevação de aproximadamente 70% entre 2003 e 2016, em termos reais. Cabe recordar que o salário mínimo ancora o Regime Geral de Previdência Social e do Regime de Assistência Social; por conseguinte, sua variação tem relevante e amplo impacto, particularmente sobre a renda das parcelas mais pauperizadas da população.
  • 4
    O “Gasto Social Federal (GSF) per capita aumentou quase 60% entre 2004 e 2010”. (FAGNANI, 2014, p. 2).
  • 5
    Entre 2004 e 2010 o crédito à pessoa física teve uma expansão de 160%, e o voltado à pessoa jurídica, de 83% (FAGNANI, 2012). Ainda segundo Fagnani (2014, p. 2), “[...] os bancos públicos lançaram uma estratégia agressiva de ampliação do crédito, que praticamente dobrou entre 2003 e 2010 (de 24% para 49% do PIB)”.
  • 6
    Calculadas sem descontar os impostos e o pagamento de juros.
  • 7
    Os dados podem ser acessados em: https://ec.europa.eu/eurostat/data/database.
  • 8
    Que, na condição de personificações do capital, possuem “[...] tão ‘boas razões’ para negar os sofrimentos da geração trabalhadora que o circunda, é condicionado em seu movimento prático pela perspectiva de apodrecimento futuro da humanidade e, por fim, do incontrolável despovoamento tão pouco ou tanto como pela possível queda da Terra sobre o Sol. Em qualquer malandragem com ações ninguém ignora que um dia a casa cai, porém todos confiam que ela cairá sobre a cabeça do próximo, após ele próprio ter colhido a chuva de ouro e a posto em segurança. Après moi le déluge! É a divisa de todo capitalista e toda nação capitalista. O capital não tem, por isso, a menor consideração pela saúde e duração de vida do trabalhador, a não ser quando é coagido pela sociedade a ter consideração. À queixa sobre degradação física e mental, morte prematura, tortura do sobretrabalho, ele responde: Deve esse tormento atormentar-nos, já que ele aumenta o nosso gozo (o lucro)?” (MARX, 1996a, p. 383).
  • 9
    Em entrevista à Folha de S. Paulo (FLEURY, 2017), o então Procurador-Geral do Ministério Público do Trabalho, Ronaldo Fleury, enfatizava que assim se estabelecia juridicamente “[..] que a integridade física e moral de um trabalhador bem remunerado valem mais do que a de um trabalhador precarizado”. Além disso, Fleury prenunciava que, com a Reforma Trabalhista, “[...] haverá uma demanda muito grande para contratação por jornada intermitente”. Ademais, no que tange à remuneração dos trabalhadores, asseverava: “[...] o que a reforma vai fazer é criar uma massa salarial baixíssima”. Já em relação aos seus impactos sobre as dinâmicas de negociação entre patrões e empregados, dizia: “[...] sabe quando vai haver negociação coletiva? Nunca”.
  • 10
    Algumas alterações nos contratos de trabalho por tempo determinado podem ser observadas em DIEESE (2017a).
  • Agência financiadora

    Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação

    Não se aplica.
  • Consentimento para publicação

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2018
  • Aceito
    18 Set 2018
  • Revisado
    10 Dez 2018
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina , Centro Socioeconômico , Curso de Graduação em Serviço Social , Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima, 88040-900 - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil, Tel. +55 48 3721 6524 - Florianópolis - SC - Brazil
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