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Análise das políticas para o trabalho no Brasil: como Marx pode contribuir?

Resumo

O presente artigo procura, partindo da análise marxiana sobre a legislação fabril inglesa do século XIX, demonstrar como uma abordagem concreta da política para o trabalho no Brasil pode se inspirar nas determinações explicitadas no Livro I d’O Capital. Para tanto, percorre da normatização varguista à desregulamentação selvagem de Temer, demonstrando sumariamente os vínculos entre a acumulação de capital e as políticas de Estado para o trabalho no Brasil.

Palavras-chave:
O Capital; Acumulação de capital no Brasil; Regulamentação político-jurídica do trabalho no Brasil; Marx

Abstract

This article uses the Marxian analysis of the nineteenth century English factory legislation, to demonstrate how a concrete approach to labor policy in Brazil can be inspired by the guidelines included in the Volume I of Das Kapital. The article covers the period from the regulation established by President Vargas, to the wild deregulation proposed by President Temer, exposing the links between capital accumulation and the Brazilian labor policies.

Keywords:
Das Kapital; Capital accumulation in Brazil; Political-legal labor regulation in Brazil; Marx

Introdução

Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate.

( ALIGHIERI, 1933 Alighieri, D. (1933). La divina commedia. Bari, Italy: Gius. Laterza & Figli. , p. 12)

No debate sobre as políticas para a força de trabalho no Brasil, ao longo de nossa história moderna, sempre ressurge, no plano de fundo, a questão: que Estado queremos? Para alguns, ainda se mantém no imaginário a possibilidade de alcançarmos os níveis de acumulação de sociedades de “via clássica” (CHASIN, 2000Chasin, J. (2000). A miséria brasileira: 1964-1994 do golpe militar à crise social. São Paulo, Brazil: Ad Hominem.b, p. 38), com sua plena institucionalidade correspondente, sem que se deem conta da constituição particular do nosso capital, da via - “colonial” (CHASIN, 2000b, p. 54) - que percorremos, como calvário, em nossa constituição capitalista e a conta a ser paga por isso.

O objetivo deste artigo, a partir de uma retomada das análises marxianas sobre a mercadoria força de trabalho e a legislação fabril inglesa no século XIX, presentes no Livro I d’O Capital, é contribuir para que não percamos de vista a máxima do poeta florentino, trazida na epígrafe, quando tratamos do capital, e em particular quando olhamos para o processo de acumulação brasileiro e de seu Estado. Buscaremos demonstrar que, tendo em vista a especificidade nacional como expressão particular da tendência geral do modo como o capital toma a força de trabalho, não poderíamos (como não podemos) esperar nada do Estado brasileiro - como uma manifestação particular do Estado moderno1 1 Sobre as críticas ao Estado moderno, conforme as produções marxianas dos anos 1840, com destaques para os artigos da Gazeta Renana (MARX, 2010d), manuscrito de Kreuznach (MARX, 2010a), os clássicos dos Anais Franco-Alemães (MARX, 2009, 2010b) e a publicação do Vorwärts!, contra Arnold Ruge (MARX, 2010c). - e da burguesia nacional, que não seja a predação absoluta da força trabalho, cuja expressão flagrante pôde ser novamente vista nos últimos desmontes da legislação trabalhista, retomados em 20152 2 No início, devemos lembrar, pelo Projeto de Lei nº (PL) 4.330/2004 (BRASIL, 2015), votado às pressas na Câmara dos Deputados. Permanecendo, posteriormente, em lenta tramitação no Senado, aquela Casa optou por resgatar, em 2016, o PL 4.302/1998 (BRASIL, 2017a), que trazia condições ainda mais flexíveis para o emprego da força de trabalho terceirizada, que veio a se tornar a Lei nº 13.429/2017 (BRASIL, 2017b). e consolidados em 2017 (BRASIL, 2017c).

Percorreremos, assim, da análise marxiana aos condicionantes concretos da sociedade brasileira, para argumentar que, quando tratamos do capital nacional e de seu Estado, “[...] a história só surpreende aos que de história nada entendem”3 3 A continuidade do fragmento merece ser reproduzida: “[...] se os contornos, pois, só ganham corpo na própria hora em que se efetivam os processos, do mesmo modo que os eventos não são rigidamente programáveis, em seus dias e horas; por outro lado, ao contrário disto, as grandes linhas de tendência, a necessária ocorrência dos acontecimentos básicos são amplamente discerníveis, divisáveis mesmo no longo prazo”. (CHASIN, 2000a, p. 79). . (CHASIN, 2000Chasin, J. (2000). A miséria brasileira: 1964-1994 do golpe militar à crise social. São Paulo, Brazil: Ad Hominem.a, p. 79).

Às portas de Dite: a força de trabalho como simples mercadoria

Qualquer leitura, mesmo que rápida, do Livro I d’O Capital não tem como deixar de constatar a extrema objetividade com que Marx expõe o funcionamento do capital. Com seu peculiar estilo, mas sem jamais aceder ao subjetivismo, Marx explicita o objeto sempre tal como é; jamais como gostaria que fosse.

Quando acompanhamos atentamente toda a exposição sobre a promulgação da legislação trabalhista inglesa (e suas consequências), no século XIX, não podemos deixar de notar que a discussão ocorre imersa em uma descrição concreta das mais insalubres e inumanas condições de trabalho nos diversos ramos da produção industrial. Elementos como os brutais índices de mortalidade infantil (MARX, 2006bMarx, K. (2006b). O capital: Crítica da economia política: Livro I: O processo de produção do capital (21st ed., Vol. 2). Rio de Janeiro, Brazil: Civilização Brasileira.), a elevação dos casos de alcoolismo e desproteção de crianças e adolescentes, as dramáticas condições de vida dos trabalhadores no período de superação das formas de trabalho manufatureiro e em domicílio pela maquinaria (MARX, 2006b), colocam-nos diante de horrores dignos de um cenário dantesco.

Os casos, abordados com rico amparo documental, evidenciam um fenômeno pouco lembrado, em que pese sua obviedade: a tendência de destruir fisicamente a força de trabalho, aflorada pela livre ascendência do capital concorrencial, mantida em desgoverno, terminaria por colocar em xeque, no médio prazo, o próprio processo de acumulação em nível sistêmico. Vejamos de perto o argumento marxiano:

O “Règlement Organique” dos principados danubianos atesta e legaliza, em cada parágrafo, a avidez pelo trabalho excedente; a legislação fabril inglesa põe a nu essa avidez, mas de maneira negativa. Essa legislação refreia a paixão desmesurada do capital para absorver a força de trabalho, por meio da limitação coativa da jornada de trabalho, imposta por um Estado que os capitalistas e senhores de terras dominam. Pondo de lado o movimento dos trabalhadores que cresce ameaçador todos os dias, a limitação da jornada de trabalho nas fábricas foi ditada pela mesma necessidade que levou à disseminação do guano nos campos ingleses. A mesma rapacidade que esgotou as terras atacou a força vital da nação em suas próprias raízes. É o que demonstram claramente as epidemias periódicas e a diminuição crescente da altura dos soldados, na Alemanha e na França. (MARX, 2006bMarx, K. (2006b). O capital: Crítica da economia política: Livro I: O processo de produção do capital (21st ed., Vol. 2). Rio de Janeiro, Brazil: Civilização Brasileira., p. 277-278, grifo nosso).

Saltam aos olhos: a necessidade de contenção da voragem do capital que, deixado a si mesmo, tende a aniquilar fisicamente a força de trabalho e a necessidade de contenção do movimento dos trabalhadores “[...] que cresce ameaçador todos os dias [...]” (MARX, 2006bMarx, K. (2006b). O capital: Crítica da economia política: Livro I: O processo de produção do capital (21st ed., Vol. 2). Rio de Janeiro, Brazil: Civilização Brasileira., p. 277), ou seja, no caso de uma explosão revoltosa, na melhor das hipóteses, pode pôr em xeque a continuidade do processo de valorização, ou implodir, em último caso, a própria sociedade burguesa. É preciso observar que, em ambos os casos, estamos diante de uma necessidade, do capital social, de corrigir contradições estruturantes geradas pelo próprio movimento canibalístico de suas unidades constitutivas. No primeiro caso, a redução do contingente de força de trabalho - comprometido pelo agravamento das condições de reprodução fisiológica do trabalhador (mantidas as condições de insalubridade e mortalidade), o fornecimento de trabalho (abstrato) médio tende a estabelecer-se em patamares sociais cada vez mais rebaixados - compromete (abstraindo-se ainda, num primeiro momento, a elevação da composição orgânica, em um cenário baseado no emprego intensivo de força de trabalho) a ascendência da acumulação. No segundo, trata-se de garantir a ordem social vigente, posta em risco pela possibilidade de uma ação, em última instância, metapolítica (uma revolução social), do proletariado. Para conter ambos os casos, a solução político-jurídica das Factory Acts.

Páginas à frente, Marx (2006bMarx, K. (2006b). O capital: Crítica da economia política: Livro I: O processo de produção do capital (21st ed., Vol. 2). Rio de Janeiro, Brazil: Civilização Brasileira.) reproduz o Report of Committee on the Baking Trade in Ireland for 1861 que - após revolta, nos anos de 1858 e 1860, dos empregados em padarias contra o trabalho noturno e aos domingos -, avalia as condições de trabalho nas panificadoras da Irlanda:

A Comissão acredita que o tempo de trabalho é determinado por leis naturais que não podem ser violadas impunemente. Os patrões, quando forçam seus empregados, com a ameaça de pô-los na rua, a violarem condições religiosas, a desobedecerem à lei do país e a desrespeitarem a opinião pública [tudo isso se refere ao trabalho aos domingos4 4 O acréscimo é de Marx. ], estão lançando a cizânia entre capital e trabalho e dão exemplo perigoso para a religião, a moralidade e a ordem pública. […] A comissão acredita que o prolongamento do dia de trabalho além de 12 horas é uma intervenção abusiva na vida doméstica e privada do trabalhador e leva a resultados moralmente funestos que impedem o trabalhador de cumprir suas obrigações familiares como filho, irmão, esposo e pai. O trabalho, além de 12 horas, tende a deteriorar a saúde do trabalhador, a causar-lhe o envelhecimento rápido e a morte prematura, levando a infelicidade às famílias dos trabalhadores, que, no instante de maior necessidade, ficam privadas do cuidado e do apoio do seu chefe. (apud MARX, 2006bMarx, K. (2006b). O capital: Crítica da economia política: Livro I: O processo de produção do capital (21st ed., Vol. 2). Rio de Janeiro, Brazil: Civilização Brasileira., p. 292-293, grifo nosso).

Para além do fato de o trabalho “[...] além de 12 horas [...]” (apud MARX, 2006bMarx, K. (2006b). O capital: Crítica da economia política: Livro I: O processo de produção do capital (21st ed., Vol. 2). Rio de Janeiro, Brazil: Civilização Brasileira., p. 293) pôr em risco o vigor e a reprodução da força de trabalho, a desobediência à lei do país, acompanhada do desrespeito da opinião pública pelos patrões, põe em alerta os membros da comissão governamental. É importante observar como, da ótica dos comissários, o processo que leva da exigência exagerada de trabalho ao descumprimento da lei e da ordem é, em verdade, um processo que encaminha para a negação da solução jurídica e, deste modo, à barbárie, donde o “[...] exemplo perigoso [...]” (apud MARX, 2006b, p. 292). O temor está em uma revolta dos trabalhadores que, inspirados no “[...] exemplo perigoso [...]”, podem escapar à solução ideológica da lei e da ordem e buscar uma solução por meios próprios, pondo em xeque o funcionamento regular do capital em escala social que, do ponto de vista da comissão, nada mais é que a própria ordem civilizada.

Avançando com Marx, finalmente, após uma dramática exposição dos dados5 5 Os dados foram levantados pela Children’s Employment Comission, comissão de inspeção e averiguação criada pelo parlamento britânico em 1863, cujo objetivo era relatar as condições de trabalho de mulheres e crianças nas fábricas inglesas. Os resultados dos trabalhos foram expostos em relatórios de 1863 a 1867, dos quais Marx reproduziu várias passagens e depoimentos no Livro Primeiro d’O Capital. de mortalidade infantil nos distritos ingleses - cujas taxas alcançaram aproximadamente, em toda a Inglaterra, o patamar de 27% em 1864 (MARX, 2006bMarx, K. (2006b). O capital: Crítica da economia política: Livro I: O processo de produção do capital (21st ed., Vol. 2). Rio de Janeiro, Brazil: Civilização Brasileira.) -, chegamos a uma consideração fundamental, a saber, a natureza niveladora do capital, a qual nos permitirá entender tanto o processo de generalização das Factory Acts para todos os ramos da produção industrial, quanto os esforços do capital individual para burlar a lei. Essa tendência do capital é exposta por Marx do seguinte modo:

Sendo, porém, o capital um nivelador por natureza, que exige, como um direito natural, inato, a igualdade das condições de exploração do trabalho em todos os ramos de produção, a limitação legal do trabalho infantil num ramo industrial torna-se a causa para estender essa limitação a outro ramo. (MARX, 2006bMarx, K. (2006b). O capital: Crítica da economia política: Livro I: O processo de produção do capital (21st ed., Vol. 2). Rio de Janeiro, Brazil: Civilização Brasileira., p. 454).

Em primeiro lugar, estabelecido um patamar de exploração adequado às necessidades do capital global de preservação social da mercadoria força de trabalho, a transgressão da lei torna-se extremamente vantajosa para os capitais individuais: eles não só podem se valer, individualmente, de uma força de trabalho socialmente dada em melhores condições físicas, como podem ainda aumentar, ao custo do sistema, suas próprias taxas de mais-valor6 6 Aumentando-se individualmente, ao custo do sistema, ou seja, ao custo da manutenção social do denominador, o numerador da fórmula: taxa de mais-valor=trabalhoexcedentetrabalhonecessário. Sobre a fórmula da taxa de mais-valor, ver Marx (2006b). A opção, aqui, pela terceira configuração, dáse pelo fato de que ela expressa a taxa de mais-valor como “[...] relação entre espaços de tempo nos quais esses valores são produzidos” (MARX, 2006a, p. 605), ou seja, expõe justamente o que buscamos demonstrar: a vantagem, para o capitalista individual, em exceder o tempo de duração da jornada (o tempo gasto em trabalho excedente) em uma condição de limitação social da jornada de trabalho. . Donde se esclarece a tensão inerente entre as limitações legais, impostas como forma de preservar o capital em escala sistêmica (que tomam a forma, pelo direito, de uma investida do Estado contra o capital em geral, atestando sua natureza pública), e as unidades do capital. Todas essas limitações, que aparecem sob a forma de imposições legais, dizem respeito antes a necessidades estruturais do capital de conter suas forças centrífugas (aniquilação física da mercadoria força de trabalho e revoltas que podem implodir o funcionamento sistêmico do valor) que propriamente a conquistas, ainda que motivadas pela movimentação contestatória dos trabalhadores, cuja rebeldia, não raro, desembocou historicamente em ações violentas (negações explícitas do direito e da política).

Após a promulgação da Lei de 18507 7 Todas as informações e análises sobre o desenvolvimento da legislação fabril inglesa foram extraídas do Livro Primeiro d’O Capital (MARX, 2006b). , estabeleceu-se uma tensão ampla entre os ramos submetidos à legislação fabril e aqueles que ficaram sem regulação. No caso dos primeiros, a limitação da jornada a 10 horas diárias, combinada ao uso intensivo de máquinas, aumentou o ritmo de trabalho, concentrou em um mesmo trabalhador funções antes executadas por dois ou três operários, ampliou a produtividade e, em consequência, a exploração e a exaustão, assim como permitiu o rebaixamento dos salários pelo incremento da superpopulação relativa, como resultado da substituição maciça de trabalho vivo por morto. Os ramos não regulados assistiram a todo tipo de exploração e destruição da força de trabalho, até que finalmente a extensão da lei fabril aos trabalhadores em domicílio, em 1864, levou ao colapso as formas arcaicas de exploração do trabalho. Esta tensão, estabelecida anteriormente à generalização da legislação fabril, fez aflorar, por parte de certos setores da burguesia, um clamor cínico pela extensão da regulação jurídica em nome da civilidade e da ordem pública, como se pode observar nas palavras de J. Simpson (industriário do ramo de sacos de papel e caixas papelão), que parecem ao senso comum subverter a própria lógica de funcionamento do capital. Marx (2006bMarx, K. (2006b). O capital: Crítica da economia política: Livro I: O processo de produção do capital (21st ed., Vol. 2). Rio de Janeiro, Brazil: Civilização Brasileira.) volta a reproduzir passagens dos relatórios da Children’s Employment Comission. Declara o industriário à comissão que:

[...] “subscreveria qualquer petição a favor da implantação das leis fabris. Na situação em que se encontrava, sentia-se intranquilo à noite, após fechar sua fábrica, receando que outros estivessem trabalhando até mais tarde, arrebatando-lhe encomendas”. “Seria uma injustiça”, diz a ‘Child. Empl. Comm.’, sumariando: “contra os empregadores das grandes empresas, submeter suas fábricas à regulamentação, e simultaneamente deixar, em seu próprio ramo, a produção em pequena escala com o tempo de trabalho livre de qualquer limitação legal. Além da injustiça de condições desiguais de concorrência em relação às horas de trabalho, por se isentarem da lei as pequenas oficinas, experimentariam os grandes fabricantes outra desvantagem, que é o desvio do suprimento de mão-de-obra jovem e feminina para as oficinas não sujeitas à lei. Finalmente, incentivar-se-ia assim o aumento das pequenas oficinas, que, quase invariavelmente, apresentam as condições menos favoráveis à saúde, ao conforto, à educação e à melhoria geral do povo”. (apud MARX, 2006bMarx, K. (2006b). O capital: Crítica da economia política: Livro I: O processo de produção do capital (21st ed., Vol. 2). Rio de Janeiro, Brazil: Civilização Brasileira., p. 556).

A contrição final, que busca por caminhos tortos redimir a sinceridade reta do início do depoimento, mal encobre a relação entre a expansão da restrição legal e o benefício do grande capital na aniquilação da pequena concorrência, acelerando, por vias mediadas, o processo de centralização. Não por outra razão, embora os inspetores de fábrica tenham louvado “[...] incansavelmente e com razão os resultados favoráveis das leis fabris de 1844 e 1850” (MARX, 2006bMarx, K. (2006b). O capital: Crítica da economia política: Livro I: O processo de produção do capital (21st ed., Vol. 2). Rio de Janeiro, Brazil: Civilização Brasileira., p. 475), terminaram por confessar que “[...] a redução da jornada de trabalho provocou uma intensificação do trabalho que destrói a saúde do trabalhador, e, portanto, a própria força de trabalho”. (MARX, 2006b, p. 476). Ou seja, pela saída político-jurídica, a força de trabalho foi retirada das condições de destruição física impostas pela manufatura e por sistemas arcaicos de trabalho em domicílio para ser lançada à destruição física da produção pela maquinaria, com um diferencial: generalizada a segunda, restaurou-se em patamares sistêmicos aceitáveis o contingente da superpopulação relativa, restabelecendo, para o capital, condições mais favoráveis de compra de força de trabalho.

Todo o problema que expusemos não pode ser analisado desvinculado de uma determinação última, fundamental e bastante precisa, a saber, que:

[...] o trabalhador, durante toda sua existência, nada mais é do que força de trabalho, que todo o seu tempo disponível é, por natureza e por lei, tempo de trabalho, a ser empregado no próprio aumento do capital. Não tem qualquer sentido o tempo para a educação, para o desenvolvimento intelectual, para preencher funções sociais, para o convívio social, para o livre exercício das forças físicas e espirituais, para o descanso dominical, mesmo no país dos santificadores do domingo. Mas, em seu impulso cego, desmedido, em sua voracidade por trabalho excedente, viola o capital os limites extremos, físicos e morais, da jornada de trabalho. [...] A produção capitalista, que essencialmente é produção de mais-valor [...] ocasiona o esgotamento prematuro e a morte da própria força de trabalho. Aumenta o tempo de produção do trabalhador num período determinado, encurtando a duração da sua vida. (MARX, 2006bMarx, K. (2006b). O capital: Crítica da economia política: Livro I: O processo de produção do capital (21st ed., Vol. 2). Rio de Janeiro, Brazil: Civilização Brasileira., p. 306-307).

Logo,

[...] quando o capitalista transforma parte de seu capital em força de trabalho, aumenta ele o valor do seu capital global. Com uma cajadada, mata dois coelhos. Lucra não só com o que recebe do trabalhador, mas também com o que lhe dá. O capital que fornece em troca da força de trabalho se converte em meios de subsistência, cujo consumo serve para reproduzir músculos, nervos, ossos e cérebro do trabalhador existente e para gerar novos trabalhadores. Dentro dos limites do absolutamente necessário, o consumo individual da classe trabalhadora, portanto, transforma os meios de subsistência proporcionados pelo capital em troca de força de trabalho em nova força de trabalho explorável pelo capital, produção e reprodução do meio de produção mais imprescindível ao capitalista, o próprio trabalhador. O consumo individual do trabalhador constitui fator da produção e reprodução do capital, processa-se dentro e fora da oficina, da fábrica etc., dentro ou fora do processo de trabalho, do mesmo modo que a limpeza da máquina, ocorra ela no processo de produção ou em determinadas pausas. Pouco importa que o trabalhador realize seu consumo individual tendo em vista sua própria satisfação, e não a do capitalista. As bestas de carga saboreiam o que comem, mas seu consumo não deixa, por isso, de ser um elemento necessário do processo de produção. A conservação, a reprodução da classe trabalhadora, constitui condição necessária e permanente da reprodução do capital. O capitalista pode tranquilamente deixar o preenchimento dessa condição por conta dos instintos de conservação e de perpetuação dos trabalhadores. Sua verdadeira preocupação é restringir ao estritamente necessário o consumo individual dos trabalhadores. (MARX, 2006aMarx, K. (2006a). O capital: Crítica da economia política: Livro I: O processo de produção do capital (24th ed., Vol. 1). Rio de Janeiro, Brazil: Civilização Brasileira., p. 667).

Vê-se agora o conteúdo particular da circulação simples Ft (M) - D - M... (Ft)8 8 Ft = força de trabalho; M = mercadoria; D = dinheiro; conforme a apresentação de Marx das formas que compõem o ciclo de realização, nos livros que compõem O Capital. , e sua diferença substantiva para qualquer circulação simples geral M - D - M. “O trabalhador, durante toda a sua existência” (MARX, 2006bMarx, K. (2006b). O capital: Crítica da economia política: Livro I: O processo de produção do capital (21st ed., Vol. 2). Rio de Janeiro, Brazil: Civilização Brasileira., p. 306), não é Homem, não é substantivamente livre e tampouco igual, ou é apenas no e pelo fetichismo que determina as formas da sociedade do capital, apenas como o espectro ideal que povoa o céu da política e do direito. O contrato de trabalho, antes de regular uma relação entre iguais, visa regular o modo de compra e venda desta mercadoria força de trabalho. A distinção entre trabalhador e força de trabalho só se torna formalmente possível pela constituição do homem abstrato - bourgeois (MARX, 2009) -, esse fetiche que opera na realidade e é elevado à condição mística (ideal-formal) de citoyen (MARX, 2009) na esfera estatal, onde se embebe a ideologia jurídica9 9 Marx (1986, p. 26, grifo nosso) reafirma essa aparência invertida nos seguintes termos: “O modo de produção capitalista difere do modo de produção baseado na escravidão entre outras coisas pelo fato de que o valor, respectivamente o preço da força de trabalho, se apresenta como valor, respectivamente preço do próprio trabalho, ou como salário (Livro Primeiro, cap. XVII). A parte variável de valor do adiantamento de capital aparece por isso, como capital despendido em salário, como um valor-capital que paga o valor, respectivamente o preço, de todo o trabalho despendido na produção. [...] Nessa fórmula, a parte de capital desembolsada em trabalho só difere da parte de capital desembolsada em meios de produção, por exemplo algodão ou carvão, por servir para o pagamento de um elemento de produção materialmente diverso, mas de maneira alguma por desempenhar um papel funcionalmente diverso no processo de formação de valor da mercadoria, e portanto também no processo de valorização do capital. No preço de custo da mercadoria retorna o preço dos meios de produção, como ele já figurava no adiantamento de capital, e isso porque esses meios de produção foram utilizados e consumidos adequadamente. Exatamente da mesma maneira, no preço de custo da mercadoria retorna o preço ou salário [...] [das] jornadas de trabalho gastas para sua produção, tal como já figurava no adiantamento de capital [...]”. . O aumento do “[...] tempo de produção do trabalhador num período determinado, encurtando a duração da sua vida” (MARX, 2006b, p. 307) só é possível a partir do momento em que a população excedente relativa se mantém em níveis nos quais a oferta disponível de (mercadoria) força de trabalho mantém seu preço rebaixado e sua existência abundante. A redução drástica do exército industrial de reserva, combinada ao rebaixamento da produtividade média do trabalho, desacelera, em escala macroscópica, a produção do valor. O exemplo das Factory Acts mostra que a limitação legal imposta ao capital individual, ao generalizar-se, acelerou o processo de destruição das formas arcaicas de trabalho, consolidando a era da maquinaria, ou o tempo do capital posto “[...] sobre seus próprios pés”. (MARX, 2006b, p. 441).

Em suma, portanto, as intervenções estatais que visam a regular as formas de exploração (e de gestão) da força de trabalho buscam, em verdade, refrear a tendência predatória do capital, travestindo essa sua ação particular com a ideologia do interesse público - com as vestes do “assunto universal” (MARX, 2010aMarx, K., & Engels, F. (2010). Lutas de classes na Alemanha. São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 79) -, condizente à condição de dominação abstrata do capital. A necessidade sistêmica do capital social (de preservação da força de trabalho, de formação de superpopulação relativa etc.) se impõe sobre a voragem predatória do capital singular, sob a forma do interesse social, sob a forma da universalidade.

Contribuir para a rápida realização sistêmica do capital, apresentando as ações particulares necessárias à execução deste mister sob o manto da universalidade, do bem comum, do interesse público - eis a razão do Estado moderno10 10 Investigamos de modo mais detalhado a questão em Arbia (2017). . Isso faz de toda ação do Estado uma ação administrativa para acelerar a conclusão do ciclo de realização ou mesmo o funcionamento das tendências contrarrestantes do capital. No que se refere especificamente à gestão social da força de trabalho, busca garantir sua reprodução por necessidade estrutural - sua disponibilidade social qualificada, evitando-se a escassez relativa, ou recompondo o exército industrial de reserva, como forma de pressionar salários, retardando a tendência decrescente da taxa média de lucro, além de conter politicamente11 11 Nossa interpretação, portanto, não contempla qualquer diferença de conteúdo entre os termos reforma e contrarreforma: ações administrativas estatais, que aparecem sob as formas política e jurídica, visam sempre à reprodução sistêmica do capital, viabilizem ou abdiquem da reprodução física e social do trabalhador - visto unicamente, do ponto de vista do capital, como repositório vivo da substância criadora de valor -, tudo a depender das condições concretas enfrentadas pelo sistema do capital num momento histórico determinado. reivindicações do trabalho que possam desembocar numa convulsão social -, desocupando-se dela sempre que consolidados, em patamares socialmente elevados, a superpopulação relativa, até o ponto em que o recrudescimento das condições de vida leve os trabalhadores a pôr em xeque a organização social vigente. Em qualquer caso, estamos diante de ações administrativas que, sob uma forma político-jurídica, têm por determinação primária a conclusão acelerada do ciclo de realização do capital. Foi neste exato espírito que o Estado brasileiro enfrentou as questões conjunturais referentes à força de trabalho no Brasil, como veremos a seguir.

Papè Satán, papè Satán aleppe! 12 12 Em Alighieri (1933, p. 30), chegando com Virgílio ao quarto círculo do inferno, Dante é recebido por Pluto, o demônio da riqueza, que pronuncia o verso. O significado, ainda não desvendado, originou inúmeras hipóteses, debates e controvérsias. Neste quarto nível, Virgílio explicará a Dante sobre as vicissitudes da Fortuna; nele, expiam seus pecados os avarentos e os pródigos. : a “via colonial” 13 13 A categorização é de Chasin (2000b), conforme explicitaremos à frente. e a política para o trabalho no Brasil

Sabemos que, na primeira fase da industrialização brasileira, uma organização social baseada na acumulação agrária, que perdurou pelo menos até os anos 1920, oferecia bases muito frágeis para uma expansão consistente do capitalismo industrial: com exceção do Rio de Janeiro, não se constatava a existência de uma infraestrutura urbana compatível com as exigências de desenvolvimento de um capitalismo industrial (RODRIGUES, 1970Rodrigues, L. M. (1970). Industrialização e atitudes operárias: Estudo de um grupo de trabalhadores. São Paulo, Brazil: Brasiliense.). A ausência de uma regulamentação jurídica abrangente e sistemática das relações de trabalho pode ser explicada pela inexistência de uma política nacional de desenvolvimento industrial, como projeto macroeconômico, até este período, tendo em vista o peso da permanência do setor primário como carro-chefe de uma economia agroexportadora.

O cenário se altera no pós-1930. O recrutamento externo de força de trabalho (italianos, espanhóis e portugueses) cede gradativamente espaço à mão de obra nativa, oriunda das áreas rurais e dos setores urbanos de serviços. A crise do café, liberando força de trabalho no campo, possibilitou a primeira formação significativa de uma superpopulação relativa, exigência para consolidação da indústria. As características desta primeira industrialização nacional permitiu o emprego de força de trabalho de baixa qualificação (RODRIGUES, 1970Rodrigues, L. M. (1970). Industrialização e atitudes operárias: Estudo de um grupo de trabalhadores. São Paulo, Brazil: Brasiliense.).

O papel particular cumprido pela estruturação de uma legislação trabalhista, por Vargas, no primeiro impulso sistemático de consolidação do capitalismo urbano-industrial no Brasil, foi bem explicado por Oliveira (2003Oliveira, F. de. (2003). Crítica à razão dualista. O ornitorrinco. São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 38, grifo do autor):

As leis trabalhistas fazem parte de um conjunto de medidas destinadas a instaurar um novo modo de acumulação. Para tanto, a população em geral, e especificamente a população que afluía às cidades, necessitava ser transformada em “exército de reserva”. Essa conversão de enormes contingentes populacionais em ‘exército de reserva’, adequado à reprodução do capital, era pertinente e necessária do ponto de vista do modo de acumulação que se iniciava ou que se buscava reforçar, por duas razões principais: de um lado, propiciava o horizonte médio para o cálculo econômico empresarial, liberto do pesadelo de um mercado de concorrência perfeita, no qual ele devesse competir pelo uso dos fatores; de outro lado, a legislação trabalhista igualava reduzindo - antes que incrementando - o preço da força de trabalho.

E conclui: “[...] é a partir daí [da implantação das leis trabalhistas] que um tremendo impulso é transmitido à acumulação, caracterizando toda uma nova etapa de desenvolvimento da economia brasileira”. (OLIVEIRA, 2003Oliveira, F. de. (2003). Crítica à razão dualista. O ornitorrinco. São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 39). Os desenvolvimentos do autor, que se seguem, são conhecidos e apontam adicionalmente para a desregulamentação correspondente das relações de trabalho no campo, que garantiu a manutenção em patamares rebaixados dos custos de reprodução da força de trabalho urbana14 14 “Em primeiro lugar, ao impedir que crescessem os custos da produção agrícola em relação à industrial, ele tem um importante papel no custo da reprodução da força de trabalho urbana; e, em segundo lugar, e pela mesma razão de rebaixamento real do custo real da alimentação, ele possibilitou a formação de um proletariado rural que serve às culturas comerciais de mercado interno e externo. No conjunto, o modelo permitiu que o sistema deixasse os problemas de distribuição de propriedade - que pareciam críticos no fim nos anos 1950 - ao mesmo tempo em que o proletariado rural que se formou não ganhou o estatuto de proletariado: tanto a legislação do trabalho praticamente não existe no campo como a previdência social não passa de utopia.” (OLIVEIRA, 2003, p. 45). . Ora, podemos afirmar com segurança que, nas duas vias simultâneas de sua política global para o trabalho - da regulação e da desregulamentação legal das relações de trabalho -, a ação do Estado varguista caminhou no sentido de viabilizar a reprodução sistêmica do capital industrial brasileiro em formação.

A instauração da autocracia burguesa, em 1964, ou mais precisamente, sua política de estrangulamento político e econômico do trabalho, pós-1967, sustentou as bases do realinhamento do capital brasileiro - a reorganização de sua base industrial - com o capital imperialista internacional. Movido por uma lógica de subordinação ao capital internacional, o modelo orientava-se por duas frentes: uma intensificação na produção de bens duráveis, com a consolidação de mercado interno sustentado por uma camada social privilegiada e restrita, que serviu de base social do regime (a concentração de renda, portanto, era parte estruturante de funcionamento do modelo15 15 Conforme Oliveira (2003, p. 98): “[...] uma crise de realização de tipo clássico existiria se, mantendo-se altos os preços dos produtos nacionais, a distribuição de renda fosse mais igualitária, e não o contrário”. ) e uma política deflacionária, pautada no arrocho salarial e no terrorismo de Estado, como forma de comprimir os custos da reprodução da massa de trabalhadores16 16 Visando “[...] explicitamente a compressão dos salários. Tal política foi implementada por uma regra em que o cálculo dos novos salários nominais do setor privado passou a basear-se na média dos salários reais nos 24 meses passados, mais estimativas da produtividade passada e da inflação futura. Esse mecanismo de correção dos salários nominais, além da inflação futura ter sido subestimada nas estimativas oficiais, contribuiu para uma redução absoluta do salário-consumo na indústria manufatureira”. (COLISTETE, 2009, p. 392-393). .

O crescimento observado a partir de 1968 teve fôlego curto. A crise internacional de 1971 e o choque do petróleo, em 1974, foram marchas fúnebres para um paciente desenganado. O boom de acumulação, alavancado pelo consumo de bens duráveis, rapidamente esgotou a capacidade instalada que se mantinha ociosa desde 1962 (OLIVEIRA, 2003Oliveira, F. de. (2003). Crítica à razão dualista. O ornitorrinco. São Paulo, Brazil: Boitempo.). Para evitar o bloqueio do crescimento, a demanda por bens de capital teve de ser sanada por meio de uma política de im-

portações que, em crescimento permanente17 17 “Entre 1966 a 1970, as importações de bens de capital destinados à inversão interna passaram de US$ 405,6 milhões para US$ 1.073,9 milhões, isto é, cresceram 1,6 vezes, velocidade muito maior que o crescimento do PNB e que o crescimento do próprio produto do setor industrial como um todo.” (OLIVEIRA, 2003, p. 103). , não foi acompanhada pelo ritmo interno de desenvolvimento do departamento I. Como resultado, o balanço de pagamentos tornou-se progressivamente negativo, tendo em vista a diferença de valor agregado entre manufaturados18 18 Devemos lembrar também que, ainda que subsidiados, os produtos manufaturados exportados raramente conseguem concorrer no mercado internacional, tendo em vista o hiato de valor entre os bens produzidos com base em trabalho intensivo e os bens de países com alta taxa de acumulação (logo, com elevada composição orgânica), produzidos com base em emprego intensivo de capital constante. exportados e bens de capital importados. O déficit no balanço de pagamentos fez com que o Estado brasileiro passasse a depender de um crescente endividamento externo que, uma vez iniciado, leva ao círculo vicioso dos serviços da dívida, comprometendo progressivamente o orçamento estatal.

De qualquer modo, o quadro expansivo só pôde consolidar-se privilegiando a indústria manufatureira de bens duráveis, cujos parques industriais baseavam-se em incorporação técnica de montagem (e não no desenvolvimento de matrizes), numa expansão populacional que registrava, no censo de 1970, aproximadamente 93 milhões de habitantes - destes, 55,9% viviam nas cidades19 19 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2004) sobre as tendências demográficas no período dos anos 1960 a 1970 mostram aumento populacional de 24,78% nas Regiões Sul e Sudeste, uma diferença populacional positiva de 13.966.188. (PAULO NETTO, 2014Paulo Netto, J. (2014). Pequena história da ditadura brasileira: (1964-1985). São Paulo, Brazil: Cortez.) -, garantido, portanto, a permanência de um excedente populacional relativo que, possibilitando uma legislação repressiva sobre o trabalho20 20 A política econômica do período militar instaurou, junto com o arrocho salarial, a proibição do direito de greve - Lei nº 4.330/1964 (BRASIL, 1964) -, a indexação e o fim do regime de estabilidade no emprego - criação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), Lei nº 5.107/1966 (BRASIL, 1966) -, disciplinou o processo eleitoral das entidades sindicais e tornou inelegíveis para os sindicatos todos aqueles que possuíssem ideologias incompatíveis com o ideário da segurança nacional. Essas medidas foram fundamentais, por exemplo, para a ampliação do número de horas extras trabalhadas. , permitiu desarticular a resistência dos trabalhadores, levando-os a suportar, no extremo limite, os efeitos gerados pelo arrocho salarial21 21 O crescimento do PIB acima dos 10%, pelo menos de 1968 a 1975, não foi acompanhado por uma elevação real do salário-mínimo. Tendo vivido uma das mais notáveis expansões econômicas da segunda metade do séc. XX, o “Brasil tornou se, com outros países latino-americanos e da África Subsaariana, uma das poucas áreas do globo em que não houve uma substancial melhora na distribuição de renda”. (COLISTETE, 2009, p. 386). No período de maior crescimento do PIB, “[...] o salário-consumo até mesmo caiu ou estagnou-se em termos reais em 1970, ocorrendo no restante do governo Médici somente um crescimento modesto e errático”. (COLISTETE, 2009, p. 393). .

Vemos, portanto, que o mesmo Estado, que de 1930 a 1945 consolidou as leis do trabalho para os trabalhadores urbanos, deixando à exploração selvagem o trabalho rural, consoante a política econômica de industrialização nacional de base, impôs, conforme as necessidades históricas da acumulação do capital no Brasil, em nova fase de realinhamento de seu desenvolvimento industrial com o capital imperialista internacional, a política do arrocho e o terrorismo de Estado, no período da autocracia burguesa. Para aqueles que afirmam tratar-se de uma questão de gestão22 22 Convém resgatar a observação marxiana de que “[...] todos os Estados buscam a causa nas falhas casuais ou intencionais da administração e, por isso mesmo, em medidas administrativas o remédio para suas mazelas. Por quê? Justamente porque a administração é a atividade organizadora do Estado”. (MARX, 2010c, p. 39, grifo do autor). E devemos complementar: “O Estado jamais verá no ‘Estado e na organização da sociedade’ a razão das mazelas sociais [...], [pois], do ponto de vista político, Estado e organização da sociedade não são duas coisas distintas. O Estado é a organização da sociedade”. (MARX, 2010c, p. 38, grifo do autor). , jamais devem perder de vista que essa possibilidade de variação habita justamente entre as margens da intervenção estatal administrativa, em seu papel de adequar a política para o trabalho como parte das necessidades da acumulação econômica que, na particularidade brasileira da inserção dependente, orienta-se pelos movimentos de reordenamento da divisão internacional do trabalho. Neste espírito, devemos analisar as investidas contra a legislação trabalhista intensificadas a partir de 2015.

Recessão e urgência de reformas (que ocorriam em ritmo demasiado lento, frente à iminência de um agravamento recessivo) precipitaram a queda de Rousseff em 2016. Acossada pelo cenário internacional (crise de 2009 e seus efeitos tardios no Brasil, a partir de 2015; recessão econômica mundial sem sinais claros de recuperação; volatilidade do sistema financeiro e pilhagem dos mercados pelo grande capital especulativo, sem que os Estados-Nacionais mostrassem capacidade de oferecer resistência sistemática; IV revolução industrial; expansão das dívidas de praticamente todos os Estados-Nacionais), a burguesia dependente brasileira entrou em pânico, aflorando mais uma vez seu temor “sociopático” (FERNANDES, 2008Fernandes, F. (2008). Sociedade de classes e subdesenvolvimento (5th ed.). São Paulo, Brazil: Global., p. 185) em relação a mudanças sociais, frente a um governo (a uma capacidade administrativa) lento(a) em produzir mecanismos viáveis à manutenção da acumulação no Brasil. Alinhada a frações do capital internacional, passa a reclamar ações urgentes, capazes de garantir a produção e expatriação dos lucros e dividendos dos investimentos externos diretos (IEDs) - como se observa claramente na política de preços da Petrobras, a partir de maio de 2016 -, acelerar o saque ao patrimônio estatal, seja ampliando sua faixa de participação na expropriação nacional do mais-valor social, pela sucção do erário, seja pela pilhagem das empresas estatais, em um período de retração econômica, dificuldades de realização do capital (sobretudo industrial) e dúvidas em relação à capacidade do Estado brasileiro de, numa quadra recessiva, controlar o déficit estatal, honrar compromissos e manter em funcionamento, ainda que por estruturas extremamente enxutas e precárias, sua capacidade administrativa de gerir a acumulação do capital no Brasil.

Os prenúncios de uma IV Revolução Industrial ampliam os pesadelos da burguesia brasileira, frente às suas reais possibilidades de incorporar, sem subvenção estatal, meios de produção que operam por nanotecnologia, biotecnologia, sistemas ciberfísicos, novas formas de armazenamento de energia, biologia sintética etc. Ao acenar com a extinção de aproximadamente 5 milhões de empregos, até 202023 23 Sobre os impactos que serão provocados pela IV Revolução Industrial, conforme Ribeiro (2016). , a revolução tecnológica deste século aponta para um brutal incremento do capital constante, que tem se revelado acessível, até o presente momento, somente aos grandes conglomerados monopólicos (muitas das vezes, sob condições de fusão e ainda com forte aporte dos Estados-Nacionais centrais no desenvolvimento de ciência e tecnologia). Neste cenário, a continuidade de uma produção industrial baseada no capital nacional torna-se extremamente incerta, ampliando a submissão - das frações da burguesia industrial que venham a sobreviver - ao capital monopolista internacional.

As ações que visam a desmontar a proteção do trabalho no Brasil no quadro pós-crise internacional de 2009, cujas expressões mais candentes são as investidas de 2015 e 2017, inscrevem-se na dupla articulação dependente a que se refere Fernandes (2008Fernandes, F. (2008). Sociedade de classes e subdesenvolvimento (5th ed.). São Paulo, Brazil: Global.). Por um lado, devem ampliar a superexploração do trabalho, equacionando, para o capital imperialista, a produção do mais-valor em um contexto de retração mundial no emprego de trabalho vivo e queda das taxas de lucro. Por outro, e como fenômeno decorrente, buscam ampliar, além dos limites toleráveis, a exploração do trabalho como forma de remediar a incapacidade nacional de produzir matrizes tecnológicas capazes de impulsionar um desenvolvimento industrial brasileiro autônomo, aproveitando-se sem remorsos do excesso de força de trabalho disponível, que se expressa nas crescentes taxas de desemprego. Em resumo, incapaz de produzir tecnologicamente de modo autônomo, o capital brasileiro, à mercê do domínio do capital estrangeiro, tem como única saída estirar, para além dos limites, a superexploração do trabalho, equacionando suas taxas de lucro e sua condição social de dominação. Assim, é a abundância de força de trabalho no atual quadro nacional (e internacional), ou seja, a existência de expressiva superpopulação relativa, que permite ao Estado brasileiro realinhar, conforme as necessidades da acumulação do capital no Brasil, sua política para o trabalho, substituindo um ensaio de proteção social (conforme a Constituição Federal de 1988) pela predação selvagem.

Está claro que essas investidas violentas e abertas que enfrentamos guardam, como determinação genética, a condição particular de formação do nosso capital - a via colonial (CHASIN, 2000Chasin, J. (2000). A miséria brasileira: 1964-1994 do golpe militar à crise social. São Paulo, Brazil: Ad Hominem.b). Uma estrutura agrária com grandes latifúndios, de origem colonial, baseada no trabalho escravo e cuja produção voltouse para o exterior; modificações realizadas por meio de conciliações entre as classes dominantes (agrária e urbana), sem participação popular e rupturas de vulto; um desenvolvimento lento das forças produtivas e uma industrialização hipertardia, conduzida aos saltos. Tudo isso, determinou a forma e o conteúdo das classes no Brasil, explicando as dificuldades congênitas da burguesia brasileira em realizar suas históricas tarefas políticas, constituindo-se uma classe defensora dos interesses nacionais. A burguesia nacional padeceu, também, de uma incapacidade estrutural para promover suas próprias revoluções econômicas, dependendo sistematicamente, para tanto, das ações do Estado brasileiro (sejam econômicas ou extraeconômicas), que incluem uma particular e agressiva ingerência sobre as formas de reprodução do trabalho. Sem jamais haver buscado sua emancipação econômica e política, a burguesia brasileira realizou-se como classe por acordos, que reiteram permanentemente sua subordinação ao capital imperialista, e pela manutenção de uma dominação interna autoritária e violenta. Explica-se, por fim, o fato de as grandes alterações econômicas nacionais ocorrerem sistematicamente por vias autocráticas, conferindo aos processos de modernização a feição de milagres econômicos, paridos pela ingerência autoritária em todos os setores da vida social.

Considerações finais

A IV Revolução Industrial, em nível global, expande objetivamente a superpopulação relativa, ampliando o exército industrial de reserva; a estagnação mundial e a dificuldade de recomposição das taxas de lucro dos países imperialistas, pós-1970, somada à mundialização do capital (tanto pela via do IED, em busca de extração de superlucros e de facilidades de repatriação, quanto pela via da financeirização, cuja sucção do mais-valor acumulado nos Estados-Nacionais contribui para consolidar a prioridade contemporânea da acumulação: a viabilização do capital que acresce a si mesmo, D - D’): tudo isso converge, no cenário brasileiro, para a possibilidade da desregulamentação predatória e exploração brutal da força de trabalho, tendo em vista sua atual abundância relativa, fazendo da superexploração um expediente não apenas possível, mas indispensável. Em outros termos, o Estado pode novamente desocupar-se da reprodução desta mercadoria particular - o trabalhador, como a única “mercadoria” que se “preocupa com a própria reprodução” (MARX, 2006aMarx, K. (2006a). O capital: Crítica da economia política: Livro I: O processo de produção do capital (24th ed., Vol. 1). Rio de Janeiro, Brazil: Civilização Brasileira., p. 667) -, direcionando o mais-valor social dos fundos estatais para dinamizar o capital noutras frentes, prioritariamente, para realizar o capital financeiro.

Inflexões na política macroeconômica (estatal) de gestão da força de trabalho sempre podem ser impulsionadas, como os exemplos históricos mostram (como nas greves de 1978/1979, por exemplo), por uma sublevação organizada do trabalho. Todavia, a solução destas demandas no âmbito político-jurídico não viola a natureza administrativa do Estado de adequar permanentemente as modalidades de reprodução social da força de trabalho às necessidades acumulativas do capital em cada momento histórico. No Brasil, os influxos na legislação trabalhista (e nos direitos sociais, de modo mais amplo) guardam intensa relação com a variação das fases da acumulação do capital, que ganham expressão fenomênica nos modelos econômicos adotados ao longo da nossa história recente. As lutas dos trabalhadores que se encaminham para a solução político-jurídica podem, no máximo, ampliar ou adstringir o leque de escolhas do Estado, todavia, sem jamais remover sua característica mesma de estrutura administrativa do capital. Sob este aspecto, as respostas estão irremediavelmente determinadas pelo imperativo de realização do capital.

Agradecimentos

Aos revisores e pareceristas anônimos da revista.

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  • Rodrigues, L. M. (1970). Industrialização e atitudes operárias: Estudo de um grupo de trabalhadores. São Paulo, Brazil: Brasiliense.

Notas

  • 1
    Sobre as críticas ao Estado moderno, conforme as produções marxianas dos anos 1840, com destaques para os artigos da Gazeta Renana (MARX, 2010d), manuscrito de Kreuznach (MARX, 2010a), os clássicos dos Anais Franco-Alemães (MARX, 2009, 2010b) e a publicação do Vorwärts!, contra Arnold Ruge (MARX, 2010c).
  • 2
    No início, devemos lembrar, pelo Projeto de Lei nº (PL) 4.330/2004 (BRASIL, 2015), votado às pressas na Câmara dos Deputados. Permanecendo, posteriormente, em lenta tramitação no Senado, aquela Casa optou por resgatar, em 2016, o PL 4.302/1998 (BRASIL, 2017a), que trazia condições ainda mais flexíveis para o emprego da força de trabalho terceirizada, que veio a se tornar a Lei nº 13.429/2017 (BRASIL, 2017b).
  • 3
    A continuidade do fragmento merece ser reproduzida: “[...] se os contornos, pois, só ganham corpo na própria hora em que se efetivam os processos, do mesmo modo que os eventos não são rigidamente programáveis, em seus dias e horas; por outro lado, ao contrário disto, as grandes linhas de tendência, a necessária ocorrência dos acontecimentos básicos são amplamente discerníveis, divisáveis mesmo no longo prazo”. (CHASIN, 2000a, p. 79).
  • 4
    O acréscimo é de Marx.
  • 5
    Os dados foram levantados pela Children’s Employment Comission, comissão de inspeção e averiguação criada pelo parlamento britânico em 1863, cujo objetivo era relatar as condições de trabalho de mulheres e crianças nas fábricas inglesas. Os resultados dos trabalhos foram expostos em relatórios de 1863 a 1867, dos quais Marx reproduziu várias passagens e depoimentos no Livro Primeiro d’O Capital.
  • 6
    Aumentando-se individualmente, ao custo do sistema, ou seja, ao custo da manutenção social do denominador, o numerador da fórmula: taxa de mais-valor=trabalhoexcedentetrabalhonecessário. Sobre a fórmula da taxa de mais-valor, ver Marx (2006b). A opção, aqui, pela terceira configuração, dáse pelo fato de que ela expressa a taxa de mais-valor como “[...] relação entre espaços de tempo nos quais esses valores são produzidos” (MARX, 2006a, p. 605), ou seja, expõe justamente o que buscamos demonstrar: a vantagem, para o capitalista individual, em exceder o tempo de duração da jornada (o tempo gasto em trabalho excedente) em uma condição de limitação social da jornada de trabalho.
  • 7
    Todas as informações e análises sobre o desenvolvimento da legislação fabril inglesa foram extraídas do Livro Primeiro d’O Capital (MARX, 2006b).
  • 8
    Ft = força de trabalho; M = mercadoria; D = dinheiro; conforme a apresentação de Marx das formas que compõem o ciclo de realização, nos livros que compõem O Capital.
  • 9
    Marx (1986, p. 26, grifo nosso) reafirma essa aparência invertida nos seguintes termos: “O modo de produção capitalista difere do modo de produção baseado na escravidão entre outras coisas pelo fato de que o valor, respectivamente o preço da força de trabalho, se apresenta como valor, respectivamente preço do próprio trabalho, ou como salário (Livro Primeiro, cap. XVII). A parte variável de valor do adiantamento de capital aparece por isso, como capital despendido em salário, como um valor-capital que paga o valor, respectivamente o preço, de todo o trabalho despendido na produção. [...] Nessa fórmula, a parte de capital desembolsada em trabalho só difere da parte de capital desembolsada em meios de produção, por exemplo algodão ou carvão, por servir para o pagamento de um elemento de produção materialmente diverso, mas de maneira alguma por desempenhar um papel funcionalmente diverso no processo de formação de valor da mercadoria, e portanto também no processo de valorização do capital. No preço de custo da mercadoria retorna o preço dos meios de produção, como ele já figurava no adiantamento de capital, e isso porque esses meios de produção foram utilizados e consumidos adequadamente. Exatamente da mesma maneira, no preço de custo da mercadoria retorna o preço ou salário [...] [das] jornadas de trabalho gastas para sua produção, tal como já figurava no adiantamento de capital [...]”.
  • 10
    Investigamos de modo mais detalhado a questão em Arbia (2017).
  • 11
    Nossa interpretação, portanto, não contempla qualquer diferença de conteúdo entre os termos reforma e contrarreforma: ações administrativas estatais, que aparecem sob as formas política e jurídica, visam sempre à reprodução sistêmica do capital, viabilizem ou abdiquem da reprodução física e social do trabalhador - visto unicamente, do ponto de vista do capital, como repositório vivo da substância criadora de valor -, tudo a depender das condições concretas enfrentadas pelo sistema do capital num momento histórico determinado.
  • 12
    Em Alighieri (1933, p. 30), chegando com Virgílio ao quarto círculo do inferno, Dante é recebido por Pluto, o demônio da riqueza, que pronuncia o verso. O significado, ainda não desvendado, originou inúmeras hipóteses, debates e controvérsias. Neste quarto nível, Virgílio explicará a Dante sobre as vicissitudes da Fortuna; nele, expiam seus pecados os avarentos e os pródigos.
  • 13
    A categorização é de Chasin (2000b), conforme explicitaremos à frente.
  • 14
    “Em primeiro lugar, ao impedir que crescessem os custos da produção agrícola em relação à industrial, ele tem um importante papel no custo da reprodução da força de trabalho urbana; e, em segundo lugar, e pela mesma razão de rebaixamento real do custo real da alimentação, ele possibilitou a formação de um proletariado rural que serve às culturas comerciais de mercado interno e externo. No conjunto, o modelo permitiu que o sistema deixasse os problemas de distribuição de propriedade - que pareciam críticos no fim nos anos 1950 - ao mesmo tempo em que o proletariado rural que se formou não ganhou o estatuto de proletariado: tanto a legislação do trabalho praticamente não existe no campo como a previdência social não passa de utopia.” (OLIVEIRA, 2003, p. 45).
  • 15
    Conforme Oliveira (2003, p. 98): “[...] uma crise de realização de tipo clássico existiria se, mantendo-se altos os preços dos produtos nacionais, a distribuição de renda fosse mais igualitária, e não o contrário”.
  • 16
    Visando “[...] explicitamente a compressão dos salários. Tal política foi implementada por uma regra em que o cálculo dos novos salários nominais do setor privado passou a basear-se na média dos salários reais nos 24 meses passados, mais estimativas da produtividade passada e da inflação futura. Esse mecanismo de correção dos salários nominais, além da inflação futura ter sido subestimada nas estimativas oficiais, contribuiu para uma redução absoluta do salário-consumo na indústria manufatureira”. (COLISTETE, 2009, p. 392-393).
  • 17
    “Entre 1966 a 1970, as importações de bens de capital destinados à inversão interna passaram de US$ 405,6 milhões para US$ 1.073,9 milhões, isto é, cresceram 1,6 vezes, velocidade muito maior que o crescimento do PNB e que o crescimento do próprio produto do setor industrial como um todo.” (OLIVEIRA, 2003, p. 103).
  • 18
    Devemos lembrar também que, ainda que subsidiados, os produtos manufaturados exportados raramente conseguem concorrer no mercado internacional, tendo em vista o hiato de valor entre os bens produzidos com base em trabalho intensivo e os bens de países com alta taxa de acumulação (logo, com elevada composição orgânica), produzidos com base em emprego intensivo de capital constante.
  • 19
    Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2004) sobre as tendências demográficas no período dos anos 1960 a 1970 mostram aumento populacional de 24,78% nas Regiões Sul e Sudeste, uma diferença populacional positiva de 13.966.188.
  • 20
    A política econômica do período militar instaurou, junto com o arrocho salarial, a proibição do direito de greve - Lei nº 4.330/1964 (BRASIL, 1964) -, a indexação e o fim do regime de estabilidade no emprego - criação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), Lei nº 5.107/1966 (BRASIL, 1966) -, disciplinou o processo eleitoral das entidades sindicais e tornou inelegíveis para os sindicatos todos aqueles que possuíssem ideologias incompatíveis com o ideário da segurança nacional. Essas medidas foram fundamentais, por exemplo, para a ampliação do número de horas extras trabalhadas.
  • 21
    O crescimento do PIB acima dos 10%, pelo menos de 1968 a 1975, não foi acompanhado por uma elevação real do salário-mínimo. Tendo vivido uma das mais notáveis expansões econômicas da segunda metade do séc. XX, o “Brasil tornou se, com outros países latino-americanos e da África Subsaariana, uma das poucas áreas do globo em que não houve uma substancial melhora na distribuição de renda”. (COLISTETE, 2009, p. 386). No período de maior crescimento do PIB, “[...] o salário-consumo até mesmo caiu ou estagnou-se em termos reais em 1970, ocorrendo no restante do governo Médici somente um crescimento modesto e errático”. (COLISTETE, 2009, p. 393).
  • 22
    Convém resgatar a observação marxiana de que “[...] todos os Estados buscam a causa nas falhas casuais ou intencionais da administração e, por isso mesmo, em medidas administrativas o remédio para suas mazelas. Por quê? Justamente porque a administração é a atividade organizadora do Estado”. (MARX, 2010c, p. 39, grifo do autor). E devemos complementar: “O Estado jamais verá no ‘Estado e na organização da sociedade’ a razão das mazelas sociais [...], [pois], do ponto de vista político, Estado e organização da sociedade não são duas coisas distintas. O Estado é a organização da sociedade”. (MARX, 2010c, p. 38, grifo do autor).
  • 23
    Sobre os impactos que serão provocados pela IV Revolução Industrial, conforme Ribeiro (2016).
  • Agência financiadora

    Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação

    Não se aplica.
  • Consentimento para publicação

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2018
  • Aceito
    18 Set 2018
  • Revisado
    04 Dez 2019
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