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Autogestão e controle operário: uma análise histórica crítica

Self-management and workers’ control: a critical historical analysis

Resumo

Neste artigo analisamos a relação histórica das fábricas recuperadas com as primeiras iniciativas de autogestão dos trabalhadores, desde o início do capitalismo industrial. Assinalamos a evolução histórica das primeiras experiências de controle operário, das que ocorreram no interior de movimentos revolucionários, tais como a revolução russa e a guerra civil espanhola, até às fábricas recuperadas contemporâneas, destacando suas contradições e suas realizações. A natureza genuína dessas experiências tem como móvel impulsionador a reação às condições de subordinação impostas ao trabalho assalariado pela lógica do capital, que com o decorrer dos séculos agravaramse. A luta pela autonomia operária sem que alcance desafiar o capital é um dos principais obstáculos para que tais experiências contribuam para a emancipação do trabalho. Concluímos que as experiências de autogestão mais recentes reproduzem antigos problemas teóricos, políticos e organizacionais. Sem um processo de reorientação crítica e autocrítica da luta contra o capital, não se constituem em novas formas para superá-los.

Palavras-chave:
Autogestão; Capital; Emancipação do trabalho; Crítica; Autocrítica

Abstract

In this article, we analyze the historical relationship of recovered factories with the first self-management initiatives of workers, since the beginning of industrial capitalism. We point out the historical evolution of the first experiences of workers’ control, from those that took place within revolutionary movements, such as the Russian revolution and the Spanish civil war, to the contemporary recovered factories, highlighting their contradictions and achievements. The genuine nature of these experiences is driven by the reaction to the conditions of subordination imposed on wage labor by the logic of capital, which have worsened over the centuries. The struggle for workers’ autonomy without being able to challenge the capital is one of the main obstacles for such experiences to contribute to the emancipation of work. We conclude that the most recent self-management experiences reproduce old theoretical, political and organizational problems. Without a process of critical and self-critical reorientation of the fight against capital, they do not constitute new ways to overcome it.

Keywords:
Self-management; Capital; Emancipation from work; Criticism; Self-criticism

Introdução

Desde as primeiras revoltas da classe operária contra as máquinas, vistas como as causadoras de sua desgraçada vida no início da Revolução Industrial; a ilusão da participação política através do movimento cartista, visando intervir na direção do processo político da sociedade capitalista, em defesa de seus interesses de classe; a constituição de seus instrumentos de luta defensivos, como os sindicatos, até a criação dos primeiros partidos operários, pode-se observar um avanço progressivo em direção à constituição de uma consciência de classe em oposição às formas de exploração até então empreendidas pelo capital.

Foi necessário um longo período de amadurecimento político através da luta de classes para que a classe operária pudesse reconhecer o lugar que lhe era destinado no novo mundo inaugurado pelo capital e o pelo trabalho assalariado. A relação capital-trabalho, base de toda a reprodução social na era do capital, impõe-se de forma avassaladora diante das formas arcaicas de produção de riqueza, superando toda expectativa de progresso da produção material inicialmente projetada com o inigualável desenvolvimento das forças produtivas.

Ao mesmo tempo em que provocava um enorme avanço da produção material de riqueza, a força criativa dos produtores resultava em miséria, alienação e exploração crescentes, pois tal avanço só foi possível mediante a extração crescente e ampliada da mais-valia do trabalho vivo. A submissão dos trabalhadores às condições de trabalho, e existência, postas pelo capital deveria ser compulsória; sua manutenção requeria os meios mais violentos, garantidos pelo processo extenuante de trabalho e pela punição ao não cumprimento das metas da produção. A atitude despótica do capital sobre o operário na fábrica se impôs como uma condição ao avanço da produção crescente da mais-valia e da acumulação de capital. Ao trabalhador restou aceitar tal condição de subordinação - único meio de garantir sua existência social.

O processo histórico que deu origem ao capital e ao trabalho assalariado “livre” (das velhas relações de exploração feudais) não ocorreu de maneira consensual, harmoniosa e progressista do ponto de vista das vidas humanas envolvidas. Desde a origem das sociedades de classe, o trabalho somente se submeteu à exploração de uma minoria por total ausência de alternativa de sobrevivência, e mediante enorme violência física e moral. Do mesmo modo, verifica-se sempre presente nestas sociedades uma variedade de modos de resistência, ainda que muitas vezes se expressem por meios primitivos e espontaneístas. Mesmo que domesticadas sob violência ou ideologicamente fragilizadas nas sociedades mais desenvolvidas, a revolta e a resistência dos trabalhadores nunca deixaram de constituir parte fundamental da história, feita pela reação dos sujeitos na luta contra a exploração da ordem vigente.

Todavia, a tentativa de reagir à exploração nem sempre se revelou como uma alternativa social superadora. Por um lado, por muitas vezes se deu de forma local e explosiva, e por outro, por não contar com condições organizacionais e políticas suficientes para o enfrentamento da relação de dominação e exploração do trabalho exercida pelo capital, resultando, na maioria das vezes, em fracasso. Entretanto, é esta tradição de resistência e luta que tem proporcionado à classe trabalhadora, no confronto com o capital, a criação de meios e instrumentos inovadores de proteção contra a acentuação da exploração, e a necessidade de testar e adequar as formas de luta empreendidas, tendo por finalidade sua emancipação.

A relação capital-trabalho, base do modo de produção capitalista, gerou uma relação de dependência ineliminável entre as classes envolvidas. O que para Marx significa que “o intercâmbio entre o capital e o trabalho [...] tem que conduzir, sem cessar, à constante reprodução do operário como operário e do capitalista como capitalista” (MARX, 1978MARX, K. Salário, Preço e Lucro. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978., p. 83). Tal relação entre as classes não comporta nenhum tipo de convergência de interesses. Mesmo quando acordam entre si em quais condições se dará a exploração, é inevitável que os interesses do capital sejam predominantes, pois é a garantia do lucro (valor que se autorreproduz) que prevalece diante das necessidades sociais. Ocorre uma incompatibilidade estrutural entre interesses de classe que se opõem intransigentemente, antagonicamente. O capital avança em direção à acumulação crescente, restando ao trabalho o campo da ação defensiva - apenas a luta e a resistência em face das perdas inevitáveis.

Para ser capitalista, o sujeito tem de subordinar sob seu comando, para a realização de seus objetivos, um exército de homens que se vendem a um custo muito inferior à riqueza que produzem. Somente assim o capital, ao se apropriar deste excedente, se amplia e adquire força material e política para dominar a classe trabalhadora, utilizando o produto de sua própria atividade criativa e alienada a fim de dominá-la. A alienação a que se acha submetida a classe trabalhadora é sustentada na própria base material na qual se institui a exploração do trabalho. A dominação e a alienação do trabalho se tornam possíveis a partir da produção de valor por uma classe para o engrandecimento de outra; esta não contribui para a produção das condições materiais da existência social, mas se apropria de todo o excedente.

Essa base fundamental da exploração do trabalho, da relação capital-trabalho, da desigualdade econômica estrutural do sistema do capital, foi desafiada inúmeras vezes na história. Nunca é demais lembrar que a desigualdade social inerente a toda sociedade de classes subsistiu aos princípios da doutrina liberal da igualdade, liberdade e fraternidade, fundamentos da Revolução Francesa, os quais moveram multidões de trabalhadores a lutar por sua emancipação, acreditando que todos teriam um lugar equivalente na sociedade burguesa nascente. Não tardou muito para que o móvel fundamental daquela revolução fosse revelado no decorrer dos acontecimentos, impondo-se como o melhor meio, àquela altura, de reprodução social com a apropriação do produto do trabalho alheio pela burguesia, ao adquirir toda legalidade por meio do contrato social.

Em 1797, Gracus Babeuf, em seu Manifesto dos Iguais, conclamava o “Povo de França” a realizar a “última revolução”, pois constatava que a igualdade proposta pela revolução “nunca foi mais do que uma bela e estéril ficção da lei”. E após ter de ouvir da burguesia vitoriosa, que “A igualdade não é realmente mais do que uma quimera; contentai-vos com a igualdade relativa: todos sois iguais em face da lei. Que quereis mais, miseráveis?” Apenas começava a era capitalista, e seu Estado, na França, e ele já podia antever, apesar de sua noção utópica de justiça, que o real objetivo dos despossuídos deveria ser poder usufruir de modo equitativo do “bem comum, ou [da] comunidade de bens! Nós reclamamos, nós queremos desfrutar coletivamente dos frutos da terra: esses frutos pertencem a todos”. As novas classes que se estabeleciam já apontavam para a reprodução de uma nova forma de exploração, o que era assim percebido por Babeuf: “não poderemos permitir que a imensa maioria dos homens trabalhe e esteja a serviço e a mando de uma pequena minoria, [...] homens que são em tudo iguais a eles” (BABEUF, 1980BABEUF, G. Manifesto dos Iguais. In: BABEUF, G. et al. O Socialismo Pré-marxista. São Paulo: Global, 1980., p. 17-20).

Os novos proprietários privados, agora de capital extraído da “escravidão assalariada”, segundo Marx, teriam de ser desafiados para além da liberdade e igualdade formais. O predomínio da propriedade móvel e a desmistificação do direito divino, como avalizadores da sociedade do contrato social (LASKI, 1973LASKI, H. O Liberalismo Europeu. São Paulo: Mestre Jou, 1973.), conferem aos trabalhadores a possibilidade do questionamento da propriedade privada e do controle sobre a sociedade que ela autoriza.

A supressão da propriedade privada e a organização associativa da produção pelos próprios produtores aparecem como uma possibilidade, e uma necessidade, diante das desumanidades que a propriedade privada impõe para a promoção do desenvolvimento das forças produtivas e a expansão da riqueza social. Surge a ideia do que usualmente se denomina de autogestão.

A autogestão assume imensa importância histórica na era capitalista, por um lado, devido à concentração da propriedade privada e da riqueza, e, por outro, à socialização da produção e à aglomeração dos operários em grandes espaços fabris. Isso leva a que o antagonismo de classe e a alienação, instituídos pela relação capital-trabalho agora universal, provoquem ações de resistência da classe operária com maior teor de revolta e consciência, bem como ao surgimento de formas alternativas de propriedade comum dos meios de produção e do produto do trabalho. Essa tendência é estimulada periodicamente pelas crises inerentes ao modo de produção capitalista, deixando à mostra a incapacidade do capital, a despeito de todo o progresso material realizado, de atender às necessidades sociais de toda a sociedade, aprofundando crescentemente a desigualdade entre os homens, além de retirar de muitos a possibilidade de sobrevivência com o desemprego, condição posta por seus próprios e alienantes parâmetros autorreprodutivos.

As experiências de autogestão na história do capitalismo são as mais variadas e apresentam os resultados mais controversos, no sentido da acumulação de forças emancipatórias da classe trabalhadora. O conteúdo teórico e prático atribuído a este termo envolve significados que correspondem a um largo espectro político, tendo sido estimulado por tendências revolucionárias, social-democratas, democratas radicais e até mesmo por governos liberais. Muito além da discussão etimológica, o que nos interessa neste artigo é compreender quais concepções orientaram tais experiências no interior do capitalismo, numa perspectiva emancipatória do trabalho.

O movimento das fábricas ocupadas na América Latina, a partir dos anos 1990, colocou na ordem do dia a questão da autogestão, exigindo uma análise crítica de suas possibilidades endógenas de realização emancipatória, bem como em que medida este movimento pode ser articulado à luta de classe no enfrentamento da crise estrutural do capital; esta tem cobrado um alto preço da classe trabalhadora. Ademais, se mantidas as tendências predominantes da concentração do capital associada à produção destrutiva predominante no sistema do capital total, a própria humanidade terá colocada em risco sua própria existência.

Na literatura especializada, pode-se ver um enorme entusiasmo quanto ao crescimento do número de fábricas ocupadas nas últimas décadas e ao fato de estas constituírem uma possível alternativa do trabalho à crise estrutural do capital.

Parece ser uma avaliação no mínimo prematura, pois o ciclo do processo de recuperação destas empresas ainda não se completou a ponto de assegurar resultados duradouros e suficientes para a sua sobrevivência econômica no mercado capitalista. Ademais, os efeitos práticos da auto-organização dos trabalhadores ainda não avançaram ao ponto de se constatar a instituição de relações verdadeiramente não alienadas e autodeterminadas entre os sujeitos envolvidos.

Para que uma avaliação possa ser feita e se possa legar valiosas lições históricas do passado para a luta futura da classe trabalhadora pela conquista da plena emancipação, é necessário como ponto de partida verificar o que se denomina por autogestão, como se deu o desenvolvimento destas experiências na história, assim como identificar a capacidade adquirida para superar as contradições do sistema do capital que provocaram o surgimento delas no presente.

Antecedentes Históricos

A gênese da auto-organização dos homens para a satisfação das necessidades de sua existência social de forma cooperativa não se encontra na era capitalista. Apresenta-se desde os momentos mais primitivos na história da humanidade, tendo por base o trabalho cooperativo no que se passou a denominar de comunismo primitivo. Após a constituição das sociedades de classe, as experiências comunitárias de produção foram se dissolvendo e passaram a ocupar um espaço marginal nas sociedades sucedâneas.

Na Idade Média, aparecem traços revolucionários de espírito cooperativo representado pelo movimento rebelde dos hussitas (de Jan Hus, da Boêmia, no séc. XV) e dos anabatistas, sob a liderança do revolucionário Thomas Müntzer, que inspirou as primeiras revoltas camponesas igualitárias na Alemanha, no séc. XVI (GUILLERM; BOURDET, 1976GUILLERM, A.; BOURDET, Y. Autogestão: uma mudança radical. Rio de Janeiro: Zahar, 1976., p. 105). Movimentos marcadamente de influência religiosa, em que o móvel fundamental era o confronto com a opressão feudal e a carência do meio de produção vital à época: a posse da terra. Muito distante, portanto, daquelas condições históricas que dariam origem ao movimento de autogestão da era industrial.

É com a Revolução Francesa, na 1ª República, que se podem identificar os primeiros “embriões da autogestão”, por volta de 1793. Segundo Daniel Guérin, ainda assim, os indícios são muito tênues, devido à industrialização incipiente, apesar de serem contabilizadas 48 seções somente em Paris. Fizeram-se presentes através de formas de poder popular (dos “braços nus”) que reivindicavam a autonomia operária e a constituição do poder comunal. No ano seguinte, 1794, havia 3 mil “sociedades populares”, tendo sido identificadas por Daniel Guérin experiências na alfaiataria militar, que constituíam” pequenas lojas descentralizadas, dirigidas pela Assembleia Geral dos Operários e que funcionavam em benefício apenas dos operários” (GUÉRIN1 1 Guérin, em sua obra La Lutte de classes sous la première République. (Paris: Gallimard, 1968). apud GUILLERM; BOURDET, 1976GUILLERM, A.; BOURDET, Y. Autogestão: uma mudança radical. Rio de Janeiro: Zahar, 1976., p. 106-109). Em outros casos, como na produção de salitre e nitrato de potássio, trabalhavam com “a exclusão de todo e qualquer lucro. Com efeito, os produtos da venda, uma vez pagos os salários, eram encaminhados a obras de caridade”. Na avaliação de Guillerm e Bourdet, estes casos não chegaram a atuar na administração comum do excedente, portanto, não exercitaram as tarefas comuns à autogestão (GUILLERM; BOURDET, 1976, p. 106-109).

Pode-se observar muito mais uma preocupação com a produção e a repartição igualitárias, que uma preocupação com a autonomia operária, uma vez que a necessidade da acumulação do capital e a presença de uma autoridade exterior à atividade produtiva ainda não se haviam imposto de maneira definitiva.

Segundo Mandel, a afirmação de Daniel Guérin (em L’Anarchisme. Paris: Gallimard, 1965) apontando Proudhon como o “pai da idéia de autogestão” é equivocada. Diz ainda Mandel que “Owen e seus discípulos haviam desenvolvido esta ideia muito antes que Proudhon e não cremos que tenham sido os primeiros” (MANDEL2, 1974MANDEL, E. Control obrero, consejos obreros, autogestión. México: Era, 1974., p. 9). Robert Owen iniciou, nos primeiros anos do séc. XIX (por volta de 1801), uma experiência cooperativista que antecipou muitas das conquistas sociais dos trabalhadores3 3 Marx faz uma irônica referência aos liberais que se contrapõem às leis sociais. Diz, em O Capital (livro I, tomo 1), “Quando Robert Owen, logo depois do primeiro decênio deste século, não só defendeu teoricamente a necessidade de uma limitação da jornada de trabalho, mas também introduziu realmente a jornada de 10 horas em sua fábrica em New Lanark, isso foi ridicularizado como utopia comunista, assim como a sua ‘união de trabalho produtivo com a educação de crianças’, como também as empresas cooperativas dos trabalhadores, fundadas por ele. Hoje em dia, a primeira utopia é Lei Fabril, a segunda figura como frase oficial em todas as Factory Acts e a terceira já serve até como manto de cobertura para embustes reacionários”. (MARX, 1983, p. 239). , só implantadas alguns anos depois, como a redução da jornada de trabalho. Proudhon vai dar corpo a suas ideias cooperativistas após a Revolução de 1848.

Outras experiências são citadas por Mandel, no início do séc. XIX, como os operários ingleses do tabaco, em 1819, estudados por E. P. Thompson, em seu famoso livro sobre a classe operária inglesa, e, em

1833, Les Sastres Franceses. Alerta Mandel que não devem ser os primeiros, como também confirmam alguns outros autores. Estes antecedentes históricos o levam a afirmar que a ideia de “autogestão pode ter uma origem pré-capitalista e corporativista” (MANDEL, 1974MANDEL, E. Control obrero, consejos obreros, autogestión. México: Era, 1974., p. 9).

Rubel4 (1982RUBEL, M. Karl Marx. Oeuvres III: Philosophie. Paris: Gallimard, 1982., p. LXXXVII) faz referência à primeira brochura de caráter libertário, com 15 páginas, sob o título de “Grand National Holiday and Congress of the Productive Classes”, publicado em Londres, em 1832, de autoria de William Benbow, membro de organização fundada pelos discípulos de Owen, em que se encontra “uma verdadeira declaração de guerra em nome dos ‘produtores’ contra a classe minoritária que ‘não cria nada e possui tudo’.” Segundo Rubel, este primeiro documento que defende a “autolibertação das ‘classes produtoras’” é precioso porque

contém o germe de uma teoria dos conselhos operários suscetível de ajudar a reflexão que se nutre hoje das variadas experiências ao longo dos 130 anos decorridos depois da criação da Société dês Pionniers de Rochdale (1844). A cooperação operária pode ser considerada como o primeiro modelo desta práxis econômica que, com o movimento político dirigido pelos cartistas, marcará a vontade de emancipação total da classe operária.” (RUBEL, 1982RUBEL, M. Karl Marx. Oeuvres III: Philosophie. Paris: Gallimard, 1982., p. XCIII).

Na segunda metade do séc. XIX, a Comuna de Paris coloca em prática, de forma abrangente e definitiva, a capacidade da classe operária de operar o autogoverno dos produtores na esfera da produção das condições de existência material, associada à tomada do poder político. Segundo o conhecido estudo de Marx sobre a experiência da Comuna de Paris - A Guerra Civil em França - (MARX apud MANDEL, 1974MANDEL, E. Control obrero, consejos obreros, autogestión. México: Era, 1974., p. 54) o regime comunal instituído “pretendia abolir essa propriedade de classe que converte o trabalho de muitos na riqueza de uns poucos” e “converter a propriedade individual [...] em simples instrumentos de trabalho livre e associado”. Para Marx, a Comuna era a expressão concreta da “ditadura do proletariado”, em que tomou forma uma “corporação de trabalho, executiva e legislativa ao mesmo tempo” (MARX apud MANDEL, 1974, p. 52).

Assim,

a Comuna era essencialmente, um governo da classe operária, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política por fim descoberta para levar a cabo dentro dela a emancipação econômica do trabalho. Sem esta última condição, o regime comunal havia sido uma impossibilidade e uma impostura. (MARX apud MANDEL, 1974MANDEL, E. Control obrero, consejos obreros, autogestión. México: Era, 1974., p. 53-54).

Pela primeira vez na história, como um ato comum e consciente da classe operária organizada sob o regime comunal, em Paris, se inicia uma ação organizada de tomada de fábricas e de sua reativação em sociedades cooperativas. Não se pôde ir muito além no desenvolvimento desta original experiência de construção do autogoverno operário, uma vez que foi violentamente destruída depois de apenas pouco mais de uma centena de dias. Nem mesmo se pôde enfrentar os inúmeros problemas, e insuficiências, de concepção e organização revolucionárias que deram base a essa experiência. No entanto, a Comuna é até hoje a referência fundamental para se tirar as lições dos acertos e as razões que levaram a seu fracasso em tão curto espaço de tempo.

A Comuna de Paris constitui uma inflexão histórica marcante no que se refere ao debate sobre a autogestão e o autogoverno dos trabalhadores. Por um lado, supera de forma inquestionável os limites das teorias utópicas de comunidades cooperativas, e por outro, proporciona, com seu fracasso, um crescimento da influência teórica e política dos princípios anarquistas no interior do movimento operário internacional. Tal crescimento não significa o avanço concreto dos anarquistas no fortalecimento da luta de classes, mas exige certa atenção de Marx e Engels, e os força a travar um debate duro e mordaz com um de seus representantes mais ilustres no séc. XIX, Bakunin.

Marx ao criticar Bakunin o acusa de ignorar as condições econômicas da revolução social e a necessidade de o proletariado enfrentar o domínio político exercido pelo Estado da burguesia, com todos os meios disponíveis. Referindo-se a Bakunin, Marx afirma que a “base de sua revolução social é a vontade e não as condições econômicas” (MARX, 1976MARX, K. Acotaciones al Libro de Bakunin ‘El Estado y La Anarquia’. In: MARX, C.; ENGELS, F.; LÊNIN, V. I. Acerca del Anarquismo y el Anarcosindicalismo. Moscú: Progreso, 1976., p. 134).

Para Marx

o proletariado enquanto luta por derrocar a velha sociedade, todavia atua sobre a base desta velha sociedade, e portanto se move ainda sob formas políticas até certo ponto próprias dela, durante este período de luta não adquiriu ainda sua organização definitiva e aplica para sua emancipação medidas que depois desta não tem aplicação; de onde o Sr. Bakunin infere que ao proletariado lhe valia mais não fazer nada e ...esperar o dia da liquidação geral! (MARX, 1976MARX, K. Acotaciones al Libro de Bakunin ‘El Estado y La Anarquia’. In: MARX, C.; ENGELS, F.; LÊNIN, V. I. Acerca del Anarquismo y el Anarcosindicalismo. Moscú: Progreso, 1976., p. 137).

Engels não poupa críticas aos anarquistas sob a influência de Bakunin, no desenrolar da crise da Primeira Internacional, após a derrota da Comuna de Paris e a desagregação provocada pelos anarquistas com a fundação da Aliança da Democracia Socialista, em Genebra. Numa carta a Max Hildebrand, em 1889, afirma que a “anarquia inofensiva, puramente etimológica (isto é, ausência de poder de Estado), de Proudhon jamais havia conduzido às doutrinas atuais do anarquismo se Bakunin não houvesse insuflado nela uma boa parte da ‘rebelião’ stirneriana” (MARX, 1976MARX, K. Acotaciones al Libro de Bakunin ‘El Estado y La Anarquia’. In: MARX, C.; ENGELS, F.; LÊNIN, V. I. Acerca del Anarquismo y el Anarcosindicalismo. Moscú: Progreso, 1976., p. 167). Do mesmo modo, Marx se refere à doutrina de Bakunin como uma somatória de Proudhon, Saint Simon e outros. Ainda pior que Proudhon, para Marx, Bakunin

é absolutamente ignorante em economia política. [...] É contrário a toda ação política da classe operária, porquanto essa ação significaria reconhecer de fato o Estado existente e, ademais, porque todos os atos políticos são, em sua opinião, ‘autoritários’. Não explica de que modo espera que sejam destruídas a presente opressão política e a tirania do capital, nem como intenta levar adiante sem ‘atos de autoridade’ sua ideia favorita da abolição da herança. (MARX, 1976MARX, K. Acotaciones al Libro de Bakunin ‘El Estado y La Anarquia’. In: MARX, C.; ENGELS, F.; LÊNIN, V. I. Acerca del Anarquismo y el Anarcosindicalismo. Moscú: Progreso, 1976., p. 36, 27).

A corrente coletivista anarquista bakuninista teve grande influência nas experiências autogestionárias da Espanha revolucionária, nos anos 1930. A penetração do anarquismo na Espanha se dá através da atuação da seção espanhola da Primeira Internacional, cuja influência era constantemente combatida pelos comunistas partidários de Marx e Engels. Em 1868, no Congresso de Bruxelas, define-se a posição a respeito da luta contra a propriedade privada; prevalece a posição dos coletivistas, que passam a ser reconhecidos como “os partidários da propriedade coletiva, isto é: não individual, não capitalista, e a palavra englobava tanto os marxistas como os bakuninistas” (MINTZ5,1977MINTZ, F. La Autogestion en la España Revolucionária. Madrid: Las Ediciones de La Piqueta, 1977., p. 24).

O debate sobre o significado de “coletivistas” progride dentro das correntes anarquistas, pois se divergia quanto à forma de repartição do produto do trabalho: se o trabalhador o receberia de forma integral ou se seria “propriedade coletiva e estar[ia] à disposição de todos segundo a medida das necessidades” (MINTZ, 1977MINTZ, F. La Autogestion en la España Revolucionária. Madrid: Las Ediciones de La Piqueta, 1977., p. 24). Deste debate, surge em 1876, o termo “comunismo anarquista”, que corresponde aos socialistas antiautoritários. Ocorre ainda, em 1892, uma outra designação dos anarquistas. Como resposta às leis antianarquistas na França, Sebastián Faure passa a utilizar a palavra “libertário”. (MINTZ, 1977, p. 25).

Os anarquistas estarão, a partir do final do séc. XIX, diretamente envolvidos com a autogestão, nas suas mais variadas concepções e experimentos históricos, sempre distinta da concepção dos marxistas e, posteriormente, dos bolcheviques nas duas fases da revolução russa (1905 e 1917), no início do séc. XX.

A Revolução de 1905 vai inaugurar a primeira ação política de massas a partir da organização de sovietes - conselhos operários, em São Petersburgo, que, depois, reaparece na Revolução de 1917. Esse fenômeno do movimento operário revolucionário russo vai influenciar a história de outros eventos revolucionários na Europa Ocidental, nas primeiras décadas do século XX, provocando o surgimento de conselhos (sovietes) também na Alemanha, Hungria, Áustria, Iugoslávia, e depois na Itália, com as comissões e conselhos de fábricas de Turim, e finalmente, na Espanha, em 1937, no calor da revolução espanhola.

As derrotas revolucionárias vividas pelo movimento operário internacional, na Alemanha e Itália (anos 1910-1920), Espanha e França (anos 1930), Hungria (anos 1950) e Tchecoslováquia (anos 1970), jamais deixaram de estar acompanhadas por tentativas de instituição de um poder operário autônomo, apesar de muitas das experiências terem se confrontado diretamente com o novo poder do Estado soviético e, em muitas ocasiões, serem antagonizadas pelos Partidos Comunistas a ele associados.

Um dos principais danos à autonomia pretendida, identificada neste período, foi o crescimento da burocratização nos conselhos e sua subordinação ao Estado, ao Partido, ou ao sindicato, perdendo muito de sua vitalidade revolucionária naqueles momentos em que ameaçou romper com a ordem do capital nas sociedades capitalistas, ou nas pós-capitalistas6 6 Termo atribuído por Mészáros (2002) às tentativas fracassadas de construção de uma alternativa socialista ao capitalismo, tendo como expressão mais representativa “o socialismo em um só país”, que vigorou na União Soviética até o princípio dos anos 1990, no séc. XX. .

A crise estrutural do capital que abalou a relação capital-trabalho, e a retirou de uma aparente estabilidade política em razão do crescimento econômico grandioso do pósguerra, fez reativar a rebeldia operária. A questão da autogestão volta a surgir dentro das fábricas na França em 1968, levantando uma onda de protestos nos demais países da Europa e no resto do mundo desenvolvido.

A luta pela legislação social e por uma repartição mais justa já havia realizado seus objetivos admissíveis pelo capitalismo da fase de crescimento e beneficiado uma parcela da classe operária dos países avançados. Mas não durou

muito tempo, nem pôde ser ampliada ao restante da classe trabalhadora mundial, ainda que os trabalhadores das economias periféricas tenham colaborado com a transferência da mais-valia necessária para assegurar os ganhos de parte dos trabalhadores daqueles países. A necessidade de ajustamento na produção e nas relações do trabalho, visando à recuperação da lucratividade do sistema do capital ameaçada e ao esgotamento da capacidade de manter os benefícios sociais concedidos em razão da crise insanável, provocaram, por um lado, a acentuação da taxa de exploração da classe trabalhadora mundial, e por outro, passou a desempregar a classe trabalhadora da era do “pleno emprego”, sem esperança de retorno à ocupação, como resultado da inovação tecnológica requerida para o aumento da produtividade.

Nas últimas décadas do séc. XX, Mandel assinala que “o eixo da luta de classes deslocou-se progressivamente em outra direção, não devido à agitação ou conspiração maligna dos marxistas, senão devido à evolução do próprio modo de produção capitalista”. O capital “já não pode permitir-se o luxo de presenciar passivamente as catastróficas crises de superprodução”. (MANDEL, 1974MANDEL, E. Control obrero, consejos obreros, autogestión. México: Era, 1974., p. 21) A relação capital-trabalho não pode mais admitir flexibilidade e apaziguamentos do antagonismo de classe através dos meios que antes preferiu utilizar, como a negociação, tendo por base a conciliação de classe por via parlamentar e sindical. A intervenção corretiva, visando alterar as condições nocivas de crise estrutural, através do envolvimento do trabalhador pelas “técnicas de relações humanas”, de “delegação de poderes” e de “formação de redes de comercialização informais” não é suficiente para, segundo Mandel, “ocultar o fato de que as relações capitaltrabalho são relações hierarquizadas em extremo, relações entre os que mandam e os que obedecem”. (MANDEL, 1974, p. 22).

A questão do controle operário sobre a existência social volta à ordem do dia, também porque, segundo Mészáros, a incapacidade do sistema do capital de solucionar suas crises e contradições de forma duradora vem se acentuando. Isso se revela quando “a situação se modifica radicalmente”, depois do período de crescimento das décadas posteriores à Segunda Grande Guerra, em razão da

crise estrutural, quando então o capital não está mais em posição de fazer concessões que possam, simultaneamente, transformar-se em vantagens para si próprio. Em tais momentos o confronto social se refere à questão do controle em si, e não meramente à participação relativa no produto social total que caberá às classes em luta. (MÉSZÁROS, 2002MÉSZÁROS, I. Para além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2002., p. 681).

Essa orientação no sentido de se questionar o controle do capital no interior das fábricas aparece nos anos 70 mediante algumas manifestações, como as citadas por Mandel, em Milão, na Pirelli, quando os “trabalhadores modificaram unilateralmente as cadências de produção”, ou em Turim, na Fiat, quando tentaram “impedir a modificação de tipos de produção por parte dos patrões”, visando a “substituição de carros populares por carros de luxo”. O foco da luta de classes se volta para os “problemas da organização do trabalho e da produção, isto é, aos problemas das relações de produção capitalistas mesmas” (MANDEL, 1974MANDEL, E. Control obrero, consejos obreros, autogestión. México: Era, 1974., p. 22).

A aceitação de tais interferências da classe operária dá-se como resultado do acirramento da pressão da classe operária e da necessidade de reverter a queda da produtividade, fruto do esgotamento do regime taylorista de produção típico do período de ascendência do capital. Há uma tendência dos patrões a favorecer o “enriquecimento das tarefas”, com a “direção participativa por objetivos”, a “educação da sensibilidade” e a “formação de grupos de encontro”, entre outras medidas de envolvimento dos trabalhadores na busca de aumento da lucratividade, numa situação de crise iminente. Não se trata, no entanto, conforme afirmam Guillerm e Bourdet (1976GUILLERM, A.; BOURDET, Y. Autogestão: uma mudança radical. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.), de “reivindicações autogestionárias” da classe operária, senão de uma “ofensiva patronal”. A “recusa do trabalho”, onde se fez presente, não exprime um caráter coletivo, “mas [...] uma revolta ou lassitude individual”. Contraria, a noção de autogestão, enquanto uma atividade coletiva e autônoma do proletariado (GUILLERM; BOURDET, 1976GUILLERM, A.; BOURDET, Y. Autogestão: uma mudança radical. Rio de Janeiro: Zahar, 1976., p. 173-174, 189).

Da mesma forma, para Mandel, os setores mais inteligentes da burguesia compreendem que esta rebeldia pode juntar-se à propaganda a favor do controle operário, e, neste sentido, procuram “canalizar e desviar esta rebeldia (com a ajuda dos aparatos sindicais) até a colaboração e a não impugnação de classe”. Daí decorrem as ideias de “participação” e “cogestão”, muito diferente do que exige um autêntico controle operário (MANDEL, 1974MANDEL, E. Control obrero, consejos obreros, autogestión. México: Era, 1974., p. 23).

Os efeitos dessa estratégia do capital serão sentidos no longo prazo, pois é sustentada pelo prolongamento da crise estrutural, exigindo cada vez mais sacrifício da classe operária, além de perdas consideráveis para aqueles que conseguem se manter empregados. Se alguns destes movimentos no interior da fábrica criaram possibilidade de uma certa pacificação dos conflitos, não se pode negar que parte dos efeitos da crise foi transferida para aqueles que se tornaram supérfluos pela produção capitalista e sofrem com o desemprego crônico, que provoca a fragmentação e a divisão da classe operária.

É nos anos 70 que a questão da autogestão e de outras formas de participação na produção mobiliza inúmeros estudiosos. Observa uma profusão de textos e pesquisas das mais variadas orientações teórico-ideológicas daquilo que se passou a conhecer como reestruturação produtiva, como parte da ofensiva restauradora da produtividade proposta pelo modelo toyotista. A relação capital-trabalho passava por ajustes profundos no sentido da renovação das formas de exploração mais adequadas às necessidades de recuperação da lucratividade perdida, com o esgotamento do sistema fordista-taylorista da produção em massa e do consumo de massa.

Quais os resultados deste intenso movimento, do ponto de vista da classe trabalhadora? Muita confusão teórica, alguma euforia autonomista, sem que resultasse nem mesmo numa mínima barreira à exploração do trabalho, que seguia seu curso inexorável. Viu-se o fortalecimento e a renovação dos meios de dominação e exploração pelos proprietários capitalistas, ainda que dissimulados pela “participação” operária, e pouco se avançou na luta concreta pela autonomia operária.

A última onda

Uma nova onda do movimento a favor da autogestão e do controle operário vai se notar, não mais centrada nas experiências europeias que predominaram nas décadas anteriores, mas agora na periferia do mundo capitalista - na América latina, a partir dos anos 90. Produto da crise estrutural e das medidas neoliberais que provocaram a concentração abrupta do capital e o consequente desemprego em massa, como efeito do fechamento de fábricas, a classe operária utiliza-se de uma “estratégia defensiva”, “quase desesperada”, e passa a tomar as fábricas e demais locais de trabalho (FAJN, 2004FAJN, G. “Fábricas Recuperadas: La organización em cuestión”, 2004. Disponível em: http://www.workerscontrol.net/system/files/ docs/fajn.pdf. Acesso em: 10 set. 2019.
http://www.workerscontrol.net/system/fil...
, p. 4).

Na Argentina, este processo já vinha sendo sentido no final dos anos 90, mas somente com a crise de 2001 é que se pode notar um ressurgimento do debate e de experiências autogestionárias com a ocupação e a recuperação de fábricas pelos trabalhadores. A “fábrica volta a ser, depois de muito tempo, o território da disputa social.” (FAJN, 2004FAJN, G. “Fábricas Recuperadas: La organización em cuestión”, 2004. Disponível em: http://www.workerscontrol.net/system/files/ docs/fajn.pdf. Acesso em: 10 set. 2019.
http://www.workerscontrol.net/system/fil...
, p. 2-4) Neste período contabilizam-se perto de 5 mil fábricas quebradas, havendo, até 2003, pouco menos de 200 empresas recuperadas.

Na Venezuela, o movimento de fábricas recuperadas se constituiu com uma forte presença do Estado, cujo interesse é promover, segundo Novaes e Lima Filho (2006NOVAES, H. T.; LIMA FILHO, P. A. A Filosofia da Política cooperativista na Venezuela de Hugo Chavez: lições preliminares, 2006. Disponível em: https://fbes.org.br/page/2/?s=henrique+novaes. Acesso em: 25 jul. 2019.
https://fbes.org.br/page/2/?s=henrique+n...
, p. 1, 3), um “desenvolvimento endógeno” (“‘desde dentro, por dentro’, sob as premissas da economia popular, centrada na equidade, na solidariedade e na cooperação”) com vistas a atribuir um caráter popular e coletivo ao capitalismo. Atendendo a um chamado do ministro da Economia Popular, conforme entrevista por ele dada à Agência Carta Maior (2005), cerca de um milhão de pessoas se dispuseram a participar de um processo de capacitação profissional com a intenção de se inserir em uma atividade produtiva. Afirmam Novaes e Lima Filho (2006, p. 3) que das “6.840 cooperativas formadas, quase 6 mil receberam financiamento do governo, a maioria delas funcionando no campo”.

Neste país, o movimento de ocupação de fábricas apresenta-se com características muito particulares, pois poucas fábricas fecham. A iniciativa para a criação de cooperativas fabris parte do Estado, estimulando a cogestão, havendo casos em que o Estado é o parceiro majoritário na cooperativa dos trabalhadores. Instituiu-se um modelo de “estatização sob controle operário”, com todas as contradições que esta combinação perigosa acarreta à construção da autonomia operária, tendo em vista a longa história dos sovietes na experiência soviética.7 7 Ver mais sobre a experiência soviética, e a contundente crítica de Mészáros, em Paniago (2017).

A crise do capital sentida na parte sul da América, a partir dos anos 90, mesmo tendo se desenvolvido de forma distinta no Brasil, na Argentina e no Uruguai, apresenta alguns traços comuns quando se analisam os processos da penetração do capital financeiro no conjunto das atividades econômicas e políticas, o condicionamento do desenvolvimento da indústria aos interesses das grandes transnacionais em franco processo de concentração de capital e as transformações no processo e nas relações de trabalho, fruto das inovações tecnológicas e do crescente desemprego estrutural. A recuperação de fábricas, seja motivada por falência real, seja fraudulenta, como se constatou em diversos casos na Argentina, teve um maior impulso logo no início do processo de ajuste neoliberal, arrefecendo em seguida. O número resultante deste processo é bastante reduzido, uma vez que, de acordo com Novaes (2007NOVAES, H. T. De tsunami a marola: uma breve história das fábricas recuperadas na América Latina. Lutas & Resistências, Londrina, n. 2, p. 84-97, 1º sem. 2007., p. 90), no Brasil há cerca de 160, na Argentina, 160 (para Fajn, são 176) e no Uruguai, apenas 14 fábricas recuperadas8 8 Os dados referem-se a “um balanço do que aconteceu com as Fábricas Recuperadas (FRs) na Argentina, Brasil e Uruguai nas últimas duas décadas”, a partir dos anos 1990, realizado pelo autor (NOVAES, 2007, p. 84). .

Estas experiências ocorrem em situações muito distantes das situações revolucionárias que estimularam as experiências mais significativas do passado. No geral, muito mais que confrontarem a ditadura exercida pelo capital sobre suas vidas, apenas se mobilizam com o objetivo de construírem alternativas emergenciais ao desemprego. Ainda de acordo com Novaes (2007NOVAES, H. T. De tsunami a marola: uma breve história das fábricas recuperadas na América Latina. Lutas & Resistências, Londrina, n. 2, p. 84-97, 1º sem. 2007., p. 91-92), trata-se, por enquanto, segundo opinião dos próprios trabalhadores envolvidos, de “uma experiência de contenção social” “ luta pelo emprego e resistência à perda de direitos. O que acaba por tornar-se apenas um meio de “contenção do desemprego em massa” e de “diminuição das tensões sociais”, sem nenhuma conotação revolucionária ou socialista. Do ponto de vista da ordem capitalista, para este autor, “pode acabar se tornando uma via de controle social dos miseráveis, onde a classe dominante mantém o domínio dos setores chave da economia”. Novaes conclui, depois de um estudo sobre o movimento de fábricas recuperadas na América Latina (por cerca de 10 anos), que se viu o “tsunami” inicial transformar-se em uma “marola” abafada pelo oceano capitalista.9 9 Novaes (2007, p. 95) faz referência especial à Zanón, na Argentina, por seu papel de “Fábrica-Estado” ao cumprir uma função social para além dos muros da fábrica, e ajudar a comunidade construindo hospitais, escolas, etc., além de aumentar “a doação de cerâmica para o povo da cidade” de Neuquén. No entanto, trata-se de uma experiência isolada, sustentada por uma estreita coesão entre trabalhadores, com uma visão mais à esquerda sobre o controle operário, e a comunidade da região, que os apoiou nos confrontos radicais com o Estado desde o início.

Com exceção da Venezuela, onde continua em andamento o processo de fábricas cogestionadas entre trabalhadores e Estado, com tudo que isso implica, seja na dependência gerada na relação com os trabalhadores, seja na burocratização10 10 Em uma pesquisa sobre a experiência venezuelana de “regime comunal conselhista” propagado em todo o país, Harnecker (2008, p. 61) reproduz a opinião de um importante líder comunitário sobre o aparato jurídico-legal do Estado capitalista, que dá base à administração “autônoma” das comunidades - as unidades comunais: “Entre as condições legais que favoreceriam enormemente a aplicação exitosa desta experiência piloto estaria a criação de um regime de exceção legal que nos permitisse poder tomar todas as iniciativas necessárias para levar adiante esta experiência, sem vernos bloqueados por uma série de travas burocráticas que provém do velho estado herdado”. Do mesmo modo se refere aos recursos estatais: “Na lentidão do processo, transcorre muito tempo entre o momento em que chegam os recursos ao município até que comecem a executar uma obra. Esse é um drama para nós. Demasiados passos intermediários, demasiada complicação. Chega um recurso hoje, e por muito que se queira agilizar e simplificar as coisas, ao menos dois meses se passa para que se execute”. que toda relação institucional acarreta, bem como na perda de autonomia e de poder de decisão dos trabalhadores, que têm de executar planos que vêm de “cima”.

Pretendemos aqui, com estas notas sobre os antecedentes históricos das experiências de luta pela autonomia operária, apenas delinear uma linha de continuidade entre os momentos mais iniciais de reação organizada do trabalho contra o capital e as mais recentes experiências de autogestão. Muitos caminhos poderiam ser seguidos, e mesmo outros aspectos analíticos e críticos destas experiências poderiam ter sido destacados. No entanto, visamos indicar alguns exemplos mais significativos na história da luta dos trabalhadores em defesa da autonomia operária para dirimir um pseudoineditismo atribuído às experiências mais recentes, como também para colocar em relevo a permanência de antigos problemas políticos, teóricos e organizacionais que tais experiências de autogestão reproduzem, pois não encontram formas novas de superá-los.

Achamo-nos inseridos na era do capital. O que, se visto do ponto de vista de classe com a exploração ininterrupta e crescente do trabalho, dispensa quaisquer adjetivos. A dominação do capital continuamente se renova, aprofundando suas contradições e desumanidades. A luta pela emancipação do trabalho exige igual ou maior esforço para que se obtenha algum êxito. Sem dúvida, o desenvolvimento capitalista passa por fases diversas na história e atualiza constantemente os meios de dominação e exploração sobre o trabalho. Ao trabalho cabe a responsabilidade de aprender com as lições do passado e avançar na reorientação das alternativas, estratégias e meios para um confronto eficaz contra o capital. Não podemos ingenuamente apenas repor o mesmo em termos das lutas presentes, ou herdar as influências do pensamento revolucionário sem qualquer atitude crítica e autocrítica quanto aos erros, e acertos, do movimento operário internacional. Esse é nosso atual e inescapável desafio histórico.

Agradecimentos

À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e, em especial, ao Programa de pós-graduação em Serviço Social, onde realizei a pesquisa de pós-doutorado que subsidiou este artigo, sob a supervisão da profª doutora Raquel Raichelis. Como também ao apoio financeiro parcial da CAPES, através do Procad 95/2007-2013.

Referências

  • BABEUF, G. Manifesto dos Iguais. In: BABEUF, G. et al. O Socialismo Pré-marxista. São Paulo: Global, 1980.
  • ENGELS, F. Engels a Max Hildebrand. In: MARX, C.; ENGELS, F.; LÊNIN, V. I. Acerca del Anarquismo y el Anarcosindicalismo. Moscú: Progreso, 1976.
  • FAJN, G. “Fábricas Recuperadas: La organización em cuestión”, 2004. Disponível em: http://www.workerscontrol.net/system/files/ docs/fajn.pdf Acesso em: 10 set. 2019.
    » http://www.workerscontrol.net/system/files/ docs/fajn.pdf
  • GUILLERM, A.; BOURDET, Y. Autogestão: uma mudança radical. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
  • HARNECKER, M. Transfiriendo poder a la gente. Caracas: Monte Ávila, 2008.
  • LASKI, H. O Liberalismo Europeu. São Paulo: Mestre Jou, 1973.
  • MANDEL, E. Control obrero, consejos obreros, autogestión. México: Era, 1974.
  • MARX, K. Salário, Preço e Lucro. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
  • MARX, K. Acotaciones al Libro de Bakunin ‘El Estado y La Anarquia’. In: MARX, C.; ENGELS, F.; LÊNIN, V. I. Acerca del Anarquismo y el Anarcosindicalismo. Moscú: Progreso, 1976.
  • MÉSZÁROS, I. Para além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2002.
  • MINTZ, F. La Autogestion en la España Revolucionária. Madrid: Las Ediciones de La Piqueta, 1977.
  • NOVAES, H. T. De tsunami a marola: uma breve história das fábricas recuperadas na América Latina. Lutas & Resistências, Londrina, n. 2, p. 84-97, 1º sem. 2007.
  • NOVAES, H. T.; LIMA FILHO, P. A. A Filosofia da Política cooperativista na Venezuela de Hugo Chavez: lições preliminares, 2006. Disponível em: https://fbes.org.br/page/2/?s=henrique+novaes Acesso em: 25 jul. 2019.
    » https://fbes.org.br/page/2/?s=henrique+novaes
  • PANIAGO, M. C. S. (org.). Mészáros e a crítica à experiência soviética. São Paulo: Instituto Lukács, 2017.
  • RUBEL, M. Karl Marx. Oeuvres III: Philosophie. Paris: Gallimard, 1982.

Notas

  • 1
    Guérin, em sua obra La Lutte de classes sous la première République. (Paris: Gallimard, 1968).
  • 2
    Todas as passagens utilizadas de Mandel (1974) correspondem a traduções nossas.
  • 3
    Marx faz uma irônica referência aos liberais que se contrapõem às leis sociais. Diz, em O Capital (livro I, tomo 1), “Quando Robert Owen, logo depois do primeiro decênio deste século, não só defendeu teoricamente a necessidade de uma limitação da jornada de trabalho, mas também introduziu realmente a jornada de 10 horas em sua fábrica em New Lanark, isso foi ridicularizado como utopia comunista, assim como a sua ‘união de trabalho produtivo com a educação de crianças’, como também as empresas cooperativas dos trabalhadores, fundadas por ele. Hoje em dia, a primeira utopia é Lei Fabril, a segunda figura como frase oficial em todas as Factory Acts e a terceira já serve até como manto de cobertura para embustes reacionários”. (MARX, 1983, p. 239).
  • 4
    As passagens de Rubel utilizadas no texto são traduções nossas.
  • 5
    As referências a Mintz (1977) utilizadas no texto são traduções nossas.
  • 6
    Termo atribuído por Mészáros (2002) às tentativas fracassadas de construção de uma alternativa socialista ao capitalismo, tendo como expressão mais representativa “o socialismo em um só país”, que vigorou na União Soviética até o princípio dos anos 1990, no séc. XX.
  • 7
    Ver mais sobre a experiência soviética, e a contundente crítica de Mészáros, em Paniago (2017).
  • 8
    Os dados referem-se a “um balanço do que aconteceu com as Fábricas Recuperadas (FRs) na Argentina, Brasil e Uruguai nas últimas duas décadas”, a partir dos anos 1990, realizado pelo autor (NOVAES, 2007, p. 84).
  • 9
    Novaes (2007, p. 95) faz referência especial à Zanón, na Argentina, por seu papel de “Fábrica-Estado” ao cumprir uma função social para além dos muros da fábrica, e ajudar a comunidade construindo hospitais, escolas, etc., além de aumentar “a doação de cerâmica para o povo da cidade” de Neuquén. No entanto, trata-se de uma experiência isolada, sustentada por uma estreita coesão entre trabalhadores, com uma visão mais à esquerda sobre o controle operário, e a comunidade da região, que os apoiou nos confrontos radicais com o Estado desde o início.
  • 10
    Em uma pesquisa sobre a experiência venezuelana de “regime comunal conselhista” propagado em todo o país, Harnecker (2008, p. 61) reproduz a opinião de um importante líder comunitário sobre o aparato jurídico-legal do Estado capitalista, que dá base à administração “autônoma” das comunidades - as unidades comunais: “Entre as condições legais que favoreceriam enormemente a aplicação exitosa desta experiência piloto estaria a criação de um regime de exceção legal que nos permitisse poder tomar todas as iniciativas necessárias para levar adiante esta experiência, sem vernos bloqueados por uma série de travas burocráticas que provém do velho estado herdado”. Do mesmo modo se refere aos recursos estatais: “Na lentidão do processo, transcorre muito tempo entre o momento em que chegam os recursos ao município até que comecem a executar uma obra. Esse é um drama para nós. Demasiados passos intermediários, demasiada complicação. Chega um recurso hoje, e por muito que se queira agilizar e simplificar as coisas, ao menos dois meses se passa para que se execute”.
  • Agência financiadora

    CAPES - apoio financeiro de 3 meses com recursos do Procad 95/2007-2013.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação

    Não se aplica.
  • Consentimento para publicação

    Consentimento da autora.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2019
  • Aceito
    11 Fev 2020
  • Revisado
    01 Abr 2020
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