Acessibilidade / Reportar erro

Direito à comunicação e cidadania: o processo democrático no centro do debate

Right to communication and citizenship: the democratic process at the center of the debate

Resumo:

O presente artigo investiga a relação, nem sempre explícita, entre o poder e o exercício do direito à comunicação, indicando pontos de convergência e de divergência para contextualizar o cenário de midiatização. A partir de uma revisão teórica interdisciplinar sobre as características da comunicação social na atualidade, em diálogo com os elementos de fundo da sociedade brasileira que versam sobre a tradição autoritária, violenta e de não cidadania na qual se forjou o país, este estudo aponta sobre a centralidade do processo democrático quando se analisa a relação entre mídia e poder, bem como as especificidades da realidade dos meios de comunicação social no Brasil, em grande parte, marcada por um sistema de comunicação historicamente concentrado e avesso a discussões sobre pluralismo e controle democrático.

Palavras-chave:
Cidadania; Direito à comunicação; Democracia; Mídia; Poder

Abstract:

This article investigates the relationship, not always explicit, between power and the exercise of the right to communication, indicating points of convergence and divergence to contextualize the mediatization scenario. Based on an interdisciplinary theoretical review on the characteristics of social communication today, in dialogue with the background elements of Brazilian society that deal with the authoritarian, violent and non-citizenship tradition in which the country was forged, this study points to the centrality of the democratic process when analyzing the relationship between media and power, as well as the specificities of the reality of social media in Brazil, largely marked by a historically concentrated communication system and averse to discussions about pluralism and democratic control.

Keywords:
Citizenship; Right to communication; Democracy; Media; Power

Introdução

O artigo que se desenvolve a seguir procura investigar a relação, nem sempre explícita, entre o poder e o exercício do direito à comunicação, indicando pontos de convergência e de divergência para contextualizar o cenário de midiatização. Para tanto, o texto contempla revisão da literatura sobre as características da comunicação social na atualidade, em diálogo com os elementos de fundo da sociedade brasileira que versam sobre a tradição autoritária, violenta e de não cidadania na qual se forjou o país.

Ganha relevância, neste estudo, a contribuição de Venício A. de Lima (2006LIMA, V. A. de. Mídia: crise política e poder no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006., 2012LIMA, V. A. de. Mídia: Teoria e política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2012., 2012aLIMA, V. A. de. Liberdade de Expressão x Liberdade de Imprensa: direito à comunicação e democracia. São Paulo: Publisher Brasil, 2012a.), autor que lança luz sobre a centralidade da comunicação social na vida humana, seja como fonte de entretenimento, informação ou instrumento de trabalho, com reflexos diversos no cotidiano das pessoas e nas disputas de poder que compreendem a cultura política de determinada realidade. Desse ponto de vista, em que se reconhece o papel da comunicação de massa como objeto fundamental de análise para se compreender as relações de poder, recorre-se ao conceito de cenário da representação política, cunhado por Lima, para se analisar os meios de comunicação social no Brasil.

A noção de cenários de representação política, em diálogo com outras contribuições teóricas aprofundadas, como as ideias de poder invisível de Bobbio (2015)BOBBIO, N. Democracia e segredo. São Paulo: Editora da UNESP, 2015. e de simulacro de Chauí (2006)CHAUÍ, M. Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo: Perseu Abramo, 2006., ambas associadas ao estudo dos meios de comunicação social do Brasil, permitirão lançar novos questionamentos que são fundamentais ao desenvolvimento deste artigo, tais como: os traços que fizeram parte da formação brasileira (autoritarismo, violência, cidadania regulada, entre outros) podem incidir na compreensão simbólica decorrente da comunicação de massa da atualidade? Os grandes conglomerados de radiodifusão são capazes de fabricar imaginários sociais ou tão somente reproduzem as informações que representam determinada realidade política? Em um contexto de centralidade da mídia, quais os reflexos para o indivíduo ou para uma coletividade na sua tomada de decisão na cena política?

Feitas essas considerações introdutórias, que visam tão somente situar significados e contextos a serem enfrentados neste artigo, torna-se possível avançar no desenvolvimento do texto, primeiramente, abordando a centralidade do processo democrático quando se analisa a relação entre mídia e poder, para, em sequência, refletir sobre a realidade dos meios de comunicação social no Brasil, em grande parte, marcada por um sistema de comunicações historicamente concentrado e avesso a discussões sobre pluralismo e controle democrático.

A comunicação de massa como um maquinário de representações

Desde o início do século XX, a comunicação social amplia sua centralidade no cotidiano da vida humana. Emissoras de rádio e televisão, abertas ou pagas, jornais, revistas, cinemas e canais de Internet estabelecem um processo mediante o qual transmitem mensagens, sejam ideias, valores ou sentimentos, que alcançam um número grande e indeterminado de receptores, pessoas dos mais variados grupos sociais. Mas o que compreende esse fenômeno de massa? Qual a sua capacidade de construir significados para aqueles que o recebem? Ou, a sua mensagem é uma mera transmissão de informação, sem ruídos ou acréscimo de novos sentidos?

Dentre as principais características das sociedades modernas, destaca-se a consolidação de uma indústria cultural1 1 Sem a pretensão de esmiuçar as diferentes concepções de indústria cultural, vale tão somente contextualizar a unidade estrutural (econômica e política) dessa expressão, que guarda em si um sentido paradoxal: enquanto a cultura é aquilo que surge da capacidade de suspender propósitos diretos, a indústria, baseada no conceito de trabalho sistemático, limita-se a excluir tudo que não seja propósito direto. Assim, a indústria cultural permanece, até hoje, estruturalmente atrelada a sua autopreservação (HULLOT-KENTOR, 2008; REIS, 2016). , composta por veículos de comunicação de massa capazes de incidir na construção do conhecimento das pessoas e, consequentemente, na tomada de decisão de cada uma delas. Contudo, essa influência dos meios de comunicação social não se deu, em grande medida, pela coerção ou imposição explícita de suas ideias, mas, em sentido oposto, pelo consenso, ou pelo menos, pela aparência dele, o que tornou o processo de estruturação de uma sociedade centrada na comunicação de massa ainda mais engenhoso, particularmente, em sociedades sob a égide do paradigma democrático2 2 Noam Chomsky (2013) adverte como a mídia nas sociedades democráticas assume um papel fundamental como fundador de consensos. Diferente dos estados totalitários que pressupunham o uso da força como mediação com o público, nas sociedades democráticas ocidentais a relação contratualista entre sociedade civil e governo indispõe o uso aberto dessa força. “A propaganda política está para uma democracia, assim como o porrete está para um estado totalitário”. (CHOMSKY, 2013, p. 21). .

Considerando os meios de comunicação e o conjunto de relações de poder nas quais estão inseridos, chama a atenção a simbiose estabelecida entre a mídia e a política. A mídia assume, assim, funções tipicamente de atores políticos, tais como pautar a agenda política, fiscalizar governos, produzir e reproduzir informações políticas e canalizar demandas da população (LIMA, 2006LIMA, V. A. de. Mídia: crise política e poder no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.), construindo cultura política tanto quanto é construída pelo conjunto de relações sociais que participa.

Os jornais foram os primeiros, mesmo que de forma incipiente, a consolidarem-se como veículos de comunicação de massa, seguidos pelo rádio, pela TV e, hoje, pela integração de todos essas plataformas anteriores, impulsionadas pelos avanços da informática e das telecomunicações. Apesar de possuírem semelhanças entre si, o desenvolvimento histórico desses veículos de comunicação também guarda especificidades, que podem ajudar na elucidação do avanço dessa sociabilidade pautada na comunicação.

Na era do rádio, por exemplo, foi possível, pela primeira vez, alcançar um patamar tão elevado de troca de informações a distância, que as novas condições de transmissão seriam capazes de mobilizar multidões. Para ilustrar essa situação, Chauí (2006)CHAUÍ, M. Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo: Perseu Abramo, 2006. resgata o episódio da transmissão radiofônica do romance A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, realizada em meados de 1930, na cidade de Nova York, o qual narra a invasão do planeta Terra por marcianos. Sem a preocupação de avisar ao público que se tratava de uma história de ficção, o programa de rádio apresentou o romance como se, de fato, Nova York estivesse sendo invadida por alienígenas. O pânico tomou conta da cidade, com pessoas fugindo de suas casas, procurando trens, ônibus, metrôs e automóveis para escapar da ameaça. E, na sequência, o pânico tomou conta do país, sendo necessário que o governo e o exército norte-americanos interviessem para acalmar a população.

Seria um efeito isolado, fruto de um descuido dos radialistas, que encobertos pela licença artística não se preocuparam em avisar o público de um eventual engano? Pelo contrário, desse exemplo de confusão entre ficção e realidade presente em A Guerra dos Mundos, aliado à popularização dos aparelhos eletrônicos de rádio e sua capacidade mobilizadora, o que se percebe é que as ondas do rádio abriram um caminho, sem volta, de novas possibilidades de uso político por seus produtores de mensagens. Na perspectiva de Santos (2006SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2006., p. 159), as técnicas e tecnologias da informação, nesse caso, em específico, a expansão do rádio, tornaram a informação um componente estruturante do próprio espaço geográfico, forjando um novo meio pelo qual as dinâmicas sociais se estabeleceriam. Anos depois, a televisão deu prosseguimento a essas mudanças, inserindo novos ingredientes ao contexto de transformação.

Com a introdução da cultura audiovisual nas relações sociais instaurou-se a sociedade da vídeo-política (SARTORI, 1992SARTORI, G. Elementos de Teoria Política. Madrid: Alianza, 1992.), isto é, a televisão torna-se um meio de comunicação tão importante, que transformou a política e o próprio ser humano. De fato, a televisão mudou a percepção do mundo social sobre si mesmo. A TV, seja como fonte de informação ou de entretenimento, alterou sensivelmente a vida de seus espectadores, influenciando horários, rotinas, costumes, formas de lazer, espaços domésticos, prioridades de consumo, assuntos de debate e preferências políticas.

Nesse sentido, reflete-se o exemplo das telenovelas brasileiras, ou, em formatos mais atuais, das séries vistas em diferentes plataformas. Lima (2012LIMA, V. A. de. Mídia: Teoria e política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2012., p. 235-240) recorda de três novelas em específico, que foram exibidas em sequência pela Rede Globo, poucos meses antes da eleição presidencial de Fernando Collor de Melo, em 1989. São elas: “Vale Tudo”, onde o país ficcional/real foi retratado como um reino da corrupção, onde prevaleceu a ética da sobrevivência; “O Salvador da Pátria”, que satiriza a vida de um político desesperado, sem ideologia ou partido, e que se transforma ao chegar ao poder; e “Que Rei Sou Eu?”, que retrata os políticos como todos corruptos, à exceção daqueles do Executivo, e que a salvação está no protagonista da novela, homem bonito e jovem, capaz de conquistar o poder. Será coincidência a relação entre os enredos da novela e os cenários da política? Lima adverte que não, uma vez que essas três telenovelas, além de entreterem, faziam parte de um processo mais amplo, já em curso na mídia, que visava desqualificar a política como atividade ou o político como ator profissional.

Nos dias atuais, outros exemplos também poderiam ilustrar esse contexto, inclusive, com a ampliação do papel da Internet nas atividades da política, seja pelo acesso a mais canais de informação, ou, paradoxalmente, pelo efeito da desinformação via Fake News e impulsionadores de conteúdo recorrentes na rede. Apesar desse contexto, e do relativo declínio do papel da TV, esta ainda continua a exercer centralidade entre as mídias do País, muito pela sua capilaridade e consórcio de interesses que a fortalecem.

Na atualidade, a televisão ainda se apresenta como um maquinário de representações, independentemente do conteúdo e de sua programação, o que pode ser evidenciado a partir de quatro características centrais: 1) a televisão supera a necessidade de conexão entre presença física e experiência, uma vez que não é preciso estar presente para experimentar, basta assistir; 2) tornou os espectadores homo ocular, isto é, pessoas insensíveis ao texto escrito e/ou falado, voltadas tão somente ao que visualmente é perceptível na televisão; 3) dificulta a separação entre a ficção e o real; e 4) tornou-se um espaço privilegiado de construção da cultura mítica, fabricando e emitindo imaginários sociais (LIMA, 2012LIMA, V. A. de. Mídia: Teoria e política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2012.).

Nota-se, assim, a força de persuasão adquirida pela comunicação de massa no decorrer dos anos. Nesse ponto, rádios, televisões e, hoje, também, computadores representam muito mais do que meros eletrodomésticos para consumo das famílias. São partes de um sistema complexo, no qual a comunicação é poder, não o ato de comunicar-se em si, mas a capacidade de produzir o seu conteúdo e transmiti-lo, sendo os produtores dessa informação verdadeiros centros de poder econômico (tanto porque são empresas privadas como porque são mercadorias que transmitem e vendem outras mercadorias) e centros de poder político ou de controle social e cultural (CHAUÍ, 2006CHAUÍ, M. Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo: Perseu Abramo, 2006.).

A questão em jogo é o processo democrático

Após essa apresentação do contexto no qual se insere a relação entre mídia e poder (no sentido amplo do termo), torna-se necessário encontrar uma base teórica que permita entendê-la. A depender do referencial teórico adotado, o entendimento pode tomar caminhos diversos, em particular, sobre como se dá a conexão entre a realidade e a sua representação pelos meios de comunicação social.

Na teoria mimética, por exemplo, mesmo em produções mais elaboradas, como é o caso de René Girard3 3 René Girard (2011), no texto O Bode Expiatório e Deus, desenvolve a seguinte reflexão: Deus é uma invenção humana? O que Girard responde sem hesitar: não. Essa resposta-hipótese, a partir de uma epistemologia mimética, consegue estabelecer um método comparativo em um grande número de textos, mitos, romances, contos e outros tipos de narrativas, no qual é possível encontrar a inspiração de uma mesma matriz do desejo mimético, dispondo, conforme o acredita o autor, de uma clara evidência para sua hipótese. Assim, para René Girard, os deuses são a personificação do sagrado, sendo um processo social e religioso encontrado em todas as culturas. Com isso, as culturas detêm o processo de autodestruição das sociedades, uma vez que o homem é motivado pelo que o outro deseja e, consequentemente, passa a ser conduzido ao exercício da vingança. O bode expiatório seria como se os homens cometessem um assassinato coletivo, como ápice da sua autodestruição. A teoria mimética, nesse caso, retira da história da humanidade um referencial externo presente, de forma mimética, com uma estrutura comum e recorrente que demonstra a existência de um Deus. Diferente dos deuses arcaicos, a presença dessa pedra angular de um bode expiatório na figura de Jesus Cristo, possibilita unificação do linchamento e da reconciliação com a comunidade como um único ato de divindade. (2011), a realidade parte do princípio da existência de um referencial externo, no qual sempre prevalece uma separação formal ou de fato entre realidade e a sua representação. Quando aplicado ao tema da comunicação, o referencial mimético apresenta a representação da mídia como um ato externo à realidade, uma mera reprodução, ainda que com pequenas imprecisões.

Desse entendimento teórico, dois desdobramentos principais tendem a ocorrer na prática: o primeiro é a simplificação sobre a autonomia e o papel dos aparelhos do sistema de comunicação, sejam privados ou estatais, em transmitir informações ao público, sem levar em conta os diferentes interesses em jogo, sejam eles econômicos, sociais ou políticos, além da capacidade desse setor em criar, distorcer ou omitir informações com o objetivo de influenciar a opinião pública e de defender seus próprios interesses. O segundo desdobramento é a incapacidade dessa tradição mimética de explicar a origem e como se estruturam os imaginários sociais (representação global e totalizante da sociedade), pouco contribuindo para desvelar os discursos que permeiam o espaço simbólico da vida pública.

Esse artigo, contudo, escolhe uma moldura conceitual diferente, que vê nas representações da mídia verdadeiros filtros da realidade, em que a realidade constitui e é constituída, ao mesmo tempo, na e pela comunicação de massa. E, nesse sentido, o conceito de cenários de representação elaborado por Venício A. Lima (2006LIMA, V. A. de. Mídia: crise política e poder no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006., 2012LIMA, V. A. de. Mídia: Teoria e política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2012., 2012aLIMA, V. A. de. Liberdade de Expressão x Liberdade de Imprensa: direito à comunicação e democracia. São Paulo: Publisher Brasil, 2012a.), insere a comunicação social dentro do tema-problema da construção pública de significações e valores da sociedade e, portanto, como parte integrante do hegemônico. Assim, para Lima (2006LIMA, V. A. de. Mídia: crise política e poder no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006., 2012LIMA, V. A. de. Mídia: Teoria e política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2012., 2012aLIMA, V. A. de. Liberdade de Expressão x Liberdade de Imprensa: direito à comunicação e democracia. São Paulo: Publisher Brasil, 2012a.), os cenários são como espaços onde a ação se desenvolve em representação, significando não só representar a realidade, mas, necessariamente, constituí-la; em outros termos, cenários são construções de sujeitos sociais.

No estudo da mídia, mais especificamente, sob o recorte do processo político eleitoral, Lima lembra que dificilmente um candidato poderá vencer as eleições se não ajustar sua imagem pública ao cenário de representação político dominante, ou, pelo menos, construir um cenário de representação contra-hegemônico eficiente. O cenário de representação política é, nas palavras do autor:

[...] o espaço específico de representação da política nas “democracias representativas” contemporâneas, constituído e constituidor, lugar e objeto da articulação hegemônica total, construído em processos de longo prazo, na mídia e pela mídia, sobretudo na televisão (LIMA, 2012LIMA, V. A. de. Mídia: Teoria e política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2012., p. 186-187).

A hegemonia, desse modo, realiza-se em espaços de representação, inclusive, do processo de eleição e de decisão política. A partir de três pressupostos principais, a saber, a existência de uma sociedade centralizada na mídia, o exercício de uma hegemonia e a existência da televisão como mediação midiática dominante, Lima (2012)LIMA, V. A. de. Mídia: Teoria e política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2012. enfatiza que os meios de comunicação eletrônicos transformaram a mídia, seja em âmbito privado ou estatal, no aparelho de hegemonia mais eficaz na articulação hegemônica, na medida em que é capaz de construir e definir limites da realidade dentro dos quais ocorre a disputa política.

O conceito cenários de representação, conforme as características descritas acima, também considera outros aspectos que integram o hegemônico, os quais, apesar de não abordarem diretamente o tema do processo político, fazem parte do espectro mais amplo que compreende o poder. Assim, a partir da análise de programas televisivos, é possível estudar cenários de representação, hegemônicos e contra-hegemônicos, que dizem respeito a questões de gênero, de etnias, de gerações, de violência, de estética, de modernidade e de infância.

Por todos esses reflexos que permeiam a discussão dos cenários de representação, é que a análise da mídia não pode se restringir a mera descrição do fenômeno social no qual a comunicação de massa está inserido, sendo necessário refletir, também, sobre o papel daqueles que controlam a produção e a transmissão de mensagens, pois isso incide decisivamente nas disputas de poder presentes na sociedade. Nessa perspectiva, Lima (2006LIMA, V. A. de. Mídia: crise política e poder no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006., p. 63) adverte que “acima de tudo, é preciso lembrar sempre: o que está realmente em jogo quando se trada das relações entre mídia e política é o processo democrático”.

Mas de qual ideia de democracia está se falando? Aquela na qual prevalece a democracia dos espectadores, isto é, produtora de consensos e que vê no rebanho desorientado um mero espectador, que, de vez em quando, possui a permissão de transferir seu apoio a um outro membro da classe especializada? (CHOMSKY, 2013CHOMSKY, N. Mídia propaganda política e manipulação. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.) Ou, em sentido oposto, uma democracia em que indivíduos participem, ativamente inclusive, no exercício de ser bem informado, assim como de informar? Nessa segunda perspectiva, a predominância de não temas da agenda pública, como é o caso da concentração dos meios de comunicação social, sugerem dois problemas fundamentais: a invisibilidade e o simulacro das questões relativas ao poder.

Norberto Bobbio (2015)BOBBIO, N. Democracia e segredo. São Paulo: Editora da UNESP, 2015., no livro Democracia e Segredo, afirma que a democracia, idealmente, é o poder do visível, isto é, do governo cujos atos se desenrolam em público e sobre controle da opinião pública, em oposição ao poder autocrático, invisível. Do que é secreto, o poder invisível se forma e se organiza não somente para se combater o público quando lhe interessa, mas também para tirar benefícios ilícitos e extrair vantagens que não lhe seriam permitidos à luz do dia. Nota-se, assim, a importância do aspecto de democracia advertido por Bobbio, uma vez que considera o imbricar de duas ideias-chave: o poder público como coisa pública, de Estado, e como publicidade, relativos às coisas públicas, do Estado.

Mas a questão em jogo vai muito além de revelar segredos escondidos. Na sociedade contemporânea, centrada na informação mediada pelos meios de comunicação, o espetáculo midiático se constitui, em grande medida, por força do simulacro (CHAUÍ, 2006CHAUÍ, M. Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo: Perseu Abramo, 2006.), reproduções imperfeitas da realidade. O telespectador comum não se identifica mais como uma pessoa comum, parte da massa, mas como um público especialista, detentor de um acesso a uma gama de informações sem precedentes na história da humanidade.

Nesse ponto, o simulacro mostra sua engenhosidade, pois, a pessoa comum, convencida de seu papel de especialista e, por vezes, também de formador de opinião em suas novas ferramentas de interação com os meios, passa a acreditar, fielmente, que é bem informado. Assim, quando se fala que o que está em jogo é o processo democrático, espera-se redirecionar a atenção para o tema do poder, ou em um sentido mais extremo, para a capacidade de se criar (ou não) a realidade.

Se transportado esse entendimento para o debate dos meios de comunicação social, é possível perceber que os setores altamente concentrados da mídia acabam por influenciar a transmutação do espaço público em espaços de interesses privados. Não por acaso, o quadro de distribuição de concessões públicas de rádio e televisão no Brasil, historicamente, prevalece sob a base de critérios de favoritismo e moeda de barganha política, articulando elementos econômicos e políticos como base da manutenção de um status quo.

Mas como resistir a esse cenário? Nessa perspectiva, retoma-se, mais uma vez, ao conceito de cenários de representação, mas, agora, sob seu aspecto alternativo, também, inspirado pelas leituras de Gramsci (1999)GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. e, particularmente, de Lima (2012)LIMA, V. A. de. Mídia: Teoria e política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2012.. Os meios de comunicação tiveram destaque nos escritos do autor italiano, uma vez que se relacionavam formação de significados e linhas de força que incidiam sobre o imaginário coletivo. Nos Cadernos do Cárcere, redigidos por Gramsci em grande parte entre os anos 1926 e 1934, período em que esteve preso por se opor ao regime fascista na Itália, o autor aponta como a imprensa, considerada a parcela mais dinâmica entre as outras formas de disputa ideológica à época, contribui para unir, em um mesmo bloco, agrupamentos hegemônicos não necessariamente homogêneos, ideias e valores que exercem influência na compreensão da realidade.

Ao mesmo tempo em que atores históricos pautam a conservação ou a modificação de formas hegemônicas sobre determinada ordem política e cultural, também existem ações de contra-hegemonia que alertam sobre a importância da diversidade do discurso e da urgência em se questionar consensos, denunciando, assim, a exclusão comunicacional de setores não contemplados nos veículos que servem como principais mediadores na forma ético-política predominante. E é exatamente dessa relação dinâmica entre hegemonia e contra-hegemonia, não isenta de tensões e de mutabilidade histórica, que a produção e a difusão de conteúdos pelos veículos de comunicação de massa, mesmo quando tentam modelar a opinião pública e desagregar os que contrariam seus intentos, não conseguem em sua plenitude (MORAES, 2013MORAES, D. de. Agências alternativas em rede e democratização da informação na América Latina. In: MORAES, D.; RAMONET, I.; SERRANO, P. (org.). Mídia, Poder e Contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação. Rio de Janeiro: Boitempo, 2013.).

Lima, atento à noção de contra-hegemonia em uma sociedade centrada na comunicação eletrônica, sobretudo, na força da TV como aparelho privado de comunicação no país, agrega ao conceito de cenários de representação a sua relação fundamental com os cenários de representação alternativos, ambos no plural, pois é dessa articulação hegemônica e contra-hegemônica que são traçados os limites entre uma ou outra compreensão da realidade. Nas palavras de Lima (2012LIMA, V. A. de. Mídia: Teoria e política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2012., p. 194-195), daí que advém a “capacidade de construir/definir os limites do hegemônico (da realidade) dentro dos quais ocorre a disputa política”. Mais do que analisar os cenários de representação alternativos em si, o que se espera é alertar como o olhar sob essa perspectiva, deve, necessariamente, fazer parte da compreensão do discurso predominante, inclusive, como indicativo daquilo que se procura controlar ou evitar na prática comunicativa dos grandes meios.

Assim, quando se considera o pluralismo como um elemento fundamental ao processo democrático de um país, deve-se compreender que o direito à comunicação também contemple aquilo que é secundarizado ou, simplesmente, silenciado no campo dos sentidos que fazem parte da representação midiática do imaginário social.

Considerações finais

Este artigo voltou-se à análise da comunicação dirigida ao grande público, de massa, que possui reflexos diversos no cotidiano das pessoas e nas disputas de poder de determinada representação hegemônica da realidade.

No Brasil, em específico, constatou-se que a TV aberta continua tendo destaque no quadro geral da comunicação, caracterizada pelos altos índices de audiência, pela capilaridade nacional, pela capacidade de apropriação de novas tecnologias e pela manutenção da influência política de grupos familiares vinculados às elites locais e regionais que controlam esse setor.

Nessa simbiose entre mídia e política, na qual prevalece a moldura conceitual de cenários de representação, a comunicação social apresenta-se como a construção pública de significações e valores da sociedade que constituem, ao mesmo tempo, o hegemônico e o contra-hegemônico.

Desse modo, o texto considerou as relações de poder que fazem parte desse fenômeno social e como o controle da produção e da transmissão das mensagens é fundamental ao processo democrático, pois podem incidir para tornar (in)visível a coisa pública e questionar (ou não) as reproduções da realidade.

Agradecimentos

Não se aplica.

  • 1
    Sem a pretensão de esmiuçar as diferentes concepções de indústria cultural, vale tão somente contextualizar a unidade estrutural (econômica e política) dessa expressão, que guarda em si um sentido paradoxal: enquanto a cultura é aquilo que surge da capacidade de suspender propósitos diretos, a indústria, baseada no conceito de trabalho sistemático, limita-se a excluir tudo que não seja propósito direto. Assim, a indústria cultural permanece, até hoje, estruturalmente atrelada a sua autopreservação (HULLOT-KENTOR, 2008HULLOT-KENTOR, R. Em que sentido exatamente a indústria cultural não mais existe. In: DURÃO, F. A.; ZUIN, A.; VAZ, A. F. (org.). A indústria cultural hoje. São Paulo: Boitempo, 2008.; REIS, 2016REIS, L. B. Mídia brasileira: engajamento psíquico e dominação estrutural. In: GOBBO, B. A.; PIMENTEL FILHO, J. E.; GONÇALVES, M. A. de P. (org.). O Poder da Mídia: (re)editando outras verdades. Rio de Janeiro: Lamparina, 2016.).
  • 2
    Noam Chomsky (2013)CHOMSKY, N. Mídia propaganda política e manipulação. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. adverte como a mídia nas sociedades democráticas assume um papel fundamental como fundador de consensos. Diferente dos estados totalitários que pressupunham o uso da força como mediação com o público, nas sociedades democráticas ocidentais a relação contratualista entre sociedade civil e governo indispõe o uso aberto dessa força. “A propaganda política está para uma democracia, assim como o porrete está para um estado totalitário”. (CHOMSKY, 2013CHOMSKY, N. Mídia propaganda política e manipulação. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013., p. 21).
  • 3
    René Girard (2011)GIRARD, R. O Bode Expiatório e Deus. In: GIRARD, R.; GOUNELLE, A.; HOUZIAUX, A. (org.). Deus: uma invenção? São Paulo: Realizações, 2011., no texto O Bode Expiatório e Deus, desenvolve a seguinte reflexão: Deus é uma invenção humana? O que Girard responde sem hesitar: não. Essa resposta-hipótese, a partir de uma epistemologia mimética, consegue estabelecer um método comparativo em um grande número de textos, mitos, romances, contos e outros tipos de narrativas, no qual é possível encontrar a inspiração de uma mesma matriz do desejo mimético, dispondo, conforme o acredita o autor, de uma clara evidência para sua hipótese. Assim, para René Girard, os deuses são a personificação do sagrado, sendo um processo social e religioso encontrado em todas as culturas. Com isso, as culturas detêm o processo de autodestruição das sociedades, uma vez que o homem é motivado pelo que o outro deseja e, consequentemente, passa a ser conduzido ao exercício da vingança. O bode expiatório seria como se os homens cometessem um assassinato coletivo, como ápice da sua autodestruição. A teoria mimética, nesse caso, retira da história da humanidade um referencial externo presente, de forma mimética, com uma estrutura comum e recorrente que demonstra a existência de um Deus. Diferente dos deuses arcaicos, a presença dessa pedra angular de um bode expiatório na figura de Jesus Cristo, possibilita unificação do linchamento e da reconciliação com a comunidade como um único ato de divindade.
  • Agência financiadora Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não se aplica.
  • Consentimento para publicação Consentimento do autor.

Referências

  • BOBBIO, N. Democracia e segredo. São Paulo: Editora da UNESP, 2015.
  • CHAUÍ, M. Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo: Perseu Abramo, 2006.
  • CHOMSKY, N. Mídia propaganda política e manipulação. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.
  • GIRARD, R. O Bode Expiatório e Deus. In: GIRARD, R.; GOUNELLE, A.; HOUZIAUX, A. (org.). Deus: uma invenção? São Paulo: Realizações, 2011.
  • GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
  • HULLOT-KENTOR, R. Em que sentido exatamente a indústria cultural não mais existe. In: DURÃO, F. A.; ZUIN, A.; VAZ, A. F. (org.). A indústria cultural hoje. São Paulo: Boitempo, 2008.
  • LIMA, V. A. de. Liberdade de Expressão x Liberdade de Imprensa: direito à comunicação e democracia. São Paulo: Publisher Brasil, 2012a.
  • LIMA, V. A. de. Mídia: crise política e poder no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.
  • LIMA, V. A. de. Mídia: Teoria e política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2012.
  • MORAES, D. de. Agências alternativas em rede e democratização da informação na América Latina. In: MORAES, D.; RAMONET, I.; SERRANO, P. (org.). Mídia, Poder e Contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação. Rio de Janeiro: Boitempo, 2013.
  • REIS, L. B. Mídia brasileira: engajamento psíquico e dominação estrutural. In: GOBBO, B. A.; PIMENTEL FILHO, J. E.; GONÇALVES, M. A. de P. (org.). O Poder da Mídia: (re)editando outras verdades. Rio de Janeiro: Lamparina, 2016.
  • SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2006.
  • SARTORI, G. Elementos de Teoria Política. Madrid: Alianza, 1992.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2020
  • Aceito
    02 Ago 2020
  • Revisado
    11 Out 2020
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina , Centro Socioeconômico , Curso de Graduação em Serviço Social , Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima, 88040-900 - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil, Tel. +55 48 3721 6524 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: revistakatalysis@gmail.com