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Racismo, colonialidade do poder e trabalho doméstico remunerado no Brasil

Resumo:

Este artigo tem por objetivo problematizar as implicações da dimensão de raça sobre o trabalho doméstico remunerado no Brasil. Com base em pesquisa bibliográfica e documental, e sob uma matriz teórico-metodológica crítica e dialética, a discussão de raça será abordada enquanto uma expressão da colonialidade do poder, que para além do colonialismo, situa-se no contexto da reprodução do sistema capitalista em escala global, que demarca os lugares e as relações sociais de poder, mando e subordinação entre sujeitos, povos, etnias, nações e países. Verifica-se uma significativa incidência da dimensão de raça dessa colonialidade do poder sobre as condições de trabalho doméstico remunerado no país. O histórico de lento reconhecimento dos direitos sociais e trabalhistas para essa categoria de trabalhadores, enquanto inflexão da dimensão de raça, permanece nos dias de hoje repercutindo em pouco acesso aos direitos do trabalho e ao sistema de proteção previdenciária.

Palavras-Chave:
Racismo; Colonialidade do poder; Capitalismo; Trabalho doméstico remunerado; Brasil

Abstract:

This article aims to discuss the implications of the race dimension on paid domestic work in Brazil. Based on bibliographic and documental research and under a critical and dialectical theoretical- methodological matrix, the discussion of race will be approached as an expression of the coloniality of power. Beyond colonialism, the coloniality of power is situated in the context of the reproduction of the capitalist system on a global scale, which demarcates the places and social relations of power, command and subordination between subjects, peoples, ethnicities, nations and countries. There is a significant impact of the racial dimension of this coloniality of power on the conditions of paid domestic work in this country. The history of slow recognition of social and labor rights for this category of workers, as an inflection of the racial dimension, remains today, resulting in little access to labor rights and the social security protection system.

Keywords:
Racism; Coloniality of power; Capitalism; Paid domestic work; Brazil

Introdução

Em vários países do mundo, o trabalho doméstico remunerado tem sido a ocupação de milhões de pessoas, sobretudo mulheres. Trata-se de um conjunto diverso de trabalhadoras(es). Essa diversidade diz respeito não somente ao perfil demográfico e sociocultural, às particularidades de cada país e região do globo onde se situam, mas também às possibilidades de tarefas e atividades que podem realizar por essas(es) trabalhadoras(es): faxina ou limpeza, cuidados com crianças, pessoas idosas ou portadoras de necessidades especiais, vigilância domiciliar, cozinha, jardinagem, dentre outras. Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), embora tarefas específicas e o tipo de empregador possam mudar de país para país, o que está no centro da definição de trabalho doméstico é o fato do local de trabalho corresponder a um ambiente privado e domiciliar (INTERNATIONAL LABOR ORGANIZATION, 2010INTERNATIONAL LABOR ORGANIZATION (ILO). Global Wage Report 2010/11: Wage policies in times of crisis (Geneva). Geneva: ILO/International Labour Office, 2010.).

Em geral, as pessoas que nele se ocupam sofrem discriminações de diferentes naturezas. Por exemplo, a herança servil é uma marca que lhe é atribuída de forma longeva na história das civilizações humanas em função do pouco reconhecimento social da própria natureza da atividade, os afazeres domésticos. Além disso, o caráter subalterno da atividade assume também uma característica comum em vários outros lugares do mundo, que é atribuição naturalizada das tarefas domésticas à figura feminina (INTERNATIONAL LABOR ORGANIZATION, 2010INTERNATIONAL LABOR ORGANIZATION (ILO). Global Wage Report 2010/11: Wage policies in times of crisis (Geneva). Geneva: ILO/International Labour Office, 2010.).

No Brasil, essa marca de servilismo e subalternidade se particulariza pelo fato de suas primeiras ocorrências terem se dado no contexto da escravidão tanto dos povos originários da América, mas, sobretudo, da população negra africana. Desde o pós-abolição, passando pelo período de formação do mercado de trabalho brasileiro, mesmo se ressignificando por meio de discursos e práticas, muitas heranças do servilismo do contexto escravista são mantidas. A problemática se complexifica, ao mesmo tempo em que é agravada, pelas profundas desigualdades, que marcam a realidade social e econômica do país.

Este artigo tem por objetivo problematizar as incidências e as implicações da dimensão de raça sobre o trabalho doméstico remunerado no Brasil, evidenciando sua histórica vinculação à cultura de servidão e subordinação de classe e gênero. Com base em pesquisa bibliográfica e documental, e sob uma matriz teórico-metodológica crítica e dialética, analisaremos o tema da raça enquanto uma expressão da colonialidade do poder. A colonialidade, aqui considerada enquanto um fenômeno para além do colonialismo, situada no contexto da formação do sistema capitalista em escala global — neste trabalho também denominado de sistema-mundo moderno-colonial — e sua persistente reprodução e determinação das características que marcam a formação social, política e econômica das regiões e países considerados da periferia do sistema capitalista, como é o caso da América Latina e Brasil.

Em dias de profundos retrocessos no campo da democracia e dos direitos sociais no Brasil e no mundo, aprofundar, em um viés crítico, a discussão teórica e conceitual acerca do significado e a relevância da dimensão de raça na produção e reprodução das relações sociais capitalistas de dominação e exploração de classes, representa um esforço de resistência e de continuidade da luta no campo progressista. Dar visibilidade às particularidades dessa realidade vivenciada pelas(os) trabalhadoras(res) domésticas(os) brasileiras, aponta na mesma direção.

O artigo está organizado em duas seções. Na primeira, discutiremos o significado da dominação e discriminação de raça enquanto colonialidade do poder, no âmbito da formação do sistema-mundo moderno-colonial. Na seção seguinte, problematizaremos a incidência da dimensão de raça sobre a produção e reprodução das relações sociais de trabalho doméstico no Brasil, buscando demonstrar a persistência dessa incidência até os dias atuais.

Dominação e discriminação de raça e a formação do sistema-mundo moderno-colonial

Nos dias atuais, a discussão sobre preconceito e discriminação racial no Brasil, mais ainda sobre as determinações dessa dimensão para a formação social, política e econômica deste país assume as mais diversas nuances. Há desde a negação dessas determinações às posições que reproduzem visões superficiais, que via de regra, mais contribuem para a reprodução dos padrões discriminatórios do que para sua superação.

Se partirmos do entendimento de que a sociedade capitalista é uma sociedade dividia em classes, as dominações de gênero e raça, por exemplo, podem ser consideradas seus derivativos, ou fenômenos que se assentam sobre essa característica fundante das relações sociais capitalistas. Nesse sentido, a exploração da força de trabalho, que é realizada pela classe burguesa sobre a classe trabalhadora, sofre atenuantes os mais diversos, de acordo com o tempo e o espaço em que se localizam essas mesmas relações sociais.

No caso das porções do espaço global comumente consideradas periféricas, como é o caso de países de continentes como a América Latina, África e Ásia, a exploração da força de trabalho ocorre inicialmente pela dominação dos povos originários desses continentes, e em se tratando de América, sobretudo a Latina, dos negros africanos escravizados no longo período colonial e imperial. A partir daí se constituem colonialidades de poder, onde hierarquias e padrões de dominação e subordinação vão se reproduzindo tanto entre países periféricos em relação aos da economia central, quanto no interior dos Estados, assim como entre raças, povos, etnias ou nações, entre gêneros, entre classes sociais e, ainda, entre porções distintas dos territórios dos Estados.

De acordo com Dussel (2005DUSSEL, H. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 27), “[...] empiricamente, nunca houve História Mundial até 1492 (como data de início da operação do Sistema-mundo)”. A concepção imperialista de modernidade, segundo a qual, a determinação fundamental do mundo moderno seria o fato de ser a Europa, seus Estados, exércitos, economia, filosofia etc., o centro da história mundial, faz supor, simbólica e praticamente, que todas as outras culturas são sua periferia. Nas palavras de Quijano,

[...] o mito fundacional da versão eurocêntrica da modernidade é a ideia do estado de natureza como ponto de partida do curso civilizatório cuja culminação é a civilização europeia ou ocidental. Desse mito se origina a especificamente eurocêntrica perspectiva evolucionista, de movimento e de mudança unilinear e unidirecional da história humana. Tal mito foi associado com a classificação racial da população do mundo. Essa associação produziu uma visão na qual se amalgamam, paradoxalmente, evolucionismo e dualismo. Essa visão só adquire sentido como expressão do exacerbado etnocentrismo da recém constituída Europa, por seu lugar central e dominante no capitalismo mundial colonial/moderno, da vigência nova das ideias mitificadas de humanidade e de progresso, inseparáveis produtos da Ilustração, e da vigência da ideia de raça como critério básico de classificação social universal da população do mundo. (QUIJANO, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p.116).

Sob este ponto de vista, a colonialidade é vista enquanto um processo que ultrapassa as especificidades do colonialismo datado, não desaparecendo com a independência ou com a descolonização. Essa distinção permite explicar a continuidade das formas de dominação em determinados países e continentes, mesmo após o fim das administrações coloniais e ajuda a entender a formação das estruturas de hierarquias, mando, subordinação, clientelismo e coronelismos no interior dos países dependentes e entre esses os de capitalismo central. Assim,

[...] a globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial. Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo. Esse eixo tem, portanto, origem e caráter colonial, mas provou ser mais duradouro e estável que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecido. Implica, conseqüentemente, num elemento de colonialidade no padrão de poder hoje hegemônico. (QUIJANO, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 107).

O controle do trabalho nesse padrão de poder mundial determinou a distribuição racial e geográfica das formas integradas do capitalismo. No que diz respeito à América Latina, as formas de trabalho não remunerados foram designadas às raças colonizadas (índios, negros, mestiços) e o trabalho pago, assalariado, designado à raça colonizadora – os brancos, na maioria dos países da América. O protagonismo que este continente teve no processo de formação do sistema-mundo no sentido de viabilizar sua construção revela o paradoxo da sua posição de subordinação e dependência. O processo de concentração espacial do capital, dos assalariados, do mercado de capital, da cultura e do saber hegemônico na Europa foi, nesse sentido, um dos fatores determinantes para o estabelecimento desse paradoxo, assim como ocorreu também com os demais continentes periferizados.

Na lógica particular da dependência histórico-estrutural da América Latina, é imprescindível considerar que os senhores capitalistas dos países dessa região tinham a forte percepção de que os seus interesses eram ou deveriam ser semelhantes a outros dominantes, brancos, dos países europeus e estadunidenses. Contudo,

[...] por óbvias razões, os dominadores coloniais dos novos Estados independentes, em especial na América do Sul depois da crise de fins do século XVIII, não podiam ser nada além de sócios menores da burguesia europeia. Quando muito mais tarde foi necessário libertar os escravos, não foi para assalariá-los, mas para substituí-los por trabalhadores imigrantes de outros países, europeus e asiáticos. A eliminação da servidão dos índios é recente. Não havia nenhum interesse social comum, nenhum mercado próprio a defender, o que teria incluído o assalariado, já que nenhum mercado local era de interesse dos dominadores. Não havia, simplesmente, nenhum interesse nacional. (QUIJANO, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 123).

A dimensão racial da colonialidade do poder se expressa nessas relações e repercute nas dificuldades de estabelecimento de sociedades amplamente democráticas, já que os interesses das maiorias não encontram legitimidade e representatividades frente aos setores dominantes dos países latino-americanos. E, não poderia ser diferente, já que os privilégios das classes dominantes minoritárias brancas estavam assentados na exploração das maiorias, indígenas, negras, mestiças. Por isso, “[...] do ponto de vista dos dominadores, seus interesses sociais estiveram muito mais próximos dos interesses de seus pares europeus, e por isso estiveram sempre inclinados a seguir os interesses da burguesia europeia. Eram, pois, dependentes”. (QUIJANO, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 123).

No processo de intensificação da industrialização vivenciado no continente nos anos 1930, diante da crise mundial, a substituição das importações como estratégia das classes dominantes é uma demonstração do padrão de dependência estabelecido, a qual foi utilizada para garantir na verdade a substituição do,

[...] consumo ostentador dos senhores e dos pequenos grupos médios associados a eles, por produtos locais destinados a esse consumo. Para tal finalidade não era necessário reorganizar globalmente as economias locais, assalariar massivamente servos, nem produzir tecnologia própria. A industrialização através da substituição de importações é, na América Latina, um caso revelador das implicações da colonialidade do poder. (QUIJANO, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 123).

A reprodução dessa forte estrutura de múltiplas dominações, dependências e subordinações tem tornado a construção do Estado nacional um projeto artificializado nos países latino-americanos, dados os fracos processos democráticos da região, face à desidentificação dos setores dominantes com os anseios e os interesses das massas populares dos países. Por tudo isso,

[...] a colonialidade do poder estabelecida sobre a ideia de raça deve ser admitida como um fator básico na questão nacional e do Estado-nação. O problema é, contudo, que na América Latina a perspectiva eurocêntrica foi adotada pelos grupos dominantes como própria e levou-os a impor o modelo europeu de formação do Estado-nação para estruturas de poder organizadas em torno de relações coloniais. (QUIJANO, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 125)

No caso do Brasil, a presença do trabalho escravo e da servidão, os quais sustentaram a economia nacional durante os três primeiros séculos de sua existência, ganha destaque na formação das relações sociais hierárquicas, de subordinação e mando. No cenário colonial, o país foi “[...] muito além de um simples espaço para geração de excedentes para as metrópoles. Aqui, a escravidão se estendeu pelas áreas rurais, minas, cidades, oficinas, ranchos e um vasto conjunto de atividades econômicas”. (BARBOSA, 2008BARBOSA, A. F. A formação do mercado de trabalho no Brasil. São Paulo: Editora Alameda, 2008., p. 39).

A posição de colônia de exploração do país, associada ao uso irrestrito do trabalho escravo, legou, desde o período colonial, uma sonegação da existência econômica e social da população negra — sem esquecer os indígenas e as populações tradicionais remanescentes — tanto à escravizada, quanto a que viria a ser livre ou liberta nos anos pré e pós-abolição formal. Os homens livres, que não eram nem escravos nem donos de escravos, eram,

[...] pobres, verdadeiros párias dessa sociedade, tendencialmente ociosos – pois ausentes da relação de produção básica, mas condicionados pela mesma – amargavam, no limite, uma vida social inútil onde o trabalho realizado era tão-somente o mínimo necessário para a sua existência à margem do mercado. (BARBOSA, 2008BARBOSA, A. F. A formação do mercado de trabalho no Brasil. São Paulo: Editora Alameda, 2008., p. 62).

Naquele contexto, “[...] os lugares e papéis sociais dos homens e mulheres brancos, bem como de homens e mulheres negros e indígenas estavam fixados” (BERNARDINO-COSTA, 2013BERNARDINO-COSTA, J. Colonialidade e interseccionalidade: o trabalho doméstico no Brasil e seus desafios para o Século XXI. In: SILVA, T. D.; GOES, F. L. (org.). Igualdade racial no Brasil: reflexões no ano internacional dos afrodescendentes. Brasília: Ipea, 2013., p. 47). Em outras palavras, foram construídas no Brasil lógicas e práticas sociais baseadas na hierarquização, exploração e subordinação de raça que ainda se reproduzem contemporaneamente, amplamente funcionais ao desenvolvimento interno e internacional do capitalismo. Assim,

[...] a escravidão engendrou um modo de relacionamento entre ricos e pobres, dominantes e dominados, no qual as clivagens de classe e raça coincidiram quase perfeitamente. Ainda que a referência básica dos colonizadores fosse a organização estamental portuguesa, na colônia a condição social repousava na condição econômica. Afinal, todos procuravam a nova terra em busca de fortuna: todos visavam melhorar a sua condição econômica. Ser fidalgo aqui somente era possível a partir da posse de escravos. Daí a síntese brilhante de Manuel Correia de Andrade: sociedade aristocrática dividida em classes. (BARBOSA, 2008BARBOSA, A. F. A formação do mercado de trabalho no Brasil. São Paulo: Editora Alameda, 2008., p. 66, grifo do autor).

Segundo o mito da democracia racial1 1 Segundo o qual a miscigenação e todo o discurso mítico que a envolveu e envolve, constrói a falsa ideia de que não há hierarquia racial no país, encobrindo os padrões de dominação e exploração de raça que permanecem vivos nas práticas sociais. , a miscigenação e todo o discurso que a envolve, constrói a falsa ideia de que não há hierarquia racial no país, encobrindo os padrões de dominação e exploração de raça que permanecem vivos nas práticas sociais. Essa falácia, construída no contexto do projeto de unificação e desenvolvimento da nação, antes e ao longo do período autocrático do século XX no Brasil, encobriu em grande medida as fortes hierarquias e a fixação dos lugares sociais subalternos no país e sublimou a forte vinculação desses processos como passado escravocrata.

Contudo, são substanciais as repercussões dessa realidade sobre as características peculiares do mercado de trabalho, da política social, dos estados e da democracia brasileira. As condições materiais de reprodução da classe trabalhadora, marcadas pelas desigualdades sociais, subordinações de classe, gênero e raça, num ambiente de democracia não popular, são o pano de fundo em que se processa o fenômeno do trabalho em geral no Brasil.

Analisando as relações raciais que compareceram nas décadas de 1940 e 1950, Negro e Gomes (2006NEGRO, A. L.; GOMES, F. Além das senzalas e fábricas: uma história social do trabalho. Tempo Social, São Paulo, v. 18, n. 1, 2006., p. 226) constatam que era marcante uma tendência interpretativa de distanciar as experiências do trabalho (coerção, tecnologia, relações de produção e forças produtivas) da escravidão e da pós-emancipação, especialmente com o impacto industrial do século XX.

Diante disso, é possível afirmar que, o trabalho escravo, assim como as determinações que este firmou nas relações sociais e econômicas no Brasil, é um fator de significativa relevância para a formação da classe trabalhadora brasileira, assim como para relações sociais em geral. Torna-se, por sua vez, ainda mais relevante para o trabalho doméstico remunerado e as relações sociais que o envolvem, já que é uma ocupação que congrega, dos invisibilizados da classe trabalhadora (NEGRO; GOMES, 2006NEGRO, A. L.; GOMES, F. Além das senzalas e fábricas: uma história social do trabalho. Tempo Social, São Paulo, v. 18, n. 1, 2006.), uma parcela das mais emblemáticas.

No caso específico das relações sociais que perpassam no trabalho doméstico, conforme analisou Bernardino-Costa (2013)BERNARDINO-COSTA, J. Colonialidade e interseccionalidade: o trabalho doméstico no Brasil e seus desafios para o Século XXI. In: SILVA, T. D.; GOES, F. L. (org.). Igualdade racial no Brasil: reflexões no ano internacional dos afrodescendentes. Brasília: Ipea, 2013., a colonialidade do poder intersecciona-se nas dimensões de raça, sexo e classe social, ocorrendo na realidade de maneira inter-relacionada, imbricada e de forma não hierárquica. Essa constatação nos permite apreender as formas pelas quais “[...] o racismo, as relações patriarcais, a opressão de classe e outros eixos possíveis de poder e discriminação criam desigualdades”. (BERNARDINO-COSTA, 2013BERNARDINO-COSTA, J. Colonialidade e interseccionalidade: o trabalho doméstico no Brasil e seus desafios para o Século XXI. In: SILVA, T. D.; GOES, F. L. (org.). Igualdade racial no Brasil: reflexões no ano internacional dos afrodescendentes. Brasília: Ipea, 2013., p. 48).

Na próxima seção, discutiremos alguns aspectos que particularizam e fundamentam nossa análise sobre o trabalho doméstico remunerado no país, particularizando a inflexão da dimensão de raça sobre este fenômeno social.

A persistente inflexão da dimensão de raça no trabalho doméstico no Brasil

Segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD-C), realizada pelo IBGE no Brasil, em 2018, 93% dos postos de trabalho doméstico eram ocupados por mulheres; destas, 67% se autodenominavam negras2 2 Categoria constituída da soma daquelas autodenominadas pretas e pardas na PNAD-C. As pessoas consideradas não negras referem-se ao somatório das que se autodenominam indígenas, brancas ou amarelas. . Enquanto 10,1% do total de mulheres não negras da população ocupada feminina está no trabalho doméstico remunerado, do universo negro foram 17,4%. No mesmo ano, o percentual de mulheres negras entre as trabalhadoras domésticas foi 10% superior às demais mulheres da População Economicamente Ativa. Enquanto no primeiro grupo a população de negras foi de 67%, as do segundo grupo representavam 57% na média nacional (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2020INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD). Notas Metodológicas. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.).

Esses dados apontam para a inflexão de gênero e raça no fenômeno do trabalho doméstico remunerado no Brasil, que estão imbricados ou interseccionados na realidade social, ainda, com a dimensão de classe social. Tal como analisou Melo,

[...] uma observação baseada na vivência dos lares brasileiros, memórias de nossas infâncias, o estereótipo de babás e cozinheiras era de negras e mulatas. Tal constatação permite sugerir que no Brasil as negras passaram diretamente da senzala para o trabalho doméstico. Como assinalou Gonzalez (1982, p. 98), quando a mulher negra “não trabalha como doméstica, encontramos esta prestando serviços de baixa remuneração nos supermercados, nas escolas ou nos hospitais, sob a denominação genérica de “empregadas de limpeza”. (MELO, 1998MELO, H. P. O serviço doméstico remunerado no Brasil: de criadas a trabalhadoras. Rio de Janeiro: IPEA, 1998., p. 8, grifo da autora).

De acordo com registros contidos em Barbosa (2008)BARBOSA, A. F. A formação do mercado de trabalho no Brasil. São Paulo: Editora Alameda, 2008. referentes ao Recenseamento da População de 1872, 70,1% da população escrava estava na agricultura e 23,4% nos serviços, sendo que destes, 15,2% especificamente nos serviços domésticos. Naquele tempo, exerciam funções como jardineiros, mucamas, amas de leite, costureiras, aias, pajens, cozinheiros. Também cuidavam dos filhos dos senhores, transmitiam recados, serviam à mesa e recebiam as visitas.

Assim, a posse de um criado para os cuidados domésticos foi se arraigando no imaginário social enquanto um símbolo de status. As elites brasileiras desenvolveram um “estilo de vida que, em todas as suas variantes, dependia dos criados não apenas para suprir as necessidades da existência diária, mas também para exibir uma posição social de privilégios” (GRAHAM, 1992GRAHAM, S. L. Proteção e obediência, criadas e seus patrões no Rio de Janeiro 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992., p. 20). Por isso, as babás e amas precisavam estar presentes nos “cartões de visita” dos seus filhos.

A Figura 1, a seguir, faz parte de um acervo digitalizado, no contexto de um projeto da Unicamp, que contém imagens de um passado recente que se processava no Brasil nos idos do século XIX. Ou seja, há pouco mais de cem anos. A foto foi feita na cidade do Rio de Janeiro, e é originária dos acervos de famílias de elites dessa cidade.

Figura 1
– Retrato de babá brincando com criança. Sem especificação de formato. Foto de Jorge Henrique Papf. Petrópolis (RJ), c. 1899. Coleção G. Ermakof. Rio de Janeiro.

Analisando as experiências sociais de mulheres escravas, libertas e descendentes livres, na cidade de São Paulo, durante o último quartel do século XIX, no contexto do crescimento urbano acelerado, do processo avançado da abolição e da política imigratória que conduziam para a Capital imigrantes pobres e libertos destutelados, Telles (2011)TELLES, L. F. S. Libertas entre sobrados: contratos de trabalho doméstico em São Paulo na derrocada da escravidão. Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011., identificou nos registros policiais um alto percentual de mulheres negras inscritas, o que indica que,

[...] a expansão do mercado de trabalho não lhes significou ganhos significativos: o peso das relações escravistas patriarcais e seu habitual desapreço pelo trabalho manual desempenhado tradicionalmente pelas escravas, relegavam aquelas agentes da subsistência e suas ocupações desqualificadas a baixos salários e a condições de trabalho particularmente opressivas: alicerces da subsistência apagada no contexto da construção da hegemonia econômica e política da burguesia cafeeira. (TELLES, 2011TELLES, L. F. S. Libertas entre sobrados: contratos de trabalho doméstico em São Paulo na derrocada da escravidão. Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011., p. 125).

A herança escravocrata na formação social brasileira agravou o desprezo social pelo trabalho doméstico, já naturalizado historicamente como lugar social da mulher e da servilidade. Na sociedade escravista, o trabalho manual era visto como desqualificado e aviltante. Segundo Barbosa (2008)BARBOSA, A. F. A formação do mercado de trabalho no Brasil. São Paulo: Editora Alameda, 2008., o Recenseamento da População de 1872 apontava que da população escrava ocupada nos serviços domésticos, já havia mais mulheres do que homens: 129.816 e 45.561, respectivamente. Assim, não é irrelevante que o trabalho doméstico e de cuidado da casa-grande tenha sido atribuído exclusivamente às mulheres negras e vetado às mulheres brancas (KOFES, 1990KOFES, M. S. Diferença e identidades nas armadilhas da igualdade e desigualdade: Interação e relação entre patroas em empregadas domésticas. 1990. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990.). O fato de a delegação das tarefas domésticas e de cuidados no Brasil, desde o período colonial, ter sido realizada predominantemente às mulheres negras, “[...] pressupõe a existência de uma divisão racial do trabalho reprodutivo entre mulheres. [...] assentada em tão sólida referência, a divisão racial do trabalho, desempenha funções relevantes tanto na perpetuação da divisão sexual, quanto na segregação racial do trabalho”. (ENGEL; PEREIRA, 2015ENGEL, C.; PEREIRA, B. C. J. A organização social do trabalho doméstico e de cuidado: considerações sobre gênero e raça. Revista Punto Género, Santiago, n. 5. nov. 2015., p. 14, 19).

Por sua vez, sem se dissociar da forte vinculação à cultura de servidão e subordinação de raça, ao longo do século XX foi havendo e do ponto de vista formal uma passagem da condição de criadas a trabalhadoras, assim como uma certa profissionalização e mercantilização dessa ocupação, o que tencionou no sentido da modificação do padrão das relações de criadagem e de servilismo predominantes no período da escravidão e que permaneceram vigendo no período pós-abolição mesmo que com formatos renovados (MELO, 1998MELO, H. P. O serviço doméstico remunerado no Brasil: de criadas a trabalhadoras. Rio de Janeiro: IPEA, 1998.). Contudo, dados da PNAD de 1992 apontam que, naquele ano, ainda existiam no país 19,2% de trabalhadoras(es) domésticas(os) remuneradas que residiam em seus locais de trabalho (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2020INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD). Notas Metodológicas. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.), o que representa situação mais propícia ao desenvolvimento de relações de trabalho servis e subordinadas. O reconhecimento da(do) doméstica(o) enquanto trabalhadora(r), assim como a garantia dos seus direitos sociais e trabalhistas foi ocorrendo ao longo das décadas do século XX de forma muito lenta e discriminatória.

Nos anos de 1940, a criação da Consolidação dos Direitos do Trabalho (CLT) não contemplou a totalidade das situações de trabalho já existentes no país naquela época. Esse foi o caso do trabalho doméstico, que mesmo sendo uma das primeiras ocupações registradas no território nacional não foi objeto do conjunto de direitos consolidados. Essa discriminação prolongou-se por várias décadas e as regulamentações da atividade doméstica remunerada foram ocorrendo no país de maneira parcial e paulatina.

Somente na década de 1970, por meio da Lei n. 5.859/1972, foi assegurado à(ao) trabalhadora(r) doméstica(o) o direito ao registro do contrato na carteira de trabalho, e com isso os benefícios e serviços da previdência social. Porém, mesmo assim, a maior parte dos direitos previstos para os demais trabalhadores urbanos na CLT não foram estendidos à categoria.

A Constituição Federal de 1988, no art. 7º, instituiu vários direitos referentes aos trabalhadores em geral, mas somente nove destes foram estendidos às(os) empregadas(os) domésticas(os): salário-mínimo; irredutibilidade do salário; décimo terceiro salário; repouso semanal remunerado; férias anuais, com adicional de 1/3 do salário normal; licença maternidade por 120 dias; licença paternidade e aviso prévio. O direito à organização e representação sindical também foi reconhecido por meio da Constituição de 1988 (BRASIL, 2015BRASIL. Lei complementar nº 150, de 1º de junho de 2015. Dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico; altera as Leis nº 8.212, de 24 de julho de 1991, nº 8.213, de 24 de julho de 1991, e no 11.196, de 21 de novembro de 2005; revoga o inciso I do art. 3º da Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990, o art. 36 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, a Lei nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972, e o inciso VII do art. 12 da Lei nº 9.250, de 26 de dezembro 1995; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm. Acesso em: 18 jan. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
).

Em 2001, a Lei n. 10.208 acrescentou o direito à(ao) empregada(o) doméstica(o) ter acesso ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que é condição para acesso ao benefício do seguro-desemprego (BRASIL, 2001BRASIL. Lei no 10.208, de 23 de março de 2001. Acresce dispositivos à Lei nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972, que dispõe sobre a profissão de empregado doméstico, para facultar o acesso ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS e ao seguro-desemprego. Brasília, DF: Presidência da República, 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10208.htm. Acesso em: 18 jan. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). No entanto, nesse momento foi instituído de forma facultada ao interesse do empregador.

Já em 2006, a Lei n. 11.324 assegurou obrigatoriamente o direito à estabilidade à doméstica gestante, vetou ao empregador doméstico efetuar descontos no salário de seu empregado e assegurou descontos no imposto de renda para estimular a formalização do vínculo via assinatura da carteira de trabalho (BRASIL, 2006BRASIL. Lei nº 11.324, de 19 de julho de 2006. Altera dispositivos das Leis nº s 9.250, de 26 de dezembro de 1995, 8.212, de 24 de julho de 1991, 8.213, de 24 de julho de 1991, e 5.859, de 11 de dezembro de 1972; e revoga dispositivo da Lei nº 605, de 5 de janeiro de 1949. Brasília, DF: Presidência da República, 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11324.htm. Acesso em: 18 jan. 2022.
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). E, ainda, ampliou para 30 dias o período de férias anuais.

Somente por meio da Lei Complementar n. 150/2015, as(os) trabalhadoras(res) domésticas(os) tiveram pela primeira vez a jornada de trabalho delimitada, que passou a ser de 44 horas semanais, 8 horas diárias e horário de almoço, além do pagamento de hora extra, com banco de horas; recolhimento obrigatório do FGTS por parte do empregador; adicional noturno, auxílio-creche; e auxílio família; multa em caso de demissão sem justa causa, dentre outros (BRASIL, 2015BRASIL. Lei complementar nº 150, de 1º de junho de 2015. Dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico; altera as Leis nº 8.212, de 24 de julho de 1991, nº 8.213, de 24 de julho de 1991, e no 11.196, de 21 de novembro de 2005; revoga o inciso I do art. 3º da Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990, o art. 36 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, a Lei nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972, e o inciso VII do art. 12 da Lei nº 9.250, de 26 de dezembro 1995; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm. Acesso em: 18 jan. 2022.
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).

Contudo, os dados da PNAD-C registram que, no ano de 2018, somente 30% na média nacional de pessoas ocupadas nos serviços domésticos tinham seus contratos de trabalho formalizados por meio da assinatura da carteira de trabalho por parte dos empregadores (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2020INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD). Notas Metodológicas. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.). Em alguns estados de regiões como Norte e Nordeste, esse percentual é ainda menor. Esses dados apontam para o fato de que o horizonte de luta por reconhecimento e efetivação dos direitos dessa parcela da classe trabalhadora no Brasil ainda é longo.

Assim, apesar do avanço representado pela aprovação da LC n. 150/2015, as consequências do tratamento discriminatório e excludente sofrido pelas(os) trabalhadoras(res) domésticas(os) remuneradas(os) no Brasil, no que se refere ao reconhecimento de direitos e de condições de trabalho, ainda são uma realidade a ser enfrentada seriamente quando está em pauta a dignidade da pessoa humana, a cidadania e a democracia no Brasil. Uma dessas frentes de luta é a expansão do acesso das(dos) domésticas(os) aos direitos trabalhistas conquistados e ao sistema de proteção social previdenciária.

Considerações finais

Neste artigo, analisamos a questão de raça sob o ponto de vista da colonialidade do poder, geradora de subalternidades e dominações próprias do sistema-mundo colonial-moderno, o qual, por sua vez, posiciona a América Latina e, consequentemente o Brasil, de maneira dependente e periférica na dinâmica da reprodução ampliada e mundializada do capital. Esta realidade vincula as determinações da formação e desenvolvimento das relações sociais e da própria classe trabalhadora nesse país e região.

No que diz respeito ao trabalho doméstico remunerado, as inflexões da dimensão de raça, associadas às determinações de gênero e classe social, são significativas e persistentes ao longo da história, gerando consequências nas condições de trabalho e vida de milhões de trabalhadoras(es) negras(os) que se ocupam dessa atividade, como forma de sustento de suas próprias vidas e de suas famílias.

Não obstante a longeva participação do trabalho doméstico na dinâmica reprodutiva das famílias brasileiras, esta sociedade tem conferido às(os) domésticas(os) um tratamento discriminatório, ignorando o estatuto do trabalho, e, consequentemente, seus direitos como trabalhadoras(es). As condições socio-históricas em que se desenvolveu essa ocupação no Brasil denuncia que não bastam medidas isoladas e pontuais para garantir e assegurar a concretização de direitos. Diante das persistentes marcas da herança escravocrata na sociedade brasileira, se faz necessário um amplo trabalho de educação e reflexão sobre as práticas cotidianas que a naturalizam e perpetuam.

Concluímos apontando para a necessidade de que as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) remuneradas(os) brasileiras(os), em sua massiva maioria mulheres negras, sejam vistas(os), respeitadas(os), cuidadas(os) e protegidas(os) enquanto trabalhadoras(es) e cidadãs(ãos).

Agradecimentos

Não se aplica.

  • 1
    Segundo o qual a miscigenação e todo o discurso mítico que a envolveu e envolve, constrói a falsa ideia de que não há hierarquia racial no país, encobrindo os padrões de dominação e exploração de raça que permanecem vivos nas práticas sociais.
  • 2
    Categoria constituída da soma daquelas autodenominadas pretas e pardas na PNAD-C. As pessoas consideradas não negras referem-se ao somatório das que se autodenominam indígenas, brancas ou amarelas.
  • Agência financiadoraNão se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação. Não se aplica.
    Consentimento para publicaçãoAs autoras consentem a publicação

Referências

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  • BRASIL. Lei complementar nº 150, de 1º de junho de 2015. Dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico; altera as Leis nº 8.212, de 24 de julho de 1991, nº 8.213, de 24 de julho de 1991, e no 11.196, de 21 de novembro de 2005; revoga o inciso I do art. 3º da Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990, o art. 36 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, a Lei nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972, e o inciso VII do art. 12 da Lei nº 9.250, de 26 de dezembro 1995; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm Acesso em: 18 jan. 2022.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2021
  • Aceito
    16 Dez 2021
  • Revisado
    11 Fev 2022
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