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Política de Segurança Alimentar e Nutricional no enfrentamento da fome produzida pelos impérios alimentares

National Food and Nutrition Policy in the fight against hunger generated by food empires

Resumo

Este artigo, de natureza qualitativa, recorre à metodologia bibliográfica e documental, consistindo em um ensaio apresentado em três seções, além da introdução e das considerações finais. Objetiva discutir a fome na agenda política brasileira que viola o direito ao acesso a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e sustentável. Problematiza sobre: a produção da fome como expressão da desigualdade de classe na sociedade capitalista; o direito à alimentação e a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, a partir da análise socio-histórica do enfrentamento à fome e da formulação do arcabouço legal na agenda política brasileira; e como a estrutura e dinâmica do sistema alimentar hegemônico sustenta os impérios alimentares, com repercussão na redução do acesso à comida de verdade, no apagamento do patrimônio alimentar, desrespeitando a soberania alimentar, e no incentivo ao elevado consumo de alimentos/mercadorias ultraprocessados e seus efeitos deletério para a saúde humana e biodiversidade.

Palavras-chave:
Fome; Capital; Sistema alimentar; Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; Direito social à alimentação

Abstract

This article, characterized by a qualitative nature, employs a bibliographic and documental methodology and consists of an essay organized into three sections, in addition to the introduction and final considerations. It analyzes hunger in the Brazilian political agenda, which violates the right to access quality food in sufficient and sustainable quantities. It discusses: the production of hunger as an expression of the class inequality within the capitalist society; the right to food and the National Food and Nutrition Policy, based on a socio-historical analysis of the fight against hunger and of the formulation of the Brazilian political agenda; and how the structure and dynamics of the current hegemonic food system sustains food empires, with consequences such as the reduction of access to real food, the disappearance of food habits and traditions, disrespecting food sovereignty, and the incentive to an elevated consumption of ultra-processed foods/merchandise, with its deleterious effects for human health and biodiversity.

Keywords:
Hunger; Capital; Food system; National Food and Nutrition Policy; Social right to food

Introdução

- Me responda uma coisa: de que planeta você veio?

- Do mesmo planeta seu senhor Ary.

- E qual é o meu planeta?

- O planeta fome!

(Elza Soares, 2017)1 1 Diálogo de Elza Soares com o apresentador Ary Barroso, durante participação da cantora no programa Calouros em Desfile, na Rádio Tupi, em 1953, citado por ela em entrevista concedida ao programa Matador de Passarinho, de Rogério Skylab, no Canal Brasil em 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=g-wYdwswq6s. Acesso em: 26 fev. 2022.

A fome das/os brasileiras/os volta aos noticiários ao mesmo tempo em que a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), órgão do governo que monitora o desenvolvimento das principais safras de grãos no país, divulga o recorde de 289,8 milhões de toneladas de grãos na safra 2021/22, produção essa que matematicamente indicaria situação de segurança alimentar no Brasil, ou seja, acima de 250 kg/pessoa/ano (indicador de segurança alimentar de um país), com uma população de aproximadamente 215 milhões de habitantes (CONAB, 2022CONAB. Companhia Nacional de Abastecimento. Boletim de Monitoramento Agrícola. Brasília, v. 11, n. 02, p. 1-20, 2022.).

Passadas mais de sete décadas desde a publicação da obra “Geografia da fome: o dilema brasileiro pão e aço” (1946), de Josué de Castro, que denuncia a naturalização da tragédia da fome no país e suas origens econômicas e sociais, a fome se apresenta nas Unidades de Saúde, confundida com doença. “Todas as semanas, atendo mais ou menos cinco pacientes dizendo que estão doentes, mas, quando examinamos, notamos que, na verdade, não é doença, é fome”, relato da médica Natália, que atua em uma unidade de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) no Distrito Federal (DF). (EL PAÍS, 2021).

Um mês antes, no dia 13 de abril de 2021, o grupo de pesquisa “Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia” já apontava esta realidade, por meio da divulgação dos resultados da pesquisa “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, realizada entre novembro e dezembro de 2020. Entre os diversos dados, o relatório revelou que 125,6 milhões de brasileiros (59,3%) sofrem com insegurança alimentar durante a pandemia do COVID-19 no Brasil. Um dado importante revelado pela pesquisa é que a insegurança alimentar é mais grave em lares chefiados por mulheres (73,8,%), entre pessoas pretas (66,8%) e pardas (67,8%), mais pobres (71,4% nos domicílios com renda per capita de até R$ 500,00) e nas regiões Nordeste (73,1%), Norte (67,7%) ou em áreas rurais (75,2%) (GALINDO et al., 2021GALINDO, E. et al. Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil. Food for Justice Working Paper Series, Berlin, Food for Justice: Power, Politics, and Food Inequalities in a Bioeconomy, n. 4, 2021. DOI http://dx.doi.org/10.17169/refubium-29554
http://dx.doi.org/10.17169/refubium-2955...
). O aumento da insegurança alimentar e da fome no país tem sido interpretado como uma das consequências da atual pandemia, um problema conjuntural. Visão reducionista, pois, mesmo considerando o cenário da avassaladora crise sanitária, agravada pelo negacionismo e o desemprego, ela não é o único determinante e tampouco central nessa questão.

A pandemia da Covid-19 encontrou um Brasil governado pela ultradireita, no contexto de aprofundamento da crise do capital, que se soma à crise política, intensificada a partir do golpe institucional de 2016 e, posteriormente, no ilegítimo governo Temer. O governo neofascista de Jair Bolsonaro, acompanhado do ministro Paulo Guedes, tem como foco responder diretamente aos interesses do capital financeiro, atacar direitos da classe trabalhadora e se pautar em um discurso ideológico ultraconservador, ancorado no sentimento do “anti-petismo”.

Este artigo de natureza qualitativa recorre à metodologia bibliográfica e documental, consistindo em um ensaio opinativo apresentado em três seções, adicionais à introdução e considerações finais. Na primeira seção discutimos a produção da fome como expressão da desigualdade de classe na sociedade capitalista. O direito à alimentação e a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN), na segunda seção, são abordados a partir da análise socio-histórica do enfrentamento à fome e da formulação do arcabouço legal na agenda política brasileira. Na terceira seção, o sistema alimentar atual hegemônico é problematizado quanto à estrutura e dinâmica, que sustenta os impérios alimentares, com repercussão na redução do acesso à comida de verdade, no apagamento do patrimônio alimentar, no desrespeito à soberania alimentar e no incentivo ao elevado consumo de alimentos/mercadorias ultraprocessados e seus efeitos deletérios para a saúde humana e ambiental.

Fome: produzida e alimentada pelo capitalismo

A produção da fome no mundo persiste ao mesmo tempo em que malthusianos e neomalthusianos2 2 De acordo com Matos (2012, p. 456-457), as teses de Malthus insistem em não desaparecer, e nos anos de 1960 ganham evidência os neomalthusianos, tendo como expoente o biólogo Paul Ehrlich, que publicou, em 1968, seu famoso livro The population bomb. A ênfase volta-se para o desmatamento, redução da biodiversidade, nas áreas tropicais, efeito estufa, destruição da camada de ozônio. alimentam suas reflexões sobre o desenvolvimento da sociedade a partir da relação entre o crescimento da população e os limites da produção de alimentos e dos recursos naturais. A teoria sobre o crescimento da população em progressão geométrica e o ritmo aritmético da produção de alimentos desenvolvida por Thomas Malthus, no Ensaio sobre o princípio da população (1798), não se confirmou. Marx (2011)MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. E-book. São Paulo: Boitempo. 2011. desenvolveu nos Grundrisse uma crítica radical e ácida dirigida a Malthus, quanto ao caráter a-histórico de sua concepção, afirmando que ele: “transforma as relações historicamente distintas em uma relação numérica abstrata, tirada simplesmente do nada, que não se baseia nem em leis naturais nem em leis históricas” (MARX, 2011MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. E-book. São Paulo: Boitempo. 2011., p. 809).

Desde a elaboração da teorização demográfica malthusiana, os avanços científicos e tecnológicos foram de tal ordem que se desenvolveu um incremento técnico, que possibilitou uma elevada produtividade agrícola; como também, o surgimento da indústria alimentícia criadora de mercadoria/alimento, muitas vezes sem associação direta com a comida de verdade, e com demandas direcionadas ao agronegócio. O problema que enfrentamos com a fome mundial não é a falta de comida, ou seja, não é uma questão matemática: requer reflexão sobre o acesso e a qualidade dos alimentos para a população, frente à estrutura do sistema alimentar mundial.

Entretanto, a solução para a falta de víveres e a fome elaborada por Malthus, através do controle moral da população pobre, ainda encontra eco nas atuais políticas sociais neoliberais. Malthus naturaliza a miséria, discordando veementemente das medidas da Poor Laws (1750-1834), fossem elas a distribuição de grãos ou as workhouses, fornecendo uma interpretação que, ao mesmo tempo em que naturaliza a pobreza, desresponsabiliza a classe dominante de qualquer intervenção social. Desde que a humanidade conseguiu produzir excedentes manipulando a natureza e controlando a produção, e estas transformadas em mercadorias, a fome não pode ser compreendida como um fenômeno natural.

Segundo Lenin (2012)LENIN, V. I. Imperialismo, estágio superior do capitalismo. São Paulo: Expressão Popular, 2012., a expansão do território europeu, a dominação e a colonização de povos contaram com teorias como a de Malthus para a justificativa e legitimação desse processo, e a América Latina guarda este passado presente. A inserção desta região na dinâmica capitalista vai se expressar de forma dependente (FERNANDES, 2009FERNANDES, F. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. 4. ed. São Paulo: Global, 2009.). Esta relação de subordinação da América Latina, no marco da divisão internacional do trabalho e relação comercial desigual entre países centrais e periféricos, com a oferta de produtos primários com valores depreciados e a perda de renda gerada pelo comércio internacional, foi compensada “por meio do recurso de uma maior exploração do trabalhador” (MARINI, 1990MARINI, R. M. Dialética da Dependência. Tradução de Marcelo Carcanholo, Universidade Federal de Uberlândia, MG. Post-scriptum traduzido por Carlos Eduardo Martins, Universidade Estácio de Sá. 10. ed. Rio de Janeiro: Era, México, 1990., p. 20).

As condições de existência — objetivas e subjetivas — de homens e mulheres submetidos à fome os impossibilitam de acessarem alimentos e nutrientes de modo a repor cotidianamente, em quantidade e qualidade, suas energias vitais, sua força de trabalho. Em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, de Friedrich Engels (2010)ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra: segundo as observações do autor e fontes autênticas. Tradução de B. A. Schumann. Mundo do trabalho; Coleção Marx-Engel. São Paulo: Boitempo, 2010., encontramos a denúncia da fome, produzida pela lógica da moderna sociedade industrial e desnudada pela análise histórico-social. “É fácil compreender que tanto a qualidade como a quantidade da alimentação dependem do salário e que, entre os operários mais mal pagos, em especial entre aqueles que têm uma família numerosa, a fome impera, mesmo em períodos nos quais há empregos” (ENGELS, 2010ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra: segundo as observações do autor e fontes autênticas. Tradução de B. A. Schumann. Mundo do trabalho; Coleção Marx-Engel. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 114).

A promessa de que o progresso e o avanço das forças produtivas, na adoção das modernas técnicas de cultivo e produção de alimentos, trariam abundância de comida e a fome seria tão somente uma triste lembrança de tempos em que as intempéries da natureza controlavam as safras não foi cumprida. Desde que a mercadoria se tornou capital,

O trabalho produz suas condições de produção enquanto capital, e o capital produz o trabalho assalariado como meio de sua realização enquanto capital. A produção capitalista não é só reprodução da relação: é sua reprodução medida em escala crescente; e na mesma medida em que, com o modo de produção capitalista, se desenvolve a força produtiva social de trabalho, cresce também a riqueza acumulada, em oposição ao operário, como riqueza que o domina, como capital; estende-se frente a ele o mundo da riqueza como mundo alheio e que o domina, e na mesma proporção se desenvolvem, por oposição sua pobreza, indigência e sujeição subjetiva. (MARX, 1978MARX, K. O Capital. Livro I: Capítulo VI (Inédito). 1. ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Sociais e Humanas Ltda. 1978., p. 92).

As políticas sociais fundamentadas em perspectivas teórico-metodológicas cobertas pelo véu ideológico do neoliberalismo naturalizam a pobreza, e seus corolários: culpabilização, criminalização, ameaça à ordem e à coesão social. A lógica cultural da atual fase do capitalismo, de acordo com Jameson (1996)JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996., reforça a superficialidade e o efêmero, desconsiderando a historicidade dos fenômenos, características que impregnam as interpretações e as respostas construídas pelo Estado frente aos diversos fenômenos sociais, como a fome, a pobreza e a desigualdade social. Sob este ângulo, as desigualdades sociais advindas da desigualdade de classe são consideradas “resultante da ‘inadaptação dos antigos métodos de gestão do social’, produto da crise do ‘Estado Providência’” (IAMAMOTO, 2021IAMAMOTO, M. V. A Questão Social no Capitalismo. In: DURIGUETTO, M. L.; IAMAMOTO, M. V. (org.). Serviço social: questão social, território e política social. Juiz de Fora, MG: Editora da UFJF, 2021., p. 184); e as respostas às múltiplas expressões da questão social são reduzidas à “órbita da ordem instituída nos marcos da mundialização do capital sob a égide do grande capital financeiro e das políticas neoliberais” (IAMAMOTO, 2021IAMAMOTO, M. V. A Questão Social no Capitalismo. In: DURIGUETTO, M. L.; IAMAMOTO, M. V. (org.). Serviço social: questão social, território e política social. Juiz de Fora, MG: Editora da UFJF, 2021., p. 184).

Enfrentamento da fome na agenda política brasileira: descontinuidades, avanços e retrocessos

A falta de acesso à comida em quantidade e qualidade suficiente para a vida, isto é, a fome, é uma das múltiplas expressões da contradição entre capital e trabalho, e sua forma de enfrentamento no Brasil, na agenda das políticas sociais, oscila entre descontinuidade, avanços e retrocessos da Segurança Alimentar e Nutricional como direito humano e social.

As primeiras iniciativas de enfrentamento à fome no Brasil, pelo Estado, vinculam-se com as necessidades do capital em obter trabalhadores fortes e qualificados para a indústria, na nova etapa do desenvolvimento capitalista que se forjava, no período do Estado Novo (1937–1945). O Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS) criado em 1940 teve como principais atividades “os restaurantes populares, os postos de comercialização de gêneros de primeira necessidade (subsistência) a preços de custo e as campanhas de educação nutricional nos locais de trabalho para divulgar as vantagens de uma boa alimentação” (PINHEIRO; CARVALHO, 2010PINHEIRO, A. R. O.; CARVALHO, M. F. C. C. Transformando o problema da fome em questão alimentar e nutricional: uma crônica desigualdade social. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. 1, p. 121-130, 2010., p. 123); e em 1945 foi criada a Comissão Nacional de Alimentação (CNA), sem efetiva atuação. Sob a égide do empresariado amparado pelo Estado, foi criado o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) em 1942, que logo identificou que “o operário se alimenta pouco e mal, e os alunos do SENAI, menores e adultos, estão longe de atingir um padrão recomendável de robustez orgânica, tendo em vista as tarefas que precisam desempenhar na indústria, com as grandes perdas energéticas do trabalho” (PONTES, 1945 apud IAMAMOTO; CARVALHO, 1982IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. de. Relações sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez; Lima: Celats, 1982., p. 259).

A força de trabalho, nesse período, requerida pelo capital, necessitava ser alimentada de nutrientes para o corpo e “espírito”. Ao primeiro foi fornecida a sopa escolar ou uma merenda substanciosa (PONTES, 1945 apud IAMAMOTO; CARVALHO, 1982IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. de. Relações sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez; Lima: Celats, 1982., p. 260), e ao segundo uma “formação técnica aliada à educação social e moral” (PONTES, 1945 apud IAMAMOTO; CARVALHO, 1982IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. de. Relações sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez; Lima: Celats, 1982., p. 262), medidas assistenciais e educativas, objetivando o disciplinamento da classe trabalhadora.

Visando ampliar a introdução de seus produtos industrializados, cresce a influência dos países centrais, especialmente os EUA, via organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a partir de 1950 nos países dependentes e periféricos da América Latina. Com foco no desenvolvimento econômico, a ênfase do governo nesse período foi no fortalecimento de estruturas de produção, armazenamento e abastecimento de alimentos. E assim, para compor o Sistema Nacional de Abastecimento foram criadas: a Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal), a Companhia Brasileira de Armazenamento (Cibrazem) e a Superintendência Nacional do Abastecimento (SUNAB) (SILVA, 2014SILVA, S. P. A trajetória histórica da segurança alimentar e nutricional na agenda política nacional: projetos, descontinuidades e consolidação. Rio de Janeiro: Ipea, 2014.).

O golpe de 1964 confirmou a fusão entre a elite militar e o grande capital, aprofundando a internacionalização do sistema produtivo nacional e sua forte integração e subordinação à economia capitalista mundial. A modernização conservadora assumida durante a ditadura, cada vez mais aliada ao capital estrangeiro, modificou a estrutura e o perfil da produção agrícola integrando-a à dinâmica industrial de produção, alterando a sua base técnica, constituindo a agroindústria, a indústria processadora de alimentos e matéria-prima. A reforma agrária foi negada, e a produção agropecuária foi renovada mediante a sua dinamização com o uso da tecnologia, aprofundando a concentração e centralização da terra (MARTINE, 1991MARTINE, G. A trajetória da modernização agrícola: a quem beneficia? Lua Nova: Revista de Cultura e Política, v. 23, p. 7-37, 1991.). Iniciativas estatais, como a CNA, foram substituídas pelo Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN) e o Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS), incorporado pelo Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT).

No período ditatorial (1964-1985), as políticas sociais, ao mesmo tempo em que eram restritas ao acesso, foram ampliadas pela via privatista, e o enfrentamento à fome no Brasil já limitado; o binômio “alimentação-educação” cedeu seu lugar ao binômio “alimentação-renda”, reduzindo-se a programas sociais focalizados e restritos à população de baixa renda, que se configuraram como “[...] estratégias compensatórias da contraditória relação capital-trabalho” (PINHEIRO, 2009PINHEIRO, A. R. O. Análise histórica do processo de formulação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (2003-2006): atores, ideias, interesses e instituições na construção do consenso político. 234f. Tese (Doutorado em Política Social) – Instituto de Ciências Humanas. Universidade de Brasília, 2009., p. 33). A população afetada pela crise econômica e com a restrição dos direitos civis e políticos desse período, sob liderança dos movimentos eclesiais de base da Igreja Católica, denunciou a fome através dos movimentos sociais: Movimento do Custo de Vida (1972), Movimento Contra a Carestia (1977) e o I Congresso Nacional de Luta Contra a Carestia, em 1980.

Com o processo de retomada das prerrogativas democráticas e a elaboração da Constituição Federal de 1988, com significativos avanços na Seguridade Social, em sua redação original o direito à alimentação manteve-se negligenciado, presente inicialmente apenas a partir da vinculação ao direito à educação, assistência à saúde, e como direito da criança e do adolescente. O direito à alimentação somente foi reconhecido vinte e dois anos mais tarde, com sua inserção no rol dos direitos sociais a partir da aprovação da emenda constitucional nº 64, de 2010. O marco legal da Constituição de 1988 não foi suficiente para que houvesse a incorporação efetiva do combate à fome na agenda política governamental na década seguinte. Ao contrário, a estruturação e a intensificação das bases do neoliberalismo a partir da década de 1990 “abarcou: reestruturação produtiva, contrarreforma do Estado, financeirização do capital com todo contexto de refilantropização da questão social, desresponsabilidade estatal com transferência para o terceiro setor” (LAGE, 2019Lage, L. N. V. Interesses capitalistas e desafios para a efetivação dos direitos sociais: ataques e regressões. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 22, n. 01, p. 120-128, jan./abr. 2019., p. 126).

Programas foram extintos e/ou sofreram cortes orçamentários. Em 1989, eram doze programas federais para alimentação e ao final do governo Collor apenas três se mantiveram (PINHEIRO, 2009PINHEIRO, A. R. O. Análise histórica do processo de formulação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (2003-2006): atores, ideias, interesses e instituições na construção do consenso político. 234f. Tese (Doutorado em Política Social) – Instituto de Ciências Humanas. Universidade de Brasília, 2009.). O neoliberalismo que entende “[...] necessária a filantropia revisitada, a ação humanitária, o dever moral de assistir aos pobres [...]” (YAZBEK, 2001YAZBEK, M. C. Pobreza e exclusão social: expressões da questão social no Brasil. Temporalis, Brasília, ABEPSS Grafline, n. 03, p. 33-40, 2001., p. 36) desresponsabiliza o Estado, e transfere o protagonismo para a sociedade civil no desenvolvimento de ações de combate à fome no Brasil. Destaca-se aqui o movimento “Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida” criado em 1993 e liderado pelo sociólogo Herbert de Souza, que teve como um dos seus importantes desdobramentos a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) em abril de 1993.

O CONSEA deliberou, ao longo de sua atuação, cinco conferências nacionais (1994-2015). Essa atuação é marcada por uma forte influência do governo federal, que ora levou a interrupções, desmontes ou retrocessos, ora a fortalecimentos. A I Conferência Nacional de Segurança Alimentar teve como tema central: “Fome, Questão Nacional”. Porém, o controle social e o processo de participação na construção da agenda de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) no Brasil foram precocemente interrompidos com a desativação do CONSEA em 1995. Nesse mesmo ano, no governo de Fernando Henrique Cardoso, foi criado o Programa Comunidade Solidária (PCS), com abordagens pontuais e cunho filantrópico, a principal estratégia desse governo no combate à fome e à miséria no Brasil. No entanto, os eixos estratégicos dessa Conferência foram incorporados à Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde em 1999, inovando ao firmar a promoção do direito humano à alimentação adequada (DHAA) como fundamento de suas ações e apontar para a necessidade de criação de uma política abrangente de SAN (PINHEIRO; CARVALHO, 2010PINHEIRO, A. R. O.; CARVALHO, M. F. C. C. Transformando o problema da fome em questão alimentar e nutricional: uma crônica desigualdade social. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. 1, p. 121-130, 2010.).

A partir do ano 2000, o tema da fome ganhou novamente espaço na agenda política nacional. Em 2003, o recém-eleito presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva, que já pautava a proposta da PNSAN, reinstituiu o CONSEA e apresentou a estratégia de seu governo chamada “Fome Zero”, com ênfase no programa de transferência de renda “Bolsa Família”. Esse governo transferiu SAN do campo da saúde para a área de desenvolvimento social, criando o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, em 2004. Demarcou o início da formulação de uma política pública de SAN de nível nacional e intersetorial.

A criação da Lei Orgânica para a Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), em 2006, foi uma importante etapa do processo de formulação da PNSAN no Brasil, destinada a responder pelo conceito brasileiro de SAN: a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis (LOSAN, 2006). Com base nessas premissas, a LOSAN institui a criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). Fruto deste conjunto de ações de priorização da agenda de SAN, em 2014, segundo relatório da FAO, o Brasil saiu do Mapa da Fome Mundial (FAO, 2014FAO; IFAD; WFP. The State of Food Insecurity in the World 2014. Strengthening the enabling environment for food security and nutrition. Rome, FAO, 2014.): “No Brasil, os esforços iniciados em 2003 resultaram em processos participativos bem-sucedidos e instituições de coordenação, que entregaram políticas que efetivamente reduziram a pobreza e a fome” (FAO, 2014FAO; IFAD; WFP. The State of Food Insecurity in the World 2014. Strengthening the enabling environment for food security and nutrition. Rome, FAO, 2014., p. 20, tradução nossa).

Em 2016, com o impeachment da então presidente Dilma Rousseff, iniciou-se uma sequência de ataques nas estruturas que alicerçaram a SAN, entre elas do SISAN e da PNSAN. No mesmo ano, foi aprovada por Michel Temer a emenda constitucional nº 95, que congelou os gastos sociais por vinte anos e intensificou o desmonte das políticas de SAN no Brasil. Adicionalmente, nesse movimento de retrocesso e desmonte, o então recém-eleito Presidente Jair Bolsonaro publicou a Medida Provisória nº 870, de 1º de janeiro de 2019, que revogou o CONSEA. Em 2022, o CONSEA segue desativado, deixando claro não só a falta de prioridade do combate à fome do atual governo, como sua falta de abertura à participação e controle social no âmbito da construção, avaliação e monitoramento das políticas públicas.

Sistema alimentar hegemônico: a má nutrição e o apagamento do patrimônio alimentar

O Sistema Alimentar compreendido como o conjunto de elementos (ambiente, pessoas, insumos, processos, infraestrutura, instituições e organizações da sociedade civil, dentre outros) e atividades que se interrelacionam na produção, processamento, distribuição, preparação e consumo de alimentos (MORA et al., 2020MORA, O. et al. Exploring the future of land use and food security: a new set of global scenarios. Plos One, v. 15, n. 7, 2020. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0235597.
https://doi.org/10.1371/journal.pone.023...
; HLPE, 2014HLPE. Las pérdidas y el desperdicio de alimentos en el contexto de sistemas alimentarios sostenibles: un informe del Grupo de alto nivel de expertos en seguridad alimentaria y nutrición del Comité de Seguridad Alimentaria Mundial. Roma, 2014.) mantém relação indissociável com a produção e reprodução do capitalismo.

Desde que os gêneros alimentícios se tornaram mercadorias, e, portanto, capital, tornou-se possível a criação de comida sem relação direta com alimentos in natura. Assim, o atual sistema alimentar opera, prioritariamente, baseado em monoculturas, que fornecem matérias-primas para a produção dessas mercadorias, os alimentos ultraprocessados, ou para rações usadas na criação intensiva de animais, sustentando os impérios alimentares formados pelo agronegócio produtor de commodities, pelas indústrias transnacionais e logísticas responsáveis pelos insumos, beneficiamento, transporte e comercialização, incluindo as redes de supermercados, bem como o sistema financeiro. Esse sistema alimentar depende de grandes extensões de terra; do uso intenso de mecanização; do alto consumo de água e de combustíveis; do emprego de fertilizantes químicos, sementes transgênicas, agrotóxicos, antibióticos e, ainda, do transporte por longas distâncias (BRASIL, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed. Brasília, 2014.; MORA et al., 2020MORA, O. et al. Exploring the future of land use and food security: a new set of global scenarios. Plos One, v. 15, n. 7, 2020. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0235597.
https://doi.org/10.1371/journal.pone.023...
).

Em face de uma população mundial crescente, podendo atingir 9,7 bilhões em 2050 (ONU, 2019ONU. Organização das Nações Unidas. Department of Economic and Social Affairs Population Dynamics World Population Prospects 2019, Nova Iorque, Estados Unidos, 2019.), recursos naturais esgotáveis e mudanças climáticas, o Brasil vem ganhando destaques nos debates internacionais acerca da temática Sistema Alimentar, especialmente em função das suas riquezas naturais, grandes dimensões territoriais, diversidade sociocultural e produção agropecuária. O sistema alimentar brasileiro e o global na atualidade não possibilitam a oferta de uma alimentação adequada e saudável acessível a todos. Estima-se que mais de três bilhões de pessoas no mundo não possuem recursos para pagar por uma alimentação saudável, que custa, em média, cinco vezes mais que uma alimentação que só atende as necessidades energéticas, por meio de alimentos ricos em calorias e pobres em nutrientes, como os ultraprocessados. Isto porque a produção de alimentos ultraprocessados em larga escala, com cessão de benefícios fiscais em muitas federações, tende a tornar mais baratos esses alimentos/mercadorias, comparados a alimentos in natura ou minimamente processados (MORA et al., 2020MORA, O. et al. Exploring the future of land use and food security: a new set of global scenarios. Plos One, v. 15, n. 7, 2020. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0235597.
https://doi.org/10.1371/journal.pone.023...
; BÉNÉ et al., 2019BÉNÉ, C. et al. Quando os sistemas alimentares atendem à sustentabilidade: narrativas atuais e implicações para as ações. World Development, v. 113, p. 116–130, 2019.).

No Brasil, ressalta-se que a reprimarização (maior exportação de produtos primários em detrimento dos produtos industrializados) ascendente da economia brasileira, nos últimos tempos, com incentivos do Estado, resultou num tsunami de commodities, com aumento expressivo da criação de gado de corte e dos cultivos predominantes de soja, milho e cana-de-açúcar (LAMOSO, 2020LAMOSO, L. P. Reprimarização no território brasileiro. Espaço e Economia [online], n. 19, 2020. https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.15957.
https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.1...
). Esses impactos da reprimarização ameaçam ainda mais biomas ricos em sociobiodiversidade e fundamentais para os equilíbrios hídrico e climático, como a Amazônia e o Cerrado. Essas consequências negativas se juntam a uma maior concentração fundiária e de renda, redução de propriedades da agricultura familiar, maior urbanização, redução em postos de trabalho e pessoal ocupado, aumento do uso de agrotóxicos, e redução da diversidade na produção de alimentos (IBGE, 2017IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Agropecuário 2017: resultados definitivos. 2017. Disponível em: https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/resultados-censo-agro-2017.html. Acesso em: 28 fev. 2022.
https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/res...
).

Destaca-se, ainda, que o expressivo aumento do agronegócio nas últimas décadas contribuiu sobremaneira para o desmatamento e o aumento das emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE). O resultado ambiental devastador tem sido as mudanças climáticas, que vêm afetando a SAN devido ao aquecimento, mudanças nos padrões de precipitação e maior frequência de eventos climáticos extremos. A produção de frutas e hortaliças, alimentos in natura essenciais para uma alimentação adequada e saudável, é muito afetada por essas mudanças climáticas, o que também impacta nos meios de subsistência de comunidades mais pobres, contribuindo para as migrações (SWINBURN et al., 2019SWINBURN, B. A.; et al. The Global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: the lancet commission report. The Lancet, v. 393, p. 791-846, 2019.; MORA et al., 2020MORA, O. et al. Exploring the future of land use and food security: a new set of global scenarios. Plos One, v. 15, n. 7, 2020. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0235597.
https://doi.org/10.1371/journal.pone.023...
). Além disso, essas mudanças aumentaram a probabilidade de vírus patogênicos emergirem e proliferarem. À medida que se reduz a área das florestas tropicais, esses vírus são confinados a um espaço cada vez menor. SARS-CoV-2 é apenas um de diversos vírus que podem atingir tragicamente a espécie humana.

Portanto, o controle sobre a produção, processamento e comercialização de alimentos, as estratégias de marketing, enfim, o atual sistema alimentar hegemônico, possibilitou às grandes indústrias promoverem o alto consumo de alimentos/mercadorias (RAUBER et al., 2018RAUBER, F. et al. Ultra-Processed Food Consumption and Chronic Non-Communicable Diseases-Related Dietary Nutrient Profile in the UK (2008-2014). Nutrients, v. 10, n. 5, p. 1-13, 2018.). Os ultraprocessados são nutricionalmente desbalanceados. Isso devido a seus inúmeros ingredientes, geralmente cinco ou mais, com nomes pouco familiares e não empregados em preparações culinárias; à redução de compostos não nutrientes bioativos; à presença acentuada de xenobióticos e de substâncias neoformadas, especialmente liberadas de materiais de embalagem; ao uso estratégico de aditivos cosméticos para conferir hiperpalatabilidade/hipersabor; à textura mais macia de alimentos sólidos, com perturbação da matriz alimentar, mais “alimentos líquidos e consequentemente maior taxa de alimentação”, que promovem menor saciedade, menor efeito térmico/balanço energético positivo e maior compulsão alimentar; ao elevado teor de ingredientes críticos como açúcares, sódio e gorduras (BRASIL, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed. Brasília, 2014.; MONTEIRO et al., 2018MONTEIRO, C. A. et al. The UN Decade of Nutrition, the NOVA food classification and the trouble with ultra-processing. Public Health Nutrition, v. 21, n. 1, p. 5-17, 2018.).

O elevado consumo de ultraprocessados está fortemente associado a todas as formas de má nutrição, incluindo a desnutrição, a obesidade e outros riscos alimentares para doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), que atualmente representam a principal causa de doenças e mortes prematuras no mundo todo, em que a obesidade e seus determinantes guardam relação com três das quatro principais causas de DCNTs no planeta, incluindo doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2 e certos tipos de câncer (SWINBURN et al., 2019SWINBURN, B. A.; et al. The Global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: the lancet commission report. The Lancet, v. 393, p. 791-846, 2019.).

Esses alimentos/mercadorias que afetam desfavoravelmente a saúde das pessoas e do meio ambiente, bem como a vida social, contribuem para o apagamento progressivo do patrimônio alimentar, pois não promovem relação direta com a comida de verdade.

A comida de verdade é salvaguarda da vida. É saudável tanto para o ser humano quanto para o planeta [...]. Garante os direitos humanos, o direito à terra e ao território [...]. Respeita o direito das mulheres, a diversidade dos povos indígenas, comunidades quilombolas, povos tradicionais [...] desde a produção ao consumo. Protege e promove as culturas alimentares, a sociobiodiversidade, as práticas ancestrais, o manejo das ervas e da medicina tradicional, a dimensão sagrada dos alimentos. Comida de verdade começa com o aleitamento materno. É produzida pela agricultura familiar, com base agroecológica e com o uso de sementes crioulas e nativas [...]. É livre de agrotóxicos, de transgênicos [...] de todos os tipos de contaminantes. Comida de verdade garante a soberania alimentar; protege o patrimônio cultural e genético; reconhece a memória, a estética, os saberes, os sabores, os fazeres e os falares, a identidade, os ritos envolvidos [...] Comida de verdade não está sujeita aos interesses de mercado [...]. (CNSAN, 2016CNSAN. Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Relatório final da 5ª CNSAN: comida de verdade no campo e na cidade: por direitos e soberania alimentar. Brasília-DF, 2016.).

Os alimentos/mercadorias ultraprocessados tendem a ser consumidos em excesso e a substituir alimentos in natura, com as grandes marcas promovendo campanhas publicitárias multimilionárias e muito agressivas, com lançamentos contínuos de novos produtos que despertam a ilusão de diversidade de alimentos. Essas campanhas, muitas vezes, sugerem que a produção dessas mercadorias espelha fielmente os ingredientes e as etapas das preparações culinárias, ganham rótulos de “caseiros”, “menos calorias”, “adicionado de vitaminas e minerais”, “direto da nossa família para a sua”, são formulados e embalados para serem consumidos sem necessidade de qualquer preparação, a qualquer hora e em qualquer lugar; assim o seu consumo torna as preparações culinárias e a comensalidade desnecessárias, vinculando-se às faixas etárias, capturando desejos e/ou criando necessidades, culturas alimentares autênticas passam apagadas, a sensação de pertencer a uma cultura moderna e superior (BRASIL, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed. Brasília, 2014.; MONTEIRO et al., 2018MONTEIRO, C. A. et al. The UN Decade of Nutrition, the NOVA food classification and the trouble with ultra-processing. Public Health Nutrition, v. 21, n. 1, p. 5-17, 2018.). “A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia” (MARX, 1999MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro 1: O processo de produção do capital. 17. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999., p. 57).

Considerações finais

O arcabouço legal e institucional que compõe a PNSAN, conquistado principalmente a partir dos anos 2000, é fruto do movimento de denúncia e luta da população. A mesma população é obrigada a retornar às ruas durante a pandemia da Covid-19 para protestar contra a pobreza e a fome que sentem na própria pele, enquanto os impérios alimentares controlam a produção, a circulação dos alimentos, unificam e sustentam a dinâmica de acumulação que estrutura o sistema alimentar hegemônico.

O processo de instituição de políticas de SAN no Brasil é marcado por descontinuidades, avanços e retrocessos, em que a alimentação ainda encontra limites para seu reconhecimento como direito social, haja vista a extinção do CONSEA pelo atual governo.

Será possível garantir o DHAA na sociedade capitalista? Compreendemos que a organização do sistema de gestão da PNSAN não é garantia de acesso à alimentação em quantidade e qualidade suficiente e sustentável. Por outro lado, o não reconhecimento legal do direito à alimentação, materializado em estruturas, equipamentos, recursos humanos e financeiros, é violar um direito social já reconhecido na lei, é manter continuamente parte da classe trabalhadora com fome, e, como afirmavam os operários ingleses, é praticar o “assassinato social” (ENGELS, 2010ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra: segundo as observações do autor e fontes autênticas. Tradução de B. A. Schumann. Mundo do trabalho; Coleção Marx-Engel. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 69). A fome não é um fenômeno natural, é uma produção e expressão do próprio capital, tem classe, gênero, raça e endereço.

Agradecimentos

Não se aplica

  • 1
    Diálogo de Elza Soares com o apresentador Ary Barroso, durante participação da cantora no programa Calouros em Desfile, na Rádio Tupi, em 1953, citado por ela em entrevista concedida ao programa Matador de Passarinho, de Rogério Skylab, no Canal Brasil em 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=g-wYdwswq6s. Acesso em: 26 fev. 2022.
  • 2
    De acordo com Matos (2012Matos, R. População, recursos naturais e poder territorializado. Revista Brasileira de Estudos Populares, Rio de Janeiro, v. 29, n. 2, p. 451-476, jul./dez. 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbepop/a/gbLj9nj6Z773x4PfwpzcyyL/?lang=pt
    https://www.scielo.br/j/rbepop/a/gbLj9nj...
    , p. 456-457), as teses de Malthus insistem em não desaparecer, e nos anos de 1960 ganham evidência os neomalthusianos, tendo como expoente o biólogo Paul Ehrlich, que publicou, em 1968, seu famoso livro The population bomb. A ênfase volta-se para o desmatamento, redução da biodiversidade, nas áreas tropicais, efeito estufa, destruição da camada de ozônio.
  • Agência financiadoraNão se aplica
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoAutorizamos a publicação do presente trabalho.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2022
  • Aceito
    20 Maio 2022
  • Revisado
    30 Jun 2022
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