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Ensino e formação virtuais: a nova estratégia do projeto de educação a serviço do capital

Resumo

O artigo desenvolve a hipótese de que há uma íntima relação entre os interesses do capital e educação como estratégia na construção dos sujeitos que vão disputar um mercado de trabalho escasso, precário e instável. Analisa alguns documentos dos organismos multilaterais, seus mecanismos ideológicos e estratégias acionadas na direção de construir consensos sobre a necessidade de um “novo” projeto educacional, no qual há a substituição lenta e gradual do ensino presencial, via sistemas híbridos. Está em curso a mudança mais concreta, completa e complexa do ensino/educação: sua virtualização ou digitalização, que foi projetada desde a reforma de Bolonha (1999). Concluímos que o capital, em sua busca de valorização, encontrou na pandemia as estratégias e táticas para a continuidade e intensificação do uso de tecnologias digitais na educação, transformando-a em ensino à distância e impondo um novo projeto educacional. Este projeto encontrou uma oportunidade e uma justificativa sem precedentes: a Covid-19.

Palavras-chave:
Formação virtual; Estratégia do capital; Projeto de educação; Organismos internacionais

Abstract

The article develops the hypothesis that there’s an intimate relationship between the interests of capital and education, as a strategy in the construction of individuals who will compete in a scarce, precarious and unstable labor market. It analyzes documents from multilateral organizations, their ideological mechanisms and strategies used with the intention of building consensus on the need for a “new” educational project, in which there is a slow and gradual replacement of classroom teaching, via hybrid systems. The most concrete, complete and complex change in teaching/education is underway: it’s virtualization or digitalization, which has been projected since the Bologna reform (1999). We conclude that capital, in it’s search for valorization, found strategies and tactics in the pandemic for the continuity and intensification of the use of digital technologies in education, transforming it into distance learning and imposing a new educational project. This project found an unprecedented opportunity and justification: Covid-19.

Keywords:
Virtual training; Capital strategy; Education project; International organizations

Resumen

Leste El artículo desarrolla la hipótesis de que existe una íntima relación entre los intereses del capital y la educación, como estrategia en la construcción de sujetos que competirán en un mercado laboral escaso, precario e inestable. Se analizan algunos documentos de organismos multilaterales, sus mecanismos ideológicos y estrategias utilizadas en la dirección de construir consensos sobre la necesidad de un “nuevo” proyecto educativo, en el que se presente una lenta y paulatina sustitución de la enseñanza presencial, por sistemas híbridos. Está en marcha el cambio más concreto, completo y complejo en la enseñanza/educación: su virtualización o digitalización, que se proyecta desde la reforma de Bolonia (1999). Concluimos que el capital, en su búsqueda de valorización, encontró en la pandemia las estrategias y tácticas para la continuidad e intensificación del uso de las tecnologías digitales en la educación, transformándola en educación a distancia e imponiendo un nuevo proyecto educativo. Este proyecto encontró una oportunidad y justificación sin precedentes: el Covid-19.

Palabras-clave:
Formación virtual; Estrategia del capital; Proyecto de educación; Organizaciones internacionales


Introdução

Desde 30 de janeiro de 2020 o mundo não é mais o mesmo. As primeiras semanas da nova década foram abaladas pela Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus (SARS-CoV-2), um novo vírus que apareceu pela primeira vez na República Popular da China, em novembro de 2019, se espalhando inicialmente para mais de vinte países, conhecido hoje como Corona Virus Disease (Covid-19). A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou este surto como uma Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional (PHEIC), que além de ceifar dois milhões de vidas até o momento (NAÇÕES UNIDAS, 2022NAÇÕES UNIDAS. Cobertura da ONU News sobre a Covid-19. ONU News, mar. 2022. Disponível em: https://news.un.org/pt/events/coronavirus. Acesso em: 15 jan. 2022.
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), tem causado profundas e, em geral, nefastas alterações nos âmbitos da economia, da política, da cultura, modificando substancialmente nosso cotidiano e nos impondo condições de isolamento, sofrimento e dor. A OMS diante da pandemia, além de difundir orientações para os países, em fevereiro de 2020 ativou sua estratégia global, o R&D Blueprint1 1 Criada em 2016 diante do surto de Ebola, o COVID 2019 PHEIC Global research and innovation forum: towards a research roadmap definiu oito ações imediatas com o objetivo de potenciar, acelerar investigações e adotar medidas preventivas e profilaxias diante da pandemia (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020). , buscando acelerar as atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D).

A imediata e recorrente ideia de que a pandemia, por atingir a todas e todos nos diversos quadrantes do globo, é a responsável pela crise sanitária, econômica, educacional etc. logo se dissipa quando pomos lupa sobre o perfil dos infectados, dos que vieram a óbito, e as respostas e medidas adotadas por cada país. À medida que a taxa de contágio crescia exponencialmente, a gravidade da enfermidade atingiu a todos os segmentos, mas, de modo crítico, a população mais idosa, pessoas com comorbidade, como por exemplo diabetes, doenças cardiovasculares, e as que por suas condições concretas de sobrevivência e trabalho e/ou desemprego não conseguiram cumprir as recomendações sanitárias (isolamento social, quarentena, higiene sistemática das mãos, uso de máscaras, dentre outras formas de proteção). O desconhecimento sobre a enfermidade, os tratamentos nos casos graves que requerem internações hospitalares de longa duração e equipamentos especiais, pressionaram os sistemas públicos de saúde, que se encontravam em todos os quadrantes sucateados devido à falta de investimento, aprofundando as desigualdades sociais já existentes em decorrência dos interesses do capitalismo global. Esta pandemia desnudou os limites sociopolíticos para seu enfrentamento, visibilizando o sistema destrutivo do capital — a coisificação da vida e seu descarte: seja a natureza, sejam os seres humanos.

Às vésperas do reconhecimento da pandemia por parte da OMS, de acordo com as projeções do relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) intitulado World Employment and Social Outlook: Trends 2020, o mundo computaria 188 milhões de desempregados, 165 milhões sem remuneração suficiente e 120 milhões que desistiram de procurar emprego ou estariam sem acesso ao mercado de trabalho (INTERNATIONAL LABOUR OFFICE, 2020INTERNATIONAL LABOUR OFFICE (ILO). World Employment and Social Outlook: Trends 2020 [Relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT)]. Geneva: ILO, 2020. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/---publ/documents/publication/wcms_734455.pdf. Acesso em: 20 nov. 2020.
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). O mundo já vivia uma grave crise econômico-social de implementação do capital, que se aprofundara nos países mais desenvolvidos por volta de 2008. Em verdade, todos os analistas que adotam uma postura crítica diante dos fatos e processos sociais consideram que a crise sanitária apenas aprofunda a crise estrutural do capital que desde os anos 1970 vem agonizando. Conforme o respeitado e reconhecido analista Chenais (2013, p. 21), as raízes desta crise devem ser buscadas na mesma natureza das crises capitalistas, “tendo em vista o elevado grau de densidade nas relações de interconexão e de rapidez de interações na atualidade”, que se realiza em âmbito mundial. Nesta perspectiva, o aprofundamento da crise, as múltiplas e complexas expressões da questão social, os novos determinantes da sua produção e reprodução na contemporaneidade e as repercussões da pandemia em nossas vidas nas diversas particularidades nacionais, a nosso juízo, devem ser compreendidas no modo como o capital financeiro assumiu o comando do processo de acumulação, radicalizando a exploração do trabalho no contexto da mundialização da economia.

No que tange aos aspectos da política internacional no confronto com o conservadorismo reacionário, Cuevas (1987) no século passado já apresentava suas inquietudes sobre o seu recrudescimento no ocidente, especialmente com a vitória de Margaret Thatcher em 1979 e o triunfo do presidente Ronald Reagan em 1980, a rejeição da Europa ao comunismo, as ditaduras do Cone Sul da América Latina, dentre outros marcantes processos históricos. Não obstante, Cuevas (1987) interpreta que na América Latina está longe de ocorrer uma divisão massiva e definitiva entre a consciência humana mais desenvolvida e a força de trabalho mais explorada. Os últimos acontecimentos mundiais mostram que a história em seu processo dialético vem demarcando vitórias significativas para a classe trabalhadora e para o campo das esquerdas, ainda que os meios hegemônicos de comunicação procurem invisibilizá-las, isso quando não patrocinam o seu apagamento ou facilitam as fake news. Optamos por destacar três delas: 1) a vitória de Luis Arce na Bolívia, candidato do Movimento para o Socialismo (MAS); 2) a vitória da chapa Joe Biden/Kamala Harris, a primeira mulher a ocupar o cargo de vice-presidente, sobre o ultraneoliberal Donald Trump; 3) o plebiscito chileno que decidiu por uma nova Constituição, deixando atrás a vigente desde a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).

Contudo, o conservadorismo reacionário tem bases materiais firmes e bem concretas. Mais do que apenas um estilo de pensamento que sustenta práticas sociais no capitalismo, ele se constitui em um conjunto de medidas e estratégias de manutenção, reprodução e valorização do capital na perspectiva de enfrentar sua crise estrutural, global e sistêmica. Dentre essas estratégias, a educação se constitui em um “tesouro”, que, como expressa o relatório da UNESCO2 2 Aqui a menção explícita é ao Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, de Jacques Delors, de 1996, que se firma, dentre outras, na ideia de educação ao longo da vida, conforme será problematizado mais à frente. , estava por ser descoberto.

Nessa direção, a hipótese que nos orienta é a de que o perfil de trabalhador(a) destes novos tempos, que vem sendo forjado pela política educacional dos organismos internacionais (ONU, UNESCO, OCDE, EACEA etc.), adquire — a partir do Processo de Bolonha e adensado no The European Higher Education Area in 2018 Bologna Process Implementation Report da Comissão Europeia/EACEA, da União Europeia — características elementares como: adaptabilidade, resiliência, empreendedorismo, empregabilidade e flexibilidade, resultado tanto da perspectiva tecnicista de educação, quanto do aligeiramento da formação e implantação do ensino remoto/virtual, com implicações no processo ensino-aprendizagem e no trabalho docente, que redunda na formação de um perfil de trabalhador(a) apto aos chamados “novos tempos”. Conforme pretendemos problematizar, a digitalização na educação, declarada como imposta pela pandemia ou mesmo como uma oportunidade dada por ela, é antes uma estratégia que já vem sendo construída nos últimos anos pelo capital e pela ciência a serviço do capital. Nota-se, pois, a relação entre a incorporação da digitalização na educação e a tão propalada “economia do conhecimento”, conceito que se baseia no conhecimento como insumo produtivo, a exemplo da terra, do capital e do trabalho, e na economia baseada no conhecimento, fundamentada na habilidade de gerar, armazenar, recuperar, processar e transmitir informações (TIGRE, 2009TIGRE, P. B. Perspectivas do investimento em tecnologias de informação e Comunicação. Relatório de Pesquisa “Perspectivas do Investimento no Brasil” em parceria com o Instituto de Economia da UNICAMP/ BNDES. Rio de Janeiro: UFRJ. 2009. Disponível em: http://www.projetopib.org/?p=documentos. Acesso em: 10 out. 2020.
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). Esta tendência reafirma, no atual estágio do desenvolvimento capitalista, que tecnologia e conhecimento se tornaram chaves para o aumento da produtividade e para a competição entre os monopólios. Investir na educação vem se constituindo em uma estratégia para o aumento de informações, conhecimentos, habilidades e valores a serviço dos interesses do capital.

Buscou-se identificar, pela análise de alguns documentos dos organismos multilaterais, os mecanismos ideológicos e as estratégias que são acionadas na direção de construir consensos diante das narrativas que argumentam a necessidade de um “novo” projeto educacional, no qual há a substituição lenta e gradual do ensino presencial pelos sistemas híbridos (que combinam ensino à distância e on-line), que passa a ser justificada como única possibilidade diante da pandemia de Covid-19, ainda que em muitas vezes tais mecanismos e estratégias como tal passem despercebidos.

O capitalismo agoniza, mas não morre: as necessidades do capital e suas estratégias de sobrevivência

Nas duas primeiras décadas do século XXI, a crise do capital se aprofundou. A fim de recuperar seu leitmotiv (a acumulação), o capital implementou de maneira crescente e sistemática uma reestruturação global3 3 Aprofundamentos quanto a esta discussão consultar: Mészáros, István. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2009. , com mudanças nas modalidades de trabalho. Difunde aos quatro cantos do mundo ideias, tornando-as realidade: empresa enxuta, empreendedorismo, uberização, part time, home office, zero hour contract, terceirização etc., heterogeneidade que mantém traços comuns, como: insegurança, instabilidade, flexibilidade e precarização. Ou seja, formas disfarçadas das velhas e novas formas de exploração da força de trabalho (ANTUNES; BRAGA, 2009ANTUNES, R.; BRAGA, R. (org.). Infoproletários: degradação real do trabalho virtual. São Paulo: Boitempo, 2009.; ANTUNES, 2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018.).

A era da financeirização do capital conta com as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) (conjunto de ferramentas destinado a transmitir, processar e armazenar digitalmente as informações, bem como o conjunto de processos e produtos derivados das novas tecnologias, como software e hardware), utilizadas nas indústrias e também na área educacional. As TICs são consideradas o elemento mais disruptivo da economia contemporânea, de acordo com o Instituto Mexicano para la Competitividad (IMCO) (LUNA, 2019LUNA, N. ¿Qué son las TICs? Word Economic Forum. Disponível em: https://es.weforum.org/agenda/2019/02/que-son-las-tics/ 2019. Acesso em: 10 out. 2020.
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), integrando e articulando comunicação, tecnologia e os “processos produtivos em inovações que abarcam sistemas ciberfísicos, combinados a redes e a plataformas digitais com abrangência global”, de acordo com Menelau et al. (2019, p. 02), propagando a Indústria 4.04 4 “O termo, criado na Alemanha, Indústria 4.0 foi primeiramente utilizado durante a Hannover Fair, em 2011, onde foi proposta uma nova tendência industrial com o desenvolvimento de ‘smart factories’. As ditas ‘smart factories’ relacionam e articulam sistemas virtuais e físicos que, combinados a redes e plataformas digitais com viabilidade de abrangência globais, proporcionam cadeias de valor revolucionárias” (TADEU; SANTOS, 2016, p. 2-3). .

O mito eurocêntrico da sociedade digitalizada e tecnologizada, capaz de libertar homens e mulheres do sofrimento do trabalho, não só não se concretizou como também introduziu e intensificou níveis de informalidade e precarização das condições de trabalho, ao mesmo tempo em que exige que se constitua uma “intelectualidade do trabalho” através das TICs, segundo Antunes (2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 34).

Neste processo, o saber (a produção de conhecimento) se tornou a base da inovação, da difundida sociedade do conhecimento. As mudanças operadas no modo de produção capitalista e na tecnologia alteraram a ciência e, consequentemente, vêm impactando o locus historicamente de sua produção: a universidade. Nesta direção, Chauí (2003CHAUI, M. A universidade pública sob nova perspectiva. Revista Brasileira de Educação, n.24, 2003. p. 5-15. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-24782003000300002. Acesso em: 20 de jan. 2021.
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, p. 8) considera que “a ciência tornou-se manipulação de objetos construídos por ela mesma — [...] e, como consequência, ela se tornou uma força produtiva e, como tal, inserida na lógica do modo de produção capitalista,” de maneira que o conhecimento e a inovação passaram a compor o próprio capital5 5 Nos limites de nossa proposta, diversos teóricos vêm investigando e discutindo este tema, o que pode ser consultado em Antunes e Braga (org.) 2009. , e os organismos internacionais que defendem e disseminam os interesses do capitalismo mundial — Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional com suas agências — (MELO, 2005MELO, A. A. S. de. A nova pedagogia da hegemonia no Brasil. In: Neves, Lucia M.W. (org.) A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o consenso. São Paulo: Xamã. 2005.) voltam-se para a educação, promovendo e emitindo relatórios com recomendações e ditando suas políticas para os cinco continentes.

No tocante ao ensino superior, ganha centralidade a mais profunda e abrangente mudança na área realizada pelo bloco econômico europeu, o Processo de Bolonha, na União Europeia (UE), a partir de 1998 com a Declaração de Sorbonne, que preconiza a harmonização da arquitetura do sistema europeu de ensino superior. Desde então, a proposta iniciada pelo Tratado de Roma6 6 Este processo foi iniciado com a participação de seis nações: França, Itália, Alemanha Federal, Bélgica, Holanda e Luxemburgo, e em 1957, com o Tratado de Roma, foi criado um mercado único de 180 milhões de europeus. , em 1957, alçou o seu ponto na força unificadora da educação através da Declaração de Bolonha (1999). Construiu o caminho e a definição de “qual educação e formação eram necessárias para o Mercado Comum Europeu e internacional, sob a lógica do capital” (CASTRO; TOMÉ; CARRARA, 2015CASTRO, A. M. de; TOMÉ, R. M.; CARRARA, V. A. A emigração dos assistentes sociais portugueses: faces do trabalho e do desemprego em tempos de crise e austeridade. Serviço Social & Sociedade, v. 00, n. 121, p. 95-124, 2015. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.015. Acesso em: 17 de jan. 2021.
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, p. 104).

O mais ambicioso projeto político-econômico do Ocidente, a UE, transferiu poderes das nações europeias às instituições comuns — Parlamento Europeu, Conselho Europeu, Conselho da União Europeia, Banco Central Europeu, Comissão Europeia etc. —, delegando a estas exercerem parte de sua soberania. Esse processo foi construído após as duas grandes guerras, as quais deixaram saldo de profundas fraturas geopolíticas no continente europeu e, em decorrência da hegemonia dos Estados Unidos, fez-se necessário o fortalecimento desse bloco econômico. Segundo seus documentos, a criação da UE se fundamentou na busca pela construção da paz e do equilíbrio entre os países do continente, com suas necessidades, culturas e idiomas diferentes (UNIÃO EUROPEIA, 2021UNIÃO EUROPEIA. A História da União Europeia. [2021]. Disponível em: https://european-union.europa.eu/principles-countries-history/history-eu_pt Acesso em: 13 jan. 2021.
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). Na realidade, entretanto, foi a lógica expansionista do capital (livre comércio) o motor que impulsionou a sua criação, eliminando barreiras à livre circulação de mercadorias, pessoas, empresas, serviços e capitais (MARTINS; TOMÉ; CARRARA, 2015). O funcionamento da UE entrou em vigor com o Tratado de Lisboa (2009), cabendo à Comissão Europeia (CE) o papel de defesa dos interesses da UE, sendo responsável pelas políticas, orçamento e legislações que devem ser seguidas pelos Estados-Membros. Uma das funções da CE é a formulação de diretrizes para a educação, formação e política para a juventude. A CE sustenta que estas áreas são fundamentais numa economia baseada no conhecimento, já que sustentam o crescimento e o emprego, propiciando o aparecimento de uma população altamente qualificada e adaptável (EUR-Lex, 2021EUR-Lex. Acesso ao direito da União Europeia. ([2021?]). Disponível em: https://eurlex.europa.eu/summary/chapter/education_training_youth.ht[l?root_default=SUM_1_CODED%3D15&locale=pt). Acesso em: 05 jan. 2021.
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) para atender os seus objetivos de coesão social, cidadania ativa e o reforço da dimensão europeia, conforme o referido documento. Afinadas com a perspectiva da “economia do conhecimento” as instituições que compõem a UE — especialmente a Comissão Europeia — em articulação com outros organismos internacionais, se debruçaram a traçar políticas públicas com vistas a garantir que as novas tecnologias viessem a fomentar o crescimento econômico. A educação (enquanto uma política pública) cumpre o papel de gerar competências a estudantes e trabalhadores para a utilização de equipamentos e serviços associados às TICs. Por outro lado, novas regulamentações e novo ordenamento jurídico são requeridos a fim de que os diversos países adotem procedimentos comuns e compartilhados.

Não sem razão, o ano 2000 marcou o lançamento do Espaço Europeu de Investigação (EEI) “com o objetivo de melhor organizar e integrar os sistemas de inovação e reforçar a cooperação entre os estados-membros no campo da ciência” (FUNDAÇÃO PARA CIÊNCIA E TECNOLOGIA, 2020). Ano após ano, a UE vem aprofundando e reformulando estratégias de regulamentação, gestão do financiamento à investigação e inovação no EEI.

Thiengo, Almeida e Bianchetti (2019)THIENGO, L. C.; ALMEIDA, M. L. P.; BIANCHETTI, L. de. Universidade de Classe Mundial no contexto Latino-Americano e Caribenho: o que dizem os Organismos Internacionais. Educar em Revista, v. 35, n. 76, 2019. p. 259-278. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/0104-4060.65341. Acesso em: 15 dez. 2020.
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enfatizam o protagonismo da UE na construção de estratégias comuns que levem à realização dos objetivos estabelecidos pelo Processo de Bolonha. Dentre seus objetivos encontra-se a ampliação da sua capacidade de competir no mercado hegemonizado pelos Estados Unidos da América, de modo que a UE acaba por assumir um papel que vise garantir que a Europa produza ciência e tecnologia de ponta capaz de colocar alguns países do continente em nível de disputar o mercado internacional. Para a formação de perfis que garanta seu projeto e produção de conhecimento “inovador”, faz-se necessário um determinado modelo de universidade, como já mencionado por Chauí (2003)CHAUI, M. A universidade pública sob nova perspectiva. Revista Brasileira de Educação, n.24, 2003. p. 5-15. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-24782003000300002. Acesso em: 20 de jan. 2021.
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, o qual será abordado na sequência.

Pela centralidade que o Processo de Bolonha, desencadeado a partir de 1999, vem ocupando na construção de novas (e não tão novas) subjetividades e seus vínculos com os interesses econômicos, trataremos, ainda que de forma sucinta, tal processo como o marco da nova arquitetura da educação superior, os seus impactos e suas contradições.

Os caminhos de Bolonha: processo, impactos e contradições

O aprofundamento das contradições que movimentam os países europeus e a constatação da incontrolabilidade da pobreza e da desigualdade (como resultado necessário do sistema e de sua crise) têm recebido especial atenção por parte de vários organismos internacionais que, no cumprimento de suas atribuições, estabelecem estratégias na direção de mitigar os efeitos da globalização/mundialização do capital, em busca da sua reprodução/valorização. Nesse sentido, o denominado Processo de Bolonha — a Declaração de Bolonha (1999), alicerçada na Declaração de Sorbonne e a Europa do Saber (1998) —constituiu um acordo internacional conduzido e impulsionado pela CE, que promoveu reformas na educação superior dos países membros da UE e/ou signatários de Bolonha. Esta política se pautou por uniformizar a formação superior através de ações articuladas como: criação de um sistema de graus acadêmicos facilmente reconhecíveis e comparáveis através de um sistema baseado em ciclos de estudos; criação de um sistema de acumulação e de transferência de créditos curriculares do tipo ECTS7 7 Com o European Credit Transfer System (ECTS) pretende-se o reconhecimento dos estudos e diplomas obtidos nos diversos países signatários do Acordo de Bolonha e assim promover a mobilidade dos estudantes e diplomados. Disponível em: https://www.ipportalegre.pt/static/sites/guia/sobre_ects.htm. Acesso em: 15 jan.2021. utilizado no âmbito dos intercâmbios Erasmus; promoção da mobilidade dos estudantes, dos professores e dos investigadores através da supressão de todos os obstáculos à liberdade de circulação; incorporação da dimensão europeia no ensino superior, aumentando o número de módulos, cursos e vertentes cujo conteúdo ou organização apresente uma dimensão europeia. Ressaltamos aqui a “Estratégia Europa 2020: para um crescimento inteligente sustentável e inclusivo”, que foi apresentada pela CE no período entre 2010 e 2020, visando estabelecer articulação entre as particulares políticas nacionais e as políticas estabelecidas por tais organismos para toda a comunidade europeia. Segundo esta estratégia, os países da UE tomaram para si a responsabilidade de alcançar os cinco objetivos, a saber:

a) elevar para, pelo menos,75% a taxa de emprego da população entre os 20 e os 64 anos;

b) investir 3% do Produto Interno Bruto em investigação e desenvolvimento;

c) reduzir em, pelo menos, 20% as emissões de gases com efeito de estufa, aumentar para 20% a quota das energias renováveis e elevar em 20% a eficiência energética;

d) reduzir a taxa de abandono escolar para menos de 10% e aumentar para, pelo menos, 40% a taxa de licenciados do ensino superior;

e) reduzir em 20 milhões o número de pessoas sujeitas ao risco de pobreza ou de exclusão social [...] (EUROPA 2020, 2010).

A proposta, válida para todos os países que compõem o bloco econômico, é de que os objetivos sejam convertidos em estratégias nacionais. Trata-se de uma mudança na política industrial, construção de agenda para a qualificação e emprego e implementação de uma plataforma para a diminuição da pobreza. Como pode ser observado, são objetivos amplos, genéricos e que, ainda sendo fundamentais, necessitariam de estratégias para que atingissem os fundamentos do desemprego estrutural e das condições geradoras da pobreza. Ou seja, que atingissem o coração do modo de produção capitalista. Sem essa postura, tais objetivos são inalcançáveis, meras intencionalidades ou quimeras.

No ano de 2011, em decorrência e de modo complementar à Estratégia 2020, o Banco Mundial lançou o documento intitulado: “Aprendizagem para todos: Estratégia 2020 para a educação” (Learning for all: Education Strategy, 2020), que contempla propostas destinadas à educação para os 10 anos seguintes. Trata-se de um documento muito sucinto, mas que traz ideias recorrentes do começo ao fim, as quais explicitam seus objetivos de interferir na política educacional dos países “parceiros” no sentido de subsidiar, com apoio técnico e financeiro, projetos que ampliem suas possibilidades educacionais e realizem suas reformas para melhorar seus resultados de aprendizagem. Diz o documento:

A nova estratégia centra-se na aprendizagem por uma simples razão: o crescimento, desenvolvimento e redução da pobreza dependem dos conhecimentos e qualificações que as pessoas adquirem, não no número de anos que passaram sentados numa sala de aula (BANCO MUNDIAL apudSAMPAIO, 2017SAMPAIO, L. B. O Banco Mundial e o Documento “Aprendizagem para todos – Estratégia 2020 para a educação”: uma análise da indução ao setor privado. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação. Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista, Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Rio Claro. 2017., p. 28, grifo nosso).

O objetivo de mencionarmos a Estratégia 2020 está no fato de que ela reafirma ideias já encontradas e analisadas ao longo do texto, indicando as formulações centrais que têm sido recorrentes em praticamente todos os documentos dos organismos multilaterais. Trata-se de supostos de extração liberal burguesa, todos eles centrados nos indivíduos e na sua (suposta) capacidade/necessidade de resolver seus próprios problemas, já que, por deterem a posse de si mesmos, são os únicos responsáveis pelo seu próprio sucesso ou fracasso. Tais supostos (que nada têm de novo ou de verdadeiro) podem ser assim explicitados: educação como a estratégia de desenvolvimento social, na medida em que se pressupõe que ela permite a retirada dos países do estado de pobreza (alguns até de miserabilidade) em que se encontram, considerando que se pauta na ilusão de que o crescimento econômico e progresso são resultados das políticas educacionais.

Contudo, a recorrência à política educacional – longe de ser apenas o indicador da qualidade de vida e mecanismo que eleva o seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – é efetivamente um “tesouro” em duas dimensões: constitui um excepcional mercado em expansão e se coloca como a estratégia de formar perfis para um mercado de trabalho flexível, desregulamentado, uberizado, instável, desprofissionalizado. Por isso, não é casual que os objetivos arrolados pelo Banco Mundial com a educação, segundo Tamar Manuelyan Atinc, Vice-Presidente de Desenvolvimento Humano do Banco Mundial, sejam garantir aos jovens e às crianças “conhecimentos e habilidades necessárias para terem vidas saudáveis, produtivas e um emprego significativo” (ATINC, 2011ATINC, T. M. Prefácio. In: BANCO MUNDIAL. Aprendizagem para Todos: Investir nos Conhecimentos e Competências das Pessoas para Promover o Desenvolvimento. Estratégia 2020 para a Educação do Grupo Banco Mundial. Resumo Executivo. Washington: Gimba Media Group, 2011.)8 8 Extraído do prefácio do referido documento. . Atribui-se aos sujeitos, “cidadãos ativos”, a responsabilidade de encontrar bons empregos, desde que a educação que vêm recebendo “ao longo da vida” lhes permita desenvolver as capacidades e habilidades para isso. Fica nítida a ideologia que orienta este e demais documentos aqui apreciados: a empregabilidade é mera condição das capacidades individuais dos “sujeitos aprendentes”.

Assim, o relatório fala em aprendizagem dentro e fora do sistema formal; aprendizagem “para todos”, o que significa inserir segmentos até então alijados do sistema; aprendizagem ao longo da vida, porque considera a importância de desenvolver determinados valores da sociabilidade burguesa; bem como a aprendizagem voltada diretamente ao mercado de trabalho. Aqui é que se encontra a chave que abre o tesouro: construir homens e mulheres à imagem e semelhança das necessidades do sistema socioeconômico, “com vistas a garantir uma vida produtiva e feliz” (ATINC, 2011ATINC, T. M. Prefácio. In: BANCO MUNDIAL. Aprendizagem para Todos: Investir nos Conhecimentos e Competências das Pessoas para Promover o Desenvolvimento. Estratégia 2020 para a Educação do Grupo Banco Mundial. Resumo Executivo. Washington: Gimba Media Group, 2011.).

Ora, retomando a ideia de que a educação é um tesouro, é evidente que o mercado educacional tem sido cada vez mais cobiçado. O documento não esconde e nem sequer disfarça sua preferência pelo setor privado na realização da suposta estratégia de crescimento econômico-social pregada, e também sua concepção de que a educação é uma mercadoria (talvez agora a mais oportuna) diante da crise econômica, ambiental e sanitária que o mundo vive.

Não é casual que o foco central do documento recaia na expansão do ensino via setor privado, adornada pelo discurso da democratização do acesso para os estudantes pobres. Induzem explicitamente as iniciativas de parcerias público-privadas e o ingresso de novos sujeitos que, até então, constituíam uma população periférica que expõe o recorte étnico-racial que excluía especialmente negros e negras e a população indígena, dentre outros segmentos.

Se por um lado a expansão do número de vagas incide sobre as estatísticas que demonstram alterações na condição de pobreza de alguns países, por outro, o projeto educacional em curso (cujo marco é Bolonha) captura novas subjetividades, expandindo seu controle e a manipulação sobre um novo contingente de indivíduos que estava à margem do processo educacional.

Sem dúvida, o clamor “todos pela Educação” abre as portas para os monopólios educacionais internacionais, que passam a se mover de um país a outro de acordo com seus interesses financeiros. A título de exemplo, observa-se que no Brasil foi no ano de 2007 que se abriu o mercado de capitais para a Educação, através da oferta pública de ações. Ocorre que, de lá para cá, este

processo se ampliou, envolvendo não apenas a Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), mas também a Bolsa de Valores de Nova York (Nasdaq), onde algumas empresas brasileiras vêm se inserindo desde 2017. Assim, há atualmente cinco empresas de serviços educacionais cotadas na Bovespa (Kroton, Yduqs, Ser, Ânima e Bahema) e três cotadas na Nasdaq (Arco, Afya e Vasta). Além delas, a Eleva Educação, de propriedade de Jorge Paulo Lemann, anunciou recentemente a pretensão de abrir capital na Bolsa de Nova York (TRICONTINENTAL, 2020TRICONTINENTAL. Cartilha: a educação brasileira na bolsa de valores. Observatório da Financeirização, out. 2020. https://thetricontinental.org/pt-pt/brasil/cartilha-a-educacao-brasileira-na-bolsa-de-valores. Acesso em: nov. 2020.
https://thetricontinental.org/pt-pt/bras...
).

O Observatório da Financeirização mostra, em 15 de outubro de 2020, as oito empresas de capital aberto que atuam no setor. São elas: Kroton Educacional S.A. (também conhecida como Cogna), Yduqs Participações S.A., Ser Educacional S.A., Ânima Holding S.A., Bahema Educação S.A., Arco Educação S.A., Afya Participações S.A., Vasta Plataform Limited (Idem). Esse mercado grande e promissor tem se expandido para dominar a educação em todos os seus níveis. Em 2018, a Kroton (maior monopólio na educação do mundo) se inseriu no ensino básico e editorial; negócio que vale R$ 4,566 bilhões (CHEUICHE, 2018CHEUICHE, P. O Monopólio da Kroton-Anhanguera. Rede Internacional em 7 Línguas, 23 abr. 2018. Disponível em: https://esquerdadiario.com.br/Kroton-o-maior-monopolio-na-educacao-do-mundo-compra-grupo-SOMOS-que-detem-pH-e-Saraiva. Acesso em: 13 jan. 2021.
https://esquerdadiario.com.br/Kroton-o-m...
), segundo a imprensa crítica.

No Brasil, em 2014, a Kroton se fundiu com o grupo Anhanguera Educacional e se tornou a maior empresa de educação do mundo – no que concerne ao seu capital e número de alunos (cerca de 1,5 milhão). Desenvolveu o seu próprio modelo de educação, o Kroton Learning System 2.0, e atua em todos os níveis, desde o ensino básico até os cursos livres e preparatórios. Através da sua holding, a Cogna Educação, o grupo também atua no setor de línguas, elaboração de material didático, oferta de serviços e gestão de escolas (EXAME, 2019EXAME. Kroton passa a se chamar Cogna e divide grupo em quatro empresas. Da redação, out. 2019. Disponível em: https://exame.com/negocios/kroton-passa-a-se-chamar-cogna-e-divide-grupo-em-quatro-marcas/. Acesso em: 13 jan. 2021.
https://exame.com/negocios/kroton-passa-...
). Essa breve digressão teve como intuito demonstrar que os interesses do capital com a educação são sinceros, tanto como um “tesouro” a ser explorado até as últimas consequências quanto como uma forma de difundir sua ideologia e disputar as consciências.

Seguindo a trilha iniciada e indicada por Bolonha, a Estratégia Europa 2020 contempla o Programa Horizonte 2020 como o maior programa de investigação e inovação da UE, o qual tem por objetivo produzir pesquisadores e produtos que atendam aos interesses do setor produtivo. Conforme sua convocatória, o programa apresenta três pilares que corroboram a intencionalidade política dos organismos que o financiam: no primeiro pilar estão os desafios sociais. Preconiza-se a pesquisa e inovação direcionadas a enfrentar as sequelas deixadas pelo sistema capitalista, abrindo espaço para as ciências humanas e sociais e, dentre estas, as aplicadas; o segundo pilar é o de tornar competitivas as ciências e produções de conhecimento dos países europeus, para o que é necessário estabelecer a infraestrutura de pesquisa que de um lado seja capaz de evitar a migração ou fuga de cérebros e, de outro, torne os países do bloco cada vez mais atraentes aos intelectuais de excelência; e, o terceiro pilar talvez seja o que consagra seus objetivos: captar recursos via investimento privado e apoiar projetos de inovação e investigação relevantes para pequenas e médias empresas — certamente como uma saída individual ao desemprego e construção de subjetividades empreendedoras.

Do que tem sido analisado, cabe insistir no fato de que não se trata apenas de reconhecer o papel da União Europeia na construção e consolidação de um modelo de fazer pesquisa, mas mais do que isso: trata-se de reconhecê-la como uma organização que dita a ideologia e reforça determinado projeto de educação e de produção do conhecimento em busca de construir consensos que lhe garantam ocupar posição hegemônica na consolidação da sociedade do conhecimento e no ranking mundial. Pela via da definição de prioridades e de critérios para concorrer aos financiamentos, forja-se um modelo de ciência que tem que ser realizado por determinado modelo de universidade, como fica evidenciado pelo projeto Horizonte 2020. Esse projeto necessita de uma universidade globalizada com aspectos universais nos moldes dados por Bolonha, dentro de determinados padrões de excelência ditados pelos organismos multilaterais a serviço do capital e de sua lógica: competitividade, como resultado do ranking; liberdade de movimento e supressão das barreiras nacionais; fluidez, agilidade e flexibilidade.

Importante notar que esse modelo de pesquisa, que tem sido importado para a América Latina, pauta-se em exigências de excelência que são concebidas como sinônimo de internacionalização, ainda que possam ser legítimas.

O artigo de Thiengo, Almeida e Bianchetti (2019)THIENGO, L. C.; ALMEIDA, M. L. P.; BIANCHETTI, L. de. Universidade de Classe Mundial no contexto Latino-Americano e Caribenho: o que dizem os Organismos Internacionais. Educar em Revista, v. 35, n. 76, 2019. p. 259-278. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/0104-4060.65341. Acesso em: 15 dez. 2020.
https://dx.doi.org/10.1590/0104-4060.653...
, tendo no horizonte o contexto da América Latina, apresenta uma análise crítica a esse projeto de universidade. Indica que o carro-chefe desse projeto na América Latina é a internacionalização, a qual cria a oportunidade da captação de cérebros pela via de mobilidade e de projetos de cooperação.

Esta universidade está aberta aos influxos das tendências atuais da educação, na direção de construir o perfil de trabalhador destes novos tempos. Certamente, desde a década de 1990, ela abarca as bases didático-pedagógicas da orientação do “aprender a aprender” e opera com a pedagogia das competências. Contudo, apresenta algo novo que tem sido gestado nos últimos anos, tendo em vista as necessidades do mercado: a competência digital, inaugurando uma nova literacia, como apresentaremos a seguir.

Forjar perfis para o mercado digital da educação

Temos tentado construir nossa linha de argumentação na direção de que há uma relação dialética entre a crise estrutural do capital e o modelo educacional proposto pelos organismos internacionais, e suas estratégias para efetivá-lo requerem estabelecer agora um novo consenso direcionado pela via de um determinado paradigma de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação.

Não sem razão, Dyserinck (2007, p. 01) relembra a declaração de um dos arquitetos da Comunidade Econômica Europeia, Jean Monnet, que a certa altura do processo da edificação deste bloco afirmou que “se tivesse de recomeçar seu trabalho sobre a União Europeia — começaria com a cultura e não com a economia e indústria”. Portanto, a educação cumpre papel fundamental no amálgama e na construção de consensos, sendo que a investigação e os conhecimentos por ela produzidos devem fornecer base e alicerce sobre os quais são forjados os perfis dos futuros trabalhadores, em sistemático processo de aprendizagem ao longo da vida.

Corolário deste processo são as bases didático-pedagógicas9 9 Nos limites deste trabalho destacamos que esta proposta tem raízes no movimento das ideias pedagógicas do escolanovismo e neo-escolanovismo (Cf. SAVIANI, 2008). indicadas por Delors (1996) e amplamente difundidas na década de 1990 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que traçou as linhas orientadoras para a educação mundial do século XXI; esta, por sua vez, vem fundamentando as propostas do Processo de Bolonha.

A posição da União Europeia, em face do conceito de aprendizagem ao longo da vida, insere-se no contexto do Relatório Delors, pois é por meio dele que se procurará alcançar uma sociedade educativa e uma sociedade aprendente, “a partir de quatro tipos de aprendizagem: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a viver junto” (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2002, p. 67).

Esta discussão nos situa no debate sobre o processo ensino-aprendizagem, que, por sua vez, nos remete ao processo de construção do conhecimento sobre a realidade social da qual fazemos parte e que construímos. Segundo Saviani (2008SAVIANI, D. Histórias das ideias pedagógicas no Brasil. Coleção Memória a Educação. Campinas: Autores Associados. 2008., p. 432), a educação contida na máxima do “aprender a aprender, liga-se à necessidade de constante atualização exigida pela necessidade de ampliar a esfera da empregabilidade”. De acordo com Fonseca (1998, p. 307), a atual economia requer a gestão do imprevisível, pois não se pode mais contar com empregos seguros e estáveis, de maneira que “investir no desenvolvimento do seu potencial de adaptabilidade e de empregabilidade” deve ser a busca de empresários e trabalhadores.

Em consonância com a proposta de Delors (1996), diante de um mundo em rápida transformação, exige-se ao longo de toda a vida uma educação capaz de responder a este desafio. Urge “capacitar para adquirir novas competências e saberes, pois as novas relações entre conhecimento e trabalho exigem capacidades de iniciativa e inovação e, mais do que nunca, aprender a aprender, num contínuo processo de educação permanente” (BRASIL, 1997, p. 34, apudSAVIANI, 2008SAVIANI, D. Histórias das ideias pedagógicas no Brasil. Coleção Memória a Educação. Campinas: Autores Associados. 2008., p. 433). Estas ideias vão se alinhar com a pedagogia das competências, que, de acordo com Saviani (2008SAVIANI, D. Histórias das ideias pedagógicas no Brasil. Coleção Memória a Educação. Campinas: Autores Associados. 2008., p. 437),

apresenta-se como a outra face da “pedagogia do aprender a aprender”, cujo objetivo é dotar os indivíduos de comportamentos flexíveis que lhes permitam ajustar-se às condições de uma sociedade em que as próprias necessidades de sobrevivência não estão garantidas. Sua satisfação deixou de ser compromisso coletivo, ficando sob a responsabilidade dos próprios sujeitos que, segundo a raiz etimológica dessa palavra, se encontram subjugadas à “mão invisível do mercado”.

Então, sob esta perspectiva, o que vamos encontrar é uma lógica que dirige e alimenta o processo de conhecer a realidade através da aprendizagem de determinado modo de conhecer, ensinado sob a lógica das competências. O conhecimento, nessa perspectiva, não se constrói pela busca histórica de interpretação da realidade em sua essência e não é concebido ontologicamente e como uma produção social e histórica: ele é aprisionado nas evidências presentes, não sendo ultrapassado em sua aparência fenomênica.

Em uma perspectiva de totalidade, a análise dos documentos tem demonstrado que a pedagogia do aprender a aprender e a digitalização têm sido foco de atenção e indicadas como problemáticas a serem enfrentadas pelos países. Isso pode ser constatado em dois documentos da maior importância: no The European Higher Education Area in 2018 Bologna Process Implementation Report, da Comissão Europeia/EACEA (2018), e também no Informe sobre el Desarrollo Mundial - Aprender para hacer Realidad la Promesa de la Educación de 2018, do Banco Mundial (GRUPO BANCO MUNDIAL, 2018GRUPO BANCO MUNDIAL. Aprender: para hacer realidad la promesa de la educación: panorama general. Informe sobre el desarrollo mundial, 2018. Disponível em: http://iin.oea.org/pdf-iin/RH/2018/5BANCO%20MUNDIAL%20APRENDER%20MEJOR.pdf. Acesso em: 20 mar. 2021.
http://iin.oea.org/pdf-iin/RH/2018/5BANC...
), que abordam os processos de ensino e aprendizagem, as tecnologias digitais e os ambientes virtuais como prioridades a serem adotadas pelos países enquanto políticas de educação digital.

Os dados coletados para The European Higher Education Area in 2018 Bologna Process Implementation Report se baseiam em várias fontes10 10 Uma das importantes fontes é o Relatório Tendências 2018 da Associação de Universidades Europeias (European University Association), que fornece uma perspectiva institucional sobre a evolução da educação na Europa, envolvendo 303 instituições de ensino superior de 43 dos sistemas do Espaço Europeu de Ensino Superior, tendo o ano de 2017 como referência. , tendo 2016/2017 como o ano de referência dos dados dos países do Espaço Europeu de Ensino Superior. Importante mencionar que ele traz ao longo de seus sete capítulos as metas, os objetivos do Processo de Bolonha e as recentes prioridades de sua agenda política, como: implementação dos principais compromissos; aprendizagem e ensino; empregabilidade; e inclusão social.

Para efeito da nossa argumentação, enfatizamos dois dos seus sete capítulos: os capítulos 2 (Learning and Teaching) e 6 (Relevance of the Outcomes and Employability)11 11 Aprendizagem e ensino; Relevância dos Resultados e Empregabilidade (tradução nossa). , respectivamente. Os elaboradores dos documentos reconhecem, corretamente, que os diplomados foram duramente atingidos pela crise econômica de 2008. Ainda que a situação seja diferenciada entre os países do Espaço Europeu de Ensino Superior, os empregos são precários e instáveis, com taxas de desemprego altas em comparação com trabalhadores com níveis educacionais mais baixos. Os dados quanto à Relevância dos Resultados e Empregabilidade demonstram uma continuidade com o discurso inicial do Processo de Bolonha: a empregabilidade aos concluintes do primeiro ciclo — a graduação —, com atenção na necessidade de melhorar a empregabilidade com a aprendizagem ao longo da vida ativa, em face às rápidas mudanças no mercado de trabalho.

Ao que tudo indica, a proposta segue seu viés individualista: como se tornar uma mão de obra empregável! Nesta direção, os representantes nacionais assumem o compromisso de fortalecer o diálogo com os empregadores, implementar programas com um bom equilíbrio entre componentes teóricos e práticos, promover as competências de empreendedorismo e inovação dos alunos e acompanhar a evolução da carreira dos graduados.

Quanto à aprendizagem e o ensino, destacamos os itens 2.4 (Learning in digital environments) e (2.5 Teaching in new learning environments)12 12 2.4 Aprendizagem em ambientes digitais; 2.5. Ensino em novos ambientes de aprendizagem (tradução nossa). , os quais compõem a resposta às questões referentes à identificação dos potenciais benefícios das tecnologias digitais para a melhoria da qualidade e a relevância da aprendizagem e do ensino na educação superior. A utilização da tecnologia digital na graduação é enfatizada em sua intrínseca relação com o mercado de trabalho. Novamente, a tônica se volta para a formação com habilidades profissionais relevantes para o mercado — leia-se as TICs — e, no discurso defendido, afirmam que sua negligência gerará menos oportunidade em pesquisa, atraso significativo na inovação nas instituições de ensino superior e na economia. A tecnologia digital na educação aparece aqui como a solução para o desemprego, novamente como uma saída e promessa a ser realizada através da aquisição de competências e habilidades em literacia digital — por cada indivíduo ao longo de sua vida ativa.

Diante das contradições e limites enfrentados pelo Processo de Bolonha em garantir aos diplomados imediata inserção no mercado de trabalho (uma das promessas e argumentos feitos na defesa e adesão à reforma educacional intergovernamental), uma estratégia para a manutenção de seu discurso é a via da digitalização como nova competência e habilidade a ser adquirida pelos jovens e adultos como “uma oportunidade” para a sua empregabilidade.

Recentemente, foi publicado na mesma linha dos relatórios iniciais o The European Higher Education Area in 2020 Bologna Process Implementation Report (EUROPEAN COMMISSION/EACEA/EURYDICE, 2018EUROPEAN COMMISSION/EACEA/EURYDICE. The European Higher Education Area in 2018: Bologna Process Implementation Report. Luxembourg: Publications Office of the European Union. 2018. Disponível em: https://eacea.ec.europa.eu/national-policies/eurydice/sites/default/files/bologna_internet_0.pdf. Acesso em: 15 jan. 2021.
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), reforçando a eficácia das reformas educacionais sob a égide do Processo de Bolonha. Contudo, diante da pandemia, este relatório é contundente na afirmação de que o Espaço Europeu do Conhecimento — leia-se o ensino superior e os centros de investigação — deve funcionar como motor do Processo de Bolona, assumindo os compromissos da CE sobre a Educação Digital com o seu recente Plano de Ação como uma chave a contribuir para uma sociedade resiliente, verde e digital.

Literacia digital na educação: o placebo para a desigualdade social e para o desemprego ao longo da vida

Com a popularização das novas tecnologias, sua utilização em todos os âmbitos e segmentos do setor produtivo e de serviços da sociedade contemporânea, os organismos internacionais já referenciados anteriormente e os empresários da educação vêm defendendo a expansão e acessibilidade do ensino superior a todos os indivíduos através das TICs, que possibilitam uma educação ao longo da vida de modo flexível, em tempos e espaços distintos.

Mas, é preciso perguntar: que projeto de educação está em curso quando se coloca no centro do debate do acesso à educação e da educação superior a dimensão tecnológica? Qual concepção de educação subjaz a esta estratégia que traz a habilidade no uso da técnica digital como resposta e solução para a empregabilidade?

É certo que as evidências das descobertas e invenções advindas do conhecimento humano sobre o instrumental de trabalho vêm gerando com as TICs rápidos avanços, progressos e mudanças para a humanidade. Mas também não restam dúvidas de que essas mesmas inovações, que incrementam o capitalismo e controlam objetivamente o trabalho, não são capazes de minimizar as desigualdades sociais e o desemprego que se aprofundam em uma sociedade erguida sobre as contradições da relação capital-trabalho.

Desde 2014, cerca de metade das instituições educacionais europeias tem recorrido ao lançamento de programas on-line, ao uso mais estratégico das ferramentas digitais e ao investimento na aprendizagem e ensino digitais. O cenário digital no ensino superior europeu, apresentado pelo The European Higher Education Area in 2018 Bologna Process Implementation Report, conclui que o aprendizado digital está se tornando parte de programas de graduação baseados no campus, e que programas de graduação tradicionais incorporam componentes online (cursos combinados) e programas de graduação totalmente online já podem ser encontrados.

Ao longo de nossa reflexão, buscamos evidenciar e argumentar que na agenda socioeconômica mais alargada da UE (recordemos a Estratégia Europa 2020), a educação e a formação constituem áreas fundamentais, cabendo ao Processo de Bolonha estabelecer periodicamente o monitoramento, avaliação e correções de rota da maior reforma educacional transnacional já realizada. O Processo de Bolonha, neste contexto, entra em nova fase com a proposta da educação digital, defendida como “uma educação verdadeiramente inclusiva e de alta qualidade na Europa” (CE, 2020).

A “soberania digital” se tornou central para a UE fortalecer a sua política econômica. “A transformação digital é uma das prioridades da Comissão, conforme definido na sua estratégia emblemática, Uma Europa adequada à era digital” (CE, 2020). Com isso, definir padrões, cuidar da infraestrutura para esta tecnologia e a produção de dados são fundamentais, como assegura Mariya Gabriel, Comissária de Inovação, Pesquisa, Cultura, Educação e Juventude da CE (CE, 2020). Tais formulações também se encontram nos relatórios de implementação do Processo de Bolonha.

As esperanças depositadas nos avanços tecnológicos da educação digitalizada se configuram, no contexto da pandemia de Covid-19, como o placebo planificado ao longo dos últimos vinte anos do Processo de Bolonha (discutido na seção anterior) — agora materializado no Plano de Ação de Educação Digital (2021-2027), lançado em novembro de 2020 pela CE, com o objetivo de reconfigurar a educação e a formação para o que consideram ser a “era digital” (EUROPEAN COMMISSION, 2021), no mesmo mês em que o mundo contava um recorde de 11.099 mortes diárias por Covid-19, e um total de 1,3 milhão de óbitos em todo o planeta, segundo dados da Universidade Johns Hopkins (EUA) (MAZZO, 2020MAZZO, A. CORONAVÍRUS: Mundo bate recorde diário de mortes por Covid-19 com 11.099 óbitos em 17 de novembro. Folha de São Paulo, 18 nov. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/11/mundo-bate-recorde-diario-de-mortes-por-covid-19-com-11099-obitos-em-17-de-novembro.shtml. Acesso em: 24 mar. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio...
).

Uma consulta pública na página da CE13 13 O questionário recebeu 2.716 respostas e foi composto por quatro partes: 1) identificação dos entrevistados; 2) os pontos de vista dos entrevistados sobre educação e treinamento durante a crise do COVID-19 e o período de recuperação; 3) aspectos sobre a visão dos respondentes para a educação digital na Europa; 4) levantamento de pontos específicos não cobertos no questionário ou fornecer informações adicionais. Resetting education and training for the digital age Ref. Ares (2020)5471597 (EUROPEAN COMMISSION, 2022). — “Aprendendo com a crise da Covid-19: ensino, aprendizagem e tecnologia em um mundo em mudança” — antecedeu ao lançamento desse Plano, cujo objetivo (explicitado na própria página) foi recolher experiências e opiniões de diferentes segmentos públicos e privados da sociedade “sobre a crise sem precedentes do Coronavírus, a mudança relacionada para a aprendizagem à distância e online e sua visão para o futuro da educação digital na Europa” (CE, 2020). Os resultados das 2.716 respostas desta consulta informam que antes da pandemia do Covid-19, 60% não utilizavam a aprendizagem à distância e online; 95% consideram que a pandemia assinala um ponto de inflexão na utilização da tecnologia na educação e formação, mas que os recursos e conteúdos para aprendizagem devem ser interativos e fáceis de utilização; mais de 60% dos respondentes informam que suas competências digitais melhoraram neste período e 50% querem continuar a fazê-lo.

A pandemia de Covid-19 pôs em evidência o papel da tecnologia na educação para o mercado, acelerou o processo de adaptação dos sistemas de educação e a formação que estava em curso, reforçando discurso e ideologia das oportunidades e resiliência frente aos desafios impostos pelas crises. Da educação remota temporária e emergencial, o salto foi dado para a denominada era digital, com vistas a permanecer no ensino e pesquisa, de acordo com o Plano de Ação (2021-2027).

A UE expressa a visão que o bloco econômico-político tem sobre a educação, a educação digital e seu papel numa economia em renovadas crises desde os anos de 1970, mas sem atacar de fato as suas raízes. A capacitação digital de docentes e a capacitação e inclusão digital das pessoas se constituem nos aspectos referenciados do documento para a recuperação da próxima geração da UE, e duas prioridades do novo plano são destacadas: “promover o desenvolvimento de um ecossistema de educação digital altamente eficaz” e “reforçar as competências e aptidões digitais para a transformação digital”. Isto requer o aprofundamento da presença das tecnologias na vida dos trabalhadores da educação e de estudantes com destaque para o que chamam de ferramentas conviviais, alargamento de estágios digitais e a formação e inserção de mulheres em carreiras na área digital. Ao reforçar a cooperação e o intercâmbio tão aos moldes do Processo de Bolonha, o Plano propõe a criação de uma plataforma europeia de educação digital, o que não nos deixa dúvida da intencionalidade da UE com suas instituições articuladas com os organismos internacionais. A continuidade e intensificação do uso das tecnologias digitais na educação encontrou uma justificativa sem precedentes: pandemia de Covid-19.

Considerações finais

O caminho percorrido neste artigo e a pesquisa realizada em documentos oficiais de organismos multilaterais nos permitem reforçar a hipótese da qual partimos: a íntima relação entre os interesses do capital e a educação, como estratégia na construção dos sujeitos que vão disputar um mercado de trabalho escasso, precário e instável, adaptando-se a ele com resiliência e complacência.

A educação como o dispositivo do capital adequado para a formação de subjetividades adaptadas aos contextos não acrescenta nada de novo. Tampouco são novas as iniciativas de organismos internacionais na elaboração de planos, projetos, estratégias e documentos que orientam as políticas econômicas e educacionais (evidenciadas na chamada “economia do conhecimento”) que buscamos problematizar.

As ideias-chave encontradas funcionam como um mantra, uma vez que se repetem em todos os documentos. Através de seus pressupostos, tais ideias que representam os projetos dos organismos estão ligadas como fios que tecem o projeto social do capital. Na dinâmica do processo de valorização, na etapa de financeirização e no movimento de globalização do capital, a educação é um “tesouro” ou, como se vê nos discursos dos agentes econômicos, é o caminho do desenvolvimento e do progresso socioeconômicos. É um tesouro que foi descoberto tanto através da exploração de um mercado novo e rentável como na construção de novas mentalidades que garantem a continuidade de seus projetos. Mas era urgente e necessário radicalizar as disposições do pacto de 1999 diante do agravamento da crise estrutural de capital nos anos 2000.

A educação, como qualquer outra mercadoria, tinha que ser mais barata, o que significou uma redução no tempo e custo de sua produção. Não é por acaso que uma das mudanças mais significativas da reforma de Bolonha foi a redução do tempo destinado ao “treinamento”, reduzindo para seis e no máximo sete semestres a duração dos cursos que antes eram dez semestres, como por exemplo o título de Serviço Social em Portugal nas décadas de 1980 e 1990 até a Reforma de Bolonha. Atualmente, a duração dos cursos de graduação e mestrado conjuntos não excedem cinco anos e a duração do curso de doutorado é seis a oito semestres. A engenharia da educação virtual ou a digitalização de educação sintetiza os interesses dos monopólios e dos governos a serviço das empresas de educação e tecnologia digital.

Na consolidação e aprofundamento do modelo inaugurado pelo Processo de Bolonha (1999) várias estratégias foram construídas: pesquisa e produção de conhecimento, com ênfase na pesquisa aplicada e que responda aos interesses do setor industrial; abertura do mercado ao setor privado, com destaque para mercado da informação voltado para um novo modelo de universidade cada vez mais competitivo e globalizado, com ênfase na internacionalização; a adoção de um modelo de ensino-aprendizagem, com ênfase em plataformas digitais; uma pedagogia com base em competências específicas, com foco na competência digital através do uso de novos sistemas de informação como instrumentos didático-pedagógicos; afirmação de uma política de internacionalização, com ênfase na atração de intelectuais que produzem inovação e garantem novas patentes para o capital; construção de sujeitos alfabetizados digitais, agora formando o antigo, mas qualificado, exército de reserva digital etc.

Não é por acaso que se prega a aprendizagem ao longo da vida, retornando sistematicamente ao sujeito, em sua obrigação permanente de se preparar para um mercado de mão de obra cada vez mais exigente e altamente qualificado. Vemos que o mito eurocêntrico da sociedade digitalizada e tecnificada não foi capaz de cumprir com o que foi prometido, conforme indicado acima. Melhor, vem aprisionando os sujeitos no ciclo não virtuoso, mas repetitivo e vicioso, em que são tanto culpados por sua incapacidade de lidar com o desemprego quanto responsabilizados por investir em sua alfabetização digital como parte do processo de educação permanente. Essa lógica do sujeito individualista, deixado por conta própria, é perfeitamente combinada com as atividades remotas e virtuais.

Os documentos falam por si. Esperamos ter mostrado que está em curso a mudança mais concreta, completa e complexa do ensino/educação: a sua virtualização ou digitalização, que foi projetada há algum tempo, como se pode ver nos documentos analisados, mas que teve resistência, seja pela ausência de sujeitos (professores e alunos) instrumentalmente preparados, seja pela resistência de intelectuais, sindicatos, organizações acadêmico-científicas e estudantis, que entenderam que tais mudanças alteram a própria natureza da educação. Educar é um ato que requer interação e troca entre vários sujeitos: professor-aluno e estes entre outros. Pressupõe condições objetivas e subjetivas, cognitivas, afetivas e postura ético-política que transcenda os meios e as formas de ensino. Esses são certamente importantes. Por mais eficientes que sejam, os meios tecnológicos não podem e não contribuirão para a formação de uma consciência crítica, humanista e integral.

Concluímos que, na sua busca por valorização, o capital encontrou na pandemia estratégias e táticas para a continuidade e intensificação do uso de tecnologias digitais na educação, transformando a educação em ensino à distância e impondo um novo projeto educacional. Este projeto encontrou uma oportunidade e uma justificativa sem precedentes: a Covid-19.

Agradecimentos

O artigo em tela foi originalmente publicado em espanhol no livro El Trabajo Social frente a las actuales crisis sócio-políticas: Debates para un nuevo proyecto disciplinario. Arraiagada, Luis A. V. Universidade Católica de Temuco- Chile. Santiago: Ril Editores, Ediciones Universidad Catolica de Temuco, 2022. Agradecemos ao organizador e à Universidade Católica de Temuco.

  • 1
    Criada em 2016 diante do surto de Ebola, o COVID 2019 PHEIC Global research and innovation forum: towards a research roadmap definiu oito ações imediatas com o objetivo de potenciar, acelerar investigações e adotar medidas preventivas e profilaxias diante da pandemia (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020WORLD HEALTH ORGANIZATION. COVID-19: Public Health Emergency of International Concern (PHEIC) Global research and innovation forum. Feb. 2020. Disponível em: https://www.who.int/publications/m/item/covid-19-public-health-emergency-of-international-concern-(pheic)-global-research-and-innovation-forum. Acesso em: 27 nov. 2020.
    https://www.who.int/publications/m/item/...
    ).
  • 2
    Aqui a menção explícita é ao Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, de Jacques Delors, de 1996, que se firma, dentre outras, na ideia de educação ao longo da vida, conforme será problematizado mais à frente.
  • 3
    Aprofundamentos quanto a esta discussão consultar: Mészáros, István. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2009.
  • 4
    “O termo, criado na Alemanha, Indústria 4.0 foi primeiramente utilizado durante a Hannover Fair, em 2011, onde foi proposta uma nova tendência industrial com o desenvolvimento de ‘smart factories’. As ditas ‘smart factories’ relacionam e articulam sistemas virtuais e físicos que, combinados a redes e plataformas digitais com viabilidade de abrangência globais, proporcionam cadeias de valor revolucionárias” (TADEU; SANTOS, 2016TADEU, H. F. B.; SANTOS, E. S. dos. Impactos da Indústria 4.0. Fundação Dom Cabral. Resenha Pesquisa sobre digitalização. 2016. Disponível em: https://www.fdc.org.br/conhecimento-site/nucleos-de-pesquisa-site/centro-de-referencia-site/Materiais/Impactos%20da%20Ind%C3%BAstria%204.0.pdf. Acesso em: 15 nov. 2020.
    https://www.fdc.org.br/conhecimento-site...
    , p. 2-3).
  • 5
    Nos limites de nossa proposta, diversos teóricos vêm investigando e discutindo este tema, o que pode ser consultado em Antunes e Braga (org.) 2009.
  • 6
    Este processo foi iniciado com a participação de seis nações: França, Itália, Alemanha Federal, Bélgica, Holanda e Luxemburgo, e em 1957, com o Tratado de Roma, foi criado um mercado único de 180 milhões de europeus.
  • 7
    Com o European Credit Transfer System (ECTS) pretende-se o reconhecimento dos estudos e diplomas obtidos nos diversos países signatários do Acordo de Bolonha e assim promover a mobilidade dos estudantes e diplomados. Disponível em: https://www.ipportalegre.pt/static/sites/guia/sobre_ects.htm. Acesso em: 15 jan.2021.
  • 8
    Extraído do prefácio do referido documento.
  • 9
    Nos limites deste trabalho destacamos que esta proposta tem raízes no movimento das ideias pedagógicas do escolanovismo e neo-escolanovismo (Cf. SAVIANI, 2008SAVIANI, D. Histórias das ideias pedagógicas no Brasil. Coleção Memória a Educação. Campinas: Autores Associados. 2008.).
  • 10
    Uma das importantes fontes é o Relatório Tendências 2018 da Associação de Universidades Europeias (European University Association), que fornece uma perspectiva institucional sobre a evolução da educação na Europa, envolvendo 303 instituições de ensino superior de 43 dos sistemas do Espaço Europeu de Ensino Superior, tendo o ano de 2017 como referência.
  • 11
    Aprendizagem e ensino; Relevância dos Resultados e Empregabilidade (tradução nossa).
  • 12
    2.4 Aprendizagem em ambientes digitais; 2.5. Ensino em novos ambientes de aprendizagem (tradução nossa).
  • 13
    O questionário recebeu 2.716 respostas e foi composto por quatro partes: 1) identificação dos entrevistados; 2) os pontos de vista dos entrevistados sobre educação e treinamento durante a crise do COVID-19 e o período de recuperação; 3) aspectos sobre a visão dos respondentes para a educação digital na Europa; 4) levantamento de pontos específicos não cobertos no questionário ou fornecer informações adicionais. Resetting education and training for the digital age Ref. Ares (2020)5471597 (EUROPEAN COMMISSION, 2022EUROPEAN COMMISSION. Plano de Ação para a Educação Digital (2021-2027): O que é o Plano de Ação para a Educação Digital? European Education Area: Quality education and training for all, 2022. Disponível em: https://education.ec.europa.eu/pt-pt/focus-topics/digital-education/digital-education-action-plan. Acesso em: 15 mar. 2021.
    https://education.ec.europa.eu/pt-pt/foc...
    ).
  • Agência financiadoraEste trabalho é fruto dos resultados obtidos da investigação “A Formação em Serviço Social na Espanha pós Bolonha: fundamentos e perfil profissional” desenvolvida através do Edital/Programa: 27/2019/PROGRAMA DE INICIAÇÃO À PESQUISA - 1º SEMESTRE da PROPPI da UFOP. Recebeu apoio do CNPq através de Bolsa Produtividade 1 A. Projeto: SERVIÇO SOCIAL: FUNDAMENTOS, HISTÓRIA, MEMÓRIA, TRAJETÓRIA. Processo: 314643/2021-4.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoAutorizamos a publicação do presente trabalho.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2022
  • Aceito
    20 Maio 2022
  • Revisado
    06 Jun 2022
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